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Para abreviar a questão: não admira que boa parte das
pessoas compartilhe a inexata suposição de que pouco existe no campo da
poesia brasileira após a manifestação sublime de escritores da monta de
Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo
Neto e, mais recentemente, de Ferreira Gullar. Embora o aludido quarteto
seja – com todos os méritos – julgado o ponto culminante da recente
poesia nacional, proponho chamar a atenção para outros artistas
nacionais da palavra, que prosseguem à margem, não apenas do grande
público, bem como dos currículos dos cursos superiores de Letras do
país.
Ainda que correndo o risco de arbitrariedade, empregaremos o
termo poesia contemporânea para referir os poemas publicados nas décadas
de 1980 e 1990 e na primeira década do ano 2000. Trata-se, consoante
observado, de um período de transição: do término do milênio passado
para o início do atual. Época, pois, de vivo interesse para cultura
nacional em vários sentidos. Um deles é que, por essa época,
sistematiza-se, torna-se mais popular e ganha evidência o rock nacional,
que passa a dialogar com a produção poética do momento. Não apenas o
rock, mas também outras manifestações paraliterárias, como, por exemplo,
as histórias em quadrinhos.
Em matéria de contexto histórico, nos anos 1980, o país
respira os ares da redemocratização. Desnecessário acentuar que o clima
de relativa liberdade política migra para as formas pelas quais nossos
poetas exercitam seu fazer literário, que, prosseguindo, em certo
sentido, tendência dos anos 1970, continua irreverente e contestadora.
Entretanto, a sensibilidade marginal e transgressora, que tão bem
caracteriza os poemas de 70, perde força para uma concepção de poesia
mais elaborada, mais universal, menos dogmática ou panfletária, ainda
que o engajamento e o protesto tenham continuado.
Resultado inequívoco da liberdade aludida é que a poesia dos
anos 1980, e, igualmente, uma parcela da poesia de 90, não pode ser
enquadrada em apenas um rótulo definidor; pelo contrário, exibe variadas
tendências de realização. O que equivale a afirmar que o leitor contumaz
dessa poesia deparar-se-á com composições que devem muito às
experiências de vanguarda, até poemas que estão conectados mais ao
referencial, ao conteudístico; em outras palavras, a uma poesia
discursiva, que se tinge de um quê reflexivo. Se fosse conveniente, a
esta altura, tirar partido de uma analogia, diria que 1970 está para
1980, em termos de estética poética, assim como a primeira geração
modernista está para a segunda.
Chegado a este ponto, é licito indagar: quais são os poetas
dos anos 1980 cuja leitura deve ser feita? Está claro que a tal questão
não se responde com facilidade, haja vista que cada crítico literário ou
antologia tem preferências particulares. Nada obstante, é plausível
apresentar certos poetas que conseguiram interiorizar com sucesso o
espírito da época que nos ocupa. Assim, numa lista que não possui a
menor pretensão de ser completa, chamo a atenção para os seguintes
nomes: Age de Carvalho (1958), Fernando Paixão (1965), Alice Ruiz
(1946), Horácio Costa (1954), Glauco Mattoso (1951), Antônio Risério
(1953), Paulo Henrique Britto (1951); Nélson Ascher (1958), Arnaldo
Antunes (1960), Alexei Bueno (1963), Eucanaã Ferraz (1961), Felipe
Fortuna (1963), entre tantos mais.
Os escritores arrolados acima são representativos da
“escola” poética dos 80. Veja-se que, com o paulistano Arnaldo Antunes,
está-se diante do diálogo entre o rock e a poesia. Não custa rememorar
que Antunes foi integrante, entre 1982 e 1992, do grupo musical “Titãs”.
Sua poesia é cerebrina e experimental, sobretudo relativamente ao canal
que veicula o discurso poético.
Glauco Mattoso é um caso, a vários títulos, notável. Poeta
de verve satírica e escatológica, hoje está praticamente cego. Talvez
seja um dos grandes sonetistas atuais da língua portuguesa. Tanto em
qualidade quanto em quantidade. A literatura de Mattoso deve produzir
estranhamento no leitor, que aprendeu – erroneamente, diga-se de
passagem – que a forma poemática fixa do soneto apenas pode conter
assuntos tradicionalmente considerados “elevados”.
Por derradeiro, com Nelson Ascher, exemplificamos a faceta
marcadamente intelectual da poesia dos anos 80. Conforme asseverava o
crítico Manuel da Costa Pinto, Ascher “combina racionalismo, rigor e
ironia”.
Não deixa de ser certo que a fronteira entre poetas da
geração de 80 e 90 é mais didática e artificial do que natural. Por
conseguinte, muitos dos escritores que frequentaram a lista acima também
poderiam ser incluídos no elenco de poetas da década de 90. Tal década é
menos marginal, menos experimental, valendo-se muito do contato com
poetas estrangeiros, e, portanto, da intertextualidade. É uma poesia,
que em suas manifestações mais bem conseguidas, apresenta grande apuro
formal, mesmo que composições líricas de incontestável qualidade
estética persistam. Como quer que seja, cada vez mais hipertrofia o
espaço para aquelas modalidades de composição que poderiam ser
denominadas de intuitiva. Em suma: é a poesia do trabalho, do apuro
técnico, da transpiração.
A lista de poetas dos 90 que apresentaremos deve ser vista
com reservas, pois inclui poetas já publicados em décadas anteriores,
mas que tão somente agora ocupam o espaço que muito merecem na ambiência
literária nacional. É o caso, entre outros, de Frederico Barbosa (1961),
Cláudia Roquette-Pinto (1963), Tarso de Melo (1976), Antônio Cícero
(1945), Augusto Massi (1959), Fábio Weintraub (1967), Marcos Siscar
(1964). Nos textos de muito deles, são representadas artisticamente
tópicos como o da alteridade, da identidade e da pluralidade, marcas da
poesia dos 90.
Ao que me parece, são os poetas dos anos 2000 os que
necessitam de urgente leitura e de exame mais detido por parte dos
especialistas. São eles, em tese, que retratam a sensibilidade da época
em que vivemos.
Os atualíssimos poetas brasileiros apresentam dicção que faz
recordar os poetas modernistas da primeira geração e os da segunda,
dentre os quais se encaixam Drummond e Bandeira. Quanto a Cabral de Melo
Neto, seu legado pode ser observado nos novíssimos poetas na busca
incessante pela poesia desataviada, reduzida ao essencial e sempre
alerta contra os excessos da postura confessional e de emoção
desbragada. Não passe despercebida a influência dos concretistas, que
valorizaram o aspecto plástico, visual do poema. Da mesma maneira, não
se feche os olhos para intenso trabalho intersemiótico que se processo
no poema.
Vale a pena assinalar que considerável número dos poetas dos
anos 2000 publica em sites da internet e em revistas de cultura dos mais
variados recantos do Brasil. Por oportuno, os novos poetas não vêm
apenas dos grandes centros litorâneos, vicejando nas cidades mais
interioranas da nação. A composição dos poemas é multiforme, havendo
espaço para, por exemplo, o poema em prosa. Os poemas, no fundamental,
são pouco extensos. O conteúdo tende mais para o opaco do que para o
transparente, o que explica que não são poemas fáceis de decodificação e
que, por conseguinte, os leitores terão de ter postura ativa para
interpretá-los. São, em outros termos, poemas-enigmas. Um particular que
merece ser reparado: os poetas da geração de 2000 apresentam louvável
consciência da carpintaria linguística, o que significa afirmar que,
para eles, o conteúdo sozinho não é responsável pelo o poema, mas,
antes, a vestimenta verbal que o tema recebe.
Tendo em mira que tal artigo tem finalidade informativa
antes do que crítica, elencarei alguns poetas da geração dos anos 2000,
cuja leitura sugiro para os adeptos da boa poesia: Alexandre Bonafim
(1976), Ana Rüsche (1979), Cléberton Santos (1979), Elisa Andrade Buzzo
(1981), Henrique Marques Samyn (1980), Mônica Montone (1978), Omar
Salomão (1983), Tarso de Melo (1976) e Luiz Felipe Leprovost (1979).
É por meio de tais poetas – alguns deles, por certo,
passarão, mas muitos deixarão para sempre o selo de sua arte – que nossa
poesia se renova e se robustece. Não há outro jeito: cumpre celebrar
vivamente os antigos e dar boas-vindas aos mais novos. Havendo
qualidade, há tudo. |