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O velho
Liparus pôde reconhecer nele determinadas qualidades da condição divina.
Saltava à vista que era alheio a tudo o conhecido.
Certo,
diferia sua essência das peculiaridades primordiais dos três reinos; não
parecia pedra, não parecia planta, não parecia animal.
O estado de repouso em que se encontrava imerso devia de ser
transitório, pois tinha chegado até ali desde algum lugar tão remoto que
não lhe precedeu a notícia de sua existência.
A aptidão
para trasladar-se ao ditado do desejo lhe proporcionava uma
independência amplíssima: rasgo que distingue aos seres superiores.
Único, autónomo e inexplicável: semelhantes atributos constituíam os
fios que bordavam a perfeição de sua índole. Carecia, pelo contrário, da
primeira das qualidades que os deuses exibem: a capacidade sem limites
de influir no curso dos sucessos, geradora de prodígios que ressaltam
uma trajetória extraordinária. Atitude oposta à de um demiurgo amoroso
de sua obra, aparecia, somada, uma inescusável despreocupação pela
formosura da verde floresta, pelos inverosímeis raios de sol que
filtrava, pelo rumor harmonioso da água ao acometer os meandros e
estreitezas, e até pelos curiosos que lhe cercavam com ânimo
investigador. Nesse ponto exato, equidistante do sim e do não,
impossibilitada para desprender-se, ancorava Liparus sua dúvida.
Talvez fora só um clarão da mobilidade potencial, mas a agitação se
ensenhoreava
do interior. O que podia ser tomado pelo rosto, superfície circular de
um cilindro achatado, espelho do sensível coração, efetuava estranhos
trejeitos a cada instante. Os reflexivos pesquisadores, encabeçados por
Calathus Melanocephalus, pertencente à família dos Carabídeos, e seu
mais direto colaborador, Agonun Dorsale, primo seu; constataram que
mudava a forma seguindo um processo repetido a cada dia.
Tomando o
anoitecer como ponto de referência, a metamorfose reproduzia seus
passos, um após outro, de crepúsculo a crepúsculo; reiteração, método.
“Prodígios? Consegue ser portento suficiente a comoção ocasionada pela
sua vinda até nos mais céticos”: argumentavam os partidários, dirigidos
pelo eleito coordenador de famílias Prionus Coriarius, o maior dos
Longicórneos: “Negligência ante a criação?
Veio para permanecer a nosso lado; eis aí o grande exemplo de carinho
que necessitava este mundo egoísta”. “Sim, sua existência é monótona e
repetitiva, mas, feitos a sua imagem e semelhança, nossa própria
existência é repetitiva e monótona.
Nos
deslocamos perseguindo o alimento, nos agita o desejo de copular,
corremos para atacar ou fugir.
A Divindade repousa porque se basta a si mesma: nada lhe falta e a nada
teme”.
Os
religiosos vincularam com esse argumento, mais que com nenhum outro, o
meritório modo de alinhar as condutas pessoais trás a forma de ser
atribuída à Divindade. “Aquilatemos o processo de nutrição rejeitando a
gula. Limitemos a cópula às exclusivas exigências da propagação da
espécie. Abracemos nossos inimigos.
Só dessa maneira seremos capazes de amansar nossa agitação culpável.
E
sentenciaram: “A calma é o bem e o tumulto o mal; na redução das
necessidades apoia-se a virtude”.
Surpreende a instabilidade das convicções
generalizadas na sociedade: os Escolítidos, cavadores de galerias
corticais -até então tachados de simples e parcimoniosos- passaram a ser
percebidos como coerentes e equilibrados. “Viver para ver”: pensavam os
suspicazes.
O Círculo
de Teólogos, por encargo do estamento crente, soldou entre si várias
cavilações formando um verdadeiro corpo de doutrina, dogma de obrigado
conhecimento e imediata difusão. Avançava o credo pela senda racional
até o limite de suas possibilidades, momento em que fazia uso da fé.
“A Divindade existe desde antes dos
inícios, porque é o início; e seguirá quando tudo se extinga, porque o
conhecido e o suspeitado têm nela sua raiz e seu sepulcro. A Divindade
não necessita engendrar descendentes, porque sendo única ao tempo é
eterna”.
Dytiscus
Latissimus, da família dos Ditíscidos, aparecia em público
luzindo a casula amarela e preta de aparência solene, ladeado por seus
acólitos, dois luminosos Lampírides. Partindo das verdades teológicas
propagadas há pouco, tinha fundado o Imobilismo Expectante, irmandade
integrada por um crescente número de adeptos. Subido a qualquer
saliência, e dono de todas as respostas, perguntava: “Que
razão teve a Divindade para tomar
corpo e vir em nossa companhia?
Mistério. Mistério que as mentes correntes como as nossas não podem
compreender.
Veio, e
isso deve encher-nos de orgulho e regozijo; quis servir-nos de guia e
exemplo, e isso deve bastar-nos. Mas, cuidado, poderia ir-se; devemos
cumprir, num instante e até o último pormenor, os ditados de seu
temperamento. Me encarregarei de interpretar e divulgar suas mensagens
com a assistência dos discípulos mais comprometidos. Eles e eu
renunciamos desde este mesmo momento ao acasalamento, e nossa mobilidade
roçará o limite da estática. Os irmãos na fé construirão uma Ara onde os
fiéis possam adorar à Divindade e pedir-lhe dons. Além disso contribuirão a nosso
parco sustento”.
Enquanto tudo o dito sucedia na pastagem
que bordeia o arroio, o extravagante Ser continuava sua atividade
mínima. A deidade, uma cabeça redonda e plana da qual surgiam dois
grandes apêndices desiguais, amorosos braços dispostos a fechar-se ao
redor de qualquer eleito, apenas dava sinais de vida. A estranha
entidade encarnada dessa guisa, carente de tronco e de extremidades
traseiras, insensível ao interesse suscitado no seu ambiente, continuava
a sistemática reforma dos rasgos faciais e a entrecortada emissão de
sons, audíveis a considerável distância.
Sem estorvos dignos de ser tidos em conta,
Carabus Coriaceus, caçador astuto e guerreiro de tenacidade reconhecida,
tomou o mando dos soldados em uma cerimónia memorável. Ao pé do altar
-argila ainda húmida recoberta de pequenas pedras de cores- uma charanga
formada por Gryllus Campestris e Oecanthus Pellucens, músicos
estrangeiros, batia os élitros em homenagem à Divindade. Animosa,
atacava com brio marchas capazes de alertar aos casacas verdes, guarda
composta por Lytta Vesicatoria; e aos casacas roxas, escolta de Meloë
Violaceus. Ao seu compasso, a coorte de ferozes machos Lucanus Cervus,
desfilava em estado de excitação combativa.
Chefes, soldados e uma boa parte da população, viam na Divindade o
grande caudilho que tornaria respeitado e temido à ordem Coleóptero;
orgulhoso da complexa diversidade das famílias que o integram, das
poderosas mandíbulas de seus indivíduos, da beleza das asas, da
funcionalidade de antenas e escudo e do notável modo de vida conseguido.
Por último se apresentava a ocasião de submeter aos povos vizinhos,
exigindo inchados tributos. Teriam a oportunidade de vingar a histórica
afronta dos odiados Himenópteros, em particular dos Apócritos, em
extremo laboriosos e rápidos viajantes.
Dytiscus,
Prionus e Carabus andaram distanciados durante uma comprida temporada
por questões de âmago: haviam de dilucidar quem dos três ostentaria a
supremacia.
A força proporcionava argumento a Carabus, Prionus esgrimia sua
representatividade, a genuína vontade do povo; mostrava Dytiscus na sua
mão a chave da vida eterna.
Reunidos
em parlamento sendo já noite cega, após ásperas discussões se
descobriram compartilhando objetivos: a permanência da Divindade, a
proteção da identidade coleóptera e o estabelecimento de uma nova
organização social. Acordaram unir seus esforços e tomar o poder
formando um triunvirato de pares. Como primeira medida sopesaram as
consequências de ilegalizar a investigação filosófica, atividade
supérflua quando se conhece cada palmo das numerosas ramificações da
verdade.
Só o temor à rejeição dos puristas lhes inclinou a penalizar as condutas
em vez dos princípios.
No dia
seguinte, o obstinado praticante da lógica Calathus Melanocephalus, e o
escrupuloso docente Liparus Glabirostris, perseguidores da certeza dos
fatos provados, acusados ambos de intrigantes foram confinados no seu
domicílio.
Um
estrangeiro, Lygaeus Saxatilis, Grande Sacerdote do aliado ordem
Heteróptero, com o propósito de introduzir o novo culto entre os seus,
solicitou licença para estudar a natureza da Divindade e as teorias que
a explicavam. Locusta Migratória, chefe dos Quelíferos, pelo contrário,
denunciou que o crescimento do exército coleóptero –soldados, armas e
bagagem- transgredia os acordos do pacto assinado depois da Grande
Derrota. Se somaram à desaprovação, Tettigonia Viridissima em nome dos
Ensíferos, Blatta Orientalis, Grande Chaberlán dos Blatarios; e muitos
outros: Dermápteros, Odonatos, Apterigotos e Efemerópteros, que no
crescente belicismo dos Coleópteros viam um perigo para a paz entre as
diferentes Ordems.
Calathus e
Agonum, na sua tentativa de escapar de uma morte certa, burlaram o cerco
imposto a seus domicílios. Se ocultaram logo na derme telúrica, e
seguindo túneis larguíssimos surgiram no território dominado pela ordem
dos Himenópteros, vencedora da Grande Guerra, que após um longo período
de coexistência pacífica, volvia a ser considerada hostil por causa da
portentosa mobilidade de seus indivíduos. Ali prosseguiram Agonum e
Calathus o estudo dos numerosos dados recolhidos, ajudados por
conscienciosos pesquisadores locais: um grupo de Apis Mellifera e o
controvertido Vespula Vulgaris, dissidente himenóptero amparado ao asilo
dos coleópteros e retornado a sua pátria de modo encoberto.
Tal escrutínio derivou em um melhor conhecimento da substância divina,
de cujas características podia derivar-se utilidade prática.
As raias
de forma cambiante desenhadas no círculo capital, coincidentes uma e
outra vez em momentos semelhantes de diferentes dias, serviriam para
dividir o tempo em frações exatas e alcançar a tão desejada
simultaneidade das atividades comuns.
Seguindo
indicações de Véspula, duas vezes traidor, a incursão noturna dos Lamia
Textor ao serviço de Carabus Coriaceus, encontrou o laboratório,
destruiu os valiosos documentos e degolou aos pesquisadores absortos nas
suas coisas. Sofreram os opositores um revés próximo ao desastre, e a
Divindade foi adorada em qualquer lugar, pois os fiéis reproduziam ad
líbitum a sagrada imagem, traçando o círculo capital e as duas raias
laterais de seu emblema.
Estendido
o culto, generalizados os sentimentos piedosos, sincronizada a vontade
comum, a ordem dos Coleópteros entrou na etapa mais frutífera de sua
história, carregada de motivos para ficar agradecido à Divindade. Era
indubitável
que a Entidade, protetora dos crédulos, propiciava o progresso com sua
única presença. Entre isto e aquilo se desnudaram as árvores de folha
caduca, orgulhoso de sua força paralisante chegou o frio, e em um lapso
breve foi expulso pelos dias radiantes de sol e sossegados de ventos. A
vida eclodia de novo e um grupo de crianças de Homo Sapiens se
apresentou na esplanada com sua ordinária algaravia. Desde os mais
profundos cantos das luras, desde as taças mais altas das árvores,
medrosos, cautelosos, os insetos todos perceberam a renovada calistenia das evoluções
lúdicas.
Ao entardecer ouviram com nitidez as seguintes palavras, cujo
significado desconheciam: “Olhem, um nicho de argila adornado com pedras
de cores. Guarda um relógio de pulseira.
Ah! A
pilha está já nas últimas: os números mudam muito devagar e a música
quase não se ouve”.
Horas mais
tarde, apaziguado o contorno, caiu a noite e a normalidade se hospedou
na pradaria, no terreno arborizado circundante, no arroio que os cruza.
Só então os insetos se atreveram a sair de seus esconderijos: um pé e
depois outro, receosos ou temerários; e tudo para descobrir que a
Divindade tinha partido deixando vazio o altar. O Chefe Religioso
Dytiscus Latissimus, lembrou orgulhoso seu vaticínio acerca do que acabava de ocorrer.
Alguma ação ou omissão ofenderia à Divindade. Unicamente a penitência
podia favorecer seu retorno. Começou então um reiterado exercício de
laboriosidade e obediência cega às autoridades civis, religiosas e
militares. Ainda ficava alguma esperança.
PSdeJ |