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Doía, muito doía, e não havia nada
que pudesse fazer para estancar o sangue, que escorria. A impotência
doía. Doía, e não enxergavam, não viam – ou não queriam ver? Doía e não
era dor pouca, pois em todos os momentos se vira sozinho, todos
desapareciam, sua única companhia era o desgosto, era. As aves no céu
voavam indiferentes. E doía. Agora percebia enfim que doía, e não só
percebia como sentia agora todas as dores passadas, agora. A solidão. A
ausência machucava, doía. A ferida aberta, e os vermes vindouros. As
mãos doíam, e muito. As pernas doíam, e muito. O tronco doía, muito. A
flechada, os cuspes, a coroa, os espinhos – tudo doía. O sarcasmo era o
que mais feria, doía. Os risos. Os socos tão-somente neste instante
sentia, e doíam, como socos dados em vão, porque em vão foram. Apenas
serviram para aumentar a dor. A hostilidade. Valeria o sacrifício,
valeria? O sol quente. O céu claro. A vontade de urinar doía. Os rins
doíam, sobretudo. O suor que sujo escorria. O sal. O fel. O mau hálito.
As lembranças também doíam. Herodes (Jesus ainda bebê) mandara matar
todas as crianças abaixo de dois anos. As mentiras inventadas, a
hipocrisia. Herodes não queria adorá-lo, não queria. E o Pai, sabia?
Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não estava escrito? Doía. A
crueldade de Arquelau. Os avisos de Deus. As interferências. As
tentações de Satanás – tudo premeditado. Doía. Sua história não fora
escrita por Si mesmo? A morte de João feria e fazia doer. A cabeça
ensangüentada de João. Sangue. Os demônios. A lepra. Os fariseus, que
tramaram sua morte. Hipocrisia. Ai de Jerusalém! Doía, porque davam
dízimo, conheciam as Escrituras, jejuavam, oravam, mas não viviam
segundo a justiça e a fé. Muito. Doía. Os judeus hostis. As enganações
doíam, e muito. Todas as dores possíveis nele se convergiam. O tremor. A
ira. O ódio. A vingança. As mortes dos que não estavam na Arca de Noé.
Doía a piedade e o conseqüente remorso que sentia, agora, só agora,
pelos não privilegiados do Pai. As crianças afogadas nas águas do
dilúvio. As crianças se debatendo contra as águas salgadas. Seriam
salgadas, seriam? A compaixão que nutria, agora, e só agora, por Caim. O
sofrimento de Jó era ele, Jesus, que sentia, e doía, doía mais do que
doeu em Jó. O gosto da fruta (amarga) que Adão comeu doía o estômago. A
liberdade, a esperança perdidas, o paraíso, a felicidade perdidos –
doíam, e era uma dor que feria. O pranto sobre a cidade condenada. A
figueira estéril. As profecias doíam. A ambição dos humanos. A agonia
passada. E, após todo o sofrimento, a sentença. Meu Pai. Este suor que
escorre e se mistura ao sangue, estas lágrimas que escorrem e se
misturam ao sangue, esta saliva que escorre e se mistura ao sangue,
estes cuspes que escorrem e se misturam ao sangue. As feridas. Os raios
do sol nos olhos ardem, doem. Ver a mãe chorando e nada poder fazer dói.
Ver os irmãos chorando e nada poder fazer dói. Ver os amigos, sobretudo
os falsos, e nada poder fazer dói. Ver os inimigos zombando e nada poder
fazer dói. E o Pai, sabia? Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não
estava escrito? Doía. Zombaria. Zombarias? Este peso nas costas dói. O
fardo pesado. Os pecados de todos. Os erros. Os desvios de conduta. Os
assassinatos. As vinganças. Os adultérios. As ingratidões. Doía. As
feridas. As traições. As armadilhas e provações. O fardo. Os tapas no
rosto. Os socos. Esta barba espessa e suja. Essa feiúra. Esta ausência.
Trinta e três anos de falta doem. Trinta e três anos de mentiras e
maldades doem. As marcas das correntes nos pulsos doem. Este zunido
intenso nos ouvidos. Os zunidos, conseqüência dos gritos nos ouvidos,
doem. Esse riso cínico dói, e muito, demais. As marcas profundas nas
costas doem. As pernas cansadas, conseqüência do longo trajeto com esta
cruz pesada nos ombros, doem. E os tombos. Meu Deus, afaste este cálice
de mim. Afaste a onisciência de mim, afaste essa capacidade de imaginar
o futuro de mim. Afaste a lucidez de mim. Afaste este choro amargo de
mim. Afaste de mim este soluço convulso que ninguém vê. Pai, por que não
disseste antes que minha morte não era para todos? Pai, por que me
enganaste? Pai, que culpa têm os que não reconheceram nem reconhecerão
como verdade o que eu preguei? Pai, Tu me fizeste profetizar a traição
de Judas. Pai, por que me fizeste antever que Pedro me negaria? Se tudo
continuar assim, entre ódios privilégios injustiças rancores pesares
mortes gratuitas, sobretudo por causa dos seres à imagem e semelhança de
Ti, ó Pai, renego a condição de Salvador. Se for para eu ter remorsos
eternos, renego, ó Pai. Pai, porque lhes perdoar o que fazem se eles
sabem exatamente o que fazem e mesmo assim continuam fazendo? Essas
zombarias. Se tu és o rei dos judeus... Não és tu o Cristo?... Mas este
nenhum mal fez. Mulher, eis aqui o teu filho. Sim, filho, e eis aqui tua
mãe, chorando. Dor. Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste também
desamparo a Ti e aos teus. Vede, chama por Elias. Tenho sede... Rãnnn.
Este gosto acre. Ha-ha-ha. Sei, Pai, que sempre fizeste todas as coisas
para os Teus próprios fins, e até o ímpio para o dia do mal. Sei, Pai,
que tudo acontece para que as Escrituras se cumpram. Mas, Pai, que não
seja feita mais a Tua vontade. Por um segundo apenas quero ter vontade,
apenas por um segundo.
E (talvez porque ainda doía) com a
pouquíssima força que restara enfim murmurou:
__ Pelos camelos...
Deus, perplexo, com toda a
autoridade possível:
__ Quê?! – esbravejou.
__ Pelos camelos... came... eu...
eu vou... morrer... pelos camelos... – fechou os olhos e expirou.
Não escurecera. Nem escureceria. |