Ali, naquele pântano que
anteriormente fora um lago alimentado por um ribeiro, hoje desviado, meu
pai conhecera a minha mãe.
As Quintas, na sua enorme
vastidão, não estavam completamente muradas, e a enteada do
Brasileiro, na hora da sesta, conseguia evadir-se do seu
lar/cativeiro. Os passeios solitários com o livro de ocasião,
constituíam a sua única liberdade. Através das conversas enviesadas de
Ricardina, conseguira saber isto de minha mãe.
Foi assim que meu pai, de
quem herdei apenas a espingarda, nem tão pouco a pontaria, veio a
conhecer aquela com quem casaria. Nunca poderei saber o que aconteceu
.Poucos anos depois de eu nascer aconteceu o desastre. Tudo me
esconderam e tudo me disseram, para que eu desistisse de perguntar.
Fiquei sempre com a convicção que minha mãe não caíra ao lago e se
suicidara.
Quando uma mulher na força
da vida procura a morte tendo um filho pequeno, tem uma forte
razão que lhe abalou o equilíbrio.
Tudo na casa, sempre que a
ela regressava, me falava dela apesar do seu nome nunca ser pronunciado.
O quarto de meu pai era um quarto de homem só. Revistas de agricultura,
de xadrez, envelopes com facturas, os jornais da região. Nenhum toque de
feminilidade. Afinal, ela partira há já tantos anos. Porque seria que o
voltar à Quinta, me trazia recordações, intuições tão lúgubres?
Nunca me tinham deixado em
pequeno aproximar-me do lago, hoje pântano.
Agora que interrogo a vida
com a angústia dum tempo não explicado, procuro a solidão no sítio
proibido. E parecem-me os passos dirigidos, os sentidos predispostos a
chamamentos primários. Até recuso a lógica e os ensinamentos analíticos
que fizeram de mim um homem e não um adolescente adiado. A brisa corre
insistentemente numa direcção, também ela obedece ao destino das
conjugações dos astros, também ela cumpre o fado que eu cumpro nos veios
do sangue.
A
minha natureza, que facilmente reagia ao esplendor da idade e da
Primavera, buscava sem que eu a dominasse, os fantasmas da infância.
Lembrava-me dos medos buscando protecção debaixo dos cobertores, num
escuro morno, e do refúgio debaixo da mesa da casa de jantar, onde a
comprida toalha de croché velava a realidade.
Se o
meu cavalo não tivesse sido abatido por ter quebrado uma perna, estaria
cavalgando por outros caminhos que não estes onde tudo me recorda alguém
que pouco conheci. Nos dias que cavalgava havia comigo uma promessa de
renovação e de reposição das coisas perdidas. Deixava de me punir, por
não ter conseguido acorrentar à vida com o meu sorriso infantil, aquela
que se tornou uma lenda. Digo lenda, porque nos ais que Ricardina
deixava escapar quando a inquiria, em criança, havia sinais de
mistério. A Tia Joana, sempre me pareceu, a figura perversa do “Monte
dos Vendavais”.
Sentei-me no tronco decepado
pelo último temporal e segurando a carabina fincada no chão deixei
descair a cabeça. O tom rosado do céu vislumbrava-se através das
pálpebras serradas, e o som, ou a voz, ou o eco da minha mágoa antiga,
elevou-se. Mas desta vez era como um canto de embalar que convidava a um
repouso. Fiquei, não sei quanto tempo, alheado, mas tranquilo.
Lembrei-me que hoje o jantar seria servido mais cedo.
Quando entrei ouvi logo a
voz da tia Joana, “ Duarte, espero que não se tenha esquecido,
avisei-o que comíamos mais cedo, também o que digo nunca tem
importância…” E, sem que acusasse o tê-la ouvido, pousei com força a
carabina no suporte da entrada e fui arranjar-me. E aquelas palavras que
apenas duraram segundos, somavam-se a tantas outras que me habituara a
alienar, porque sempre vinham acorrentadas a alguém que sempre me
incomodava. Os sentimentos são ás vezes pouco mais duráveis que o eco
das palavras. Duram o tempo que vai do entusiasmo ao tédio.
A casa, o jardim, o curral,
a solitária cavalariça, e a organização que a geria não me interessavam,
contudo estava a terminar o curso de agrónomo para tomar o lugar do meu
pai. A vida toma o seu feitio quando ainda não temos feitio.
O jantar agradava-me. A Ricardina, que se lembrava de todas as minhas
gracinhas de criança, procurava fazer os pratos que eu mais gostava. A
tia Joana bem se torcia na sua natureza mal amada.
Haveria algum mistério no seu passado que lhe transformara a índole e a
pusera do avesso? Sei lá! Os mistérios sempre geraram mistérios. Meu pai
pouco falava, ou atirava com enigmas que parecia ter aprendido nas
revistas de charadismo. O campo que antigamente me seduzira, porque me
proporcionava o prazer de andar a cavalo, estava a estender-me um tapete
de seduções malignas. Teria eu tido interferência na escolha da minha
vida até esta altura? Por os adultos dizerem que muito nos querem,
é que nos talham a vida que lhes parece bem …o facto é que, estava
convencido, ter sido a minha escolha …e pensei em Freud e na
decomposição dos fantasmas afectivos. Estaria a precisar de tratamento?
Salvo o jantar que estava
uma beleza, e o amor que Ricardina sempre punha no que fazia, eu sabia
que o apelo do pântano e as vozes ou sons que ouvia, me estavam a
perturbar seriamente. Jurei não mais me dirigir para essa banda dolorosa
das minhas obsessões. Com este propósito adormeci cedo.
O sol
entrava pela janela fortíssimo. Esquecera-me de correr o cortinado.
Levantei-me num pulo, tomei o duche e resolvi levar a espingarda e o
Valete. O cão corria à minha frente de rabo no ar saudando uma liberdade
maior. As borboletas, se antes as houvera por ali , não reparara, agora
volteavam rente ao chão. Rodeei o muro da Quinta do Brasileiro,
e fiz pala com a mão direita para olhar contra o sol. Pareceu-me ver
movimento ao longe. Esquecera os óculos escuros. Acelerei o passo e
encoberto por um arbusto, tornei a parar e a olhar para o sítio onde
pressentira qualquer presença. Ouvia as vozes das figuras que vinham na
minha direcção.
Eram três raparigas. Deixei-as
aproximar, e quando já estavam perto, saí de trás do esconderijo inútil,
acenei com o lenço que trazia ao pescoço e perguntei? “ Oh! Oh! São
daqui?
Juntaram-se num grupinho. Combinavam
certamente se deviam responder-me ou ignorar-me. Depois, uma delas,
tirou o chapéu e saudou-me, enquanto as outras fugiam pela encosta donde
tinham surgido. Como ainda não estavam ao meu alcance, dei uma corrida
seguido do Valete que se alegrava com qualquer desafio. Ouvi a mais
alta, chamar pelas que corriam monte acima. As três raparigas ficaram
paradas, mas distanciadas entre si. A mais alta, que entretanto tinha
tirado o chapéu, talvez a mais segura de si, cujo cabelo vermelho lhe
caía pelas costas em desalinho, disse então:
- Não vale a pena esfalfar-se, temos
pouco que ver …
A mais baixa, sentou-se no cascalho
ressequido de Agosto e, riscando o chão com um graveto, sem me olhar,
foi dizendo como se falasse consigo própria:
- A Sara e a sua mania de mandar …
- Sou daqui, o meu pai é o dono da Quinta
do Rei – informei eu, com o ar ridículo de alguém que dá uma resposta a
quem nada lhe pergunta.
- E, é ele ou você, o Rei?
As outras duas desataram a rir e eu
fiquei com a resposta que merecia.
-
As apresentações não estão a correr bem – disse eu, um pouco agastado e
resolvido a dar meia volta e descer a encosta que mal começara a subir.
A rapariga que ainda não falara quebrou o silencio.
- Parece que ninguém fez apresentações,
eu sou Rita, a minha prima que está ali sentada olhando para o chão é a
Nela e, a minha irmã Sara, é a nossa manda-chuva, como já viu …
- Estou em casa de meu Pai … como só
venho aqui nas férias, já não sei como são os hábitos do campo. Julguei
que devia cumprimentá-las. Desculpem se lhes estraguei o passeio…
- Isto é campo ou um salão
renascentista? – e dizendo isto Sara tornou a pôr o chapéu de palha na
cabeça, com as fitas para a frente.
- As fitas azuis, memo em cima dos
olhos, condizem na cor, mas devem tapar-lhe a vista…
Puseram-se a rir as três como se eu
tivesse acabado de contar uma anedota e Sara, logo que recuperou,
disse:
- O nosso pai e tio da Nela, está a
negociar a Quinta do Brasileiro, desta vez resolvemos vir dar um
passeio. Põem-se numas conversas e nuns copos, que não há pachorra…
Aproximaram-se e eu, que sem um
propósito justificável estava especado, dei uns passos na direcção
delas. Juntaram-se, como se a união fizesse a força, para me enfrentar.
Acenaram com os chapéus de palha na mão e a ruiva veio ao meu encontro.
Era a minha vez: “São daqui?” perguntei já sabendo a resposta. A
alta aproximou-se mais, enquanto as outras fugiam como lebres. O cão
ladrou porque pertencia a este encontro.
Sara veio
ter comigo e, muito devagar, como estivesse a ser movimentada por um
controlador à distância, deslizava, parecia uma figura irreal. Depois
sentou-se num tronco meio sedimentado com o terreno e declarou:
- Elas comportam-se assim, só quando
estão comigo. Parecem umas meninas da primária de um colégio de freiras
…
- E agora pergunto eu … como é que a
Sara sabe como elas se portam quando não está presente?
- Quando se conhecem as pessoas
advinha-se o que se não vê …
- Bem gostava eu de ter essas certezas
…as pessoas são quase todas enigmas…
- Assim é que é excitante! Só o
conheci agora, e já estou a meter-me nos seus mistérios. Um caçador sem
caça! Um cavaleiro sem cavalo! Um escritor sem inspiração! – e riu-se.
Deveria ter imaginado que ela era
imaginativa, e esperava divertir-se um pouco com um desconhecido,
deveria ter levado a conversa para um terreno neutro, onde tudo que
dissesse fosse inconsequente, mas fiz precisamente o contrário sem uma
desculpa plausível. Mais tarde verificaria, que, mais uma vez, o destino
calcetava as estradas por onde eu devia seguir, mesmo quando julgava
fazer as opções. O livro que lera recentemente sobre os modelos
significativos da sincronicidade, e que nos aparecem num momento
específico ou numa nova ligação, veio-me perturbar ainda mais.
Sara era o correio de uma carta que
esperava há muito tempo. Seria?
- Já estiveram no pântano? –
perguntei-lhe, e sem que lhe desse tempo a responder continuei - acha
que vai gostar de viver aqui? O campo é só bom para os citadinos… - a
minha primeira pergunta assustara-me e, por isso, desatei a falar
parvamente. Quando me calei ela abriu uma fresta da sua vida.
- A minha irmã e eu somos agora a
preocupação máxima do nosso pai desde que a nossa mãe morreu. Percebemos
as razões dele querer largar a casa de Lisboa … sabe, é que a casa
conserva o seu perfume. Eu julgo que os cheiros sempre vão registar a
minha vida. E você? … deve achar isto ridículo?
- Não, não, percebo o que me está a
dizer …comigo tudo se regista por sons. - Que tipo de sons ?
- Musicais, ou mesmo ruídos
desconfortáveis. Ruídos e músicas que marcaram a minha infância que foi
dolorosa – depois, e sem razão lógica, comecei a contar o meu passado
e a descobrir os enigmas que me afligiam.
Duarte, muito baixo, quase sussurrando, continuou:
- Você perdeu a sua mãe há dois anos, e
eu perdi a minha quando tinha cinco anos. Afogou--se no lago quando era
profundo. Hoje é apenas um pântano com rãs.
Sara olhou-me rapidamente bem nos olhos,
e, de chapéu no colo, com o cabelo luzindo num cobreado fascinante,
ficou para me ouvir. Eu continuei:
- Meu pai nunca me falou disso. A tia
Joana, que vive desde essa altura aqui na Quinta, nunca me proporcionou
perguntas. É uma criatura amarga que finge que se sacrificou pelo meu
pai, servindo-lhe de governanta.
Nela e Rita, agora que as enquadrava
dentro duma história apenas esboçada, apareceram a correr pela encosta
abaixo, já eu estava no final do relato. Vinham ruborizadas e
perguntaram a Sara:
- Vens ou não vens?
Esta frase pôs fim a este primeiro
encontro que, para mim, fora tão importante. Depois de uma despedida
muito casual, vi-as subir e pareciam figuras românticas de um livro
inglês de contos. O campo, a luz, os chapéus de palha, enfim …
Nada mais foi combinado. Poderiam vir a
ser vizinhas ou não. Pensei que, apesar de lhe ter contado a parte da
minha vida que mais me perturbava, pouco tinha falado no presente. Como
numa sessão de psicanálise, estabelecera-se campo para a minha catarse.
Inexplicavelmente não fiquei envergonhado.
Quando voltei a Lisboa, os dias tornaram
a enrolar-se num horário de obrigações que me deixavam poucas horas para
o sono. Apesar de não estar de acordo com esta alienação forçada, tirei
disso um benefício: falta de tempo para congeminações. Com os trabalhos
de grupo, as partidas que o computador me ia pregando, os dias
escorriam.
Num Domingo que se tornou num vazio
repentino, peguei de novo no livro que me levantara o véu sobre as
coincidências, e li o parágrafo seguinte: “ O sabor especial da
sincronicidade vem do facto dela ser ao memo tempo um acontecimento
único e de uma Ordem Universal. Envolvida de um espaço/tempo, manifesta
uma natureza transcendental.” Mais adiante F. David Peat dizia: “Os
acontecimentos da nossa vida são um pouco como os blocos de mármore para
o escultor.”
Tudo isto vinha ao encontro da minha
realidade e tomava-me imediatamente como um discípulo que apenas andava
distraído. O espiritual entrava por uma janela diferente daquela em que
eu tinha sido criado. Para além de todas as religiões, crenças ou mitos
pagãos, enxergava um Plano Universal onde estava, como tudo e todos,
inserido. Com este pensamento apaziguador, mergulhei em vários livros
que me iniciavam num rumo que já não podia desviar-me. Sara fazia parte
deste rumo. Saberia ela isso?
No fim do trabalho de grupo fui de novo
à Quinta.
Ricardina, a quem nunca contei o
encontro com as meninas da propriedade vizinha, veio dar-me a novidade.
- A Quinta do Brasileiro foi
vendida. Vivem agora lá duas meninas muito engraçadas, o Duartinho tem
de as conhecer.
- Sorri, e dei-lhe umas pancadinhas nas
costas. Ela também fazia parte dos blocos de mármore que me pertenciam
para que eu edificasse.
Num
alvoroço sem medida, peguei no boné, só para ter uma coisa na mão, e lá
fui para o local onde as tinha encontrado. Nem arrumara o saco no meu
quarto. Ao sair a porta, reparei na postura de Ricardina na soleira da
porta, fingindo que não me seguia com o olhar, e fazendo festas no
Valete que se dispunha a seguir-me.
Seria
desolador contar que encontrei Sara com um rapaz que lhe prodigalizava
alguns afectos. O facto é que depois de uma desilusão sem fundamento,
comecei a conviver com as meninas da Quinta do Brasileiro, como
toda a gente as chamava.
Passado um ano, tinha-me apaixonado pela Rita. Menos vistosa que a irmã,
mais introvertida, tinha o condão de me resguardar de toda a melancolia.
Ao pé dela estava em paz, e esquecera completamente as vozes do pântano. |