REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

 

«Entendi-me com o Pedro Proença durante os debates do Depois do Modernismo, por puro acaso. A certa altura estava a tentar exprimir que não me interessa a comunicação em si, mas o que vem depois, e ele disse lá de trás: transcomunicação. Quando o debate acabou ficámos a conversar.»

"Uma Conversa com Ernesto de Sousa"
(Leonel Moura, 1988)

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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PEDRO PROENÇA

Gabriela & Ernesto - As mutações e outras acelerações do vazio

Da vanguarda como fulgor
(nomes de guerra que não o são)

                                                                  
 

A VANGUARDA VAI AO CAFÉ MAS NÃO PAGA A BICA

 

 

Era uma vez uma vanguarda que se passeava no fresco do fim da tarde muito senhora do seu nariz. Ela estava com pressa, vestia roupas que hoje diríamos vulgares e tinha um olhar algo sonhador, embora mergulhasse os olhos mais para dentro do que para o infinito. A vanguarda pensava “Mmmm... está na altura de experimentar tantas coisas, nem que seja por experimentar...” E lá ia ela, toda empinadita, com um livro de culto debaixo do braço, esta senhorita vanguarda, em busca de novas conquistas. 

Ernesto é um nome militante, severo, honesto. A Ernesto aplica-se o cliché de Rimbaud – “A hora é severa! Tem que se ser absolutamente moderno!” – não percebemos nesta ambiguidade rimbaldiana se temos, como obrigação mais ou menos moral, que ser exemplarmente modernos, ou se o ser moderno, pelo contrário, é a conformidade aos demónios da técnica e da moda – uma repressão “absoluta” que é exercida sobre os nossos corpos – em suma, uma obrigação... mais uma... 

A vanguarda é uma espécie de talento para a montagem. Um talento “antigo”. O que acontece é que a montagem esteve sempre lá. Basta ler a Odisseia ou ver os frescos greco-romanos. Com a vanguarda dá-se demasiado pela montagem. Tomamos a consciência de que o que se faz passar por coisa singular, incluindo o absoluto, é um agregado de coisas, por vezes admirável. Começamos a perceber que há dois assuntos que interessam – o bluff de que há um sentido poético denso resultante da justaposição de entes díspares e o sentimento de que a “elipse” e o vazio são forças que progridem até um “certo” desaparecimento. A vanguarda força esse desaparecimento fazendo a apologia do vazio. Está cheia de vazios, cada um mais singular que o outro. É sobre a encenação desses vazios que aqui falaremos repetidamente. Não nos envergonhemos destes corsi e ricorsi. 

E a vanguarda andava muito pelas ruas. Sentava-se em cafés. Fumava cigarros enquanto, eventualmente, lia o seu livro ou esperava por alguém. Fumava mesmo muito sem dar tanto assim por isso. Três maços ao dia no mínimo Havia uma ansiedade sexual que ela não se dava ao trabalho de disfarçar. Ir para a cama com muitos fazia parte do ofício revolucionário. O coup de foudre acontecia assim como quem não quer a coisa. 

Disso tinha a certeza, porque ela o repetia com uma convicção obstinada: quando se sentava nos cafés era para mudar o mundo, com umas ganas difíceis de lhe tirar. E o mundo mudava-se, olá se se mudava! E a vanguarda pensava consigo – eu sou a parte mais fulgurante em que o mundo se muda! 

Durante algum tempo a vanguarda não se importava de se confundir, ressalvadas as distâncias, com personagens menores ou passageiros – a Brigitte Bardot, a de peitorais tão gloriosos quanto a revolução francesa, e a Jane Fonda de ficção científica, esquerdista, activista, ainda longe da quarentona em busca da boa forma com fitinha na cabeça a dar receitas de fitness. Os intelectuais, frequentadores em cineclubes das fitas do Godard bem podiam elogiar como neófitos as beldades que se agitavam com música de Stokhausen ao fundo – mas foi no filme Mépris que a fulgurância de Brigitte ofuscou as incursões repentinas de Fritz Lang e as grécias com que este tentava regressar, ou fazer com que Ulisses regressasse a um palco impossível. Capri, c’est fini! Matar Brigitte, como uma auto-critica, é como retirar à vanguarda a sua voluptuosa liberdade sexual e o tédio consequente. 

Começamos por constatar que os textos já explodiram há muito e que o cinema se distanciou do corpo, apesar de todos os close-ups e da proliferação da pornografia. A vanguarda, despenteando-se um pouco, insiste que a experimentação e a montagem começam exactamente fora do limbo do espectador. Não basta escarrar no burguês ou escorraçá-lo, não basta reivindicar uma arte popular, proletária ou vinda, com rugas, de uma inocência voluntariamente renovada que se alheia supostamente da violência da guerra desde o neolítico. Ernesto, tal como Gabriela, sabe que o faz mover uma alegria divina com uma excelente dentição. Também sabe que os tempos dessa vanguarda, com os clichés subsequentes, passaram – mas a “euforia revolucionária” regressa permanentemente como algo amoroso e contagiante. É a mutualidade retornante, assevera Gabriela. “E vou continuar a falar de retornos, não de todos os retornos, mas dos da inclinação poética, ao qual acresce, como inevitável contraponto, o retorno do maléfico sob a égide da banalização. São retornos, não sei, ou não me quero lembrar, se são eternos.” 

A Vanguarda é um vazio mutante que se converte em algo deliciosamente obsoleto – como todo o amor. O destino da obsolescência é o Museu, a terrível tenda mortuária onde se preservam as memórias e se preparam os renascimentos. Mas o amor sobrevive ás museologias porque regressa com as primaveras. Os museus são imunes às estações, embora por vezes dêem acesso a jardins. A Vanguarda, ao insistir, como num leit-motiv crepuscular, na destruição do Museu com incendiários escrúpulos, sabe, como uma bruxa má, que o Museu é a sua fatalidade romântica. A Vanguarda é o Museu. Ou o seu paradoxo institucional.

 

  DEUSAS CÁTARAS E MUSAS DE METRALHADORA
 

 

Há entre Ernesto e Gabriela o espectro de Isobel. Hoje sonhei com a Isabel do Carmo – “a arma é o voto do povo”. Ernesto viveu com Isabel do Carmo que o terá suficientemente mudado e ele a ela, como todos os casos de "companheirismo". D. Roberto é desses tempos – é a vontade de vanguarda que faz bum! (como “a cor nos teus olhos”): anúncio das mutações das mutações do vazio. Depois vem a Isobel, muito alva, “the wonderful widow of the eighteen springs”, como no poema de Joyce musicado por Cage que é algo como a Isobel da Gabriela, princesa de Portugal. Joyce começa a infiltrar-se com Isobel na vida cada vez mais poliglota de Ernesto, o Ornitorrinco Honesto. É o fim da adolescência e a vanguarda está sedenta de ninfetas – isto é, Musas. Será isto o princípio abutre de côncavas primaveras? 

Isobel, a alva, é como uma deusa branca para inspirar o teatro lírico de uma revolução par/ímpar, na remontagem da cena artística. Ernesto vê nesta Isobel uma espécie de inocência, como no poema de Almada, ou no painel deste na Gulbenkian. Ernesto acredita, em excesso na inocência, como no Paraíso – porque o Paraíso é o "locus lubricus" por excelência, ainda que sem transgressões. Mas a certa altura Ernesto vê-se no papel de Job. Job é a expulsão sem limites do paraíso – é o sublime anti-erótico. E a figura terrivelmente imanente de Job – ou de Artaud – é mais natural como emblema das suas actividades. É a decrepitude dos nossos corpos que testemunha os juízos finais.

 

 

EPISTOLAS AOS BANHISTAS

 

 

Sóniantónia quer escrever sobre o Ernesto como a possibilidade de tudo ser epistolar. Tomar banho é enviar cartas de amor. Sandralexandra também já é de uma geração que olha para a vanguarda como para uma caricatura: “são todos barbudos, e as mulheres que por lá andam ou são fatais ou machas, excluindo a Isobel, que mais parece uma alegoria. São do tempo em que lhes dava para ser contestatárias ou objecto de foda, porque se fodia depressa, quanto mais melhor. Podia ser libertação. Mas cheira-me a moda e facilidades. Depois passou-se a um quase oposto. E as mulheres perceberam quão descartáveis passaram a ser do ponto de vista amoroso. A libertação tornou as mulheres mais descartáveis e mais interessantes.” 

Sagrada a alimentação e o alimento. Sagrados os textos que nos alimentam de carnudas palavras. E a Língua entre as línguas que nos dá uma violenta imanência – vocifera o corifeu muito pítico. 

Acumular crimes em conserva. Ter lata. – Sussurra Sandralexandra depois de ler um livro sobre os anagramas de Saussurre. 

Ernesto lembra-se de Picasso: babuínos cujo cú pelado lembra selins de bicicletas. E depois passa rapidamente a Duchamp, ao fumo de tabaco que nupcialmente assoma na boca. São as coisas inframagras, escanzeladas, anoréticas. Duchamp enunciou, sem o saber, a aparência alegórica como caso de anoréxia.

 

 

DE UM DÊ DE DAR ENTRE MUITOS OUTROS DÊS

 

 

Gabriela é a Dama. Ela ama com um D muito no princípio e tem uma alvura que a faz parecida com muitas damas tal como as imaginamos em pureza e delicadeza, ao contrário, por exemplo, da Agustina, onde a malícia e o sussurro obediente das criadas tem muita força, e a sabedoria da gestão dos impulsos e contrariedades está muito bem oleada – Gabriela não consegue pactuar com o silêncio dos senhores e com a diligência das submissas, mesmo aquelas criaturas, que como bichos domesticados, amam de uma forma completa a sua servidão.  

Gabriela prefere deitar-se no meio dos bichos como uma irmã òrfica – ao fazer-se leitora ela canta-lhes e encanta-os – e então os animais e as plantas procuram-na e quedam-se nas suas vizinhanças numa empatia rara, maravilhados, vulneráveis, férteis.

 

 

O CORIFEU EM KATMANDU

 

 

Escutai, camaradas leitores, o sussurro das massas, tão desesperadamente budistas, tão naturalmente desnaturadas. Aqui ou ali? Ao longe ou debaixo da nossa mimética pele? Não estamos aqui nem para as libertar nem para as converter. Estamos aqui como um “algures” que não é apenas o algures. – responde-lhe, em primeira mão, o coro. Isso é treta – retorque uma parte (melhorada?) do narrador. O coro entretanto divide-se em dois partidos. Os próprios camaradas leitores se sentem divididos, não só em partidos (com vagas opiniões), como no interior das confusas opiniões de cada qual. O leitor vai-se apercebendo, na sua emergente intimidade, de que essas opiniões o afastam da massa, mas não o desligam totalmente desta, como um bicho que procura ser deus mas que sabe que não pode desembaraçar-se de ser bicho. O leitor, enfrenta em si mesmo, a terrível possibilidade de se tornar um demiurgo, isto é, um narrador. Mas sabe que essa condição é terrível e trabalhosa. De repente o coro não é coro, mas um burburinho de boatos díspares e de interpretações excêntricas.

 

 

A TÚNICA DO ÚNICO

 

 

Gabriela reparou que a partir de certa altura a leitura é inseparável da escrita, e a escrita da leitura e do canto – escrever é recitar um cântico interior e verter as inclinações da natura. Não é seu o lugar de “espectador” de Duchamp, mesmo como arredor fetichista que recria parasitariamente sob a argúcia do “já-feito”. É uma situação mais ingrata porque não se coloca do lado “anartístico” nem anti-artístico.

Ernesto invoca muitas vezes Franz Fanon, o que diz que o espectador é um traidor. O espectador Duchamp também é um traidor? Gabriela não é, de propósito, algo mais que uma espectadora, mas é involuntariamente que se sente contaminada por uma comichão erótica vinda da natureza que converte o ardor aparentemente receptivo da leitura em fulgor transbordante da escrita. 

Duchamp seria insensível (sexualmente?) às metamorfoses do fulgor? As anarquias naturais não leram Stirner nem Lafargue. O fulgor não nos deixa o direito voyeurista à preguiça? Gabriela, que é uma simpática parte lírica da natureza destila nesse lirismo algo ao qual sobra o destino enamorado de si de contar histórias secretas e de construir castelos em Espanha. É o passo como uma gargalhada para lá da morte e da tacanhez do eu. O que diz o lirismo é o não caber na estreiteza da subjectividade em que parece nascer.

 

 

A FUNÇÃO DE RECUSA JÁ NÃO SE USA

 

 

Tenho algumas coisas para não vos dizer, e estou a dizer que não as vos vou dizer. As outras coisas que disser são a mentira possível de um desentendimento que será perpétuo. A elipse confunde-se com a ignorância e a omissão. Bravo! A elipse por outro lado perpetua, com uma alegria lacrimejante, o vazio no cheio, as curvaturas que o infinito impõe à matéria, como a rectidão que é desfigurada pela distância. Há algo de elástico nisso. Ernesto repara que os templos gregos querem dar saltos como ginastas, ao contrário dos zigurates. São nómadas, mas algo os mantém fixos, como árvores geometricamente plantadas. As árvores um dia poderão passear-se, arrastando-se como caracóis com suas raízes húmidas.

 

  DA PRIVATIZAÇÃO DA PRIVACIDADE (O HORTO E O ABORTO)
 

 

A minha intimidade é um comício. É um comício telúrico. Sou famigeradamente vegetal como uma velha àrvore pré-histórica ou uma orquídea tropical. Habituei-me a incalculáveis êxtases. É a nossa natural propensão ou apenas um bluff? 

Vegetarianizei-me nos limbos da teoria que se está sempre a fazer “carnal e espiritual”. Conto com a artephysis como uma urgência distinta da ansiedade da cultura. É a artephysis que nos exige manifestos – é o “paradisíaco” desta condição excepcional a todos os títulos da nossa “mediocridade” planetária neste tempo, que nos exige mais pluralidade, mais sincretismo, mais ligação ao que nos vem da natura sem nos armarmos em puristas ou ortodoxias ecológicas! 

Mas quem é que acampa nas ruínas do conhecimento? Quem ergue as tendas da impiedade? – pergunta o coro um pouco confuso. O narrador apercebe-se de que o coro ainda não percebeu a narrativa, mas dá-lhe jeito umas interrogações disparatadas de repente.

 

  RIMAS PARA MALES ERRANTES
 

 

Gabriela revia o Mal Errante como uma canção sem destino. O Ernesto não chegou a ler o Mal Errante (ou será que chegou?) mas sentia-o na carne, como a Hamartia de que falava Aristóteles e as epistolas paulinas. Vivia a Hamartia como a doença da vanguarda, a inércia resultante das velocidades aparentes, cada vez mais apressadas, empenhadas nos embalos apocalipticos. Gabriela contava com os comentários cortantes e cantantes de Sóniantónia & Sandralexandra, duas eméritas cantoras da leitura, entusiastas e desafinadas. Tinham estas belas damas lido Espinosa comendo sopas e fazendo amor e desavergonhando-se com vagarosas ternuras. Sónia escreveu com uma caligrafia amaneirada sobre a capa do livro isto: 

“Estás a ver Gabriela, é uma serpente que se desenlaça para se voltar a enlaçar no vazio, como se o vazio fosse uma grande tenda para tapar a glória duvidosa do mundo” – diz Ernesto. “Eu sou o primeiríssimo Último leitor, porque para mim leitura e recitação são o mesmo, e a viva voz faz-se Ultimato, mantra continuo, como no Finnegans Wake, som que metamorfoseia o raio que nos habita, o rumor que nos troveja.”  

 

  NUDISMO, EROSTISMO, ABISMO
 

 

Ernesto tinha dado por certas figuras do mundo. Muitas delas, estranhamente, estavam recolhidas nos museus, como as beldades sádicas de Cranach ou os retratos engenhosos de Holbein, e lia-traduzia o Clark do Nú. Ernesto ia aos museus com cadernos e anotava e anotava como se fazia então. Os comentários aos quadros enchem com “ingenuidade” milhares de cadernos que se infiltram como agentes secretos nos quadros dos Museus, mudando-lhes a aparência e multiplicando-lhes as pretensiosas intencionalidades – é uma consciência que supera “a reprodução técnica” no seu aspecto puramente tecnicista. A difusão da arte através de “cromos” em revistas não-especializadas por vezes dá mais resultados que a ida militante aos Museus. Os da geração de Ernesto, e os das seguintes vão folhear livros de arte e revistas à Bertrand. A influência é a excitação do folhear (vislumbre/soslaio), tal como a teoria é mais “fulgor” no diagrama, nas notas oscilantes, na vacilação esquemática: as notas de Ernesto, de Macluhan, de Warburg – ou os cadernos imaginados por Lapa dos escritores – a procura balbuciante da estrutura (a máquina de tornar o sentido menos tremido, mais arrumado, mais forma). As notas são o despiste do informe. Continuo a desconhecer as notas de Ernesto nos anos que o conheci (os 80) – mas as suas conversas eram anotações salpicadas. Por exemplo: as conversas sobre o grafitti, ou como o Ernesto lia reportagens jornalisticas do Alexandre Melo, as cartas do Cabrita (e os seus confortos burgueses) – é a partir destas cartas a Ernesto que dou conta que se revela em Cabrita a pulsão autodestrutiva resultante do hedonismo burguês e da ambição desmedida. Cabrita tenta dar um ar de sublime poético herbertiano à vontade de se destruir (a la Bataille). Ernesto mantém-se um frique. Gosta de se sentar no chão num canto, ou de joelhos. Nunca veremos um Cabrita de joelhos.

Ernesto gostava demasiado do triptíco de Gand. Um tríptico com cordeiros? Os cordeiros abriam-lhe um apetite divino : ensopado de agnus dei.

 

  UM CERTO BICHO CHAMADO FREDERICH
 

 

O comentário retorna como ironia poética. Gabriela sabe-o por causa de Frederich. Gabriela está sempre a cortar o bigode a Frederich com tiques franciscanos. Frederich está quieto. Relê os seus cadernos feitos de anotações e citações. Mesmo as citações se desviam delas próprias porque vibram nos órgãos internos de Frederico como uma comichão de sublimação sexual que se resolve em pancadas de cima da mesa. A musicalidade dos ritmos com que Frederich bate na mesa transfigura a mencionada ironia poética num violento desejo de ser cómico. Frederich, o frágil, prefere falar no plural, como se mostrasse uma ágil possibilidade de vir a ter muita força. Ele está a querer mostrar-nos quão desviantes podemos ser nas nossas leituras – teremos que ser ainda mais desviantes, e nesse sentido, irreconhecíveis, principescos, joviais, e um tanto ou quanto solitários. Gabriela ao ver Frederich sem bigode abre-se em ternura e chora interiormente como uma madalena – ela sente na pele a compaixão a que Frederich se nega. Pode-se recusar este mimetismo, esta empatia sexuada uma pele por outra? O animal indefeso que é Frederich invade-nos. Frederich o lírico. Gabriela prolonga no movimento do lápis o olhar atarantado e indefeso do homem que perdeu o bigode no meio de uma prosa. Escrevinha uma espécie de teologia que se faz romanesca depois de tanto se ter feito negativa. É como os negativos das fotografias no antigamente a quererem revelar-se nos detalhes das coisas. As teologias negativas tinham feito da possibilidade de enunciar algo parecido com “Deus” uma orbitrante monstruosidade – mas a condensação do monstruoso somada à abertura para o Vazio explodem em detalhes, em gestos, na graça que a pintura durante tanto tempo nos ofereceu e a que se negou durante algum tempo porque surgiram outros imperativos.

 

 

IMPERFEIÇÕES MATEMÁTICAS 

 

 

Há uma oscilação entre as perfeições maiores (as alegrias) e as perfeições menores (as tristezas), porque uma perfeição maior não pode ser perpétua, e para se engrandecer tem que se diminuir um pouco, como em busca de um maior fôlego. A alegria é a respiração plena, de pulmões cheios, e pode ser exercitada.  

O vazio também pode ser experimentado quando sopras todo o ar e o esvazias, nessa terrível suspensão de pulmões vazios em que se sente a negra energia latejante e o latente sufoco. Mas há uma arte desse vazio. A Dama dos Caracóis e o Barão (o Ernesto!) enunciam a sua disciplina nesta triangulação: Vazio/Paraíso/Alegria. A Dama invoca Espinosa da qual a primeira frase aqui em cima é uma paráfrase. O Barão apercebe-se da alegria como o cúmulo da Ética a partir de Almada Negreiros e de Nietszche. A Dama abre as portas do vazio e do paradisíaco com Eckhart – a despossessão, ou a humildade como o movimento incessante que nos sensibiliza para o cada vez mais aberto.  

O Barão inclina-se sobre o Vazio a partir da soberania filosófica hegeliana que faz tantas vezes coincidir o Ser com o Nada. Joachim de Fiore ou Muntzer alucinam ambos com comichões milenaristas. Platão fala, julgo eu, no Timeu da comichão como resposta do corpo à exactidão dos sólidos regulares e à perfeição da geometria. Mas para percebermos os pilares filosóficos da vanguarda, temos que contemplar as fontes do Vazio e elas vêm de três partes. 

1) Começam a cochichar na Índia com o Buda – embora a radicalidade do Buda seja a da mediania e a de um certo socego. 

2) Palavreiam em exagero retórico em Górgias. O Tratado do Não-Ser é a Filosofia antes dela própria já enamorada da dissolução. É a dissolução da Filosofia que a vai constituir, como uma ferida a abrir-se sempre. 

3) Zuangzi – o homem que sonhava que era borboleta (oh clichê!) sonhando que é Zuangzi, com o Ser a ser negado e com essa negação a ser negada e assim por diante.

 

  OS TAPETES DA ORÉSTIA REGRESSAM NA PINTURA AMERICANA
 

 

E pensamos logo no Rothko como um sussurro que vem das paredes romanas e que se esgueira nas margens de fábulas apocalípticas. O escarlate é o fundo pictórico que as outras cores tentam conquistar e despovoar. A cor da vanguarda que dissimula o escarlate é o negro denso da consciência supostamente inquieta, endurecida, sem saída, ou o branco dos rolos chineses enunciado através das suposições dos cinzentos. É a subtileza? Mas o escarlate é o interior desse negro ou desse branco, e nas carnes brancas das damas brancas do gótico nunca deixamos de ver o sangue aleivoso, a luxúria que lhes geometriza as mamas e lhes decota os vestidos afunilando a cintura ou arrepiando o ventre.  

Gabriela também acha que as beguinas, mesmo na pobreza extrema a namorar o vazio, são da brancura mais escarlate. Puríssimas e sexualmente incendiárias. 

 

 

RECITATIVO

 

 

Houve um tempo em que a arte se autodissolvia e a estética esfregava as mãos. A estética herdara de Hegel o olhar do cangalheiro sobre a arte. Os museus vinham mesmo a calhar. Um tom fúnebre, excessivamente mortal entrara na poesia e na poética como parte desta. Não era apenas mostarda. A carne já sabia a podre. A literatura mostrava a vontade de algo deslocar-se, o que era literalmente impossível para as catedrais. Os livros, as pinturas e a música estavam agora um pouco por toda a parte, misturando-se segundo uma desordem que não é a da liturgia e a do culto, nem a das cidades rivais. Wagner queria refazer a catedral à sua imagem, com a cumplicidade de algumas mitologias e a bênção do papa.  

Frederich percebeu que o artista teria que se fazer ermita, ir para longe de locais de culto, e livrar-se de apóstolos. É certo que a arte se foi confundido cada vez mais com as reservas morais da estética, burocracias arrepiadas, tentativas de encaixar nas intenções de mulher-a-dias dos filósofos.  

A estética que comandava a arte acentuava o horror da arte a si mesma. É da resistência a esse horror que nasce algo que se “parece” com a estética e que alimenta algo que também se “parece” com a arte em praticamente tudo, mas que se livrou dos seus ressentimentos internos e externos.  

A arte e a estética funcionam como cancros do seu destino. Não é preciso ignorar-lhes as finas considerações e os gloriosos estigmas, mas podemos, com a “alegria”, passar ao lado dos estigmas e desembaraçarmo-nos da tristitia, como de uma “perfeição menor”.

 

  UM PIC-NIC CHIQUE DE BURGUESES
 

 

O dejeuner sur l’herbe era um happening (um àpeningue, só para citar o Mário malicioso a gozar com o Barão) em que as pessoas entravam na pintura como num piquenique – umas despiam-se, outras citavam, como numa oração interior, o aguarelado poema do Cesário Verde, e outras ficavam vestidas e quietas. Muitos recordavam a Tempestade de Giorgione como uma vontade de oferecer a paisagem e estar despido – um assunto catita que já parece aparecer em certas cópias de coisas do pintor Rafael. O Barão queixava-se das aguarelas como de um passadismo. Mas Gabriela, que já se tinha despido no quadro de Manet e que ia aproveitar para visitar algumas flores e beijar umas tantas ou quantas arvores não tinha razões para se zangar com o aguarelismo ou o òleo – a aguarela é já a liquidação de certos hábitos de pintura, assim como de hábitos de escrever. Gabriela pensa em Henry Miller a aguarelar, nem muito bem nem muito mal, e ao aguarelar via-se a entrar pela paisagem a dentro, ou a entrar numa calma interior, numa pobreza meio beguinica – a entrar pelas cores a dentro. E também pensa nas aguarelas chinesas a dissolver o inflamado eu em manchas, e nas aguarelas virtuosas de Turner tão vulnerável à violência do sublime ou à beleza melancólica e serena das ruínas. E nas aguarelas sábias como a infância de Paul Klee. O Barão também entrava vestido e de cartola no àpeningue sobre a erva – havia muito mais gente – uns bêbados, outros fumando drogas ligeiras, outros friques do antigamente, algo estupidificados e desinibidos. O Barão perguntava-se se isto era efeito da montagem ou se as aparências eram vestidos do Vazio. Gabriela invertia a ordem – as aparências é quando o Vazio se despe – o Vazio é um manto que por vezes abafa a visibilidade – vemos isso precisamente nas aguarelas chinesas em que as montanhas são vestidas de neblina até praticamente desaparecerem – mas quando se despem das neblinas mostram-se como algo erecto, como possíveis erecções de deuses muito antigos que ali ficaram a dormir como que para sempre.

 

  OS PARASITAS DO PARAÍSO
 

 

A elipse da fidelidade (como um desenho – um óculo – a elipse é o Vazio como aposta e surge quer neste movimento pascaliano, o de preferir o divino às reticências da razão, quer como substituição das inclinações de um cogito à massa de finas interrogações e das desavindas hortas do pensamento das universidades da idade média – mas o óculo é a convergência de duas partes do corpo naquilo a que se chamou o barroco – o eros auricular e a escuta do sexo feminino – e aqui percebemos, para além de santas Teresas de Ávilas que é a dissimulação e a infidelidade que se aperfeiçoam como sedução sem limites – a persuasão é a marca da contra-reforma que alguns dirão maléfica mas que libertam a metáfora para o excessivo e o exótico numa metamorfose sem precedentes e que ainda hoje perturba os filhos mentais do puritanismo capitalista que diaboliza este mundo). 

(a coerência revolucionária torna reaccionários os seus fieis, a não ser que esta consciência se transmute revolucionariamente nas suas oscilações dialécticas - diz a sanguessuga para o cordeiro de Deus) 

A Dama e o Barão dizem que o paraíso é o corpo ressurrecto depois da tecnologia, mesmo que as próteses ou transplantes o reformulem. Ernesto constata que tudo é multi-média ou intermédia, e que a paisagem é em boa parte essa floresta de recepções e conectividades, de mensagens sem conteúdos, e de conteúdos muito perdidos à procura de mensagens. Posso dizer-te, Ernesto, que os new media tornaram a Land Art e a Body Art uma coisa muito arcaica e nostalgica. São coisas que nos enriquecem desmesuradamente mas que parasitam o paradisiaco.

 

  UMA DOCE ANARQUIA E OUTROS AMARGORES
 

 

É invocando a “doce anarquia” e o “dadaísmo epistemológico” que Ernesto entra na vida teórica de Renato Ornato, através D. Davies e Feyerabend. Não interessam directamente estes dois nomes e a desconfiança que o segundo sugere quando bombásticamente utiliza uma canção: anything goes. Ornato relembra a abertura violenta do filme de um realizador piroso com essa canção – o segundo Indiana Jones. O jogo de antídotos – a dança, os casinos, a memória da canção na versão Sinatra, e Ernesto como espectador. Depois surge uma Índia falsa, remake do Tigre de Eshnapur do Fritz Lang.  

Ornato tem vontade de confundir Karl May, o autor de histórias de aventuras juvenis em ambientes western ou exóticos (autor do romance adaptado no filme de Lang), com Man Ray, o fotógrafo. Man Ray com um turbante, com um ar indiano, guru sem discípulos, mago, hipnotisador, aspirador do glamour de beldades, encenador de um erotismo desviante. Ernesto entrevistou um dia Man Ray. Ernesto quer avançar para a fotografia como para uma arte que desclassifica a pintura. Man Ray desclassifica perante Ernesto a fotografia como “uma arte”, mas, provocatoriamente, classifica-a como prática da pintura. Man Ray gosta de pintar e não vê necessidade em emancipar-se da pintura. Também gosta de ter dinheiro, embora não goste de ter de ganhar dinheiro. É directo e americano. O anything goes de Man Ray colide com um Ernesto ainda agarrado mentalmente ao neo-realismo. A disponibilidade dadaísta para qualquer coisa parece ir contagiar o Ernesto como um vírus que este ainda confunde com amar revolucionária e liricamente a vanguarda. Ornato percebe o lado comichoso de Man Ray. Ernesto nunca é comichoso – é religiosamente “honesto”. Ainda acredita piamente na sua honestidade e na higiene politica. Man Ray sabe que a provocação é uma malandrice que excita por momentos o cliente burguês, arreliando-o um pouco e consolando-o da vida triste convida-o a experimentar um pouquinho os prazeres proibidos. Ernesto acha que a provocação dá em pró-vocação e que esta, de um modo naturalmente “revolucionário” é a habitabilidade do vazio. 

“A arte foi a nossa alimentação. Não ficamos cheios. Foi arte o que nos desenganou do sagrado. O que nos quer luminosamente profanos, excitantemente nus no face a face com uma espécie de nada que no entanto não é exactamente o nada e muito menos uma estúpida angustia existencial. O grau zero da profanação é um sagrado liberto do terror. O grau zero da profanação é algo mais sensível. E como tal, deixa-nos em pulgas...”

 

  CUIDADO COM OS GIGANTES
 

 

A Dama inverte o único de Stirner. “Curvamo-nos à “insignificância” da nossa pluralidade. Somos onde nos cruzamos com os outros, e a cada cruzamento geramos algo mutante que se continuará a mudar. Não é a maximização do egoísmo, e da devolução do mundo ao nosso apelo natural a ele ser devorado por um apetite muito singular. A nossa consistência em relação ao saber é poder articulá-lo com o não saber. A escravidão ao Si, ao sujeito, ao Nada no qual Stirner se apoia, ainda é escravidão. Devemos derrubar a tentação de nos vermos como príncipes seja do que for, e a tentação ainda pior, de desejarmos ser reconhecidos e venerados pelos escravos.” 

A Dama, que era vizinha de um artista chamada Anão e que bem o conhecia (de gingeiras!) por portas travessas (se bem que o Anão, em nada fosse anão), não conhecia porém outro artista que se auto intitulava Príncipe (então rival e “amigo” do Anão), e que lia Stirner à sombra malévola de Maquiavel. O Príncipe escrevia cartas ao Barão, porque os príncipes e os barões gostam de se corresponder. O Barão confiava no seu poder de baronato revolucionário e de que são os barões que conduzem a carroça (conspiradora) da libertação. O Príncipe sabia que a palavra submete os homens e de que há criaturas ansiosas de devoção a deuses, senhores, santos e artistas, prontas, inclusivamente a dar a vida por eles. O Príncipe pensava, com alguma razão, que seria útil canalizar essas energias estagnadas para o seu serviço. O primeiro dever do Príncipe é mostrar-se como Príncipe – a veneração segue-se-lhe como uma sequência lógica, principesca. 

Por outro lado havia entre o Anão e o Barão uma antiga lealdade que estava a desaparecer. O Anão tinha sido para o Barão um companheiro mais novo dentro da mesma idade revolucionária e erótica. Mas o Anão era deste mundo e caminhava nos trilhos deste mundo com ideias claras sobre a melhor maneira de se desenrascar neste mundo. O olhar do Anão tinha sabido livrar-se das tautologias da vanguarda... e de que modo!...

 

  PAVÃO ZERO
 

 

Somos corpos como se fossemos membros de outros corpos um bocado desconhecidos. Fluxos fatais de secreções. Colagens em movimento e movimento em colagens. Fluxus no cubismo, cubismo no fluxus. O Vostell diria “des-colagens”, como nos aviões. Não-arte a desralacionar-se e a relacionar-se com arte. E uma cabeça de cão, genialmente cínica, sobrevoa todos os modus operandi. 

Julgas que as imagens que ainda estão em formação são piscinas. Apetece-te mergulhar. A água está fria. Que raio de sensação é esta? E no entanto não ocorre a Gabriela nenhuma imagem melhor do que piscinas para definir o estado poético da prosa tal como ele foi reiniciado por Rimbaud. “Entramos nas Iluminations como num outro baptismo post-dilúviano e post-apocalíptico. Este é o livro onde a “montagem” é fluxo, e nunca o conseguimos reler da mesma maneira, porque a montagem aí operada torna o “cantor da leitura” uma consciência em estado de montagem – então é como se fosse uma montagem a tactear outra montagem, dois corpos a acariciarem-se e a sentirem que convergem neles fragmentos de tantas épocas."

 

  DECLARAÇÃO DO BARÃO COM OU SEM CÃO
 

 

Cada vez acredito mais na eficácia do fragmentário, do intuitivo, do metafórico, em lugar das panelas de pressão justificativas – os textos dos artistas constroem-se como arte e não com roldanas lógicas, por mais bem afinadas que essas sejam. Os textos dos artistas funcionam mais como afrodisíacos do que com intuitos legisladores. 

O nosso saber está sempre a despedir-se daquilo que sabe – sem ingenuidades nem sabedorias. 

Quando me refiro a um texto não me refiro a algo de que nos possamos fardar, nem a uma cadeira onde nos possamos sentar – o mundo como obra-de-arte ou literatura existe como pulsão híbrida na natureza, mesmo antes da consciência tal como a imaginamos que temos nesta forma especializada de espécie. Um texto é a vontade de ser mais incisivo, seja num sentido polémico, seja como aquietamento, seja até como consolo «revolucionário ou burguês». Contar com utopias ou atopias, profecias ou indicativos silêncios, rumores ou disciplinadas músicas é uma «mera questão de táctica»! Somos radicais no hibridismo, ou híbridos no que diz respeito a radicalidades: só as queremos sem ressentimentalices – um estado zero é sempre, como se referiu a Estela Guedes a propósito do Herberto «carnavalescamente canibal» - um pensamento festivo surge como dissidência da tradição melancólica, como transformação primaveril das heranças artísticas e filosóficas dos passados recentes e remotos. Desconstruímos serializando e revisionando – toda a actividade, mesmo a teórica e a pictórica é performativa. 

Se tudo o que se vê é falso o que não se vê ainda é mais falso. Fraud after meaning? Meaning after fraud? É certo que não podemos nem ignorar o que vem na letra dos textos nem tomá-los à letra. São as casas espelhantes de Pessoa, de Nietzsche e de Wittegenstein. Os personagens de um romance nascem do seu «autor» mas não o são senão na forma como a interface entre o autor e as suas caçadas criativas se reproduzem como consciência quer do autor quer de quem se apropria textualmente ou não dos textos. 

Todo o traidor aguarda o desenlace mascarando-se de espectador. 

A nossa condição post-apofática não nos livrou dos mitos mas desembaraçou-nos do entricheiramento negador. A teologia negativa foi durante muito tempo a promessa de um ateísmo integral e o ateísmo sofreu fanáticamente do seu combate contra os fantasmas da religião. Estamos no ponto poli-ateísta em que nos podemos livrar de todo o sectarismo. Contra o voto religioso ou semelhante, contra a impiedade e a estreiteza sectária. 

Passadas as vanguardas e as post-modernidades (no que assanhadamente tinham de vontade de diferir reactivamente) entramos num diferendo generalizado, crítico, teórico e encantado em que nos gladiamos connosco. Da intolerância das vanguardas não herdamos nada senão o seu carburante – o fogo dos ultimatos, o desejo de partilhar e intervir, o que acena docemente por detrás da retórica do agit-prop. Nós não regressamos a coisa nenhuma – o passado, a côr, as emaranhadas confissões semiológicas (Saussurre, Barthes, Pierce, etc), é que vêm ter connosco. Esta é a nossa des-parecença com a estética, uma arte-teoria tão natural e artificial quanto a natureza. Os jogos de linguagem levam-nos onde quisermos que eles queiram, ou até onde não contavamos ir. Continuamos a amar o estado explosivo e a cada vez maior abertura do estado do art-world. « Só algumas coisas mereceriam maior referência e análise, mas fica para outra oportunidade: os binómios explosão/ implosão, «regressão de enraizamento» ou vernacular/cosmopolitismo; morte do Pai/morte do nome do Pai: a emergência do terrorismo numa sociedade altamente tecnológica; a menipeia, a paradoxologia, a sedução, a agonística. A dádiva e o ‘potlach’…» 

Ainda estamos à espera dessa outra oportunidade para isto ser falado com mais “referência” e “análise”.

 

  VERSÕES BREJEIRAS DO VAZIO SEGUNDO SANTA GABRIELA
 

 

Versão primeira 

“O Vazio é uma invenção tardia e atarantada – começa por se mover como uma barata filosófica. Descobre que tudo se parte, que há fracções e partículas e quiçá átomos, e que tudo isso desliza num espaço que permite os passeios das intermináveis subdivisões. Esse nascimento do vazio, com o seu cúmplice que lhe dá desmesura, o infinito, veio povoar com grandiloquência e filosofia um território “religioso” que se estafara. O vazio nada mais é do que o que se abre ao povoamento, o puro espaço onde as mutações podem acontecer e os fluxos fluir. Esta descoberta, julgamos que filha da escrita, é vozeada na Grécia, na China, na Índia e leva atrás de si versões e variações, num vocabulário que ainda hoje nos é precioso, e ao mesmo tempo algo confuso e esquivo. As coisas a que desde há alguns séculos nos habituamos a chamar arte sempre se fizeram no sentido de povoamento, adorno, ritualização, manipulação, etc. Podiam resultar do horror à morte, ideia que se adiantou milhões de anos à ideia do vazio, e com a qual o vazio se gosta de confundir. O vazio expressa-se de uma forma concisa no zero matemático, algarismo caprichoso que faz tremer as matemáticas. Mas fora das matemáticas as ficções que engendra são bem mais delirantes. A máquina de devorar presenças que é a dialéctica e a retórica que se constrói com a negatividade são deliciosas amigas da “vacuidade” e engendram ácidos paradoxos – as vanguardas serão noivas da vacuidade e das maduras inclinações apofáticas. Etc.” 

“A arte enamora-se da suposta pureza da sua consciência para logo de seguida verter olhares rancorosos sobre o seu corpo. Aprende a detestar o carácter “baixo” e lascivo da actividade artística, ligada desde o triunfo da burguesia à troca (à dádiva incompleta?), à sua fisicalidade extrema (materiais e técnicas), à sua sexualidade explicita, e por causa disto à prostituição – é um percurso que nos leva de Hegel (que se despede da arte) a Baudelaire (que a acaricia com maldição do seu corpo de dandy sifilítico). É do ódio à sua prática e de um amor maldito à sua suposta essência que as vanguardas se agitam, indo no sentido de uma elevação “espiritual” e “politica”. Achincalham sempre que podem o omnívoro carácter mercantil, mas acabam por ser devoradas pelo bicho. O culto do vazio é um momento, ora doce ora picante, do horror da arte a si mesma (ou dos actores da “arte” ao que pensam da “arte” e, inconscientemente, de si mesmos), não muito diferente de uma certa náusea perante o mundo, seja o mundo urbano-tecnológico, seja o tedioso mundo do “bom selvagem”. As tentativas de fazer coincidir a arte com a vida, ou a anti-arte com a vida partem na maioria dos casos de um sentimento de “desgosto”, quer com a arte, quer com a vida. A arte, porém, está sempre ligada à vida quer pelas melhores, quer pelas piores razões. Não podemos maniqueisticamente separá-las. A vontade “negativa” de fazer coincidir a "anti-arte” com a vida só povoou ainda mais a “arte” e a sua história e corpus. Para nós não há equívocos entre a arte e a vida: nenhum horror à arte, nenhum horror à vida – mas sem se demitir de uma consciência critica implacável e de um entusiasmo quer na aderência, na produtividade, no criticismo e no dolce fare niente.” (Ornato)

 

  A ODALISA OBSCURA
 

 

Gabriela deleita-se sobre um triplo vazio como se fosse uma odalisca – há sempre nela um estado de nudez bíblico que não é eminente, mas permanente, como nas odaliscas de Ingres (as odaliscas são sempre de Ingres, ò parvo, mesmo quando se confundem com banhistas!) – nuas para sempre. Nessa nudez o corpo escreve com o corpo. Em primeiro lugar o seu corpo é a mutação de outros corpos – sincretismo sexual, confluência de influências, mutação a irromper. Em segundo lugar há uma intensidade pneumática, como se outros corpos lhe segredassem e o sopro dos seus segredos se entrançassem uns nos outros: essa trança prolonga uma memória do paradisíaco que retorna mais denso, menos antigo, mais imanente, mais actual. Em terceiro lugar há uma comunicação depois da comunicação – a transcomunicação (um termo "meu" adoptado pelo Ernesto) – vislumbre, desfruto, jouissance. É nessa conversa a fazer-se conversa sem ser explicita, mas que é ternamente aberta que a arte, a escrita, a pintura, a poesia se agitam num afã que parece pulsional – a disponibilidade para ir dizendo, como errância seminal. – isto é uma “paródia” do prefácio ao Livro das Comunidades – não deixa de ser uma parte a escrever-se desse livro. 

 

  A NEW JOB
 

 

Ernesto, no seu lirismo vanguardista, não se revê nestes diagnósticos de Ornato e Gabriela. Consegue invocar, para diminuir o tom triunfal de Ornato, o Livro de Job e o seu “o meu corpo é o teu corpo, o teu corpo é o meu corpo”. Gabriela entra no livro de Job como numa ferida de onde escorre muito pus. Entra no corpo de um homem que questiona os fundamentos do divino com toda a dor possível. As questões que se entrançam nesta são intermináveis. Por isso Gabriela lava os cabelos e as zonas púbicas ritualmente. Nos cabelos escorre a graça de Deus e na zona púbica ("no pentelhismo pentecostal") os pelos são como pontos de interrogação que acariciam com um “marotismo poético” a divindade. A divindade, porém, é cruel. Mas o que salva a divindade é o como as partes baixas interrogam naturalmente as partes altas – como o sexo interroga o cérebro e o coração. O ardor poético vem do corpo de pária de Job. Joshua imitará Job numa paixão que o leva a passear-se por três dias no Sheol. Mas o tempo da dor de Job pesa nas interrogações sem resposta. Joshua fará das interrogações de Job parábolas: histórias que se desenrolam de uma forma enigmática e que parecem oferecer uma resposta às dores de Job. Mas será que oferecem? Gabriela sente, ao ensaboar-se que os homens resignaram-se à pergunta e cederam a um “certo” sublime, e que preferem a ternura maternal de Joshua, a carícia ensaboadora, o afago carinhoso. Ernesto vê-se na posição de Job, com um corpo que não lhe acompanha a consciência, com um corpo que lhe resiste à anunciada revolução, com uma “vanguarda” que é novamente vampirisada, renegada ou recuperada, comercializada ou auto-marginalizada. Ernesto é cúmplice amoroso de Gabriela porque sabe que o paraíso é o seu corpo. E o paraíso morre muitas vezes. E certas vezes morre dolorosamente e lentamente. E a memória do paraíso fica como uma resistência à morte. Gabriela também morrerá pelo corpo, pelo seu paraíso, e todos nós morreremos, uns com mais dores e outros com menos, através da abolição rápida ou progressiva do nosso paraíso. 

Job não deixa de continuar a interrogar Deus – como Ernesto e Gabriela. Porque é que o Mal nos fulmina assim tanto – será uma fraqueza do divinamente bom?

 

  SAMSARA
 

 

A CONSCIÊNCIA É PORNOECOLÓGICA – diz Gabriela citando um Abhinavagupta que não o disse 

“A consciência tem a disponibilidade sexual de uma puta sagrada, que trabalha nas ruas entre miseráveis.” – acrescenta Gabriela! 

A consciência gosta dos párias, dos deserdados deste mundo, dos humilhadíssimos, porque só assim mostra a experiência explenderoso das vacuídades, inacessível aos simpáticos epicuristas.

 

  UMA VARANDA SOBRE UM RIO
 

 

Safo, a poetisa, estende a sua túnica nos anos 40 em Alfama. O rio Tejo começa a inchar. Há uma fidelidade doentia debaixo dos telhados. As férias estão no ar. A roupa está apetecível para passar. Safo é uma aprendiz de fadista. É amiga da Rosa Davida (a Roda que Avisa). Nós também somos amigos e amigas da menina Rosinha. Safo tem contas a acertar com a Sophia, a outra poetisa que também viveu por aí, vizinha de muitas criadas. Safo, ao lado do ar mumificado da Sophia, é uma granda porca, e não escreve com um ar emproado.

 

  FEBRES DE FADOS
 

 

Ernesto e Gabriela viveram num país há muito derrotado, acanhado, enfunilado. São plantas que cresceram sobre campos de batalhas, de amarguras, de fragmentações, de roídas unhas. Gabriela é uma planta com flor amarela. Ernesto é um robusto negro arbusto. Há países que querem imperar ou trabalhar. Este é um país que começa a florir devagar. Que sabotada subtilidade! Que abotoada felicidade!  Os lugares que não estão vazios estão contaminados por apetitosas dissonâncias. É perigoso fazer  a distinção entre lugares vazios, e os que vibram canoros ou estrepitosos. A distinção entre o silêncio e o ruído sente-se nas orelhas, ou quando rodamos o botão da aparelhagem. Mas a substância ruídosa das vanguardas consolida-se no silêncio porque o silêncio é o que aceita (e excita!) todos os ruídos, e é no silêncio que o ruído acolhe as suas eminentes derrotas.

 

  LA DAME AUX ESCARGOTS
 

 

Pode-se amar um cão, um gato ou um caracol. Gabriela recebia licornes em casa e entrava em belas tapeçarias proferindo as palavras “a mon seul desir”. Gabriela apercebera-se muito cedo que a natureza quer amar quem por ela se apaixone. Tudo na natureza é erótico se lhe formos sensíveis. Tudo na natureza se torna neurótico se lhe resistimos. 

Ela era conhecida nas redondezas pela Dame Aux Escargots. 

O seu marido também era receptivo à povoação amorosa dos caracóis. Gabriela e Joaquim acordavam por vezes cobertos de caracóis como se estes fossem um terceiro ou quarto parceiro de uma floresta de afectos. Mas havia mais coisas que os amavam. O ar amava-os, os raios de sol também, e as árvores ofereciam-lhes a sombra amante. Gabriela e Joaquim não exageravam no sentirem-se amados. 

Ama-se um cão (outro) chamado Diógenes.

Os gatos enquadram-se mais no ideal cínico – a sua autonomia oportunista fá-los rondar o género humano com desdém – mas não se entregam nem se integram.

Pode-se ser amado por um cão. Será que se é amado por gatos? 

Ernesto multiplicava o desejo próprio numa multiplicidade mais desavinda. Dera-se conta que a polifónica eclosão (quiçá libidinosa) da natureza na natureza não só é manifesta manifestação, como borbulha como os mais “vanguardistas” manifestos.

 

 

(MALEVITCH E REINHARDT FAZEM UM PIQUENIQUE COM QUADRADOS, DUCHAMP APROVEITA PARA JOGAR XADRÊS NUM TABULEIRO TOTALMENTE NEGRO)

 

 

- Confio na desconfiança das cartomantes depravadas – diz Malevitch, enquanto tricota como um tonta mais um quadradinho negro 

- O cheiro desmedido a incesto é òbvio nos gestos dos outros – responde-lhe ao lado, também tricotando quadrados negros parecidos mas não idênticos na negrura, um tal Ad Reinhardt . 

- A análise gelada de sedutor carnívoro lava-nos mais negros – replica espreguiçando-se o Casimiro Malevitch 

- O gato siamês tornou inquietos os peixes no aquário desde que este começou a escrever em devanagárico – repete Ad (porque sabemos que ele gosta de repetir) 

Ad aproveita para fumar um pouco de òpio e folhear uns livros com belas imagens de Angkor Vat e Casimiro deita-se ali no chão como um gato, abandonando as agulhas num novelo gigante, mas ainda tem tempo para ir murmurando certas coisas: 

- O inquilino ficou sozinho no tigre. Coitadinho! Olhou os olhos do tigre, e os olhos do tigre devem-no ter devorado. Ou talvez não. O que interessa é que o inquilino ficou com a sua solidão mesmo no meio da testa do tigre. 

- Os seus destinos não tinham exército, mas admitiam pulgas. – acrescentou com parcimoniosa ironia Mr. Reinhardt!

 

  EPICURISMO BIO-DEGRADÁVEL
 

 

É certo que é trivial, mas a degradação, sobretudo a mais prazenteira, aguça e eleva os espíritos e multiplica os corpos. Sempre houve tipos altamente degradáveis. O espetáculo é triste. Tinham a certeza que andavam na vida com forma de erro, ou no erro com forma de vida. Não gostaria de ter um espirito elevado. Não me sinto bem na farda de me degradar em público, diz Gabriela. Prefiro anti-degradar-me e agradar-me na intimidade. Não gosto do luxo, mas  gosto de certas coisas, de objectos que possa venerar como a deuses. Um passe-vite. Uma manta. Uma mesa. 

Gabriela sabe que a presença de certos objectos é uma benção pela sua utilidade, ou pela sua inutilidade. Gosta de certos quadros. Gosta de livros muito manuseados. Gosta de tudo aquilo que prometa muitas imagens, muitas histórias, muitas receitas.  

O futuro é a banalização da genialidade. A humanidade já foi a vulgarização de símios excepcionais. Teremos Shakespeares aos milhões em versões bem mais sensoriais e superinteractivas. Mesmo isso pode ser irritante e tedioso. 

Nem catarses nem sublimação. A certeza messiânica é menos a chegada ou o adiamento da chegada do messias do que a constatação fatal e antiquíssima da divindade de tudo. Géneses apocalípticas? Tragédias idílicas? 

 

  IR E NÃO IR
 

 

Não vou por aí.

Não me metas nesse saco.

Não desisto de ir por outros lados.

Não quero saír pela porta.

Sinto-me ao contrário palmas.

A minha geração é a outra geração, aquela que nem sequer sofreu com os seus falhanços, porque nela os falhanços foram desviados pela revolução.

Tu não és da minha geração.

Eu também nunca serei da minha geração.

Uma geração que me admita com dela, é uma geração que nunca chegará a ser uma geração. 

Buda e outros senhores hindús tinham uma certa razão em considerar as divindades como algo caricato e superável pelo yogui. Zeus é poderoso mas falta-lhe plenitude. Os demiurgos até podem muito fixes mas têm que zelar incansavelmente por estes mundos difíceis. Ser um deus é uma ocupação a tempo inteiro. Apolo, por exemplo, rebaixava-se ao ponto de entrar em concursos musicais. 

Em última análise Tirésias faz o serviço melhor que os profetas. Mas não nos deixou para citar provérbios memoráveis e em oleoso latim. Há na vidência excessiva promiscuidade sexual.

 

  TANTA BRANCURA, POUCA BRANDURA
 

 

Deliciosa floresta de nádegas! Gabriela estava muito contente com as palavras, e quando se sentava a escrever sentava-se nua e sentia a madeira, pois era mesmo madeira escurecida a viochene, da cadeira. Há escritores que escrevem vestidos, e vestem-se até ao extremo na sintaxe, vestem-se até ficarem encafuados, a suar, a pingar, a enjoar. Gabriela tinha, como dizem as revistas pornográficas com uma elegancia involuntária, um cú muito branco e macio. Ela achava que até as folhas das àrvores lhe deitavam olhares concupiscentes. 

A arquitectura não nos deixa caminhar em frente. A escultura serve para ocupar os espaços que a arquitectura considera dispensáveis. A pintura disfarça as paredes. O cinema limita a um rectângulo a nossa imaginação.  

(não faço perguntas? - sou o pató que nem sequer responde aos inquéritos?)

 

  MÉTODO PARA CHEGAR A MESTRE
 

 

Olhei a decadência e achei-a amável. O tempo salda-nos, mas é justo. É claro que isto horroriza os Modernos como o Ernesto, mas não pessoas como o Lapa que aprendia a tornar-se velho sabendo-lhe a fatalidade, mas não a maestria. Uma velhice cada vez mais imatura, parecida com a obsolescente imaturidade dos novinhos em folha. A modernidade tem em horror as rugas dos que se vão fazendo inevitávelmente antigos. É uma pena! 

As guerras intestinais sentam-nos nas retretes. Ficam a ler livros intelectuais, inactuais. Por exemplo: paraíso prometido é paradisiaco porque é prometido. Ernesto sabia que prometer pode ser decepcionante, mas que é preferível um paraíso prometido do que um inferno mal-aviado. Este último estava garantido, com ou sem hipoteca. 

É a lubricidade das formas que o mar arruiva! 

O desejo tem a sua sintaxe em marcha-atrás.

 

  DEBAIXO DA MESA É QUE É BOM
 

 

A maturidade é pura masturbação, isto é, a afinação qualitativa de uma infecundidade. Ernesto festejava a impreparação, a juvenilidade desengonçada. A modernidade foi uma maturidade falsa, como quem já desabroxa sábio. Dizia o Pessoa, muito moderno, que literatura de masturbadores era com ele. Gabriela andava a trazer as pessoas do antigamente para os agoras: os divinamente humilhados. Esses humilíssimos dias vão cada vez mais fazer parte dos presentes vindouros, futuráveis, inacabáveis. 

Gabriela encontra-se com Pessoa debaixo da mesa e o Bach ao lado a abrir ervilhas (obrigado Madureira!). Vão descascar batatas juntos debaixo da mesa. Vão beber vinho debaixo da mesa. O Pessoa é alto demais para estar debaixo da mesa. O Bach é muito gordo e não gosta de se sentar no chão. 

 

  AUTOBIOGRAFIA COMO POST-SCRIPTUM
 

 

O ERNESTO é um post-script de qualquer geração  

Ninguém é da mesma geração

Nenhuma dádiva coincide no tempo

Ninguém ama outrém na mesma época (vivemos em tempos deslaçados)

e isso é o dissídio com todos os poréns de molho (e o molho de poréns)

é-nos permitido o sexo como uma coincidência desse descoincidir-se - um tempo que parece fora do tempo

e sabe-se lá onde é que isso acontece. 

O nosso contexto é uma espécie de fome: viemos abrir outro reviver, sem ter que fazer strip-teases. A nudez é a nossa dissimulação. A espontaneidade ornamenta-nos a preversidade. 

O instante é o próprio soslaio. Olhar para a nossa alma como quem a quer ferir mortalmente, com arco e flecha. Feri-la de momentos oportunos. O kairos: propício auto-flagelo. O que é próprio do impróprio. A preparação para os imprevisíveis, sejam os de "todos", seja os de cada quais. Seja, ainda, a mistura ("famigerada") de ambos os casos. 

Desforçadamente damos testemunho de todas as fraquezas. 

Se um 0 se põe à nossa frente com uma coisa indigente, uma maleita matemática, logo o riso surge como uma educação, um enfrentamento, um encantamento e um achincalhamento. O riso é o que te devolve o vazio, o não-ser, o saberes emocionar-te. Educas-te no como te emocionas. Educas-te através do nú, da história do nú, uma história que alguns diriam ocidental, mas o nú também existe no Oriente, em Kajuraho, nas ilustrações chinesas do Jing Ping Mei, na "meditação no tapete de carne" e nos manuais de cama Japoneses. Não é uma categoria estética, mas uma evidência mais do que técnica. É a porneia como sabedoria - por mais estranho que pareça, isto é uma prudência em relação aos efeitos do Absoluto. Efeitos que podem ser devastadores. Frederich apercebeu-se dessa devastação. O sexo é sempre pandémico, mesmo que seja uma parodia melhorada da prostituição e da pornografia - diz-se que disse Gabriela. 

O próprio nu nos apascenta, sem essência: presença aberta, stacatto, carneirada. 

O nu é o que se deixa corroborar.

 

  SENTIMENTALISMOS E TOUROS
 

 

Estou sentimental e sentimental e escrevo pior, e não sei reviver actos imaginados. Não consigo sequer meter a sensação em axiomas. Não sei se quero o que quero. Posso pôr palavras como carroças à frente de bois. Não estou para actos. Aproximo-me de erros. Ando à procura do afectuante, do nú, do implacável desaforo. Sei que me vou inscrever como uma espécie de coisa que fica acima ou ao lado ou no meio da diferença e da indiferença. Procuro figuras em formação, mas a minha mão escangalhada muda a maneira de usar a cabeça. 

O próprio das figuras e dos sentimentos é retornar ao 0, ao ponto de retorno ao não-retorno. Eu referia-me ao 0 como pavão. É o Novo que nos impede de retornar. Uma feliz maldição. 

Friedrich, come a sopinha, come a sopinha de letras, deixa que os crocodilos rastejem nas lamas do espirito. Come a sopinha assintática! A melhor poesia recitável, é comê-la! As letras do João Vieira, fofas, como mamas amarradas de Man Ray, com ganas machas fetichistas. 

As letras antecedem as Musas no serem Musas. São as Musas das Musas. Quem são as Musas das letras? 

Reflectes-te no díssido como uma menina a vitimar-se  no ser desejada por um deus. Os deuses amam certas mulheres para as foderem e  desentranharem semi-deuses, e gerarem mitos. 

No texto e prática, hesitamos entre dois afectos e entredespimo-nos. Gabriela e Ernesto também se entredespem para falar um com o outro em "código morde". 

"O arreliadoramente factual...", diz com dificuldade um forcado amador. "O arreliadoramente factual é agarrar o touro pelos cornos, ou levar algumas valentes marretadas".

 

  LIVRO DAS COMODIDADES
 

 

Canta-se uma continua miríade de coisas: o geral também abre — o aberto pode parecer uma porcaria abstracta, mas as coisas abstractas mudam-se muitas vezes em coisas deveras tangíveis (apalpáveis). E é diferente de mudar as fraldas a septuagenários (há algo de sumptuoso nesta idade). 

Se é para porcaria sobrepomos as raivas da história. 

Ernesto e Gabriela idealizam porque acreditam na comunidade, esquecem que a novidade na comunidade é a guerra intestina, mesmo que não se perceba de onde vem o òdio. Mas ele acaba por vir. 

Presença, música, vazio. O mundo a querer lavar a loiça e depois os dentes. Somos empregados de lojas num país distante. O patrão arrelia-nos. Gosta de chatear. Desato a chorar. 

 

  EXAGEROS E SUBTERFÚGIOS
 

 

Andamos a fazer muita força. Mas como isto se passa no vazio é inútil. As conotações até podem ser bem sucedidas e terem uma carreira brilhante. Mas a nós resta-nos uma pequeníssima eternidade, muito cantante, quiçá polifónica. Começamos a tratar as coisas mais por tu. Ás vezes o nú faz enjoar. O remédio é vestires-te. Podes começar noutro contexto, mas não deslargas o texto. Adiante! 

Viemos apesar da Leitura, boa ou má. Viemos como os reis magos parar a um presépio com muita luz, com muito mais luz. 

"Não consigo deixar de pensar em ti, miúda. Isto faz rimas baratas, ou baratas que rimam? Sou pequenino nas responsabilidades dos Afectos, disse o leão do feiticeiro de Oz. Tenho o caldo entornado sobre o invisível." - diz Sóniantónia 

"Julgas que sou parva e que vou em conversas especulativas. Acho que isso de não ires direito ao ponto crítico é uma porcaria. Coitado do frágil, coitado do 0. Vou-te mostrar como é que se usa um canivete!" - repenica Sandralexandra

 

  EPISTOLA ENTRE TALHANTES
 

 

Abaixo do visível alegres ilusões acontecem. 

Sabemos que o Talho é o contexto de qualquer texto: e por cima do Talho está a graça divina das heresias. E o que o texto, no fundo, diz, é: que se lixe o contexto! Será que isso faz sentido? 

Somos vulcânicos para congelar rebuscadas intencionalidades. Somos ainda mais naturais do que a natureza e não fizemos nada por isso. 

Um dos nossos deveres colegiais é o de transcrever o passado, e sobretudo os momentos em que certos homens, e mulheres, entram na altura demente dos deuses, chegam à sua plenitude, a uma plenitude acima da coisa comezinha de ser simplesmente homem ou mulher. Para isso tem que se continuar a crescer com uma infância muito maior, com a mão desajeitada a rabiscar os nomes dos deuses, para estarmos preparados. Não é preciso mártires outra vez, diz Gabriela, já tivemos Holderlin a tentar vestir a pele de Sófocles com um fecho eclair, e o Frederich a orgulhar-se do pandemónio báquico, a enxergar-se nas vozes, e a escovar o pensamento que estava muito encardido, a esfregar a escada do sublime, a cantarolar, com um rabo ao léu, velhas canções mediterrânicas, como um animal em volta dos degraus, gradus ad parnasum, como se Frederich fosse uma fêmea e todas as canções devessem ser cantadas de gatas e em imaginada nudez.

 

  A MAGIA NA CLANDESTINIDADE
 

 

Teorias são bruxarias. Apelam à mandrágora rudimentar que se encorpa nos subsolos das linguagens. Gabriela acorda embruxada. Querem queimá-la. Tem a certeza de que há quem a odeie com visceras a arderem, com rancores do arco da velha, logo a ela, pobre, feita pedinte, arrongatemente pedinte, involuntáriamente pedinte, premiada, miserávelmente subsidiada, aclamada, e porém, tão ignorada. 

"Confundir para sobreviver. Compreendi que não sei escrever romances como os de antigamente e que esses continuam a ser importantes na maneira como a intriga se instiga como um adiamento da morte, como um desejo de encontrar o ponto onde o tempo deixa de ser implacável e nos salvamos. Salvos pela fragilidade. É a fragilidade que agiliza. É a delicadeza que nos permite condensar o tempo como emancipação do tempo. Promessa de felicidade como felicidade de prometer. A minha arte de romancear é às apalpadelas. A sobrevivência cameça no momento em que deixamos de repetir os romances antigos e acreditamos que há um espaço que continua a fragilidade como algo mais intenso. Isso começa na baralhação." (um papelucho de Gabriela).

 

  O ESPELHO COMO REMEDIAMENTO
 

 

Há certos jogo de máscaras que tornam a toillete do visivel mais chique. A toillete do invisível não me parece recomendável. 

A posteridade é a pior das conselheiras. Dá-se o caso de haver escritores que trabalham como exímios censores a encenar as mais notáveis posteridades. É isso que os torna rigorosos, e por consequência insípidos.  

 

  AS MORDIDELAS DOS MITOS
 

 

A inutilidade ociosa de quem se esmifra a trabalhar. A humilhante ociosidade da escrita, ali, com o não-ser à perna, com as moscas a chatear, com a delicadeza do tédio, mas um tédio nobre antigo, de quem viveu nas cidades e se encontra com um campo, verdadeiro apesar das falsidades destes campos que não são carne nem peixe, mas legumes com pesticidas. Gabriela desconfia de Confúcio, desconfia dos ritos e da piedade filial. Apetece-lhe comer saladas. Comer saladas muito amadas. Comer porque se ama canibalmente a comida nossa irmã. 

Só na diferença é que a identidade se consolida. Nem que seja com fita-cola e cuspinho. Ou a falta de identidade, legitima pois. Quando nascemos identificamo-nos como quem olha, como quem está em sarilhos, como quem procura anamorfoses em espelhos amolgados. A diferença é um amolgamento, o molde escangalhado. É a partir daí que acreditamos na necessidade de cada um como ruptura nas necessidades de todos. Por vezes chegamos ao ponto de achar as necessidades de todos uma coisa completamente idiota. Mais idiota do que comprar roupas porque estamos deprimidos. A futilidade das necessidades dos outros é muitas vezes um dado adquirido. Mesmo a necessidade, também fútil e consumista, de uma revolução. 

 

  PENSAMENTOS DE GABRIELA PARA ELA
 

 

Não revolverei as arcas nem o seu pó fetichista. Gosto do passado sem reverências, como algo que se possa usar no sexo ou enfiar no cu. 

Não vou perder tempo com as tretas do Arcano : o bluff perpétuo que torna as almas mais puristas em beatos viagraistas. Não há revelações, só re-evoluções. 

 

  CONFISSÕES DE ROSA DAVIDA DEPOIS DE UMA TARDE EM JANAS COM ERNESTO
 

 

Querido Moisés, sei que um dia conversaste mesmo a sério com Deus. Sabes, o teu processo semeia alteridade, mas a colheita torna-o canónico. 

É maravilhoso fazer coisos com as coisas? Não, não estou numa de participação no que quer que seja. Não quero deuses, não quero fama, não quero mais nada por agora, nem a iluminação mística, nem um amante com cheiro forte e um lindo pescoço. 

Descalço os sapatos como se descalçasse tudo o que vem de Moisés. Estou a suar. A minha blusa está do avesso. 

Estou muito sem. E propícia. As estrelas estão perdidas no tempo, e eu olho-as e o tempo das estrelas entra nos meus olhos. Apetecia-me engolir rios! Ahahahahahaha! 

Também me apetece lamber o tempo! É o que faço agora. 

Vou para o campo, mas custa dinheiro apanhar  camioneta e o comboio. Vou para a praia das maçãs, sentir-me muito arejada. Antigamente as maçãs rolavam sózinhas até essa praia e acariciavam as ondas. 

Estou assim para o enigmática e dá-me para roer o cabo da esferográfica. Pus-me a  pensar em espelhos e fiquei derrotista. Eu perguntei ao Ernesto: nunca lambeste uma nuca? É pateta, mas gosto. Nunca digas nunca a uma nuca. 

As  minhas amigas fazem plásticas porque não há mais nada para fazer. 

O melhor facto é a intuição. E a melhor intuição deve ser assinalada com uma expressão vocal, pois faltam palavras, mas arranjam-se sons. O factual, que também é o intuitivo, é o vocal. 

Isto é tão aquilo. Ai, dá-me em desejar, porque o pensamento nasce do desejo das coisas pelas coisas, como se o proprio desejo fosse um adiamento. As coisas enganam-se na maneira como amam as coisas. As coisas amam como quem quer engolir. Acho que posso ser ainda mais simples, mas também não adianta muito.  

Gosto de comer sardinhas assadas quando é  altura delas. Acho que há, já o disse, uma boa dose de falsidade na participação. Adorava de ter muitos maridos diferentes ao mesmo tempo, e viver em várias casas. Queria que o Ernesto não fosse crítico de arte nem usasse calças de bonbazine. Ainda gostava de muita anamnése, como se isso fosse lamber um gelado com as mãos dadas ao Marcel Proust. 

Sou invulgartmente auto-determinada. Uns dias uso franja, outros risco ao lado. Tenho algumas cicatrizes extremamente belas. Fico optimista com facilidade. O telemóvel proporciona-me sentimentos de animosidade. Prefiro dizer não quando me convidam para entrar num apartamento e sim quanto a apanhar na cara vento. Tenho semelhanças que ninguém repara. Tenho arte no reparar. Reparar é a minha arte pois. Também me dá para a amargura. A amargura é um momento inevitável das coisas de que não tenho tempo para arrepender. 

Mas que deliciosa perda de especificidade!

 

  ALCANCES
 

 

Não posso esperar nada de ti, desprevenido (ou detergente) legente, porque as coisas aconteceram de todos os lados, e já nos ultrapassaram, como uma ligeira deslocação do modo das paisagens se deixarem ser vistas.  

Livra-te da inércia, diria Ernesto.  

Somos uma inércia que ama as variadas vistas internas, replicaria Gabriela.  

Tens um carreiro de formigas nas costas.

 

  DAS BIO-BIBLIOTECAS
 

 

Tudo na minha vida viaja. Viaja lavado por mim. Eu viajo como uma lavradora, tenho calos na inteligência de tanto andar a semear. 

Os livros são bichos em vias de extinção. As bibliotecas são selvas, umas mais arrumadas, outras com um surpreendente desarrumo que nos faz dar de caras com avós inexplicáveis. Os avós mortos entram nos livros e fazem-se bichos. Não querem financiar as nossas aventuras. Por vezes enervam. Meto as minhas mãos na imobilidade dos livros e os avôs entram na nossa atenção como criaturas que mordem. Isso é irritante, magoa, incomoda, mas também ajuda. 

Sou interessante meio acima. Sou confortável e aqueço como uma colcha. Meio abaixo sou luminosa. Tenho um pescoço que não receio dizer que é bonito, e dentes bem arranjados. Não encontro, para já grandes podres no meu aspecto, nem, sequer, nos dias em que me enervo e me enervo. Arranjo-me bastante. Gosto da ordem da carne, isto é, da disposição material e lírica do meu corpo. Há dias que fico na penumbra, na borda da cama, em frente ao espelho, e sinto o desarrumo circunstancial de certas coisas. Cada mês oferece a sua atmosfera. Gosto dos sentimentos porque limpam os significados. Muitas vezes entro toda súada nos livros, e há uma aragem neles que me refresca. Fico menos atormentada e dura. 

Quando olho fixamente para uma cor algo me limpa. 

Quando olho para fragmentos informes um fecundo assentimento de desordem deseja-me desconhecidos. 

Quer dizer que é mais fácil encontrar manadas de camelos no reino dos céus do que uma agulha numa parábola? 

Ó devassos da contemplação: dizei-me como é que a imobilidade vos achincalha. Confessai! O tempo ainda é mais ingrato que as prostitutas?  

 

 

A TRADIÇÃO AINDA É UMA COMO QUE AVENTURA
ou JUST  WANT TO SAY SOMETHING ABOUT THE UNREADY-(RE)MAKING

 

 

A aventura ainda usa aventais. As letras negras, brilhantes, irregulares no detalhe e parecidíssimas no papel em quem lê, dos livros do Plantin. Sentimos o papel e os tipos a tocarem no papel e o papel  a absorver a tinta, e os caracteres romanos, gregos e hebraicos, com as suas eróticas ligaduras. Penso sobretudo na Biblia Poliglota. Deus, o personagem principal, é uma "minha" criatura. 

Muda-se o género nas intenções. 

A não-obra renasce nos índicios da santidade. Uma santidade para si mesma por pudor de exebicionismo para os outros. O testemunho de uma vida que não se chega. Unready-(re)making. Impreparado re-fazer. Vida com ir-se testamentando. 

É fácil preferir as versões poéticas às versões éticas, mas é mais difícil de compreender porque é que a poética é mais ética que a ética. A poética que fica na pseudo pureza dos enunciados é uma senhora malvada. 

O mais externo é um dissimulacro do mais íntimo - faço-me velha criança sábia. Desevencilho-me dos hábitos que matam. Os hábitos fazem o morto. 

O absolutamente outro é mesmo absoluto? O outro de carne e osso é o absoluto? 

Que este espectáculo associal seja beijocado pelo talento das Fénix potenciais: máquinas de desavindas fenixologias. O talento de contrariar a caducidade nas evidências. 

Cada livro fomenta os incêndios bibliotecariamente alexandrinos. O que não escrevemos é a versão best-seller do que escrevemos de um modo desconchavado e inacabado, com todas as reticências em cima. É certamente pretensioso e inexacto, mas autentico.

 

  O ETERNO RETORNO DO NÃO-RETORNO, ou LA MAISON ÇA C'EST BON
 

 

A sabedoria foi apanhada com o rabo na boca, mas não com a boca na botija. Ando a desaprender a irar-me. Tenho andado um bocado interindisciplinado. Ainda não sei as perguntas certas. 

Também desaprendi a viver abruptamente. Sou voluntáriamente desintegrado, descentrado, imaturo, inamovível, passível, internável, sondável. Um caso de solitariedade. 

O que é feed-back afasta, aproxima, escapa, desconversa, finge humedece, fragiliza, aguenta, arrisca, isola, alastra. 

A casa também escreve o pensamento, agarra a cara, faz parte da fisicidade que nos expõe ou nos retrai. 

Pensamento grados livram-nos de objectivos parcos. A minúcia interessa, pois sim, como uma forma descarada de atenção, como uma redução prazenteira do quadro do vislumbre do mundo a algo mais acessível, menos falsificável, e devoradoramente concreto. 

Dentro dos abraços ocorrem transformações. Gabriela tinha uma lista de abraçadores que despontavam de vários pontos do mundo, de Jane Austen a Therese de Lisieux, de Al Halladj a J.S. Bach, de Holderlin a Plantin. Podiamos comparar a lista de Gabriela com a de Lapa, e estão lá, em comum, Pessoa, Rimbaud e Kafka, com a presença, na vivência-presença do Vergílo Ferreira. 

Uma casa ajuda a vermo-nos livres de um vazio, ocupando-o com outros. 

Algo ressoa. Entrei. Era róseo. Situações enormes. Uma água brusca. Uma porta que se abre para viver um audaciar-se. 

 

  OS AGENTES SECRETOS DA ECOLOGIA
 

 

Uma ave fabulosa agoira os acanhados céus do Parnaso – queres convalescer entre gemidos poéticos Ernesto? Claro que não! O Alberto Carneiro propunha uma arte ecológica como "um renascimento para uma alegria natural". Não uma alegria tecno-comercial. Não sei se isso se traduzia quando ele ia nu até ao rio onde tinha uma pedra com um buraquinho com quem fazia, artisticamente e documentamente, amor. Será isto natural? Ou é a imagem de um desejo, artifisioso e malandro, da naturalidade? Ernesto, confesso que desconfio um pouco das tuas referências e da forma como manipulas as contradições, mas puseste muita gente a mexer, e pensaste-lhes o fundo com um lirismo "material e spiritual": uma "vasta estratégia socrática de con-vivio", "combate urgente à incomunicação e obsolescência crescentes.", etc. 

O que é que o Alberto Carneiro tem a ver com o Alberto Caeiro?

 

  A PROPÓSITO DE POMPEIA
 

 

Jarros. Gosto de pintar jarros, ânforas, taças, tudo o que sugira o eros aquático, seja àgua ou vinho, a fonte ou a vinha. Não é necessário invocar qualquer pureza iniciante. É o ondulante e o erótico que ressurgem voluptuosos na loiça. Dão jeito quando temos sede e um copo está aloi a geito e os lábios tocam-no quaso sem dar por isso, ou quando queremos partir a mobilia e essas coisas se desfazem como uma catástrofe providencial. Cântaros de sangue para atrair os espectros invejosos da nossa vida quente, avermelhada? Ah, pobre Ajax!  

Gabriela gosta imenso de lavar a loiça, mas suspeita da devoção a anforas gregas ou pseudo-gregas. Gabriela desconfia de quem fica afectado perante algo polido ou perfeito.

 

  UM TROPEÇÃO NA ENTROPIA
 

 

Os campos cedem maliciosamente à desordem urbanistica. O Anarco-Urbanismo dará lugar a um paraíso suburbano! É um tema que dá manifestos inúteis e sonetos palermas. É difícil às periferias não serem feias. Não consigo extrair dos horríveis subúrbios nenhum suco sábio, como nos poemas de Lao-Tsé. 

Gabriela afastava-se das cidades e dos subúrbios, mas não se afastava suficientemente. Não ia para um sítio radicalmente selvagem, como o bosque, a floresta ou o deserto, em "anacorese galante" (cito-me!). Era campestre, ambigua no pseudo-nomadismo e no irrequieto sedentarismo, familiar, reservadamente afável com a vizinhança, comunitária quando havia empenho de desejos.

 

  HERESIAS PROMETIDAS
 

 

É baboso e tarado o nosso desconfiável gurú. E amamenta-se de profecias como quem deglute pastéis de nata. Lança-as ao peito de sultanas excitadas cujos sexos são visualmente e olfactivamente apetecíveis. Lança-as como flechas que nunca chegam a atingir o alvo (d’aprés Zénon). E também as lança aos peitos flácidos dos porcos capitalistas e gordurosos gurus marxistas. Que eles cuidem da pele e paguem as contas dos ginásios! 

 

  FILM NOIR AO LUAR
 

 

A memória extraviou-se na vidência. O detective encontrou alguns vestigios na lavandaria. A verdadeira sabedoria chegara conspurcada. Ernesto não dera pelo crime, nem sequer no sentido alegórico. Sexo a mais. Orgias vanguardistas. A vanguarda vive-se, sem dar por isso, como incitamento ao orgíaco, que se mascara de entusiasmo revolucionário, de milenarismo, de faminta utopia. O crime acontece como aciente. 

A vidência é um detalhe da violência.

 

  A AUTOFAGIA COMO PRELÚDIO DA MORTE
 

 

Comemo-nos. O paladar é metafísico. A língua é o que nos assegura uma imanência banalmente radical. Querias ascender, como se a leveza fosse sinal de superação, mas é o nosso peso incerto que nos liberta, mesmo que a libertação seja um gordo engodo. É melhor não estarmos demasiado gordos ou escangalhadamente magros, diz o porco Bolão para a Dama e o Barão. 

Inventas segredos para teres uma mente (ou uma morte) parecida com a dos criminosos – soletra a Dama ao Barão. Mas o Barão, assim como a Dama hão-de morrer de uma morte muito consciente e dolorosa – sem a terrível graça de Deus.

 

  ANÕES NO FALA-SÓ
 

 

Ernesto acordou com a oralidade de Almada a bater-lhe à porta. Almada vinha com nove anões chineses limpar a pequena casa em que Ernesto vivia na Travessa do Fala-Só. Ó Ernesto, isto não é casa, mas um miserável corredor forrado de livros! Isto nem sequer é pobreza, é encafuamento.  

Os anões deliciaram-se em aspirar, mudar lençóis, lavar a loiça, muito encardida, coitadita, é mesmo um intelectual! 

Havia uma sabedoria que misturava o anedótico com o caótico. Nos hexagramas das tartarugas os oráculos eram dissimuladamente báquicos: tinham uma chinfrineira de bebedeira sem dar ao litro. É o Caos em cacos ou a ordem fardada de enfermeira? 

Desatafulhar é preciso.

 

  PATÊ DE PARALOGIAS
 

 

Almada não estava assim tanto para desordens. Ás vezes torna-se insuportável a ausência de qualquer cânone. Onde encontrar as linhas certas que nos oferecem aquilo que nos procura quando a biblioteca é de uma incómoda desordem? 

Ernesto aceitava parcialmente o canone de Almada e os seus nove anões, como quem agarra com uma mão o 1 e com outra o 0. Mas Ernesto tinha a certeza que isso dos canones é uma "paralogia", e que uma paralogia mete-se com o mundo e põe-nos uns óculos que faz ver coisas que só ela sabe mostrar. As paralogias andam à luta umas com a outras. Por vezes mudamos de paralogia sem dar por isso, e as cores mudam assim de intensidade e lugar.  

 

  RIMBAUD DE CABIDELA
 

 

Je est une huître. O Eu é uma ostra. E isto ressoava no nome do amigo Lapa. 

O Eu é a tua amante que és tu e isto e aquilo e aqueloutro, retorquia Almada enquanto descalçava as luvas e guardava a lexívia no saco. 

C’a g’anda chispalhada cósmica! 

 

  A CATÁSTROFE ADIA A TEORIA PARA OUTRO DIA
 

 

Chovem bombas nos médios orientes e arredores. Não chovem para sempre. O bombismo imita o vulcanismo numa versão anedótica. Vanguarda sim, mas não tão devagar! Implodir e explodir de uma maneira explosiva. A natureza inverte o lado paródico que vai nas artes, e repara que a vida é muito destrutiva sem querer, por mais metida que ande consigo. 

A mediania é já oriental. O oriente fica a oriente das nossas péssimas orientações. Com o oriente não podemos ir na frente ou atrás de nada, vamos sempre pelo meio, e mesmo quando queremos morder com os dentes todos o Absoluto, é a meditação, a quietude, e essas tretas todas. Mas no ocidente colocamo-nos sempre inclinadinhos nas extremidades, em desastrados bicos dos pés, e em inocência de quem ainda não tem paciência, crianças hipnotizadas pela acção. 

Bebe tequilha, filha! Embebeda-te como me embebedo sem me embebedar.

 

  O VERDE A HAVER
 

 

Há um excesso de verde a flutuar nas vidas de Ernesto e Gabriela. Verde de estar verde, verdinho, verdinho, impreparado, ingénuo, incapaz, vegetal, esperançoso.  

Ernesto curva-se para admirar a admiração. A admiração é a devoção sem religião a ampará-la, é o pôr-se no outro sem desejo devorante. Recepção amante sem chantagem de reciprocidade. 

E um certo narcisicismo, ainda por cima epicurista, arqueia-se. Ou mexe. Como as margens de um lago sob ligeiro vento.  

Gabriela expõe o sexo ao vendaval. Quer-se deixar penetrar de Vazio. É a gravidez de vazios que pro-voca o textual. E é a desunidade que nos faz mais vertebrados. O prazer desse nada torna-nos ainda mais o querer-que-seja.

 

  UM BARÃO CIGANO (EM RESUMO)
 

 

Chamavam-lhe Barão Cigano, não invento. Nomada de uma pequena nobreza de faca e alguidar, esgueirando-se no Negro das dialéticas com uma pobreza neo-realista. O inconformismo de um cigano como um apetite para um estar na arte que não é feito de bens, da fisícidade da obra, obra como fazer-se ao caminho, como festa, rasgueado, ganas imensas. 

Parece que falta Mecânica às rodas da Racionalidade. Também falta uma serena articulação à ideologia (a nossa e a alheia). A filosofia precisa de òleo, embora dispense as rodas dentadas. Precisa só de rodas para levar a cabana um pouco para todo o lado. O museu é o meu corpo, é a tua lábia, é a vida depois dos modos de usar, é a atenção depois das intenções e intuições. 

Há gajos que batem noutros gajos. A publicidade promete espancamentos mais comerciais. Temos a certezinha de que a paixão até pode ser reciproca apesar das florestas de ressentimentos. 

 

  EM HERBAIS AS ERVAS CRESCEM E OUVEM-SE MÃES A BATER NOS BÉBÉS
 

 

Somos pategos extremamente instruídos, dizem os tipos de Herbais: 

 Já não nos interessa “criar gado nos apartamentos” nem caçar renas nos centros culturais! 

Nem nos indigna a gramática com os seus bigodes estalinistas, e ainda menos as místicas rafeiras.  

Acreditamos que tudo pode ser recriado e que um apocalipse terráqueo é uma treta pindérica dentro da escala do universo.  

A demografia faz-nos encolher as ambições. Há demasiado querer para tanta gente. Há pouco espaço para essa inflação de ambições. 

As rotas estreitam-se. Podes partir, mas irás sentir-te sempre apertado!

 

  DE BYARS PARA O ERNESTO COM DEVORAÇÃO
 

 

Grande Ernesto/a festa remove as imperfeições/ procuras a utopia às apalpadelas/a cidade experimental/nasce dos circulos perfeitos/que afectam maravilhosamente/a pro-vocação é a ingenuidade/ com geometria lá dentro/os deuses preparam as nossa mortes/ com grande rigor 

Grande Ernesto/o pescoço de Isobel/explendido/as pérolas tornam o sorriso inadiável/veremo-nos nas nossas autobiografias/continuaremos a falar/nos túmulos dourados 

Grande Ernesto/o ar escreve os nossos nomes/ as performances/amam o ar/interrogam/amam interrogando/o vazio/saboreia os infernos 

Grande generoso Ernesto/ornitorrinco/inclassificável/ detonador do híbrido/ tudo é sagrado outra vez sempre/ rolos chineses/ mijam caligrafias selvagens/ simplicidade incandescente 

Sexy é a rua que te atravessa/Cai sexy o corpo na teoria/ a tua morte é a minha morte/ somos da mesma eternidade/ os estados de perfeição reciprocam-nos/ a perfeiçãona boca/ a tua lingua enche de saliva/ as teologias negativas/ titulos andam à caça de espirais brancas/ estamos a mudar o questionário/ não é Ernesto? 

O quadrado negro de Malevitch/ pôs um ovo dourado/ as piramides/agradecem/ eu visto-me de seda rosa 

Não deixes escapar as ideias do chapéu/as geometrias respiram/ a esfinge interroga/ Job interroga/ Édipo responde/ Deus responde/ é bom continuar/ a nossa imortalidade

 

 

A POESIA, A TENTAR DEFINIR-SE ENQUANTO MUITOS DIABOS ESFREGAM O OLHO DO CU

 

 

A poesia é uma farsa que o Alegórico parece que promete – é a tonta da amnésia traduzida em actos falhados. Ernesto entende, a partir de Varetti, o falhanço como desvio relativamente ao sublime. Estamos todos condenados a um falhanço, que de certo ponto de vista é cómico. A intiligência de lidar com o falhanço é o humor. E no entanto o sublime está lá, vulcânico, como se fosse as entranhas do falhanço. Falhamos como uma espécie de desejado adiamento, ou como desengonçado adiantamento? 

A teatralidade começa nas confissões mais espinhosas dos filósofos mais apetecíveis, mas não sabe acabar nas mesas de cabeceira dos devotos leitores. Procura outros ambientes para chinfrinar. Um pode ser a confusão da consciência de qualquer um, mesmo o mais parvo.  

Desembaraça-te da tua unidade diz a teatralidade, faz de conta que és um agregado de vozes a quererem ter muitas opiniões... 

A poesia é apenas a parte que se concebe como caraça e carraça do todo. A prosa é cadela, a puta. E há muitas vantagens neste arrastar-se pelas vielas. Por exemplo, o conhecimento dos podres da vida, e não só dos alindamentos, tristes, privados, com a familia à perna. A prosa nasce dos cruzamentos, das encruzilhadas, dos atrevimentos, do tagarelar do pobre sedento de conhecer a história do manco e do zarolho. A poesia fica maravilhada, sentada no bosque ou quietinha em casa. 

Gostamos de Salomés avinagradas – a fatalidade é simplesmente caprichosa. A cabeça do S. João Batista sobrevoa as paisagens em busca de riachos para matar a sede.  

Camaleões somos nós contra nós mesmos outra vez, ò amiguinhos. Insistentemente insistentes (g’anda chatos!).

 

  SOBRE O TEMPO, DE UM PONTO DE VISTA SIMPLISTA
 

 

A idade torna o indiscreto mais indiscreto. Já não conseguimos encontrar segredos nem na filha da puta da intimidade. 

Ernesto e Gabriela dizem multiplamente e aos pulos a paródica multiplicidade da ausência refugada do vazio. Dizem entre consonâncias, dissonâncias e outras ganâncias.  

(o ritmo vem do des-informe, é a sua frenética fama. E interdepende; choca com as várias versões do vazio e do silêncio; é fruído como uma salada bem temperada; e re-volta e re-vém e volta o disco e toca o mesmo - notícia da ruidosa  coexistência entre a existência e a resistência) - e a notícia é mesmo essa, outra vez, que o tempo nasce dos ritmos, e que onde não há ritmo não há tempo - o tempo começa e acaba no bater do coração. A morte, ou a eternidade sem eternidade, é o que antecede os ritmos.  

O agora é um pois agora, um ora-ora, um querido mudei-te o par de cornos, um amanhã logo se vê, um tinha que ser, e também vamos lá desenrascar. 

Bem podes falar do Ser como de uma barata à procura de um amante versado em "ontologias". Mas o Ser é o crescendo ou o diminuendo que se acrescenta à experiência ritmica. 

Como um lírio no labirinto da Hipocrisia, como uma lamuria lamecha nos lábios de um profeta. 

 

 

O MUNDO ESTÁ CHEIO DE MUITOS LOGOS E ESTES GOSTARIAM DE TER PRIMAS PARA NAMORAR

 

 

Ernesto andava a admitir fronteiras onde o acaso as acabara de as abolir. Depois Ernesto abolia as fronteiras, com um golpe de dados, e reinstaurava o acaso, nem que fosse como método, e lá vinha ele com a mania do Mallarmée e de que o mundo era para condensar num livro.  

Ernesto via Gabriela a dormir com o Joaquim num estábulo em forma de vaca e de boi, muito mansinhos, com palha e tudo. Espiava-os com inveja. Gabriela tinha  umas maravilhosas tetas muito lácteas. Ernesto desfrutava do maravilhoso sabor do leite das mamas de Gabriela e bebia-o ainda quentinho. E depois fazia manteiga e clarificava-a. Essa manteiga oferecia-a em sacrificio aos Deuses da Vanguarda. Os Deuses da Vanguarda regurgitavam de satisfação. 

A realidade é o alienante (principio metafórico-metamorfico-alienigena) do maroto do ponto de vista do imaginário (metáfora de metáfora). A realidade trabalha numa loja com muitos clientes a pedirem muitas coisas ao mesmo tempo. Dar conta do recado é mesmo dificil. Apesar disso... 

Dá-se o caso de que os chineses, muito senhores da sua temperança, sempre puseram expectativas no Nada, no vapores, nas fintas do destino, nos dribles das estratégias, nos trocadilhos sábios, nos pastiches de sabedoria confuciana. Pfff! 

Sabes, Gabriela, a profundidade acaba por ser palerma, mas palerma mesmo. Eu não percebo como é que certas pessoas ficam embasbacadas com os gajos profundos, sejam eles intelectuais bem pensantes com crista de galo, sejam gurús pseudo-tantricos com olhar de carneiro mal-morto, sejam banalidades papais ou outras que se arrastam nos dalais-lamas. Os teus livros sofrem, mesmo com a admiração desprevenida e canibal do que aqui vai escrito, com um certo grau de chatice, acho que, por causa da mania da profundeza que incutes. Por vezes é mesmo aborrecido ler-te. Isto também se aplica a mim...acho. 

Os lugares ficam mais lindos, e bimbos, com palmeiras. 

 

  A CIGARRA VAI COMPRAR TAPETES AO HIPERMERCADO
 

 

Meu Deus, porque é que te abandonaste a ti próprio? Foi definitivo ou ainda podemos comprar em saldos umas senhas da tua graça? O abandono também pode ser de Vanguarda? Quando uma namorada te abandona é como se Deus te abandonasse? Ou o abandono é a condição exacta de andarmos por aí? Queremos recuar à casa, mãezinha, ternura, maminha? É neste momento em que Joshua canta o salmo preparando-se para a morte que um lapso se infiltra no divino - o vazio, o abissal abandono também chamado ângustia (ó Kierkegard!). 

Interessado em relaborar, em voltar aos clássicos e aos malditos, a traduzi-los nas novas condições de abandono. E depois fico ralado. Remake it new! Remake it new! Remake it new! 

Andamos a soltar ecos deformados de citações estafadas. O que não nos prestigia. Mas alivia. A nossa inocência está muito conspurcada, falsamente infantilizada. 

Tiraram os tapetes às redes criptográficas. Soltaram as marginálias para dentro das páginas por escrever. 

Os dentistas arrancam-nos a alma cariada. Vive-se como bois, com o champanhe e uma diagnosticada felicidade. Ou uma atrofiante fidelidade que facilita os fandangos internos. Desta ratoeira a estafada crónica ainda não se deu ao trabalho de escrever.

Unificam-se substratos. Narra-se uma boa história: a cigarra e a formiga. Saúda-se a técnica. Diz-se o que se diz não é tudo. Incorre-se em demasiadas falências. O artifício não é apenas correlativo. O intelecto não é per se produtivo. As coisas são chatas até à monotonia? Não me parece!

 

  O PARENTESCO DOS PARÊNTESES
 

 

(O amado é um cão fluente. Um cão que corre quer dentro quer fora das paisagens. Um cão que recolhe o orvalho em que tudo amanhece. Não devemos temer a confusão que bule no lixo. Gabriela, deixas-me aqui atarantado?) 

(Vontade infantil de dar dentadas no tipo da repartição. É infantil, mas justo! Não se trata de uma revolta brejeira, mas de um gesto pouco irreflectido e afectivo, esquerdista, em todos os sentidos , que se dane Lenine!): 

(Sabia perfeitamente que as paisagens não são estados mentais, mas a rejeição de inerências psicológicas. As paisagens aproximam-se bem carnívoras (Psique a querer foder Eros). Gabriela não tinha virtudes jacobinas para derrotar paisagens com seus furores angélicos. Elas ainda estão mais perto: estamos agora cara a cara, bochecha a bochecha, com uma tinta rosácea comprimindo-se uma contra a outra. Os deuses ctónicos da paisagem passam eróticamente para esta nossa vida. Galopamos imobiliáriamente, mas desmobilados, embora mobilizados. É, na permanência, uma revolução à revelia): 

(Desembarque dos selvagens para regular a paciência com a crueldade: uma deliberada gravidez reprimia o momento (os cavalinhos a saltar, as meninas a emprenhar; o cheiro torrado a tortilhas; as medalhas penduradas nas braguilhas, a acumulação pontuada de milhas):

 

  EM BUSCA DO REBUSCADO
 

 

(A mulher esperava sexualmente detrás do tricot mental. Tricotava xailes para cantar o fado. Gabriela apropriava-se desses xailes, adereço persa, para nos envolver em imagens liquídas, de vaidade e de glória, de adereço da vacuídade, de aconchego e soledade): 

(Deviamos usar véus nas nossa percepção? Há uma vontade alarve de tornar o exterior menos pornográfico mas mais nu e algarvio (embora sem bigodes) e o interior mais pornográfico e menos nu. É a devoção que nos macula ou emascula): 

(A moderação exagerada é excessiva, logo não é moderação. A revolução não é uma norma. Os apocalipses são intermitências, ou acampamentos da glória de deus, ao longo de um passeio sem fim): 

(O forno divino coze o pão expropriável de cada dia que nos vai sendo retirado para sempre hoje): 

(O ladrar do cão reabria abismos. Os oráculos eram óbvios para suscitar qualquer interesse. Não os interpretar seria uma exigência revolucionária, , ignorá-los, no entanto, pode intensificar coisas agoirentas. A interpretação ou gera tormentas ou gera equívocos.  A não-interpretação deixa em mãos alheias o que corre para tragédia. Todas as coisas que se tornarem claras deverão ser batidas em castelos. Quem tem farelos?): 

(É o corpo que fabrica as intrigas que nos intrigam. As malfadadas dúvidas fazem parte dessa instigação anfíbia da carne. A santa inquisição foi fiel às atribulações de Jesus através da tortura? Ou está tudo condenado aos mais delirantes desvios interpretativos): 

(Os mistérios põem anúncios nos jornais. Contam sobretudo com a má publicidade. Procuramos não ser procurados?):

 

  HAIKAIS E FETICHISMO
 

 

Viajar no intimo sul como desvio do longiquo norte. 

(O sapo ri

descontente do charco.

Bebeu vodka?): 

(Ernesto e Gabriela sobem o monte Fuji. Não vem nas biografias nem nas teses de doutoramento, porque para isso, quer o Ernesto, quer a Gabriela, são muito úteis, porque os deve haver por aí muito doutorados em Ernestos e Gabrielas): 

(Estamos a ser bombardeados por bombas iconoclastas (mas haverá bombas que não sejam iconoclastas?). Andam a pilhar as miseráveis imagens que ainda sobram ao subconsciente. Há uma guerrilha que teima em lutar por ideais icónicos. Estamos fartos do hiperrealismo patego): 

(Não tenho piedade para o tal fetichismo chinês com que os nossos anarcas jogam xadrez): 

(Gabriela procurou, e tem, os seus devotos, muito em volta da prunus triloba, como crianças de bibe, mas a inocência a isso não me o permite. Não vou em devoções. Fetichismo de àrvore santa? Há algo de doentio nas relíquias...) 

(A  arte de manipular torna o poder mais artístico, mas ao mesmo tempo ainda mais anormal. A retórica da aniquilação não garante descargas poéticas): 

(Pois se desmoronam as tiranias, ou se cortam às fatias. Pela tranquila intranquilidade? Ontem à tarde?): 

(Não deixando a não-acção não-agir.

Pactuar com as engenhosas metamorfoses): 

(É a instabilidade (golpista!) que leva ao extase?): 

(Há uma maneira simples de explicar o vazio, é o "delete", o "esvaziar o lixo", o computador que teve se escangalhou com informação irrecuperável): 

(Ha! Ha! Unhasinhas partidas da Bela Sofisticada. Risota excitante e sádica do gorila das obras!):

 

  ELÉTRICOS, ANJOS, HUMILHAÇÃO
 

 

O elétrico gosta de passear junto a basílicas. Ernesto, insiste e insiste, adora atravessar as ruas "eroticamente". Um advérbio de modo que não nos deslarga.  

Os romances procuram-nos e escavam até ao fundo até encontrarem a criatura polimórfica e perversa, um monstrozinho que nos devolve a divina espontaneidade, mas que depois mija todo contente nos afectos que o texto ressuscita.  

Os ricos são demasiado persistentes na maneira de nos voltarem enganar. Os pobres são demasiado vulneráveis aos enganos. 

O romance, assim de mansinho, humilha agradavelmente quem o lê. 

Os nós tóxicos da ficção deixam-nos pegajosos. As sequelas angélicas também. 

 

  AFORISMOS POR AFERIÇÃO OU AFEIÇÃO?
 

 

Luxúria muito marmoreada. É um programa de eleição sepulcral do "modernismo":  monumentalizar o vortex do Eros, ou reconduzi-lo ao estado de evidente latência paleolítica: a gruta. A gruta polida, filtrada pela mania da ordem neolítica, pelo lado "Dona de Casa Desesperada". O Museu começa na gruta como alucinação colectiva, na semi-obscuridade hipnótica. 

"Um rosa apalpada pela loucura tigrada." Era esta imensa vulnerabilidade sexual, de uma delicadeza que não cessa de adolescer, que Gabriela considerava essencial, por mais exebicionista que fosse. Para a Dama o escândalo era inexistente, porque todos os animais a procuram para a amarem. Porque Gabriela significa a força dos deuses, potenciando o que quer vibrar mais no mundo, metamorfoseando, mercúrio com nome de mulher, riso que desponta na vulva, baubó, sabedoria que vem da matéria. Gabriela resulta da transsexualidade de Gabriel, é a palavra divina que se faz amante dos homens, escritura, palavra recitável. Arcanjo transmudado em Arcanja. 

Ernesto sabe que o riso abre a mente, e o que o vazio vibra mais na gargalhada honesta: 

"Que a diferença entre prática e teoria, criação e crítica, emergência do novo e identificação com as origens, abstracção e figuração, arte e anti-arte, etc., etc.... são apenas jogos elementares de linguagem, é tão conhecido e evidente como a função do acaso na guerra dos mundos, na teologia negativa. Só algumas coisas mereceriam maior referência e análise, mas fica para outra oportunidade: os binómios explosão/implosão, “regressão de enraízamento” ou verna-cular/cosmopolitanismo; morte do Pai/morte do nome do Pai; a emergência do terrorismo numa sociedade altamente tecnológica, a menipeia, a paradoxologia, a sedução, a agonística, a dádiva e o potlach."

O que é o mesmo que dizer que no corpo em festa toda a teoria é prática e toda a prática teórica, e assim sucessivamente. Eu não consigo desligar-me da fecundidade da teoria, nem me consigo desfazer, num estalar de dedos, dos benefícios e malefícios, quer da nossa tradição dita metafísica, quer de outras, como a hebraica, a islâmica, a indiana, a tibetana, a chinesa e a japonesa, sem excluír as que omiti. Há um excesso de impensado nas tentativas delirantes de sobreimprimir, mas é o diálogo como prática artística que não cessa, diálogos de mortos-renascentes entre culturas que nunca deixam de ser diferentes, mas que também nunca abandonam vivências muito semelhantes. 

Nada antece a significação, mesmo a mais leve e idiota onomatopeia, ou a hipotética indistinção. Nada antecede o ritmo, nem o mais terno vazio. Entre o ritmo e o vazio não há nada. O que é o mesmo que dizer, que entre o ritmo e o ritmo, só há ritmo. 

 

  O CASAMENTO É UM ORNAMENTO?
 

 

O casamento é prodigioso mas engorda. As esposas já não passam a ferro, mas os maridos continuam a enfiar charutos na boca em vez de chuparem o sexo ao patrão ou ao primeiro-ministro. Os poderosos consideram o broche um acto de devoção e humildade. Nada disso é obsceno. É tão claro como ser funcionário público. 

Gabriela vê a pobreza como uma vantagem, mas sabe de sobra, como o Pessoa o disse por antifrase, que tem uma obra. Ter uma obra, mesmo que portátil, difusa, espalhada na vida dos leitores, é uma prospera fortuna. 

As preocupações alheias não nos preocupam mas enchem-nos o olho, como curiosidade romanesca. 

Os enchidos rimam com o grande capital e imagino enormes depósitos bancários deles. 

Império de ornamentos? Só em versão minimalista. 

 

  FAISÕES PARA DOM SÃO SEBASTIÃO
 

 

Gabriela com os seus olhos muito comedores repara que há nevões escarlates nas jaulas e que os leões devoram (involuntariamente) o amante do domesticador. Depois é Gabriela que se abocanha ao domesticador. Gabriela desdomestica. Devolve a graça da animalidade aos homens através de textos tentativas. 

Cuidado com os icebergs enlatados! Cochicha o Almada. 

Reduz dez mil anos a uma rápida respiração suspensa - rosnou o grande gurú de Herbais com a faca na mão antes de levar o queijo à boca. 

Os impérios são táxis de luxo  que não consegues apanhar às cinco da manhã - corrigiu Ernesto com umas olheiras grandiloquentes.  

D.Sebastião anuiu com a sua folhagem brejeira. E um faisão lhe poisou no ramo.

 

 

PEDRO PROENÇA (Portugal).

Pedro Proença nasceu em Lubango, Angola em 1962 e depressa se converteu numa espécia (felizarda!) de lisboeta. Na adolescência fartou-se de desenhar e até publicou algumas coisinhas. Tornou-se no ínicio dos anos 80 um activista nas artes, formando com amigos seus o Movimento Homeostético, onde produziu muitos desenhos, pinturas, manifestos, filmes, poesia e pseudo-teorias. Expôs um pouco por todo o mundo.  Tornou-se, solicitado por editores e publicações, um ilustrador prolífico. Publicou livros de ensaio, poesia, narrativas e devaneios tipográficos. Fez numerosas experiências músicais e tipográficas. Além disso é pai de um filho e de uma filha e julga-se um "yogui".