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Eram bonitas aquelas pedras, aqueles
paralelepípedos em granito de vários tons, do cinza-escuro ao rosa,
úmidos de cerração, reluzindo à luz fraca das lâmpadas dos postes.
Moacyr Scliar em Os voluntários
A cidade e suas ruas, seus becos, suas
edificações, suas áreas de lazer e o seu permanente fascínio sobre os
homens permite que da sua imprecisão semântica possa se criar muitas
rupturas. Aberta como uma poesia, a cidade é o lugar que aceita homens
quaisquer de quaisquer lugares, em que todos se identificam e talvez por
isso mesmo seja território de ninguém. Cada vez mais metafórica, abriga
homens, mulheres, velhos e crianças e deixa cada um em constante
desamparo.
O espaço assume, com o crescimento da
cidade, uma importância crucial, aonde o homem procura nela seu lugar e
o mundo parece lhe oferecer como resposta a incerteza, a angústia, o
caos, o relativismo e a complexidade.
A partir da modernidade esta relação
passou a uma espécie de registro histórico e a costura que se deu entre
literatura e cidade redimensionou a urbe, deflagrando uma mudança no
espaço aliado a uma fragmentação das relações e dos indivíduos. Nesta
dialética citadina, a tensão entre homem e espaço é elemento
estruturante para a deformação da realidade.
Neste contexto hipertrofiado, que se
instaurou a partir da revolução industrial, ler a cidade e representá-la
na literatura é um desafio que avançou pelo tempo e chegou até hoje. A
crise da individualidade que nasce deste momento traz uma perda de
identidade que se acentua na mesma proporção das construções físicas. A
cidade é um corpo ativo marcado pelas circunstâncias. A literatura se
apropria deste universo e passa a representar a realidade que se
evidencia. Não são poucas as narrativas que dão conta deste processo.
Esta urgência em representar por meio de um código paralelo a leitura da
cidade e sua relação com o sujeito pode ser observada nas obras de
Victor Hugo e Charles Baudelaire com suas descrições de Paris, na
Londres de Charles Dickens, na Lisboa de Eça de Queiros, no Rio de
Janeiro de Machado de Assis e na Porto Alegre de Dyonelio Machado e
Moacyr Scliar.
A cidade, cenário da vida e dos fatos
literários sofre a cada período modificações semânticas e de espaço que
abriga a narrativa transforma-se na representação simbólica do universo
particular da personagem. Em Mario Benedetti, em A Trégua e em
Saramago, em O ano da morte de Ricardo Reis, por exemplo, o céu
cinzento e chuvoso de Montevidéu e de Lisboa, respectivamente, refletem
a vida monótona e desbotada dos protagonistas como da mesma forma em
E.T.A. Hoffmann, em A janela de esquina do meu primo, o movimento
da praça de Berlim em dia de feira dá o tom da angústia do narrador.
No entanto, a cidade ainda não é o
sujeito da trama e nesta impossibilidade é retratada pelo discurso e
seus desdobramentos feitos pelo narrador, personagens e pelo próprio
escritor sem entretanto, “confundir a cidade com o discurso de quem a
descreve, ainda que haja uma relação entre eles”.
Para Antonio Cândido, “a ligação entre
literatura e a sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos
descobrir como as sugestões e influências do meio se incorporam à
estrutura da obra de modo tão visual que deixam de ser propriamente
sociais, para se tornarem a substância do ato criador”.
As percepções visuais que se constroem a
partir de uma leitura da urbe funcionam como índice dos acontecimentos e
por meio deles o leitor pode organizar a própria imagem da cidade,
baseado em suas referências pessoais, e quando isso se processa obtem-se
o sentido de urbano.
Caminhava pela cidade. Saindo do
Partenon, andava pela Avenida Bento Gonçalves, chegava à Azenha, à João
Pessoa, e dali às antigas ruas do centro: Duque, Riachuelo, Rua do
Arvoredo. Detinha-se a contemplar antigos sobrados. Notava neles as
sacadas de ferro, as fachadas com ladrilhos portugueses quebrados.
Moacyr Scliar em Os deuses de Raquel
A cada caminho percorrido, traçado ou rua
é um signo cego de repetição dos fatos sobre o tempo e a cada leitura
feita o mapa é redesenhado. A literatura urbana produzida no Estado do
Rio Grande do Sul a partir da década de 30 deflagra esta visão. Enquanto
na maior parte do Brasil se produzia uma literatura de cunho
regionalista, valorizando as características de cada região, a dialética
sulina, de modo muito particular, se dava a partir das relações entre
campo/cidade - cidade/fronteira e que vai se deparar com a ambigüidade
da “cidade-vício”, termo usado pela primeira vez na década de 20 por
Achylles Porto Alegre e que será retomada por Reynaldo Moura, anos
depois, em A ronda dos anjos sensuais, novela gaúcha que tinha
como principal objetivo falar das modernidades.
A literatura produzida neste período está
muito marcada pela data maior da historiografia gaúcha, o centenário da
Revolução Farroupilha, que se deu em 1935, e para contrastar com a
figura do herói, o gaúcho passa a ser representado como ele realmente é,
um espoliado. Três obras registram a urgência em se falar em cidade,
pois agora o gaúcho esta a pé e o campo aos poucos perde a sua
glamorização.
O sul ao ver impulsionada sua produção
industrial, o crescimento das cidades e um fortalecimento das classes
sociais sentiu a necessidade de registrar estas mudanças. Como
representantes desta época o já citado Reynaldo Moura, e também Erico
Veríssimo e Dyonelio Machado, embora não exista um consenso quanto ao
começo da representação urbana na narrativa sulina, no sentido moderno,
até porque há referencia anterior a Caldre e Fião.
A modernização das cidades parece obrigar
a uma mesma atitude por parte de seus cidadãos, e entre as misérias e as
falências de sistemas e valores, uma beleza peculiar passa a circundar a
estética da Porto Alegre-metrópole que começa a surgir.
Moacyr Scliar, escritor gaúcho e
descendente de imigrantes judeus, é herdeiro desta tradição literária,
herdeiro desta impossibilidade de ação do indivíduo inserido na marcha
dos dias, em que a falência individual não encontra recuperação no
espaço oferecido. No entanto, sua literatura toma outro rumo que não o
do realismo puro e simplesmente, e a representação da cidade ganha novos
contornos. Há em sua obra quatro pilares, dentro vários outros aspectos
simbólicos, que balizam a proposta deste ensaio, são eles:
- a cidade de Porto Alegre, como espaço que abriga a
narrativa;
- o elemento água, simbolizando a metamorfose pela
qual as personagens se processam e também fazendo uma alusão direta aos
cuidados prescritos na Tora;
- a loucura, que acomete constantemente alguma
personagem e que está ligada ao processo de dispersão e exílio judaico;
- e o bairro Bom Fim, que mais do que ser o espaço
prolongado da casa é constituído do afeto necessário para a reordenação
do raciocínio.
Na costura destes pressupostos, a
literatura fantástica, que permite a transformação do real pela ficção,
deformando a realidade e usando tal processo como forma de repensar a
condição do judeu na sociedade.
O judeu mais teimoso, o mais
perturbado.
Moacyr Scliar em Os voluntários
Loureiro Chaves percebe esta como sendo
a última fronteira da literatura realista, “a modernidade pós-kafkaniana
percorreu a estrada do fantástico e do maravilhoso. Moacyr Scliar
prefere mergulhar nos Mistérios de Porto Alegre, definindo seu
itinerário [...]”.
Por isso, e ainda segundo o pensamento de
Loureiro Chaves, a cidade de Reynaldo Moura, Erico Veríssimo e Dyonelio
Machado, não é a mesma de Moacyr Scliar, porque há em Scliar, o que T.S.
Eliot já conceituou: uma síntese do tempo e uma ultrapassagem do
passado, uma vez que o autor apropria-se do espaço geográfico de Porto
Alegre, se inscreve na temática do urbano e faz da ficção sobre a cidade
o seu território eleito.
Em suas obras há a presença e a atuação
de dois Scliar, um que é médico, preocupado com a saúde, com a sanidade
e com a poluição, que percebe a cidade como uma mente doente e sua
doença maior é a loucura; o outro é arquiteto, cujos textos constroem
uma cidade real necessária para dar suporte ao imaginário descompassado
da loucura e que a apresenta como um corpo doente; na base apenas um, o
escritor.
Para Scliar, medicina e literatura têm
muita coisa em comum, “minha vivência como médico influenciou fortemente
meu trabalho literário. A experiência da doença, do sofrimento, da morte
mudou radicalmente minha visão de mundo”.
O ciclo das águas em Scliar
As águas voltam à terra, infiltram-se,
desaparecem. Ressurgirão como nascentes – depois riachos- depois rios. E
mares. E nuvens, e chuva (...).
Moacyr Scliar em O ciclo das águas
A cidade de Scliar, a partir de um
desdobre semântico que irá levar aos pressupostos pontuados acima, é uma
cidade que está submersa em águas de todos os tipos, desde a água do mar
presente em O exército de um homem só, A estranha nação de
Rafael Mendes ou Max e os Felinos, apenas para citar alguns,
passando pela água que dá a vida em O centauro do Jardim, as
águas poluídas de o Ciclo das águas até a água da morte como em
Os voluntários, em todos há uma fronteira líquida entre razão e
loucura como no conto História porto-alegrense. Uma espécie de
“terceira margem”, só para usar um termo reconhecido deste processo, do
escritor brasileiro Guimarães Rosa.
Por meio deste elemento, Scliar mergulha
no mais profundo do ser e muitas histórias se desenrolam a partir da
presença da água, enquanto em outras é preciso observar a metáfora de
forma mais atenta. Em Esther, personagem de O ciclo das águas,
romance escrito em 1975, mais que denunciar o tráfico de judias, Scliar
mostra a vida da protagonista pela binômio pureza/poluição, desde o
cruzar pelo oceano Atlântico até a pequeno riacho poluído da Vila Santa
Luzia. Quem analisa junto do leitor a metamorfose representada pelas
águas é o seu filho, Marcos, professor de biologia. Há um simbologismo
proposto pela água e tudo é de certa forma intencional, deixando
vestígios que permitem a interpretação. A rede simbólica é tecida em
torno deste elemento e ele demarca sua importância deste o título da
obra.
Para Bachelard, que com seu estudo
introduziu o assunto, em A água e os sonhos: ensaio sobre a
imaginação da matéria, “a água é realmente o elemento transitório. É
a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado
à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua
substância desmorona constantemente”.
Em outros livros de Scliar percebe-se
variações sobre o mesmo tema, como em Os voluntários, escrito em
1982, em que uma tripulação patética composta por quatro homens, uma
mulher e um moribundo saem em um velho rebocador, do cais em Porto
Alegre em direção ao porto de Haifa. As epígrafes são de Camões, o bar
em que Paulo, um das personagens trabalha, chama-se Lusitânia e
para eles “acima o céu, abaixo o mar, atrás o passado [...] adiante um
futuro incerto”.
Em Max e
os Felinos, escrito em 1981, a história de um jovem alemão que está
fugindo do nazismo para o Brasil. Ele viaja num navio, um velho
cargueiro que transporta também animais de um zoológico. Acontece um
naufrágio e Max se salva em um escaler e é surpreendido por outro
sobrevivente, um jaguar. Max que traz desde criança um medo insuportável
por felinos se vê diante de um e o cenário é o oceano, com suas
ondulações permanentes entre o real e a loucura.
Em O
exército de um homem só, escrito em 1973, o mar funciona como uma
espécie de fronteira cuja função metafórica é dividir o mundo real do
imaginário. Mayer Guinzburg, protagonista, flutua meio afogado,
condenado a um mundo bipolar, oscilando entre a imobilidade do espaço
social e seu mundo ilusório e ideal.
O mar parece construir um espaço de
letargia, de torpor e quase todos os personagens que enlouquecem
encontram neste território um vagar repousante da semiconsciência, da
quase ausência da realidade, relacionado diretamente ao ciclo da vida.
Estávamos já a uns duzentos metros do
cais.
Era a nossa viagem que começava.
Moacyr Scliar em Os voluntários
É na dinâmica proposta pelo viés que
correlaciona cidade e loucura que Scliar supera sua herança urbana e faz
com que seus personagens não se encontrem apenas como anônimos
deslocados e perdidos, circulando pelas ruas de Porto Alegre. A loucura
passa a ser um modo pelo qual o indivíduo interage com o meio, como uma
forma de preservação da própria subjetividade.
Em Os voluntários, não raras
vezes, as personagens se encontram fora do território ou como bem
assinala Paulo, “em nossas expedições pela cidade não poucas vezes
entrávamos em território desconhecido [...]”.
A loucura é também uma experiência
literária. Para Foucault, a literatura tem também sua parcela de
importância para a elaboração da loucura, pois os textos literários
representam as diferentes manifestações e sentidos da doença e vem
modelando suas formas desde o homem renascentista.
A água é o elemento que remete a loucura
e que deflagra a metamorfose das personagens e impõe-se como elemento
modificador da realidade humana. Ela é um dos quatro elementos naturais
do planeta e sua presença em boa parte da obra de Scliar traz uma
significação que vai muito além das propriedades química e física. A
água pode significar um processo de mutação, espaço fronteiriço entre
realidade e fantasia em que a personagem encontra sua derrocada. Água
como ponte para a loucura, ou como afirma Bachelard, há toda uma
simbologia atrelada a imaginação.
Assim, constantemente alguns das
personagens de Scliar mergulham na loucura como forma de fugir à
opressão do espaço construído na cidade pelo homem e a sua angústia da
limitada condição humana.
A água de Mayer Guinzburg, de Max, de
Paulo, de Esther, de Joel, de Rafael e de tantos outros não é uma mera
região de travessia é um trecho que aproxima e isola ao mesmo tempo em
que permite o encontro e o desencontro. Sua função metafórica efetua uma
divisão entre o mundo real do espaço ficcional e o mundo imaginário
constituído pelos delírios.
Mundos que num primeiro momento parecem
não poder se comunicar, mas que por meio de personagens ambivalentes
obtêm-se uma síntese deles, personagens estes, aliás, que flutuam
durante toda a sua existência em busca da descoberta de si e da sua
inquietação.
Neste sentido, a água pode ser vista como
um convite a viagens imaginárias e o seu sentido simbólico parece estar
relacionada ao ciclo vital já que da água se originou a vida e na falta
dela, se morre.
A loucura sinalizada pela água funciona
também como um espaço fundador da sobrevivência do judeu, da sua
identidade, da sua vida e por meio dela que ele renasce como ser
ficcional e emerge para a narrativa.
A água exerce desta forma uma função
simbólica de retenção da insanidade, criando um elo entre cidade e
loucura. Por outro lado, a água representa o fim, a libertação e a
morte, pois dentro desta simbologia a imagem do líquido apresenta uma
situação ambivalente que é frisada pela incerteza, dúvida, indecisão,
“vem daí que o mar é ao mesmo tempo a vida e a morte.”
Este espaço fronteiriço simbolizado pela
água e criado pela narrativa propicia também a divisão do espaço textual
e desta forma, se obtém as dualidades dentro/fora, interior/exterior,
água/terra, realidade/fantasia com uma gama de possibilidades espaciais
opostas.
Esta mesma fronteira assegura a divisão
do espaço ficcional entre geográfico e sonhado, e seja num ou noutro, as
personagens enlouquecem na tentativa de acomodar suas inquietações. A
obra de Scliar parece ressaltar a eterna insatisfação do homem com seu
espaço, lutando para ampliá-lo, mas também para redimensioná-lo. As
personagens que sofrem com a insanidade são judias, mas alguém poderá
negar que poderiam ser quaisquer outras? Há um desejo de transcender o
mundo já dado e esta vontade nasce da ambigüidade que é o homem,
dualidade tão bem declarada no limiar entre a cidade e a loucura.
O interessante em Scliar é que a água
também evoca o correr do tempo e Mayer, por exemplo, compara as ruas com
os rios que vão para o mar assim como sua vida se desenvolve sempre
voltando para o Bom Fim.
Neste processo, o microcosmo representado
pelo Bom Fim além de funcionar como um guardião das tradições judaicas,
pois “é uma aldeia judaica da Europa Oriental em Porto Alegre”,
parece indicar a complexa existência de um processo de interação entre o
público e o privado, estabelecendo um diálogo entre realidade e fantasia
importante para a constituição da personagem, da obra e do autor dentro
do sistema literário.
O Bom Fim
O Bom Fim está hoje cheio de altos
edifícios,
mas nos desvãos que os separam é possível,
em certas noites, ouvir-se sons de violino.
Moacyr Scliar em “A guerra no Bom Fim”
As
personagens de Scliar circulam pelo bairro Bom Fim, certamente não por
acaso, uma vez que o escritor pertencia a este lugar. O Bom Fim foi
inicialmente chamado de “Campo da Várzea”. Era uma área pública de,
aproximadamente, 69 hectares que servia para o pastoreio do gado.
Posteriormente, teve seu nome alterado para “Campo do Bom Fim”, em
função da capela Senhor do Bom Fim, construída entre 1867 e 1872. Após a
abolição da escravatura no Brasil muitos libertos que não tinham para
onde ir, abrigaram-se nesta região que passou a ser chamada,
popularmente, de “Campo da Redenção”. Na segunda década do século XX
começaram a chegar as primeiras famílias judias que se instalaram nas
imediações da atual Oswaldo Aranha e outras ruas próximas. A comunidade
judia foi construindo casas, sinagogas, pequenos comércios e oficinas.
O Bom Fim marca o segundo momento da saga
judaica no Rio Grande do Sul, o da cidade. A Porto Alegre chegavam
judeus de todos os lugares, assim como outros emigrantes, e esta
movimentação participou do início da vida urbana na capital.
Para Scliar o Bom Fim é a gênese da sua
escrita e sua obra está permeada por citações e lembranças relacionadas
ao bairro, pois seus avós, tios e pais foram morar no Bom Fim, que era
em Porto Alegre o lugar correspondente ao Lower East Side em Nova York,
ao Marais em Paris, ao Once em Buenos Aires, ao Bom Retiro em São Paulo.
“Um bairro pobre, de pequenas casas – uma aldeia judaica da Europa
Oriental em Porto Alegre”.
Neste sentido, o bairro funciona para o
escritor como um “porto seguro”, lugar em que os sentimentos e as ideias
se tranqüilizam. Os bairros também se caracterizam pela sua
singularidade e apesar de serem muitos em uma cidade, nunca serão
iguais. São resultados da interação entre fatores ambientais, sociais,
culturais, econômicos e históricos. Observar o Bom Fim e a sua presença
na escrita de Scliar parece ser um ponto de chegada para a compreensão
da sua representação simbólica e importância na tradição judaica.
Scliar é sem dúvida um escritor da sua
aldeia, assim como Tolstoi afirmava, um escritor que escreve sobre seu
próprio lugar, mas claro, “não basta querer escrever sobre a aldeia, é
preciso saber escrever sobre a aldeia”e
neste sentido, a história pessoal também influencia.
Aos poucos o bairro foi se tornando
completo. Educação, cultura e uma sede israelita fizeram do Bom Fim um
lugar onde era possível encontrar vida espiritual, esporte e lazer.
Depois, em função da urbanização da cidade, passou por diversas
modificações, mas até hoje é caracterizado como sendo um bairro judeu.
O interessante é que quando a descrição
de um bairro é feita por meio da arte, como é o caso aqui, ele
ultrapassa as relações que o produziram e o circundam, desdobrando-se em
espaços repletos de significado.
Os bairros são reais e imaginados e por
isso precisam apresentar uma materialidade do espaço e um sistema de
significados fundamentais para sustentar o sentido de lugar. Conforme
destaca Lynch, “cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de
sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e
significações”.
Quando a cidade figura dentro de uma
narrativa há uma espécie de ressignificações do lugar, em que os
sentidos construídos no cotidiano subvertem-se e misturam-se ao que a
imaginação se permite criar e aquilo que poderia ser impossível no real,
acontece na ficção.
As experiências de literatura e cidade
são antigas, para os gregos, por exemplo, a cidade é
alguma coisa de concreto
que vê todos os dias com seus próprios olhos. A terra sagrada da pátria
é o recinto da família, os túmulos dos antepassados, os campos de que se
conhecem todos os proprietários, o monte aonde se vai cortar a lenha,
apascentar o rebanho ou recolher o mel, os templos onde se assistem os
sacrifícios, a acrópole onde se sobe em procissão; é tudo o que se ama,
tudo o que é motivo de orgulho, tudo o que cada geração quer deixar mais
sedutor do que quando recebeu.
Segundo Glotz, os gregos passaram por três estágios de formação da
pólis: o primeiro agrupamento tem por base a associação entre o
marido e a mulher, o senhor e o escravo, e diz respeito a todos que
comem na mesma mesa, por conseqüência a família; desta, originou-se a
aldeia, pois a família acaba por constituir-se de filhos, netos,
esposas, maridos e todos obedecem ao mais velho; a partir daí, ocorre a
associação de diversas aldeias. O Estado primitivo começa a se formar e
nasce a pólis, “nascida da necessidade de viver, subsistindo pela
necessidade de viver bem, a pólis só pode ter existência
duradoura se se bastar a si mesma. A cidade é portanto, uma conseqüência
natural, do mesmo modo que as associações anteriores, das quais ela é o
coroamento.”
Por outro lado, Pesavento destaca que “o
nascimento da cidade nos chega, pois de forma mítica, com apoio no texto
sagrado e na imagem que nele se inspira.”
Oliven também acredita nisso, para ele a primeira cidade é mítica e
refere-se ao mito de Caim e Abel, “nasce, portanto, como decorrência de
um crime, mais especificamente de um fratricídio, e possui um sentido
reparador.”
Ou talvez a relação homem/cidade seja, mitologicamente, ainda mais
antiga, em que “aqueles que foram banidos do Éden poderiam encontrar um
abrigo na cidade.”
Assim, cidade e mito estão entrelaçados desde o discurso da criação do
homem, reafirmado biblicamente pela crença de que homem e cidade vieram
do barro. Neste contexto, o Bom Fim pode ser visto como um espaço
mítico, uma variação da “terra prometida” que acolhe os exilados e
dispersos.
Para Certeau,
o bairro surge como uma “terra eleita”, o espaço em que se processa todo
o desenrolar da vida cotidiana. Neste território urbano as relações de
espaço e tempo se misturam, pois a casa representa o vínculo orgânico
estabelecido. O interessante e desafiador é dar-se conta de que há neste
aspecto mais do que uma transferência da realidade. Como em Kafka e
parafraseando Adorno,
talvez a autoridade de Scliar também esteja no texto, na sua capacidade
de criar um novo território dentro da literatura, o do imaginário, fato,
aliás, já sinalizado por Loureiro Chaves.
Percorrer as ruas do bairro ou de Porto
Alegre junto das personagens de Scliar sugere que o ato pode constituir
uma forma de enunciação, um outro modo de também produzir sentido, e se
se observar mais atentamente percebe-se que os caminhos que se desdobram
são também resultados de escolhas e imposições.
Para Frémont, os lugares formam uma trama
e ao redor das pessoas constituem “as mais fundamentais estruturas do
espaço: o campo, o caminho, a rua, a oficina, a casa, a praça, a
encruzilhada... Como bem diz a palavra, através dos lugares,
localizam-se os homens e as coisas.”
Neste sentido não se pode deixar de
lembrar Ítalo Calvino, que constata que a cidade é feita das relações
entre o espaço e o passado num processo contínuo de identificação, “mas
a cidade não conta o seu passado, ela o contém nas linhas da mão,
escrito em ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das
escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras [...].”
Esta fronteira porosa entre realidade e
ficção presente em Scliar sofreu a influência de Kafka como conta Assis
Brasil, pois foi por meio dele que o escritor percebeu a possibilidade
de revelar o mundo pela literatura fantástica, “não apenas ele adquiriu
a certeza de que o real pode ser transformado pelo pensamento,
possibilitando infinitas maneiras de repensar a sociedade mas também
soube que a deformação do real é um poderoso instrumento para repensar a
sua específica condição judaica.”
Deformação esta que encontra referência
na loucura e na preocupação do escritor com a doença, sua insinuação
pela água insere estas ordens, bem como a temática do imigrante judeu e
urbano no imaginário da literatura sul-rio-grandense. Talvez estas
demandas estejam associadas ao fato de Scliar ter sido médico
sanitarista ou talvez como já sugerido antes, uma influência da tradição
judaica.
O que Scliar faz, segundo Zilberman é uma
forma de enfrentamento à divisão interior que dilacera suas personagens,
pois ao valer-se
do emprego do fantástico,
Moacyr Scliar alcança a tradução de conflitos que assolam a todo o
indivíduo indistintamente, mostrando a oscilação entre, de um lado, a
lealdade a certas raízes e ideiais e, de outro, a degradação decorrente
da aceitação das regras do jogo econômico e do desejo de ascensão
social.
Pode-se pensar então que a partir das construções inesperadas também se
produz significação, como acredita Spink, ao afirmar que “é pela ruptura
com o habitual que se torna possível dar visibilidade aos sentidos.”
Neste sentido, talvez o fato da loucura
sempre vir a acometer uma das personagens de Scliar, reforce a ideia do
quanto a dispersão e o exílio marcaram este povo, que carrega até hoje o
signo do errante.
Para Loureiro Chaves, é por meio da
narrativa de Moacyr Scliar que o imigrante judeu e sua descendência
ganham uma “cidadania literária”. A partir daí surge a possibilidade de
se analisar a criação deste “território imaginário”.
Moacyr Scliar
foi médico e escritor, nasceu em 23 de março de 1937 e morreu em 27 de
fevereiro de 2011, em Porto Alegre. É autor de uma vasta obra que
abrange conto, romance, novela, crônica, ensaio e literatura
infanto-juvenil. Em 1962, enquanto ainda cursava medicina publicou seu
primeiro livro Histórias de um médico em formação. É sem dúvida,
um dos melhores escritores brasileiros da atualidade e autor de mais de
80 livros. Muito traduzido e premiado, este gaúcho colaborou por anos
com jornais nacionais e do exterior, foi membro da Academia Brasileira
de Letras ocupando a cadeira de número 31, que antes havia sido também
de Cassiano Ricardo, escritor paulista.
O tema proposto tem raízes muito antigas,
se se pensar na relação que existe entre literatura e cidade, é possível
reconhecer estudos realizados nas obras de escritores como Machado de
Assis, Rubem Braga, Mário de Andrade e Dalton Trevisan, apenas para
citar alguns. Na literatura riograndense há também expoentes nesta
vertente como Reynaldo Moura, Erico Veríssimo e Dyonélio Machado.
De certa forma, todos falam direta ou
indiretamente de cidade e de algo que há nela e que parece aprisionar o
indivíduo. No entanto, a descrição geográfica em Scliar é mais que um
mero mapear urbano, há uma geografia de afeto agregada a uma
metáfora espacial que funciona como sinalizador para que o louco não se
perca. Numa alusão direta ao fio de Ariadne Scliar, depois de
arquitetar sua cidade de palavras e histórias, cita as ruas e os
endereços para que o leitor não se perca neste labirinto chamado Porto
Alegre. É como se o autor pusesse no “bolso mental” de cada um o
endereço para voltar para casa. O que intriga é porque Scliar faz isso,
porque cria um labirinto e ao mesmo tempo indica a saída? Talvez aí
esteja a chave para a compreensão da expressão geografia de afeto,
seja no mito de Ariadne, seja no desenvolver da sua obra, há um
sentimento de generosidade que percorre todo o processo, como se em meio
a tanta desolação e desencanto o arquiteto e o médico conjugados no
escritor acolhesse a todos, leitores e personagens com o mesmo intento,
o de proteger.
Para onde vão os fantasmas de Scliar
Max Schmidt morreu em 1977. Estou em
paz com meus felinos, dizia em seus últimos dias, e ninguém sabia
exatamente o que ele queria dizer. Mas era aquilo mesmo: Max estava,
enfim, em paz com seus felinos.
Moacyr Scliar em Max e os Felinos
A partir do momento em que se focaliza
nesta questão é interessante observar que o próprio Bom Fim parece, por
meio da narrativa literária, funcionar como uma possível
reterritorialização do espaço judeu, principalmente se se basear tal
afirmação sobre a memória das inúmeras diásporas vivenciadas ao longo da
história por este grupo. Para Lynch, o fato de se nomear um espaço é
muito importante, porque “os nomes dos bairros também ajudam a
conferir-lhes identidade [...]”.
Da mesma forma, se o real está se
desagregando, é possível por meio da ficção constituir novos espaços,
que traduzam os valores que parecem estar se perdendo e que funcionem
como lugar de resistência. Mas este novo lugar não surge como uma ordem
falsa ou incompatível com o real, pelo contrário a deformação é a
própria resistência.
Esta reterritorialização do espaço e do
raciocínio está ligada a uma geografia de afeto, uma vez que as citações
das ruas, do bairro, e da própria cidade passam a nortear o desenrolar
da narrativa anunciando e denunciando o que no real é vivenciado. Apesar
de ser um centro compacto de cimento e tijolo, há vida, há memória, há
tradição e há valores, e “um rápido exame da geografia sensual de Porto
Alegre mostraria uma cidade ocupada por esse amável exército”.
O bairro é o responsável por dar sentido
ao lugar, e o lugar torna-se um discurso sobre o espaço, seja da cidade,
da literatura, da loucura ou do judeu. “Finalmente, o carro parte a toda
a velocidade – para o Bom Fim. É noite de sexta-feira, véspera de
Shabat”.
É no Bom Fim que se localizam, se
completam e se mantém todos os costumes e tradição, por isso há na sua
obra a formação de um espaço alheio que comporta sua ficção, pois
o lugar alheio é, assim, a
condição espacial da acção romanesca. Esse lugar é ambivalente, maléfico
e benéfico ao mesmo tempo; prova mais uma vez que a disjunção, no
romance, [não se] opera entre os termos positivo/negativo [...] O
aparecimento do outro espaço parece ser a condição necessária para a
constituição da geografia romanesca. Esse espaço outro toma exactamente
de sua alteridade e das repressões que o protagonista nele possa sofrer
[...] O importante é que o complexo narrativo predicativo traga um
alargamento do espaço geográfico, que já lhe dá valor positivo.
O afeto está presente na descrição, no
nome de cada local citado, de cada personagem criada, e há ainda a
família, “as famílias se reuniam em torno da mesa da cozinha. Um samovar
fumegava. Tomava-se chá; comiam-se bolachas, latkes, sementes de
girassol. Da Oswaldo Aranha vinha o pregão do vendedor de pinhões:
pinhão quente, gritava ele, está quentinho o pinhão”.
Dentro de uma perspectiva que engloba
literatura, cidade e loucura é possível compreender que a ideia de
geografia de afeto em Scliar parece ser resultante de uma relação
dialética entre fatores internos e externos presentes em sua obra e no
espaço urbano. Para Candido, “[n]este caso, saímos dos aspectos
periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada,
para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social
como fator de arte”.
É isto que ocorre com a obra de Scliar, uma reversão do espaço social
habitado para se tornar um fator de arte, tanto do narrar quanto do
rememorar, pois
a arte pode exprimir
objetivos sociais de duas maneiras diferentes. O seu conteúdo social
pode ser apresentado sob a forma de confissão explícita- confissões de
crenças, doutrinas explícitas, propaganda direta – ou da simples
dedução, isto é, em termos da perspectiva tacitamente pressuposta em
obras que parecem destituídas de qualquer referência social.
Quando Scliar afirma que o Bom Fim é um
país “- um pequeno país, não um bairro em Porto Alegre”,
ele permite o desdobre semântico do espaço e a possibilidade de
vislumbrar ali a pintura de um quadro cujas cores e formas são ditadas
pela fronteira entre o real e o imaginário.
Para compreender a literatura deste
gaúcho sob a ótica da estética é necessário que se faça uma reflexão
pluridisciplinar baseada no reconhecimento, descrição e interpretação
dos processos de analogia e abstração presentes na apropriação do espaço
geográfico real urbano presentes na obra, assim como a formação utópica
da cidade de Porto Alegre e mítica do bairro Bom Fim. Ao esboçar mapas,
por meio da escrita literária, o autor abre a possibilidade de se
investigar a representação destes, assim como a dimensão ficcional dos
espaços cartografados.
Neste sentido, a própria geografia
funciona como um “despertar” para a estética da cidade, uma vez que as
relações entre bairro, cidade, loucura e literatura vão ao encontro da
estética da modernidade de Walter Benjamin, que buscou inspiração em
Marx, no judaísmo e no movimento surrealista, a elaboração de novas
categorias para os conceitos já tradicionais.
O espaço, depois de apresentar a
desagregação de valores, ressurge como lugar em que a loucura é
acolhida. Apesar das frustrações e desilusões pelas quais as personagens
passam algo é reordenado e o desfecho realinha o pensamento.
A subjetividade do espaço e a dinâmica
afetiva propiciada pelo meio permitem uma multiplicidade de
interpretações e daí resulta o estabelecimento da formação de um novo
território e o seu papel como renovador da ficção urbana brasileira.
Neste lugar que agora aparece na obra de Scliar há uma legitimação da
subjetividade, pois da construção de um labirinto entre cidade,
literatura, loucura e afeto, surge um horizonte de semelhanças e
diferenças que instiga a leitura mais aprofundada.
É preciso não ceder, porém, a tentação de
ver o espaço apenas como um conjunto de histórias e lugares facilmente
acessíveis por meio de uma aproximação empírica, ou mesmo supor que a
cidade possa ser um texto estático que já está escrito nas suas ruas; o
que há não é uma simples reprodução da cidade na obra de Scliar, mas sim
uma deformação.
Existe também uma tendência de se pensar
o espaço como sendo uma construção puramente mental e desta forma,
estaria atrelado a um subjetivismo de percepção. O texto de Scliar é
rico de significados, o que permite acreditar que ao representar o
espaço o autor esta na verdade, criando-o.
O autor pertence a uma cidade só sua, que
o permite mudar a ordem das coisas, em função disso, a obra por mais
inocente que possa parecer, instala um sentido único de poder, baseado
na arte de narrar e pela arquitetura contemporânea.
Em Scliar a cidade é parte de si, pois as
personagens deixaram de habitar o espaço para se tornarem o próprio.
Este aspecto confere ao indivíduo uma qualidade de liberdade pessoal que
só pode ser identificada a partir do momento em que a cidade é vivida
pelo viés estético. A modernidade conferiu a este espaço uma categoria
de arte, pois ela reflete nas suas ruas, parques, muros a sua identidade
artística, um sentimento lírico.
E neste sentido é a cidade quem comanda
tanto o olhar como o objeto olhado, que tem a iniciativa de permitir-se
ler as relações que se criam a partir dela. É preciso deixar-se seduzir
pela imaginação do escritor que convida o leitor a vaguear por entre seu
objeto estético, a cidade, a Porto Alegre de Scliar, o Bom Fim, e
perceber as nuances aquáticas e insanas que compõem a sua obra.
É nesta percepção estética que se obtém a
epifania do objeto. Um acordo tem de ser selado em que leitor e autor
culminam num pacto silencioso, num deixar-se envolver sem ser enganado,
num apreende-se do real sem a ele ser remetido e saber-se da loucura sem
ser louco.
O acento desta melodia é apenas o
prelúdio para a experiência estética, para compreender bem é preciso
deixar-se ouvir e ver a cidade do escritor, colaborando com ele, mas
também rivalizando, dando a obra o direito de autonomia. Para isso, ela
precisa ser maior que o escritor, maior que seu tempo, estar inserida em
seu contexto, e sublinhar a sua saída, porque o privado é o estopim para
a literatura, mas o desencanto possível é uma expressão de todos.
Neste sentido, o próprio Scliar acredita
que a literatura reflete o contexto de sua época, ele, no entanto, “o
faz como um sismógrafo, cuja agulha desloca-se como resposta a
movimentos profundos. [...] Todo o resto, francamente, não tem muita
importância”.. |