REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

 

NICOLAU SAIÃO


GUSTAVE MOREAU

– A Casa Arrasada

 

                                                                  

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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1. Os grandes transparentes

 

1.        Dizia Goethe, numa tirada digna de Shakespeare, que “cada ser tem a sua espécie própria de morte”, querendo com isto obviamente significar que cada um tem a espécie de morte que lhe é própria num fluir e refluir da sua existência específica e dos acontecimentos que pela sua estrutura se foram forjando pelo tempo fora, pelas imanências com que se coroaram ou foram coroados por aquilo que os mais atentos, ou os mais votados a uma dada espécie de mística (metafísica?), usam apelidar de destino.

  Mas será assim? Ou sempre assim?

  Podemos conjecturá-lo. Ou, se desta forma o digo, submeter as conjecturas à pedra de toque dos acasos (?) da História. 

  Verhaeren, o poeta de uma soma de certas modernidades entre as quais ressaltava a força dos mecanismos que começavam a ocupar, pouco a pouco de forma quase avassaladora, o quotidiano das sociedades, foi destroçado por uma locomotiva cega numa das estações de caminho-de-ferro que ele mesmo celebrara em versos admiráveis. Rilke, que em poemas sem jaça cantara os frutos e as flores, morreu de uma infecção causada pela picada dum espinho de rosa. Cyrano, laborator per ignem e pesquisador de mundos estelares, outer space, foi - ao regressar a penates numa dada noite de convívio com joviais companheiros - atingido por uma pedra voadora (talvez um fragmento de aerólito, cf. Gilbert Proteau) em cheio na cabeça repleta de sonhos e de conhecimento da matéria. Apollinaire, por seu turno, festejara a guerra como a mais salubre forma de renovação – e um estilhaço de granada fez-lhe passar os últimos dias de crâneo entrapado, muito semelhante às caricaturas que ele encenara nas suas peças onde poesia e humor convergiam. Saint-Pol Roux, por sua vez…Mas suspendamo-nos, por ora, de epigrafar mais retratos nestas coincidências da vida. Nem será preciso trazer à colação o caso, a muitos títulos suscitador, que interligou Kennedy e Lincoln - a incrível junção de factos que ficaram, na História, a ligar os dois políticos assassinados mediante aquilo que, hoje por hoje, sabemos terem sido indubitáveis e bem reais (pese aos actos de contra-informação que os peritos analisaram em liberdade conquistada recentemente) conspirações que mudaram o curso do mundo.

    (Aos interessados, por terem bem plantada a cepa de um espírito indagador ou por gostarem de penetrar com desenvoltura nos enigmas da contemporaneidade, sugerimos a leitura do livro único de Thomas Buchanan e as considerações que sobre as espantosas coincidências que aflorámos teceram, entre outros, Joseph Tyle e R.Basso Lafuente).

   A luz do primeiro dia…o cerrar de portadas do último…Coisas dramáticas, poderosas, que de permeio têm nos melhores casos muitos dias de misteriosa cadencia e de pujante interrogação, de verdades insofismáveis que por vezes se transformam em esboços de maravilhados ofícios e artes. Frente ao império de uma razão ardente, como Nora Mitrani escreveu, só nos cabe olharmos o universo com a humildade de quem sabe, como Jean Rostand nos fez conferir, que “se estamos vivos é por acaso”, entendendo estas palavras e este conceito, acaso, como a soma do esforço genético, natural e não condicionável por forças exteriores, exercida pelos elementos vitais na sua navegação que origina a fecundação que forja um novo ser sexuado.

   É, evidentemente, obra do acaso ter Gustave Moreau nascido no mesmo ano e à mesma hora, como os manuais nos esclarecem, que o criador avant la lettre da mais simbólica figura de ficção dos tempos modernos – Pinóquio – em cuja abertura o simbolismo iria reinar e de que Moreau seria o mais excepcional exemplo: o futuro romancista Collodi, que no civil se chamara Carlo Lorenzini.

  Não me debruçarei sobre o significado interior de tais coincidências. Admitindo que algum tenham. Mas se levarmos a sério o poeta que com certo rigor escreveu um dia que “isto anda tudo ligado”, poderemos pelo menos – nós que somos dotados de algum sentido do maravilhoso e de não menor, mas também não maior, senso de humor – ver na obra de Gustave Moreau um estádio superior de humor negro. (Moreau, o artista e o pensador que fez desta corrente artística e conceptual, a pintura simbolista de que foi o maior expoente, um continente muito peculiar caracterizado pelo luxo e pela ironia trágica que se solta das personagens dos seus quadros.

   É Bernard Champigneulle quem nos diz a certo passo da obra onde se debruça com pertinência e competência sobre a arte dos fins do século dezanove que “GM fazia-se passar por iluminado com as suas esfinges, os maravilhosos demónios e mulheres fatais vestidas de ouro e pedrarias”. Como Robert Guillaume assinalou, uma figura hierática é sempre vagamente caricatural. Por maioria de razão se tal ou tais figuras são criadas num cenário social como o era a segunda metade do século XIX, onde numa sarabanda se mesclaram revolucionários-gastrónomos, conservadores que escaqueiravam a contemporaneidade e artistas-filósofos de génio vivendo ora em pardieiros ora em palácios, num revolutear constante que ia do sublime ao terra-a-terra e vice-versa quando menos se esperava e que, afinal, fazia parte dessa nova exteriorização, desse novo tipo de relações que jamais iriam acontecer com tal força motora.

   Como o mesmo Champigneulle sublinhava noutro passo, “É particularmente interessante (…) verificar a atracção dos artistas para os trabalhos decorativos. Não afeiçoou Gauguin bilhas de cerâmica, centros de mesa, e não esculpiu móveis? Dedicando-se aos objectos de uso corrente, marcavam a evolução que podia conduzir os pintores, mesmo os de génio, para um trabalho artesanal destinado a embelezar o meio ambiente. Se os vasos de Gauguin não podem ser classificados entre as suas obras primas, indicam no entanto a reviravolta que se operou nos artistas atormentados pelo espírito de procura. Nunca um Messonier nem um Gérome sonhariam fabricar louças(…)”.

   Como se sabe, estes dois cavalheiros eram os epítomes dum pseudo “realismo” que os vultos da classe dominante tinham por representantes indiscutíveis da grande arte dos museus – e que hoje jazem nas caves desses mesmos museus entregues a um salutar sono reparador…

  Por detrás da arte simbolista mais significativa encontrava-se a figura gigantesca de William Blake, morto um ano depois do nascimento de Moreau, que viria a ser o seu mais seguro descendente, mas um herdeiro que nos deu o lado feérico, carregado de cores e de formas que por si só funcionavam como metáforas duma metafísica objectual assente na terra e em toda a terra onde as fábulas ganhavam corpo real. Pois a pintura de Gustave Moreau é um verdadeiro edifício, uma casa do tempo e do espaço onde moram as quimeras.

 

  2.  A casa do mundo
 

Ao tornar clara a questão da materialidade nos objectos e nos edifícios, pode afirmar-se que a escala biológica-sensitiva é a base da desarticulação cromática. As imensas e por vezes súbitas experiencias quotidianas no domínio do reconhecível encerram a sensibilidade em múltiplos encadeamentos espaciais. O ar brota do guache e do cimento, do óleo e dos marfins, do granito e da cera, do mármore e dos ferros forjados, o turbilhão subliminar irrompe dos planos discretamente relacionados com as sedas, os veludos, a carne plasmada tanto por fora como na substancia expandida dos pulmões e dos corpos nus ou cobertos que os contêm, das paredes, dos ossos e dos pontilhados. A física moderna, que Moreau nem sequer sonhou viesse a existir, deu suporte aos quadros em que ele sugeriu a possibilidade de que as intuições plásticas e visuais afinal pudessem cobrar realidade.

   Como este pintor muito bem intuiu, os edifícios, as casas, não são “máquinas de habitar” como Le Corbusier procurou estabelecer mas verdadeiros palácios de afectos, como mais tarde a melhor arquitectura moderna tornou claro e, logo depois, efectivo. Pois por mais que insistam os fazedores de caixotes (ainda que cobertos de veneras propiciadas por operadores ardilosos ou medianamente espertos) uma casa particular ou um edifício público – como por exemplo o oriente antigo percebeu e os ditos “primitivos” não solapados pela protérvia “cristã” ocidental puderam praticar (veja-se a Oceania e as Américas e ficaremos esclarecidos) o elemento arquitectónico, padronizado ou não, envelhecido ou não, pode e deve ser mais que uma “realidade” mas projectar-se nos mundos salubres do desejo e da poesia de viver – como entre outros, entre nós, Gaudi, Cheval e Nicolas Ledoux demonstraram.

    Em Moreau, como na melhor pintura se patenteia, há o luxo e a cor, a voluptuosidade e, duma maneira natural, a calma que deles se solta. A lantejoula das variações, a carne sagrada do claro-escuro, a própria imponência do mosaico e do vidro, a surpresa da linha desconhecida plasmadas na permanencia temporal-intemporal correspondem à doçura e ao vigor do problema formal expresso pelo sol e os oceanos nas suas diferentes horas.

   Para Gustave Moreau, que ilustra soberanamente através da sua obra ímpar a mais correcta noção do “esplendor visual”, o natural e o simbólico não são o caminho mais longo entre o impossível da morte e a presença abstracta da vida. Os interiores de alta magnificência deste sonhador bem acordado são irmãos gémeos dos exteriores torrencialmente criados por Vítor Hugo, que nos seus desenhos e tintagens, mais que nos seus romances, dá a lume o barroco e o surreal que nos envolvem.

    Como um animal marinho, como um animal nocturno, tudo se expande e retorce nos óleos e nas telas – as figuras de deuses ausentes, de heróis e de beldades sagradas e aparentemente inabordáveis. Tudo, embora por razões muito diferentes do habitual, é similar ao incógnito seu contrário: onde acaba o deus e as deusas e começa o Homem? Mas nada se reduz, nada se banaliza ou simplifica, nada se generaliza como nas telas dos “pompiers”. Podemos afirmar com certa segurança que se Moreau tivesse sido um contemporâneo de Picabia igualmente teria afirmado que o cubismo não seria mais que “uma catedral de excrementos” não fora o estremeção que lhe comunicaram Picasso e Braque nos momentos em que se deixaram atravessar pelos fulgores do irracional.

   Um quadro, na verdade, para estes pesquisadores de infinito – para todos os pesquisadores de infinito – é sempre a permuta entre o lento arder dos frutos da terra e a existência transmutada do sonho, um fragmento interminável para além do lógico e do ilógico que cobra existência noutro território. É lícito pois dizer-se, porque corresponde a uma realidade matérica, que Moreau foi o criador de uma semelhança insistente e pura de uma profundidade subtilmente galáctica.

    Em 1978 foi-me dado visitar o Museu Gustave Moreau, sito no nº 4 da rua Rochefoucauld em Paris. Demorei-me lá pelo melhor de duas horas. Após a visita a originalidade central da grande cidade, que não admiro mas sim amo, transformara-se numa espécie de logradouro palpitante (façam a experiencia e verão que não exagero) resgatado a cada momento pela passagem repentina de joviais figuras pop: Semíramis vestida com um “tailleur” de Esterel passeando pelo Boulevard des Capucines, Diómedes e os seus cavalos no picadeiro perto das Tulherias, Édipo e a esfinge deambulando entre os túmulos famosos do Père Lachaise, Ghea Artemisa fazendo, em trajes de veraneio, a continência turística à estátua do condestável Duguesclin. Tudo ganhara um aspecto compósito, surpreendente, curioso, num flagrante contraste com a Cidade quotidiana.

  3. A casa reconstruída
 

    Moreau, o mestre amado de outros pintores de tradição aguarelista e luminosa (Matisse, Rouault, Desvallières). Moreau, tradicionalista e anti-tradicionalista a um tempo, viajando para sempre na direcção oposta à Capela Sistina, nos seus fastos peculiares, embora fosse um confrade de Miguel Angelo. Moreau, competente professor de pés-na-lua conforme era “vox populi” entre os amanuenses, da Escola de Belas Artes da velha Lutécia do século que o gerou. Moreau, “solitário isolando-se em sua casa para evocar paisagens e cenários da Grécia e do antigo Oriente”. Moreau, a mão antepassada de De Chirico e inteiramente primo-irmão suma cum laude do singular italiano cunhado entre comas de Max Ernst.

     A paleta de Gustave Moreau é de ardósia e da espuma das praias das ilhas sem crónica a que Rimbaud aludia. Os altares imaginários que ergueu a golpes de pincel e de espátula fazem sair clarões dos negativos fotográficos dum mobiliário simbolizado, transfigurando tudo velozmente. Uma máquina de lavar, se Moreau a houvesse esboçado, seria provavelmente tão bela e misteriosa como a Igreja de Santa Genoveva com cinquenta e dois centímetros de altura.

    As casas e os seres e as paisagens são temas que se entrelaçam interminavelmente – principalmente por parte das casas, esses continentes enigmáticos. Isto o sabiam também Ann Radcliffe, Maturin, Washinton Irving. E, mais modernamente, Bram Stoker, Leonor Fini, Buzzati, Pierre Roy ou Bradbury.

   Outro exemplo de implícita referencia ao meio ambiente ocorre nas simetrias bilaterais trabalhadas com esmero nas obras de Bulgakov ou Thomas Mann, nas quais os edifícios, as moradias habitadas pelas suas criaturas e suas reminiscencias possuem uma psicologia que se comunica ao enredo, tal como sucede com os palácios encenados do vale do Loire, com dois círculos de cada lado e extremidades arredondadas em cone, verdadeiros anéis antropométricos cuja nostalgia foi convertida em História.

   Muito coerentemente, muito austeramente na medida em que isso se surrealizou, Moreau legou ao morrer todos os seus bens ao colorido povo francês e à nação. Bem como a casa onde residia com o seu séquito imaginário plasmado em pinturas, esboços, cartões e tintas-chinas. Ainda dura, ainda lá está - é o seu museu.

    Durante a visita a que me aventurei apareciam-me por vezes, no hemisfério esquerdo do cérebro, imagens de castelos enormes como os que ilustram o Livro de Horas do duque de Berry. Uma luminosidade de vitral perseguia-me e assombrava tudo. Pássaros canoros entoavam, dentro de garrafas de conhaque Napoleão, o “Nouveau Nights” de Olafur Arnalds quase em ritmo de rock, pois a grande arte ultrapassa os séculos.

   A rua Rochefoucauld, por esta ou por aquela razão, a certos minutos do dia fica mergulhada numa penumbra maravilhosa e um pouco inquietante. Com verdade ou sem verdade conta-se que um “maire” de Paris perdeu um dia nessa artéria os seus óculos de aros de ouro e só foi encontrá-los dois meses mais tarde, quando de férias na sua vivenda de Nice, dentro dum prato de carneiro guisado à velha maneira grega.

   As casas de todos os lugares assombrados, ainda que soturnamente erguidas nos seus tempos – e os museus parece gozarem desse privilégio pelos fantasmas cordiais ou indiscretos que os habitam – vivem para sempre.

   Na pintura nunca há chuva bastante para lavar uma só nódoa de sangue pictural que se soltou do peito dos artistas se, mesmo serenamente, tiveram de se confrontar com a incompreensão ou a toleima de filhos-de-algo cheios de certezas incertas. No seu caso pessoal, não foi Moreau um despossuído e teve por seu percurso sorte diferente da doutro génio da cor, Claude Monet.

   Nem sempre, felizmente, o forjar da pintura termina em drama ou na miséria em vida dos que a praticam.

  No século de Moreau não se construíam ainda edifícios de renda económica como depois se veio a fazer, o povinho vivia ainda, na sua maioria, em moradias pouco salubres. Duma forma simbólica, o pintor oferecia-lhe lugares onde fosse possível mudar a vida e transformar a viagem vital.

   E as cidades, mesmo as inventadas nos quadros mais surpreendentes, são como se entende o reflexo do nosso coração interior.

   ns . Casa do Atalaião, pelo São João de 2011 

 

  GUSTAVE MOREAU
 

 

Falo-te devagar

e pergunto pelos dias endurecidos

pelos meus silêncios, pela antiga luz

e por tudo o que morre numa cave inundada.

 

Falo-te

e vejo a tua infância igual à minha

e tão diferente

e vejo a flor do mármore e os cenários

- o teu braço violento construindo

a silhueta das ilhas e o inverno dos mares.

 

Falo-te

e compreendo de repente

que aí, nessa manhã de temporal

não há cidades

a não ser as que existem para além do esqueleto

nem rios, colinas ou horizontes

junto à carne tumultuosa do amor

nem praças muito ao longe

excepto nos olhos de Galateia

ao sul de todos os sonhos doidos

numa alcova   num fosso   num supermercado.

 

Falo-te

alto demais

e a luz muito breve é um furo no fígado

um estouro no centro do vestido branco

e a escuridão é a tua candura

A palidez da tua pele sobre a parede

um gesto sem limites

o peso da atmosfera insuportável

 

Falo-te ainda   e vejo

o teu coração

como uma rosa esmagada no deserto

pela passagem inesperada de Semele

como alguém dormindo numa rua ociosa

sobre o minuto negro

E vejo na sala humedecida e maldita

um animal doente

olhando o teu rosto desmesurado de estátua

perdido no mundo extenso das cores

em pedaços

 

E vejo, ainda vejo

muitos dedos marcados nas rugas do granito

trémulos, queimados

que são o mapa completo

 

do Universo que herdámos. 

 

                               Nicolau Saião, in “Os olhares perdidos”     

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com