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Às
vezes, acho desagradáveis os textos que começam com epígrafes. Parece
que o autor não confia no próprio taco, então pede ajuda pra algum autor
consagrado, prostituindo a ideia do ilustre, encaixando naquilo que
pretende transmitir, não importando as contradições teóricas existentes
entre a fonte e o caldo resultante. Eu iria fazer isso, também.
Mas
como não sou de ferro, cito aqui o Afrânio Coutinho, crítico e teórico
da literatura, falecido às vésperas do século XXI.
A literatura é um fenômeno estético. É uma arte, a arte da palavra. Não
visa a informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar.
(Afrânio Coutinho)
Sempre quis escrever sobre leitura. Aliás, já venho postergando esse
texto há alguns anos, mas essa frase bonita do Afrânio veio a calhar.
Ela é perfeita para postar no Facebook ou no Twitter, colocar na agenda,
ao lado de alguma ilustração bonita. Ou na folha de rosto do trabalho de
conclusão de curso em Letras, ou algo assim. Mais do que isso, essa
citação bate de frente a uma posição comum entre acadêmicos seguidores
de Antônio Cândido.
Nas entrelinhas, ela diz o seguinte: a literatura deve ser vista
isoladamente, não depende do contexto social e dele não recebe
influência. Não é fruto de condições econômicas nem de posturas
ideológicas. A literatura é arte pela arte, filha órfã.
Não concordo nem discordo do Afrânio. Nem do Antônio. Mas muita gente
vai querer botar o dedo na ferida dizendo que “não, a literatura não
está isolada da vida”. Também acho. Nem da vida nem da história; o que
eu pretendo com a citação acima é me colocar contra os que defendem a
leitura de texto literário como salvação. Como se a literatura fosse
mais do que ela própria se propõe a ser: construção artística com as
palavras. Como se a leitura fosse algo miraculoso. Não é.
Primeiramente, literatura é arte. Antes de tudo, é isso o que ela é. O
leitor, por isso, se configura como um espectador de obras
confeccionadas com intuito estético e que, além de ver uma criação
humana tocando o belo (e na contramão, o grotesco, o feio), constrói seu
próprio objeto no momento em que passa os olhos por ele.
Salvação? Isso é responsabilidade de outro tipo de profissional, como os
resgatistas – socorristas ou dos militares dos Corpos de Bombeiros. Ler
não salva ninguém de nada, nem da ignorância.
A
literatura não salva ninguém
Embora toda afirmação não seja definitiva, posso dizer que a literatura
se limita a ser ferramenta. Ferramenta de maldição ou de salvamento.
Mesmo assim, ela está lá paradinha diante do espectador, como o
sanitário de Duchamp.
Essa forma de arte, da arte da palavra, não possibilita ao homem se
tornar um ser melhor, não pretende tirá-lo do caos. Nem mesmo livros de
auto-ajuda possibilitam uma vida mais tranquila, mais rica de sentido.
Isso talvez melhore a conta bancária de alguns autores, mas não
resolverá os problemas pessoais, de relacionamento, os traumas, nem os
conflitos internos de ninguém. Estamos sozinhos. Os livros são apenas
amantes desinteressados.
Se a literatura é arte, talvez, só traga mais caos à vida que já é
turbulenta por natureza. Não que haja uma função definida para as artes;
não arriscaria definir aqui em um texto tão curto e despretensioso. Mas
se “a literatura é uma arte”, como afirma Afrânio Coutinho, ela nada tem
a ver com os seus problemas, preocupados leitores e leitoras; então,
deixe-a em paz e procure dialogar consigo no espelho e com as pessoas
com as quais precise acertar umas rusgas. Não espere que a literatura
faça isso por você.
Pois, mais do que fruto de uma necessidade de mercado, a literatura é
consequência da consciência da coletividade, e retorna a ela apenas como
possibilidade de diálogo.
Em vez de um reflexo da autonomia política, a literatura é o
resultado do desenvolvimento da consciência nacional, desabrochando
tanto na política quanto na literatura. (Afrânio Coutinho)
Melhor do que pensar nela como produto de um mercado que está se
desenvolvendo a cada dia. Amplificando suas vozes e mecanismos. A
despeito da riqueza que a leitura gera em um país de miseráveis, leia
porque você gosta não porque espera que o mundo se torne um lugar melhor
para viver. Ou porque na tevê andam dizendo que isso vai melhorar sua
condição de vida. Acho que isso é mais um conto-da-carochinha.
Os
livros não mudarão o mundo
Se fosse assim, a Bíblia e o Corão já teriam feito isso a muito tempo,
mas o que eles conseguiram? Não preciso nem dizer. As manchetes falam
por si.
Não estou criticando ninguém. O que não se pode afirmar é que o mundo e
as pessoas podem sempre ser influenciados beneficamente por aquilo que
leem. Nem sempre. Somos animais antes de tudo. Bichos e funcionamos como
tais. Se possuímos cérebros altamente desenvolvidos, azar o nosso;
talvez, ganhamos esse presente antes da hora, não sei. Mas se fomos
presenteados com a capacidade de leitura, então que se procure ler por
que essa maneira de dialogar com o outro pode ser boa para nós mesmos.
Mas sem esperar muito disso.
Por que o mundo não tem muito a ver com as histórias que estamos lendo.
Não. Quem escreve pode até pensar nele, em seus problemas, na crise
econômica global, mas o livro é um mundo em si mesmo. Só podemos
aprender dele mesmo e nada do mundo ao redor. Meio estruturalista isso,
mas não vou me preocupar com a mistura quase inevitável de visões
teóricas que um ensaio como este levanta; se eu quiser misturar Gadamer
e Frye, por que não?
Entretanto, isolar a literatura e os escritores da realidade não
significa dizer que eles não possuem dentro de si esses problemas
remoendo o espírito, que não há consciência social, preocupação com os
rumos da economia local ou o que seja. Para continuar
usando/prostituindo Afrânio Coutinho, cito:
A literatura surge sempre onde há um povo que vive e sente. (Afrânio
Coutinho)
Mas isso não significa dizer que toda a literatura deve ou procura
discutir questões de importância nacional/local, que reelabora
acontecimentos históricos para refletir sobre eles e encontrar possíveis
soluções para problemas concretos. Nada disso.
O que pode existir, e que já foi comentado por Machado de Assis, é um
sentimento íntimo – que pode ser expresso pelo escritor em seus textos
ou não – dando a medida de homem de um tempo histórico, de um contexto
socioeconômico, de um espaço geográfico definido. E no diálogo
consequente, a história da humanidade poderá aparecer, efetivando o
diálogo sócio-histórico entrecruzando horizontes de possibilidades,
levantando-se questionamentos, instigando dúvidas, resultando em
tolerância ou preconceitos. Contrariamente, poderá surgir apenas os
arquétipos construídos num diálogo auto-referencial da literatura com
ela mesma, deixando a história e as relações de poder de lado.
Esse sentimento íntimo muda (se mudar) apenas o ser humano no íntimo
dele mesmo. Se ocorrer algo no mundo, está fora do controle da própria
literatura e de sua leitura, constante ou não, comprometida ou não,
adequada ou não. A literatura não muda o mundo, nem muda o homem. Uma
conversa não precisa necessariamente resultar numa revolução política.
Mas pode chegar a isso, entretanto a responsabilidade não é do diálogo
constituído no texto literário, está além dele mesmo.
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