REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

Der Hund

"Da oben wird das Bild von einer Welt
aus Blicken immerfort erneut und gilt.
Nur manchmal, heimlich, kommt ein Ding und stellt
sich neben ihn, wenn er durch dieses Bild
sich drängt, ganz unten, anders, wie er ist;
nicht ausgestoßen und nicht eingereiht,
und wie im Zweifel seine Wirklichkeit
weggebend an das Bild, das er vergiss,
um dennoch immer wieder sein Gesicht
hineinzuhalten, fast mit einem Flehen,
beinah begreifend, nah am Einverstehen
und doch verzichtend: denn er wäre nicht".

Rainer Maria Rilke, 31.7.1907, Paris

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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REINALDO RAMOS

O cão

                                                                   * para Mariel Reis

 

Nem incluídos, nem excluídos. Ali esticados, entre o animal e o divino, os seres humanos. E dentre os animais, os mais próximos – não por parentesco, mas por afinidade: os cães. Há dentre a gente quem lhes vasculhe os olhos a procura de alguma alma. Há quem jure que no fundo deles há mesmo uma. Alma canina. Não é da casa, nem da rua. É bicho domesticado, feito a razão. Não, é gente, mas também não é bicho-bicho. Leal, não trai a confiança do dono. Mas como é bicho, segue o instinto. Ladra e morde, conforme a lua. Deve ter nostalgia das matilhas. Feito a gente talvez tenha da caça e da coleta, do Éden. Nem incluídos, nem excluídos. Humanizados, mas ainda irracionais. Fesceninos, mas ciosos do pecado original.

O olhar racional é excludente, seletivo. O olhar é totalitário e cheio de bordas, faz escolhas, discrimina, hierarquiza, obedece a uma constelação interna de valores e princípios introjetados pela cultura. O olhar é um regime de exceção. Não há nada no mundo menos reto que a retina. O olhar só reconhece aquilo que entra e que depois volta. Indiferentes são os eleitos à negação do olhar. É a escolha negativa, a anti-escolha - também escolhida. O indiferente é o indistinto. O igual entre si, o negligenciado, o não mirado. A margem do civilizado, do civilizador, da civilização. A conseqüência, a sobra do processo, o troco da escolha. Assim são os cães da rua. Nem incluídos, nem excluídos.


O Filósofo franco-lituano de origem judaica, Emanuel Levinas, capturado pelos alemães em 1940, relata que durante sua estada no campo de concentração, pôde perceber que, aos olhos dos guardas e dos eventuais visitantes, era certo que tanto ele quanto seus companheiros já não mais pertenciam à raça humana. Foi a aproximação de um vira-latas que lhes devolveu a certeza de suas humanidades. O olhar do cachorro fora o espelho do olhar do outro, o amparo da alteridade essencial para evitar sua ruína psíquica.


O cão também é o diabo. Enquanto o cachorro de casa é o melhor amigo do homem, o cachorro da rua é o bicho ladino. Invectivo, anódino, desterrado. A cachorra é a bandida, a ingrata, a promíscua. Muitos significados pra um só bicho. Preço da proximidade com o homem, que é muitos também. Nem incluídos, nem excluídos. Para os cães e para os jovens, no limiar do concreto, só um tempo e lugar no mundo: aqui e agora. “Não há futuro para você. Não há futuro para o homem civilizado” – bradavam os Punks. Nem incluídos, nem excluídos. Cães de rua. Vira-latas. Livres porque assim nascidos, cativos porque domesticados, humanizados. Reconduzidos ao sonho da regressão à animalidade perdida, a nostalgia da matilha, a nostalgia do Éden.


O cínico (do grego Kynos - cão) é um cão andarilho, que precisa da liberdade, porque é na liberdade que constitui sua autenticidade. Só o homem livre governa a si mesmo. Uma vez bastando a si próprio, porque desprendido das amarras condicionantes do jogo social, conjuga o binômio da anaideia (postura de irreverência extravagente e insolente) com a parrésia (dicurso radical, livre de boicotes estratégicos e restrições socialmente convenientes). A verdade na sua versão mais cortante, praticada daqueles que são tidos como inferiorizados na escala social, para aqueles em condição teoricamente superior, conforme essa quadratura. A atitude cínica depende intrinsecamente da consonância entre discurso (parrésia) e ação (anaideia), tendo a liberdade como condição irrevogável para seu exercício. A Parrésia é o soro corrosivo que torna evidente ao interlocutor (que fala de uma posição de poder) a perda do limiar tênue que separa a hipocrisia como preço do convívio social, do ethos escravizante que deforma a personalidade e desconecta o indivíduo do mundo da vida.


A vida gera filhos demais e não cuida de todos. A maioria não buscou a exclusão como condição de estar voluntariamente à margem, mas foi a exclusão circunstância de um processo perverso. A vida é cachorra: promíscua e ingrata. Mas são também os cães, bons guardadores de rebanho que invariavelmente nos apontam nossa humanidade, quando às vezes não nos sentimos suficientemente convencidos dela e para que dela não nos percamos definitivamente - fado que parece inerente à indeclinável condição narcísica do homem.

 

 

Reinaldo Ramos (Rio de Janeiro, Brasil, 1978)
É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública, tem inteligência mediana, pertence à classe média suburbana e é, seguramente, alguém bem pior que você. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” em 2008 com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis. Seu endereço de email é reinosdafilosofia@hotmail.com e publica suas coisas no blog http://fronstispicioconflagrado.blogspot.com/ (com erro de digitação mesmo).