REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 25-26 | Março-Abril | 2012

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

Cida Pedrosa e Wellington de Melo, dois poetas pernambucanos

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Pergunta frequente, feita a portugueses no Brasil, é a de saber se existem diferenças significativas entre a poesia portuguesa e a brasileira, e quais. Hipótese: será a portuguesa mais metafísica, e mais voltada para a vida corrente a brasileira?

Não gosto de comparar grupos, embora me interesse muito a literatura comparada. Comparar grupos humanos ou as suas produções exige passar por campos tradicionalmente minados pelo preconceito, além de que nós só achamos as similitudes e as diferenças mais convenientes à manutenção de soberanias. Comparações dessas estabelecem sempre uma relação de forças, uma competição, relacionando-se por isso muito mais com posicionamentos ideológicos do que estéticos. A arte não é como o desporto, em que vence o melhor de certo número de iguais. Em princípio, o que mais importa na arte é a diferença, e entre diferentes não é viável a competição. Só nas fábulas vemos corridas entre lebres e tartarugas, na vida real as tartarugas correm com tartarugas e as lebres correm com lebres ou à frente dos caçadores. Quando no mundo físico, fora do âmbito desportivo, vemos uns homens a correr à frente de outros homens, o mais certo é os de trás terem na mão um chicote.

Já foi tempo em que a ciência distinguia os grupos humanos pela cor da pele, dos olhos e dos cabelos, e desgraçadamente o preconceito da superioridade de umas raças sobre outras permanece nas maiorias mais tacanhas das populações; também se distinguiam e separavam pela forma do crânio, e não nos esqueçamos de um desses atrozes modelos de comparação, criado por Lombroso, que levou avante a crença de que a forma e volume da caixa craniana definiam a presença de criminosos e de génios. Hoje, vencem outros traços iguais e distintivos, baseados no ADN, que daqui a décadas valerão provavelmente tanto como o modelo de Lombroso, quando a ciência descobrir novos traços distintivos, baseando neles novos modelos antropológicos. Nós comparamos aquilo que convém aos poderes instituídos, e não necessariamente o que de facto distingue, se algo de deveras importante separa os muitos grupos humanos e suas obras.

Entre comparar grupos e correlatas produções culturais e comparar autores, entendo que é muito mais proveitoso comparar o que pertence ao domínio do individual. Entre dois autores do mesmo país, e por conseguinte falantes da mesma língua, podem existir diferenças mais abissais do que entre grupos humanos. É o caso de dois poetas pernambucanos de que apresento textos, Cida Pedrosa e Wellington de Melo. Por muito que usem a mesma língua, tenham a mesma nacionalidade e vivam na mesma região, as diferenças entre ambos são mais significativas do que as suas semelhanças. Nada obstando entretanto a que a situação se invertesse, caso os comparássemos com poetas portugueses da mesma geração. A diferença entre poetas portugueses e brasileiros é menos marcante que a diferença entre poetas que escrevem em português e poetas que escrevem em mirandês, a segunda língua oficial portuguesa - ou entre os que escrevem em guarani e os que escrevem em português -, o que nos permite passar à frente do que já todos sabemos: a língua é o maior traço de união entre os escritores que a partilham, e por consequência o maior traço distintivo entre esses e utentes de outras línguas.

Semelhanças entre Cida Pedrosa e Wellington de Melo, além das já expostas, são a junção de texto a imagem. Ambos os livros são obras de arte gráfica, abundantemente iluminados, no caso de Cida por Teresa Costa Rego (Jaíne Cintra assina o design), e no caso de Wellington de Melo por Raoni Assis.

Também será caso para referir uma comum aspiração ao conhecimento e denúncia de problemas que cada vez mais ultrapassam as fronteiras pessoais, étnicas e nacionais, para tocarem naqueles que atingem toda a Terra. O modo como o fazem é diverso, pois os discursos também o são: mais direto o discurso de Cida Pedrosa, mais labiríntico o de Wellington de Melo.

Cida Pedrosa apresenta o livro «As filhas de Lilith», um abcedário de retratos de mulheres. De Angélica a Zenaide, temos assim mais de duas dezenas de poemas projetados para o exterior, ou seja, anti-líricos, sem presença visível de um sujeito poético. Embora em «O peso do medo - 30 poemas em fúria», de Wellington de Melo, também encontremos poemas intitulados com o nome de pessoas, ou que sem essa identificação as retratam, não é muito frutuosa a comparação entre ambos desse ponto de vista.

Entre diferenças mínimas que surtem efeito maior, chama a atenção o modo como em Wellington de Melo aparece a grafia dos nomes próprios: sem vogais, apenas com o espaço competente a marcar a sua falta. Esta singularidade, ao assinalar deveras uma falta, traz à percepção do leitor a ideia de uma identidade mutilada, que o autor do posfácio, Bruno Piffardini, informa tratar-se de transposição para a língua portuguesa de uma característica do hebraico, a da inexistência de vogais. Aliás corrijo, tal informação é dada por João B. Martins de Morais, prefaciador, que também refere o poema dedicado a Aleph, filho do poeta. «Aleph», além de título de uma coletânea de contos de Jorge Luís Borges, é a primeira letra do alfabeto semita, equivalente a alfa.

O medo patente nos 30 poemas do livro dirá então respeito a um peso que impenda ainda sobre os judeus, vindo desde há séculos de perseguição religiosa e étnica? A minha leitura detetou essas referências, embora, nos poemas, não sejam óbvias. O medo exprime-se no singular por ser muito abrangente, tocar em todos os medos que atingem a humanidade e que de forma particular sofre o sujeito.

A subjetividade leva então a considerar a outra diferença notória e muito extensa entre as obras dos dois poetas: se os textos de Cida Pedrosa se voltam para o exterior, comentando com objetividade figuras que assumem o contorno de tipos sociais, já os de Wellington de Melo se voltam para a interioridade do sujeito, com traços fortes de uma autobiografia mental. Ela começa logo no primeiro poema, «wellington de melo»: não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago [...] . Como se nota, o poeta fala de si mesmo na segunda pessoa, o que parece pôr de parte a centralidade do sujeito, mas trata-se de um recurso estilístico que ainda valoriza mais a tradicional densidade dos afetos própria da lírica romântica.

É interessante saber que os poemas de Cida Pedrosa, esse alfabeto de mulheres dos nossos tempos, ou das soluções que a vida, o trabalho e as técnicas médicas (cirurgia estética, de reconstrução orgânica com fins de mudança de sexo, etc.) oferecem à mulher, foi adaptado a espetáculo. Diversos tipos de mulher se apresentam, num discurso desataviado, limpo de retórica e artifício, por vezes com léxico sexualmente forte, num saldo realista de mais tragédia e infelicidade do que de sucesso. Imaginamos que o desfile dos textos/mulheres, pela sua energia, capacidade de síntese e acutilância descritiva, surtam realmente bom efeito teatral num palco ou num écran.

   
 
   
  CIDA PEDROSA
Oféla
   
 

exemplo de mulher resolvida
conseguiu tudo o que quis

montou casa aos 21 anos
e já deitava com o namorado aos 15

hoje ocupa o melhor cargo da empresa sertanense

cargo maior
só o do dono-presidente e seu filho ronaldinho

tem sob o seu comando uma porrada de homens
e trata sobre a compra e venda de gesso
com empresários da argentina

acorda cedo levanta peso lê o jornal
prepara o dia serve ração a fênix
e marca um programa para noite

ofélia recebe a melhor amiga
lê neruda em espanhol
ensaia um tango
liga a TV
e pondera se já é hora de dividir as escovas com flavão

   
  WELLINGTON DE MELO
j orge
   
 

eu evoco as sete lâminas de og m contra o medo encravado na pupila da presa eu te evoco ferro forjado de fúria ferro forjado pelo fogo de j rge eu pisoteio o pânico dos para-brisas com exércitos de crianças cegas a og m senhor de todas as demandas eu ofereço meu medo estripado no jornal das seis a j rge guardião da verdade esse poema lança afiada no olho direito dos alcoviteiros eu debulho o medo das repartições com um rosário ensanguentado eu incendeio com a tocha de og m os sorrisos rosados do bistrô lotado eu esmago com o cavalo de j rge as cabeças deitadas sobre terra arrasada da praça de alimentação

 
 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

© Maria Estela Guedes
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