REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 21

 
 

 

 

 

ESPACIALIZAÇÃO
NA OBRA DE CARLOS DE OLIVEIRA

Maria Estela Guedes

 

Palestra proferida na Universidade 9 de Julho na "Semana de Letras & Tradutor e Intérprete - 2011" a 17 de Outubro de 2011

Foto: Ed. Guimarães                                                                 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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CASA

A luz de carbureto

que ferve no gasómetro do pátio

e envolve este soneto

num cheiro de laranjas com sulfato

(as asas pantanosas dos insectos

reflectidas nos olhos, no olfacto,

a febre a consumir o meu retrato,

a ameaçar os tectos

da casa que também adoecia

ao contágio da lama

e enfim morria

nos alicerces como numa cama)

a pedregosa luz da poesia

que reconstrói a casa, chama a chama.

 

Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo

 

 O território

 

          Carlos de Oliveira é um dos escritores portugueses mais conceituados do século XX, ligado ao neo-realismo. Nasceu em 1921 no Brasil, em Belém do Pará, e morreu em Lisboa em 1981. A infância e a juventude passou-as na região de Coimbra, primeiro em Febres, uma vila onde o pai foi médico, e mais tarde na cidade de Coimbra, em cuja Universidade tirou o curso de Ciências Histórico-Filosóficas.

          Se bem que o seu discurso se tenha tornado cada vez mais estilizado e abstrato, à medida que foi publicando e republicando (reescreveu quase todos os textos), ele permanece uma das maiores referências neo-realistas. Uma das dominantes do neo-realismo é a criação de personagens inspiradas em trabalhadores, o que até então era pouco frequente na nossa literatura. O proletariado, rural e urbano, só passou a ter implantação plástica, e ideológica, com este movimento cultural, que manteve oposição corajosa a quarenta anos de ditadura em Portugal, até à reposição da democracia, a 25 de Abril de 1974.

          Ora as personagens inspiradas quer no proletariado, quer na burguesia rural, arrastam após si o território em que trabalham e se movem. Em Carlos de Oliveira, a terra chega a sobrepor-se às personagens, como propriedade. A força da ação nasce dos conflitos relativos à posse, ou à perda de terras, em geral por execução de  hipotecas. Em paralelo, a mulher também pode gerar conflitos e aparecer em situações idênticas à terra, não por se perspetivar numa dimensão simbólica de Terra Mater, sim porque ela ainda hoje é subvalorizada pelo machismo. Em Carlos de Oliveira a mulher pode aparecer como propriedade gerida contra a sua vontade por pai ou marido. É assim que, em Uma abelha na chuva, Mestre António manda matar o namorado da filha e a oferece em casamento ao assassino.  

          O espaço e os conflitos territoriais que gera dominam toda a obra de Carlos de Oliveira. Seria caso para invocar o tema da territorialização e desterritorialização, lançado para a arena cultural por Deleuze e Guattari, pois o campesinato é uma classe social desterritorializada. Em primeiro lugar, grandes grupos de trabalhadores deslocavam-se pelo país, chamados a tarefas sazonais de grande porte, como as vindimas ou a apanha do arroz. Hoje em dia, o campesinato deixou de emigrar dentro do país para sair dele para outros continentes, dedicando-se a diferentes tarefas – construção civil e hotelaria. Em segundo lugar, porque os camponeses eram obrigados a cultivar a terra dos senhores, em regime quase feudal, sem direito à propriedade, e à custa de muita miséria e sofrimento. Uma das palavras de ordem, no período em que se pretendeu fazer em Portugal a reforma agrária, foi, precisamente, “A terra a quem a trabalha”. Durou pouco a reforma agrária, neste momento a agricultura é dos nossos setores de produção mais críticos. Em largas faixas do país, como naquela em que vivo, os campos estão a monte, por não haver quem os trabalhe e ficar muito cara a produção.

          Febres, a vila onde viveu Carlos de Oliveira, tem esse nome devido às sezões, as febres sazonais que atacavam homens e animais. O poema em epígrafe gira em torno das condições de vida na casa, construída em local pantanoso, com insetos, e febres que consomem não só os moradores como o próprio retrato do poeta. Em aparte, direi que um dos modos de espacializar, neste escritor, ocorre em segundo grau e exprime-se no retrato ou na galeria de retratos da casa senhorial.

          Voltando às febres, motivo de sofrimento para os camponeses, hoje a doença foi erradicada em Portugal e na Europa. Noutros continentes, porém, a malária, ou paludismo, continua a ser uma das doenças com mais alta taxa de mortalidade. Ora a malária é uma doença diretamente conetada com o território geográfico.

          Febres localiza-se numa zona litoral, pantanosa, que vai mais ou menos desde a foz do rio Mondego, perto de Coimbra, até Aveiro, cidade famosa pelas suas rias. Os mosquitos portadores da malária depositam os ovos na água, por isso a região, outrora, era uma das mais castigadas pela doença. Carlos de Oliveira faz-lhe referências variadas na obra. Em paralelo, como neo-realista, empenhado portanto na questão social, aparece a crítica ao inexistente plano do Governo para assistência médica aos trabalhadores. Vamos ver um segmento em que transparecem alguns dos tópicos de que falei até agora, e também o problema do desemprego devido à mecanização:

Na quinta, tudo nascia da sua paciência. Se aparecessem as prensas, a destiladora, os escaroladores mecânicos, os homens seriam despedidos. Uma máquina faz o trabalho de cem braços. A oferta de mão-de-obra aumentaria em Corrocovo, as levas dos emigrantes e dos ganhões engrossariam e o povo das terras areentas debandaria em massa. Ao fim da caminhada, a gente da gândara encontraria os esteiros do Tejo, os valados lodosos, as febres do arroz. Ou o chão alheio dum novo continente.

Carlos de Oliveira, Casa na duna 

 

Como se vem confirmando, o neo-realismo, ao dar atenção à vida quotidiana, e ao expressar-se num discurso concreto, apresenta as personagens em estreita correlação com a terra. Ela já foi objeto de estudo por autores como Luís de Miranda Rocha, Idalécio Cação e Vital Moreira, que se centraram na zona geográfica eleita por Carlos de Oliveira em todos os seus livros, a gândara. «Gândara» é uma designação de tipo geográfico-ecológico, como «savana» ou «pradaria». Refere-se à região costeira a que já aludi, baixa, pantanosa, de solo arenoso e por isso instável, que se estende de Coimbra a Aveiro. Caracterizam-na ainda a presença do mar, as dunas e as lagoas, sua fauna e flora específicas.

Também eu, ao classificar Carlos de Oliveira como «microscopista», e ao dedicar um trabalho ao céu e à terra na sua poesia, dei atenção aos modos como ele apresenta o espaço, real e poético. Ida Maria Alves, da Universidade Federal Fluminense, analisou por seu turno as imagens da terra, sob a égide de Gilbert Durand.

Não obstante estes trabalhos, a espacialização é um modo complexo de Carlos de Oliveira criar o seu discurso poético, não estando por isso esgotadas as possibilidades de novas contribuições para a sua análise. Espacializar é territorializar, materializar em palavras o território imaterial do pensamento e da imaginação. Quer pela forma, pela cor, pelo enquadramento, pela planta da casa, pelo mapa, e até pela sonoridade, o poeta, proprietário das suas memórias, revela-nos em texto o seu mundo interior. Dá a ver através do que cria, como as personagens. Um exemplo é Mestre António, no romance Uma abelha na chuva, que, apesar de cego, protagoniza as mais violentas paixões em toda a obra de Carlos de Oliveira: ele trata a filha como propriedade sua, por isso dispõe daquele território sem sequer a consultar.

O modo como a caligrafia se dispõe no papel, ou o modo como os carateres gráficos se ordenam nos versos, à maneira de poemas visuais, também constitui forte dominância espacial na obra. As personagens de Carlos de Oliveira, aliás o poeta igualmente, mostram-se preocupados com a manutenção da ordem. O máximo rigor, ou o «micro-rigor», para usar uma expressão do poeta, é um gesto cosmificador, por isso as personagens geometrizam, criam simetrias com objetos, organizam o caos.

Se analisássemos as expressões da passagem do tempo, verificaríamos de novo que também elas são plásticas, observáveis com os olhos da imaginação. Um dos grandes temas do seu romance é a ruína da casa senhorial, com implícito desaparecimento da classe burguesa.

Carlos de Oliveira encontra inúmeras maneiras de nos mostrar, através dos sinais da ruína, que a realização do seu ideário marxista é só uma questão de tempo. Documentos da sua passagem representam-no, entre outros, o bolor e o caruncho que vão destruindo a casa burguesa e, com ela, a classe social possidente. Vejamos um exemplo de territorialização, ou de tomada de posse da propriedade, mediante o conhecimento científico dela. A espacialização decorre das ferramentas de arquiteto que mede a casa e quer aprender a dominá-la mesmo às escuras, como se fosse um cego. E a cegueira, com o seu oposto pólo da luz, é um complexo de imagens comum na obra, quer num plano simbólico, quer mais terreno. No exemplo escolhido, além da territorialização, existem pequenos elementos de discurso também passíveis de comentário nessa área. É o caso da espacialização simbólica: no contraste entre luz e trevas, o que brilha mais é uma chave. Ora a chave é o símbolo máximo do segredo e da sua revelação.

Na sala, o homem sentado à mesa de vinhático levanta-se e verifica a janela: caixilhos de castanho, misagras de ferro antigo, sustentam as vidraças cheias de imperfeições (nódulos, bolhas, distorcem a visão), mas duma espessura sólida capaz de resistir.

Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?

A fita métrica deve estar na gaveta superior direita da cómoda holandesa, onde sempre esteve; a chave, vejo-a daqui: chama de níquel vacilando na fechadura do último gavetão. Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções.

Carlos de Oliveira, Finisterra – Paisagem e povoamento

 

No último dos seus livros de poesia, Pastoral, figura o poema «Chave»:

Rodar a chave do poema

E fecharmo-nos no seu fulgor

Por sobre o vale glaciar. Reler

O frio recordado.

Não parece existir segredo, o poema é apenas a casa em que o poeta se abriga do mau tempo. Porém, o leitor precisa de chave descodificadora, sim. No início, há uma dedicatória a Anne Gall. «Anne Gall» é um dos vários anagramas do nome da mulher do poeta, Ângela. Ângela é assim uma personagem na obra, de contornos mais ou menos difusos, que aparece sempre como anjo da guarda, a casa protetora. No final, mostrarei o seu retrato, pintado por Carlos de Oliveira.

A espacialização exprime-se assim de modos variados, quer na literatura, quer na pintura, se bem que Carlos de Oliveira não seja conhecido como pintor. Por isso mesmo, terminarei a minha palestra mostrando fotografias da sua pintura. Neste momento, os originais, em quadros, folhas soltas e cadernos permanecem ainda em casa do poeta, na Av. Praia da Vitória, em Lisboa. A Ângela Oliveira, viúva, agradeço ter-me deixado coligir este interessante fundo artístico e documental.  

   
  Espacialização da palavra
 

O modo como as palavras, manuscritas ou oriundas da tipografia, se dispõem na página, é um motivo de fascinação para o poeta. Escrever é cosmificar, criar algo que antes não existia. Mas pode a caligrafia ou o texto impresso ser motivo de desordem, inquietação ou perplexidade, como acontece com a carta de Álvaro Montouro, a confessar os seus crimes de roubo e abuso de confiança, no romance Uma abelha na chuva. Álvaro apresenta-se na sede do jornal da terra com a carta para publicar. O diretor do jornal fica espantado a olhar para ela, sente medo, dissuade por isso o lavrador de tornar públicos os seus crimes.

De diversas maneiras as palavras são ferramentas de territorialização, elas criam espaço, material como os livros e imaterial como o conteúdo deles. Deixam o seu reino virtual e imaterial quando se desenham no papel, tornam-se coisas materiais como mapas ou ilhas. O que não é suficiente para o poeta. Criada a sua ilha verbal, sente-se só, e então aspira à presença de alguma ave que venha povoar uma paisagem tão deserta. É o que lemos no fragmento seguinte: 

O poeta
[o cartógrafo?]
observa
as suas
ilhas caligráficas
cercadas por um mar
sem marés,
arquipélago
a que falta
vento,
fauna, flora,
e o hálito húmido
da espuma

 Primeiro texto de «Mapa», em Micropaisagem 

O território das palavras tem por alicerces os papéis, pelos quais o poeta viaja e peregrina, para recordar o seu título «Viagem entre velhos papéis». Sejam eles os seus papéis, sejam livros comprados no alfarrabista, todos representam um caminho para o aprendiz. O poeta mostra as caraterísticas físicas dos papéis e livros em diversos ensaios de O aprendiz de feiticeiro, revelando com isso ser um bibliófilo. 

Também na poesia o bibliófilo aparece, a mostrar a marca de água do papel, como acontece precisamente no poema «Papel», em Sobre o lado esquerdo. No quotidiano do poeta, a viagem entre velhos papéis alude à sua obsessiva necessidade de corrigir e reescrever os livros. Entre primeiras e últimas edições, a diferença pode ser abissal. Por isso é importante referir que a minha comunicação não acompanha a viagem do autor ao longo do tempo. A minha perspetiva é sincrónica e não evolutiva, todos os comentários e citações se referem à publicação das seis obras reconhecidas pelo autor que a Editorial Caminho publicou em 1992 num só volume, em papel bíblia.

Passando do poema visual para a matéria não visual do texto, aparecem diversas normas de territorialização, em que o autor mostra a sua soberania sobre a criação poética. O romance, por exemplo, apresenta às vezes uma estrutura cinematográfica, em que os capítulos correspondem a cenas, abrindo com o aparecimento de nova personagem. De outra parte, as personagens movimentam-se como numa encenação ou descrevem-se plano a plano. Ora são vistas à janela pelo leitor/espectador, ora de baixo para cima, quando exercem o seu domínio sobre a multidão do alto de uma escadaria, etc.. É o caso de Uma abelha na chuva, que, sintomaticamente, foi adaptado ao cinema por Fernando Lopes, e ao teatro por Gastão Cruz.  Este romance é na maior parte constituído por cenas de interior, no escritório de uma casa em decadência. Porém os exteriores são dominados por um típico instrumento de territorialização, a estrada. A abertura dá-nos a ver e a ouvir, a partir de planos do caminho, um homem que chega, assentando as botas com ruído nas pedras da calçada e nas folhas podres dos plátanos. Se a primeira visão é a do solo, logo a seguir outro espaço se vai definindo, numa transição do material para o imaterial: é o espaço da memória, transmitido numa série de monólogos interiores de que fazem parte descrições, como as de propriedade - as casas luxuosas de outrora e as casas arruinadas do presente da narração.

Encerro este ponto sobre a espacialização da palavra mencionando o curioso híbrido linguístico que aparece no romance Pequenos burgueses. Uma das personagens é um jogador que fala uma espécie de portinhol. Longas sequências de monólogo interior ocupam assim as páginas, numa língua tão estranha na sua mancha gráfica como na algaravia semântica e musical que sugere ao ouvido.

   
  Espacialização simbólica
 

A espacialização equivale à forma primária, biológica, de conhecer o mundo material: através das percepções sensoriais. Em Carlos de Oliveira domina a visão, de um lado através dos olhos, dos vidros da janela, do microscópio, de lentes e lupas, de outro vendo o mundo nas suas cores, elementos constituintes, e sobretudo nas suas formas. Também aparece a cegueira e personagens que tentam reterritorializar o espaço, movendo-se em casa às escuras. O espaço é invariavelmente geométrico, mensurável com fita métrica, pois o mundo é visto como obra de um arquitecto.

Em aparência, situamo-nos no espaço concreto do neo-realismo. Porém, quando a geometria resulta da ação do arquiteto, que o mesmo é dizer do Supremo Arquiteto do Universo, já nos encontramos num nível terceiro de realidade, para me socorrer do conceito dos três mundos de Karl Popper. Esse mundo terceiro é o delimitado pelo número 3 ou 33, mais raramente pelo 7, que todos sabem ser o mais feliz e sagrado de todos, por representar a obra divina.  

Também aparece o cubo, no poema III de “Aresta”, em Micropaisagem. A pedra cúbica é símbolo do Templo, da pedra polida, em oposição à pedra bruta que todos somos, antes de iniciados e de nos aperfeiçoarmos pela aprendizagem das matérias sagradas. No «Soneto fiel», de Sobre o lado esquerdo, surge uma expressão compósita, «sílabas de cedro», que recorda no leitor a madeira com que Hiram Abif mandou construir o Templo de Salomão. Outra árvore simbólica é a acácia, que tem o seu lugar no texto «O inquilino», em O aprendiz de feiticeiro. Uma acácia centenária cai, poeta e Gelnaa (Ângela) terão de plantar outra. No mesmo texto consideraria ainda a presença do ternário, constituído pelas três pessoas que acompanhavam Fernando Pessoa no momento da morte.

Não são porém a acácia nem o cedro as árvores mais marcantes da obra deste escritor, sim o conjunto delas. Para quem nasceu na Amazónia, como ele mesmo refere, não espanta assim que a floresta surja como tema forte. Existem dois tipos de floresta em Carlos de Oliveira: a viva e a petrificada. Esta faz parte do subsolo da gândara, como matéria fóssil. A floresta petrificada, rica de valores semânticos, quer do ponto de vista científico quer poético, manifesta além disso a particularidade de constituir uma espacialização do tempo. Os geólogos medem o tempo nos diversos estratos e elementos que compõem as rochas. O poeta enumera, no texto «Na floresta» (O aprendiz de feiticeiro) as várias significações do termo,  consoante as expressões em que se apresenta, e recorda registos literários da floresta na obra de vários escritores.

Na ordem de ideias da construção, e, quando nesta ordem de ideias se fala de construção, a que está implícita é a do Templo de Salomão, o poeta invoca ou enumera com frequência toda a espécie de trabalhadores envolvidos, além do arquiteto: canteiros, carpinteiros, marceneiros, pedreiros, ferreiros, etc..

Em Finisterra, quando se descreve a floresta, invocam-se os marceneiros e os carpinteiros para a aparelhar. Finisterra é todo ele um romance simbólico, arquitetado em níveis diferentes de abstração, consoante o nível de realidade observado ou em que nós observamos as personagens. Quando uma mulher se senta à janela, a paisagem que ela observa pertence ao primeiro mundo popperiano. Quando a personagem descreve a floresta patente na pirogravura ou na maquete, já estamos no terceiro mundo popperiano, o dos conceitos, e por isso o romance muda completamente o registo de significação. Tudo se torna simbólico. Acresce o facto de em Finisterra a narrativa transgredir algumas normas, como a de identificar as personagens com um nome. A abstração desmaterializa a narrativa, cujas personagens carecem de identidade e cujos discursos se confundem às vezes: sabemos apenas, e nem sempre, que dado monólogo interior pertence à mãe, à criança, ao pai, ao avô. A alquimia está sempre presente, com o seu horizonte de ouro: há que realizar a Obra, há que salvar a casa em ruínas. Não tendo identidade os lugares, as casas nem as personagens, o abstraccionismo poético tende para algo oposto ao materialismo que define, em termos correntes, a arte que veicula a ideologia comunista. Finisterra é um romance espiritualizado, dominado pelas figuras simbólicas, que sobem desde o cordeiro até aos anjos de fogo apocalípticos. Apesar destes factores de transfiguração, um escritor próximo do neo-realismo e que conhece muito bem a obra de Carlos de Oliveira, como é Urbano Tavares Rodrigues, não hesita em considerar Finisterra um romance marxista.  Já o título do seu artigo antecipa essa conclusão: «Finisterra ou de como o realismo objectal pode tornar-se interveniente». Se pensarmos que ao domínio individual se sobrepõe o social, e que à propriedade se sobrepõe a produção, realmente concluímos que a Obra alquímica a que aspira o romance é uma distinta sociedade, e uma nova ordem política.

Num encontro especializado em matéria simbólica, o Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas», tive já oportunidade de referir que Carlos de Oliveira só parece conhecer os números 3 e 33. Com efeito, até na construção do romance tal arquitetura se torna patente. Em quatro romances publicados, dois têm 33 capítulos: Pequenos burgueses e Finisterra – Paisagem e povoamento. Este espaço do símbolo é o tradicional, próprio, por exemplo, do discurso maçónico. E existe ainda o tradicional próprio da literatura oral, com a superstição, as assombrações, os príncipes e as moiras encantadas, o diabo e os feitiços. Exemplo disso é a «Xácara das bruxas dançando», no livro Mãe pobre. A literatura popular foi acarinhada pelo neo-realismo. José Gomes Ferreira e Carlos de Oliveira procederam à recolha dos Contos tradicionais portugueses, que saiu em dois volumes, com ilustrações de Maria Keil (Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1957). Alguns foram depois realizados em cinema por João César Monteiro. No texto «Autor, encenador, actor» (O aprendiz de feiticeiro), o poeta fala desse trabalho e sobretudo do seu companheiro de letras e armas, no combate à ditadura. O título aplica-se ao amigo: José Gomes Ferreira, na opinião de Carlos de Oliveira, era não só autor como também ator e encenador.

A simbologia pode perder o caráter sagrado e literário para se dimensionar no território político, eventualmente codificada, dada a existência da Censura. E então é muito claro que o fogo e a cor vermelha aludem ao comunismo. Em «Descida aos Infernos», o inferno a que se desce são as profundezas da terra. Ali não não há demónios, ali trabalham os mineiros. Na abertura do capítulo 28, de Finisterra, a floresta fica em risco de ser incendiada pelas cabeleiras de fogo dos peregrinos. Consta, de resto, escreve-se ainda no mesmo local, que «os sobreiros são vermelhos». Ora os sobreiros são as árvores mais típicas do Alentejo, uma província conhecida por grande parte da população ser comunista.

Uma vez que mencionámos o romance Finisterra, cujo subtítulo – Paisagem e povoamento -  dá a medida da importância do território neste escritor, cabe dizer que finis terrae é uma expressão simbólica. Remete para a cultura bíblica, em especial para o Apocalipse.

Outras maneiras de transmitir ideias marxistas, como é próprio do neo-realismo, seriam perigosas, dada a perseguição da Censura. Logo em início de carreira, Carlos de Oliveira viu apreendido o romance Alcateia. Mas o perigo ia além da Censura, diversos artistas passaram pela prisão, dadas as suas posições de esquerda.  O regime era odiado, esperava-se que caísse de podre, como as casas burguesas dos romances de Carlos de Oliveira, daí que a palavra «bolor» também pareça termo de código, dada a sua presença constante. Não só em Carlos de Oliveira isso acontece, como noutros escritores da época, caso de Augusto Abelaira, de quem recordo o romance precisamente intitulado Bolor.

Refiro ainda a pirogravura, arte praticada por várias personagens femininas. As mulheres desenham, ou territorializam a paisagem gandaresa gravando-a a fogo sobre pele. Transposta a técnica para o domínio da imagem, é claro que o trabalho ganha muita força simbólica. A pirogravura aparece pelo menos em dois romances, Finisterra e Uma abelha na chuva. Pertence ao segundo o excerto seguinte:

 

Recortava o Exílio de Amor com renovado zelo, pegava no cautério e, apertando o folezinho de borracha, avivava a ponta de fogo, abria na carneira um rio manso de salgueiros, a guardadora, os patos, a sugestão do silêncio, ou então fragas que o musgo amaciava, grutas rasgadas numa quase ogiva de templo, uma ou outra cegonha solitária, coisas mansas, paradas.

Obras de Carlos de Oliveira, p. 913-914 

 

Termino com dois símbolos maiores: a gisandra e a porcelana do romance Finisterra – Paisagem e povoamento. A gisandra é uma planta imaginária, cheia de virtudes medicinais, entre elas o poder de conferir fertilidade. Quanto à fórmula da porcelana, que uma personagem de Finisterra deseja alcançar, de modo a construir uma fábrica capaz de salvar da ruína a casa familiar, ela foi objeto de intervenção literária por A.M. Amorim da Costa, professor de Química na Universidade de Coimbra e especialista na História da Alquimia. E é com o derradeiro parágrafo do texto de Amorim da Costa que vos deixo, exortando-vos, como ele, a nunca desesperardes na busca do impossível:

 

Impõe-se não desistir. Ali junto, no berço, de olhos arregalados, está o futuro. Mesmo sem nada entender do que se passa, a ele caberá receber em suas mãos a missão que o pai não conseguiu cumprir. A Obra é para ser continuada. A Fórmula da porcelana etérea que o pai sentiu dançar na sua cabeça, mas que se volatilizou quando a quis concretizar, à sua morte dançará na cabeça do filho. Por quantas gerações? Por tantas quantas sejam capazes de não deixar morrer a esperança.

A.M. Amorim da Costa

  LEITURAS
 

A.M.Amorim da Costa, «Lucubrações com Carlos de Oliveira – A fórmula da porcelana». Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, número de homenagem a Ana Luís Janeira. Em linha em:

http://www.triplov.com/novaserie.revista/ana_luisa_janeira/amorim_da_costa/index.html

Carlos de Oliveira, Obras de Carlos de Oliveira. Lisboa, Editorial Caminho, 1992.

Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e esquizofrenia II. Lisboa, Assírio & Alvim, 2007. Tradução e prefácio de Rafael Godinho.

Ida Maria Santos Ferreira Alves, «As imagens da terra na poesia de Carlos de Oliveira». Universidade Federal Fluminense. Em linha em: http://www.letras.ufmg.br/cesp/textos/%281998%2906-As%20imagens.pdf . Consultado a 20 de Maio de 2010.

Idalécio Cação, «A Gândara, identidade e espaço na obra de Carlos de Oliveira». Mira, Gandarena, 4, 2000.

Luís de Miranda Rocha, A gândara e outros temas na poesia de Carlos de Oliveira. Edição dos Municípios de Cantanhede e Mira, 2008.

Maria Estela Guedes, «Carlos de Oliveira: Finisterra». Lisboa, Diário Popular. Três artigos publicados a 16, 23 e 30 de Outubro de 1980.

Maria Estela Guedes, «Carlos de Oliveira, o microscopista». In: A poesia na óptica da óptica. Lisboa, Apenas Livros, 2008.

Maria Estela Guedes, «Céu e terra na poesia de Carlos de Oliveira». Comunicação ao IX Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas»
Centro Cultural Gonçalves Sapinho . Benedita, 29-30 de Maio de 2010.

Rosa Maria Martelo, Carlos de Oliveira e a referência em Poesia. Porto, Campo das Letras, 1998.

Urbano Tavares Rodrigues, «Finisterra ou de como o realismo objectal pode tornar-se interveniente». In Um novo olhar sobre o neo-realismo. Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 66.

Vital Moreira, Paisagem povoada - A Gândara na Obra de Carlos de Oliveira. Ed. da Câmara Municipal de Cantanhede, 2003.

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

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