REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

   

 

 

1. Nascido em Viseu, a 14 de Agosto de 1830, no mesmo dia em que, em França, estava em vigor a Carta Constitucional, sobre a qual assentaria o regime de Luís Filipe, “feito que contribuiria para o agravamento do isolamento diplomático de D. Miguel, no concerto das potências europeias e que, por conseguinte, criaria condições para um novo impulso na luta daqueles que se lhe opunham” (2). Nasceu, no atribulado rescaldo da morte do rei D. João VI, verificada em Março de 1826, assistiu na sua infância, e de antes ouvira contar, a interferência directa estrangeira nos assuntos internos de Portugal, a história descaracterizada do constitucionalismo monárquico mal resolvido até à década de 1840, o início da guerra civil que opusera Absolutistas e Liberais e a solução encontrada pelo ex-arsenalista Costa Cabral que viria a adoptar a “bandeira” da ordem e do desenvolvimento económico, não sem reimplantar um regime de ditadura, assente na repressão e na violência – no período em que se opuseram, violenta e demoradamente, o miguelismo no poder e o campo liberal unificado em torno de D. Pedro IV e de D. Maria II.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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João Silva de Sousa

 

António de Oliveira da

Silva Gaio  

 

         

Esquematicamente, ouvira falar, de amiúde, das invasões francesas: a 17 de Novembro de 1807, a primeira, comandada pelo general Jean-Andoche Junot; a segunda, a 10 de Março de 1809, liderada pelo marechal Nicolas Jean de Dieu Soult; a terceira, a 24 de Julho de 1810, chefiada pelo marechal André Masséna e a quarta, que apenas durou 20 dias, tomou lugar a 3 de Abril de 1812, comandada pelo Marechal Marmont; da partida da Família Real para o Brasil (1807); do desembarque das tropas inglesas em Portugal (1808); da insurreição no Porto e noutros lugares contra os invasores franceses e a ocupação da cidade (1808-1809); das batalhas de Roliça, Vimeiro e Buçaco (1808-1810); da das Linhas de Torres Vedras (1810-1812); da elevação do Brasil a Reino (1815); da revolução liberal no Porto (1820); da Martinhada (1820); da morte do rei e da abdicação do sucessor a favor de D. Maria II (1826); do regresso do infante D. Miguel e do início da sua regência, após jurar a Carta Constitucional (1827-1828); do golpe de estado absolutista e da dissolução das Cortes (1828): D. Miguel é rei absoluto e inicia-se um período de terror, com execuções de liberais; desembarque da expedição liberal no Mindelo e cerco do Porto (1832); desembarque de D. Pedro em Lisboa (1833) … Um nunca acabar de situações que alteraram as mentalidades da época e que se reflectiram nos trabalhos dos letrados e outros intelectuais. Presenciara a eterna luta entre ‘o Trono e o Altar’ (3) – como ele mesmo, por estas palavras o refere no seu livro, não sem desfiar razões de Victor Hugo, no seu extenso Les Misérables

          António da Silva Gaio passou a sua infância atribulada, devido às lutas acérrimas que envolveram todo o País, vividas que foram na Beira e, especialmente, em Viseu e em todo o seu distrito, como no-lo atesta, entre outros, Maximiano de Aragão (4).

           A acalmia, após a Revolução da Maria da Fonte (1.ª fase: Abril-Maio de 1846; 2.ª, Outubro de 1846- Junho de 1847) e o acidentado governo de D. Maria II [1826-1853], só chegou com D. Pedro V [1853-1861] e D. Luís [1861-1889], explicável no enquadramento geral da expansão económica e da prosperidade para as classes dirigentes. Regeneradores e Históricos ou Progressistas – como estes últimos vieram a chamar-se mais tarde – alternam no poder. Saldanha, como marquês e duque, presidente do Conselho de Ministros, é titular da pasta, como tal, de Maio a Novembro de 1835, de Outubro de 1846 a Abril do ano a seguir, de Maio de 1851 a Junho de 1856 e de Maio de 1870 a Agosto seguinte (5).

           Neste ambiente que convidava o proletariado literário ao partidarismo, Silva Gaio deambulou de cadeia em cadeia, tendo conhecido a liberdade apenas para vir a morrer, no Buçaco, a 8 de Agosto de 1870.

          Frequentou os estudos num Seminário em Viseu, formou-se em Medicina, em 1857, na Universidade de Coimbra, de que se tornaria professor, no ano seguinte (6). É Tomás António Ribeiro Ferreira [1831-1901], seu amigo de infância, estudante no liceu de Viseu, natural de Parada de Gonta, Tondela, quem nos refere acerca do seu conterrâneo: “amava a vida, era namoradeiro, eloquente, corajoso e temerário, ao ponto de se bater em duelo, em 1854, com Filipe do Quental, por um motivo fútil” (7). Pouco depois de se doutorar, casou com a prima Emília de Campos Paredes, a quem, aliás, dedicou Mário. Foram pais de Manuel da Silva Gaio [Coimbra, 6/V/1860-Coimbra, 11de Fevereiro de 1934), poeta, teorizador e ensaísta (8), neto de António Manuel Joaquim de Almeida da Silva Gaio, advogado visiense prestigiado que teve de fugir “aos esbirros miguelistas – cena que o autor de Mário inclui no seu livro.

          Em 1864, é-lhe entregue a regência da Cadeira de “Higiene Pública”, criada na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

          Procurando participar na vida política, lançava, em 1863, um efémero periódico, o Comércio de Coimbra, pelo que criou um centro em Viseu, um “grupo de pressão”, lugar em que tentou estabelecer as bases da sua candidatura a S. Bento. No entanto, não fora bem sucedido.

          Romancista – da 1.ª fase –, dramaturgo, contista e activista político foi representante da uma nova geração de escritores portugueses. A sua obra – quer Mário, ou Frei Caetano Brandão (1869) – é um mosaico de situações e personagens representativas da vida política dos Anos Vinte e de então em diante, em Portugal (9).

          Na década de 1850, via levada à cena, em Viseu, um drama de cinco actos, intitulado Luíza e, ao que se julga, com rasgado êxito. De seguida, já pelos finais da vida, terminou o seu D. Frei Caetano Brandão, (1869), também um drama que viria a ser representado no Teatro D. Maria II, em Lisboa (10). Frei Brandão, da Terceira Ordem Regular de S. Francisco, foi, em 1782, nomeado bispo do Pará pela rainha D. Maria I, fazendo a sua solene entrada na Catedral de santa Maria de Belém do Grão Pará, no dia 1 de Novembro, no ano seguinte. Em 28 de Junho de 1790, tomou posse como titular da Arquidiocese de Braga. 

          2. Silva Gaio romanceou a época das lutas liberais e o cerco do Porto, muito vivos ainda na lembrança dos seus contemporâneos, num livro que se tornou muito popular, Mário, em 2 vols., terminado em 1867. Tem todo o aparato de um drama também. Os diálogos leves ou pungentes são seguidos de lágrimas, prostrações e leves expressões de amor, comparadas com altivas ordens de comando, de condenação e brutalidade.

          No seu conjunto, os dois tomos de Mário descrevem todo um rol de tropelias, vinganças e traições por parte de alguns energúmenos apoiantes de D. Miguel contra liberais. Lêem-se no subtítulo, episódios das lutas civis portuguesas de 1820 a 1834, embora não tivesse vivido esses anos, mas, por um lado, ouvira contar os mais velhos e assistira às primeiras impiedosas consequências do mesmo.

          Diz o nosso autor: “De feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um governo intolerante, que tinha achado um chefe ostensivo no infante D. Miguel e um, real, na coorte que cercava a Senhora D. Carlota Joaquina”. A rainha representava deveras o cinzentismo conservador que há muito havia sido liberalizado e democratizado pelas monarquias do Norte da Europa, onde fome, desemprego, trabalho infantil, subordinação das mulheres e iletracia quase se haviam esfumado para dar lugar a novas sociedades assentes em pilares humanizados e onde os reis tinham pouco mais do que um papel de representação do Estado: o rei, a bandeira e o hino. Ao povo, entretanto, era dada a palavra. Por cá, “mantinham-se as vexações antigas e mandavam-se para a forca, para o exílio, ou para a cadeia, todos os que acatavam o juramento à Carta Constitucional, que o infante também jurara. Reinavam os capitães-mores, os dízimos e toda a espécie de alcavalas, os frades tribunos, o populacho com a sua espantosa ignorância, os fidalgos com a sua bazófia, o conde de Basto com a sua crueza, a corte com as touradas, os delatores com a sua infâmia e as milícias com a sua memoranda oficialidade” (11)

          Novela romântica, advém na sequência do Romantismo, aberto com Garrett. O autor nomeia como seus exemplos máximos na escrita histórica e no romance Alexandre Herculano – historiador e romancista – e Camilo Castelo Branco – romancista de costumes e passional – tendo ambos, na soma das suas vidas, assistido a todo aquele ambiente de revolução (1810-1890). 

          3. É do conhecimento geral que o Romantismo – literatura nova de carácter nacional e popular – teve o seu começo, pelo menos extrinsecamente, ligado às lutas civis entre miguelistas e liberais. Até 1837, a nova corrente que bebeu as tendências de Scoth e Byron quase só se manifestaram em tentativas isoladas, tendo aumentado o número dos seus adeptos tão-só no período mais agudo das lutas liberais. Entre as revistas e jornais que todos os admiradores das letras liam com entusiasmo, figura, embora já tardiamente, o Comércio de Coimbra, fundado por António da Silva Gaio (12). Entre os anos de 1865 e 1879, o romantismo introduzido por Almeida Garrett, Alexandre Herculano e António Feliciano de Castilho mudou as suas características preambulares e iniciáticas. A Questão Coimbrã e as Conferências do Casino puseram o terminus ao primeiro momento romântico com a introdução de uma estética realista. 

          4. No Mário – Episódios das Lutas Civis Portuguesas (1868), o autor apresenta-nos bem definidas as suas personagens miguelistas: 

          Jorge Pinto, um freire da Ordem de Malta, homem de 45 anos, estatura alta e vigorosa, rosto severo e frio, coroado por uma fronte inteligente e arrogante, é uma figura pouco menos que asquerosa e sem consciência, embora esperta e ladina, o que nos leva a presenciar um certo criticismo e satiríase. A fim de poder atingir os seus torpes objectivos, deita mão a tudo o que pode: rouba, incendeia, calunia e chantageia: nada abona em seu favor. Os métodos da sua tirania são descritos de tal forma que apenas podemos compará-los, mutatis mutandis, com os de algumas personagens de Máximo Gorki [1868-1936] ou com os polícias nazis de Virghil Gheorghiu [1916-1992]. Sejamos mais claros: Gorki representa a força natural e a beleza do espontâneo que tanto fascinavam na busca – por Silva Gaio – da ordem em que assenta a legitimidade; Gheorghiu, é o espelho do impressionante realismo com que apresenta as terríficas consequências da tragédia levada a termo pelas hordas nazis e a consequente subjectiva representação das estruturas construtivas. Diga-se que, neste sentido, o número de idealistas não teria fim. Jorge Pinto, comendador, personifica o Poder Absoluto, o arbítrio despótico e sem razão, o poder discricionário, com que actuavam os partidários de D. Miguel. Para ele, o povo era “uma classe de servos”. Assim, o “gentil cavaleiro de Malta” afigura-se-nos uma alma “fria e desdenhosa, quase indiferente ao perigo, a crueza implacável, que nem dobram lágrimas, nem receios”, conclui silva Gaio (13). Apaixona-se por Teresa, sobrinha do vigário.

          A par de Jorge Pinto, surgem, no decurso da obra, certos ministros e políticos sem carácter – como seria de esperar –, tal o 1.º Conde de Basto, José António de Oliveira Leite de Barros [1749-1833], com importante cargo outorgado, a 12 de Janeiro de 1829, por D. Miguel I, como ministro da Marinha, com os seus sessenta e oito anos de idade, “um velho decrépito, ignorante e cruel” (14). A par o Jordão, o brigadeiro Joaquim Teles Jordão [guarda, 1777 - Cacilhas, 1833], já (precocemente) velho e encolhido, que, depois de se mostrar um dos militares responsáveis pelo movimento liberal de 24 de Agosto de 1829, se revelara partidário do miguelismo exacerbado e, sobretudo, pela crueza com que exercia o cargo de governador do Forte de São Julião da Barra, onde estavam encarcerados muitos liberais.

          João de Melo, parente de Jorge Pinto, mas seu rival, familiar de Mário que vem de Espanha, com o pai, Fernão Guedes – e primo do primeiro –, visitá-lo à sucapa. Fernão de Melo é um jogador compulsivo arruinado. Pai de Mário, bom rapaz, valente, brioso, o seu orgulho e vaidade, que cai como morto aquando da perseguição por Jorge Pinto e é socorrido depois pelo Padre e por Teresa.

          Mário, jovem alto, de 23 anos, barba inteira castanho-escura, tez pálida, rosto expressivo, alumiado de brilhantes olhos, fronte larga e alta, feições bem caracterizadas e vivas, trocara cedo a ‘perfumada atmosfera da riqueza’ pela carreira militar, levada a sério por quem quer cumprir todos os seus deveres, como tenente da arma da cavalaria, cedo tendo-se indignado com o absolutismo da rainha-mãe e do filho D. Miguel (15). Teresa e Mário apaixonaram-se e no enlevo de ambos, Silva Gaio questiona-se – ‘que pena poderia descrevê-los? ‘

          Ainda as personagens liberais. O Padre Maurício, reitor de S. Romão (16), um homem de excelente simpatia, um velho alto de sessenta e quatro anos, de “rosto magro, e pálido, faria lembrar as figuras ascéticas dos painéis religiosos” (17). Parece irmão gémeo de tantos outros sacerdotes que nos surgem de bom carácter e excelente integridade que os romancistas do século XIX descobriram, como o Pároco da Aldeia (em Herculano), o Senhor Reitor (de Júlio Dinis), o Padre João (de Camilo) e o Padre Vigário (de Rebelo da Silva). Maurício encarnava a caridade evangélica, a religião e todos os actos de compaixão pregados por Jesus Cristo.

          Leonor, irmã do padre, dois anos mais velha do que ele, queria ver nos homens o seu irmão, com todas as suas qualidades piedosas e de boa-vontade. Os homens e os padres, pois distinguia sempre uns dos outros.

          Paulo – pai de Teresa –, sobrinho do vigário, alto, com aspecto militar, bigode farto, feições magras e pálidas, olhos grandes e negros e de uma vivacidade desmentida “pelo andar tardo e mal seguro” (18).

         Ainda Teresa, filha de Paulo, sobrinha-neta do padre Maurício e sobrinha do Abade Fernando Garcia, um dos assassinos dos lentes em Condeixa, Mário, perseguido, caluniado, condenado ao exílio em África e combatente no cerco do Porto… areja o texto romântico com a sua mocidade, amor e heroísmo, rapariga de quinze anos, de graciosa figura, alta e elegante – uma verdadeira figura de Ticiano (19). Será ela o símbolo da abnegação e da grandeza, na humildade. Ama Mário e repele Jorge Pinto.

          Fernando Garcia, bom e mau consoante as circunstâncias, considerava-se um enjeitado a quem deixaram alguma riqueza, provavelmente para poder perdoar a tristeza a que o votaram. Vivera com o padrinho, assim, pelo menos, lhe chamava, e “cujos folares eram só puxões de orelhas quotidianos” (20). Recolhera-se num moinho, numa salutar convivência com o moleiro, pois tratava-se de um dos estudantes que foram a Condeixa esperar os lentes, e está condenado `a forca, pois quando regressou do estrangeiro, fugido para onde havia ido, regressou com a expedição liberal que desembarcou no Mindelo, chegando a ser condecorado pelo seu comportamento em combate. Nesta figura reputada a Francisco Sedano, inspirou-se Silva Gaio na construção desta personagem, responsável pelas cenas mais cómicas do livro.

          Finalmente Tadeu, que é “o símbolo do povo embrutecido pela escravidão e pela ignorância” – retrato recorrente na época – e que, contudo, pode ser grande, “se o alumiam a instrução e a moralidade, a crença e a caridade” (21). Grato, fica sempre ao lado de Mário, lá para as margens do Cuanza, em Angola, admirado com a invulgar bondade de um branco para com um negro, como ele, para mais vendido a negros como um escravo, como lhe havia sucedido, longe de casa. É a Tadeu que se ficam a dever os preparativos da fuga de Mário daquela prisão desumana.

          Não estranhamos, ante o quadro tão brevemente retratado, ver na obra e no “sistema” do Romantismo – perdoem a expressão –, apercebermo-nos do culto do ego, que decorre da oposição óbvia ao objectivismo absorvente e da sujeição às regras escravizantes dos neoclássicos: o espírito individualista e a acérrima exaltação da própria personalidade. Ante as lutas absolutistas versus liberais e as tremendas demoradas consequências, de quanto já advinha das Invasões Francesas, da partida da Família Real para o Brasil, da Independências deste, um ano depois do regresso ao Reino de D. João VI e de Carlota Joaquina, do confronto entre partidários de D. Pedro e outros de D. Miguel e da Ditadura que se lhe seguiu…, o “eu” torna-se o grande, o máximo ser real. O mundo externo terá apenas a realidade que nele projectar a inteligência e a imaginação da pessoa que o examina, lê e vê. A velha ânsia pela liberdade, como não podia deixar de ser, que se viu quantas não foram as vezes, limitadas e coarctadas, em prol de políticas despóticas e da falta de forças do braço popular. Do acentuado individualismo do homem romântico, brota, naturalmente, um desejo desmedido de quebrar os elos que acorrentavam Silva Gaio, e tantos outros letrados, à colectividade – daí a liberdade na manifestação dos sentimentos e instintos: a liberdade política, moral e de sentimentos.

          A juntar a tudo isto, o espírito idealista, na crença de um palco de vida superior que a razão não consegue definir. Por isso, fica a sonhar.

          Ainda o choque com a realidade: os castelos que os românticos constroem são de areia, e quando baixam do sonho á terra, não vêem mais esse mundo.

          Enfim, todos se “evadem no tempo e no espaço, refugiam-se no sonho e no fantástico, na orgia e na dissipação” (22). Veja-se, como exemplo, a lutar interior que se coloca em Fernão Guedes, – quando, prestes a partir para Viseu e fugir para a fronteira, já sem Mário, seu filho –, se há-de ou não furtar o cordão e o retrato emoldurado por diamantes, da casa do Padre Maurício, para ir jogar as valiosas pedras na Alemanha, onde pensa que poderá ganhar e devolver tudo, a todos e ao filho que antes já espoliara de seus bens (23). Triste o padre haveria que pensar: “Por bem fazer, mal haver” (24) – a situação política que se gerava no País era assim, também.

          Vozes houve que o censuraram de plagiar textos da Revista Jean Diable (1861) de Paul Féval, pai, sobretudo nas passagens referentes a Angola, onde nunca teria estado e para onde, no romance, segue Mário, preso a bordo da corveta Urânia – feita prisão flutuante –, na companhia de alguns exilados, por ideias políticas, e de homens condenados por crimes contra a sociedade (25). O facto é que o nosso autor documentou-se ao pormenor (26). A alma de Mário era, então, enérgica e forte, e ergueu-se, resistente e tenaz, contra o peso que queria esmagá-la – qual liberal com um labarum de esperança contra absolutistas, quanto mais poderosos mais caducos.

          A nova terra, na sua grandeza a perder de vista, mostrava-se bela e variada: “aos plainos arenosos, vivificados em muitas partes por zigofiláceas com grandes flores cor de ouro, sucediam porções de terreno pantanoso, aqui e além, para, mais adiante, serem substituídas por longos espaços cobertos de capim ou de eufórbios arborescentes, em bosques limitados, ou de acácias pouco viçosas. Como agigantadas sentinelas, num e noutro ponto, adansónias solitárias (27).

          Tinha, pois, o partido de D. Miguel, por agentes, no encalço dos Liberais, muitas das suas sombrias autoridades; por comparsa desta política amarga e extemporânea, desadequada dos tempos que na Europa se iam apagando de cena… deste drama… a plebe por elas sublevada; por demagogos mentirosos e empalados, muitos padres que do púlpito repisavam nos desaforos; por argumento as prisões e o exílio; por vezes, ainda, e em conclusão, a forca.

          O Partido Liberal fazia representar-se por mulheres de luto, com filhos órfãos ou separados dos seus pais e casas completamente arruinadas e empobrecidas. O que nele havia de válido “jazia entre ferros, estava exilado ou escondido” (28). 

          5. Prosseguindo com a análise do seu principal livro Mário, embora sumariamente, Gaio apresenta o seu texto, com um pano de fundo interessante e agitado: 1820-1834. Mas os recuos que são ainda numerosos e representativos de movimentos – chave são feitos, com recurso a alusões aos factos históricos que conhecemos e que enunciámos acima. Preocupa-se, nestes trechos com a verosimilhança com os factos que, como já o dissemos, ele parece bem conhecer de ouvir falar. Refere-os com exaltação, sobretudo o Cerco do Porto.

          Como o resume Fernando Pereira Marques e bem, com a leitura de Mário, é possível obter boas representações da época e das personagens do livro em causa.

          Após nos apresentar a “sua” Beira Alta e laivos da sua riqueza paisagística, roçou o poético, passando para a história da época. Estamos nos princípios de 1829: “de feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um governo intolerante, que tinha achado um chefe ostensivo no infante D. Miguel e um, real, na coorte que cercava a Senhora D. Carlota Joaquina. Mantinham-se as vexações antigas” e as forcas, as autoridades, usavam abusivamente delas, do exílio, também, o mesmo faziam com as cadeias, como penas para os que acatavam o juramento feito à Carta Constitucional que o Infante D. Miguel havia também jurado.

          Paralelamente, não podemos esquecer. Como nunca o fez Silva Gaio que Portugal se encontrava numa situação de total bloqueio que impunha uma viragem rápida. Na cidade do Porto, ecoou o grito de revolta contra o regime absoluto. O movimento passou, então, a dispor de apoio militar, pontificado pelo coronel Bernardo de Castro Correia de Sepúlveda e contando com outros chefes de guarnição activos e empenhados.

          Se pretendiam, acima de tudo, o regresso do rei a Portugal, ele aí estava, no Tejo, às portas de Lisboa, a 3 de Julho de 1821, depois de ter jurado no Brasil a Constituição, por conivência de seu filho D. Pedro

          Em Portugal, publicava-se a Constituição por decreto de 11 de Outubro de 1822.

          António da Silva Gaio enreda o seu texto com total indiferença por parte dos populares das aldeias beirãs que não se apercebem da evolução política e muito menos a eles chega o texto jurado. A importância deste reside nos pontos seguintes:

Título I – É uma declaração de direitos.

Título II – Afirmação de que a soberania reside em a Nação e a separação dos poderes.

Título III – Trata do poder legislativo e faz a consagração do princípio de uma só câmara, eleita bienalmente, por sufrágio directo e universal, com exclusão das mulheres, dos analfabetos e dos frades.

Título IV – Consagra o princípio de larga autonomia política e administrativa para o Brasil, com o qual se estabelecia uma união real.

Título V – Trata do poder judicial.

Título VI – Ocupa-se do governo administrativo e económico (29).

          Após o reconhecimento da independência do Brasil e da morte de D. João VI, iniciam-se os confrontos ente absolutistas e liberais já acima referidos. E assim se chega a 1832, termo do enredo de Mário, com a chega de D. Pedro ao Mindelo, vindo de ilhas Terceira, para onde se deslocou, no regresso do Brasil (30).

          À margem de toda esta perturbação, Silva Gaio, prossegue na descrição paradisíaca dos lugares da Beira e do aproveitamento da força da natureza para movimentar a economia da região. É assim que abre a seu livro em ambos os volumes.

          “Conheceis a Beira Alta?

          É uma fértil província portuguesa de lei, que vê, a leste a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua tristeza; ao sul, o Buçaco de gloriosa memória e de mística tradição.

          É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno as colinas, os cerros e os montes, separados uns dos outros por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas.

          As cumeadas ou são vestidas de urzes e de ásperos tojos ou são toucadas com a rama verde-negra dos pinheiros […] Aos soutos de castanheiros de carcomido tronco e aos pinhais e carvalhedos, segue-se aqui rico plantio animado pelo ribeiro e pelo moinho ruidoso; ali, a vinha e espreguiçar-se na encosta […] Caminhai para leste, vinde comigo. Na falda dessa Estrela, desse velho Hermínio, vereis unidas a agricultura e a indústria: que dos alcantis da montanha lhe corre a água em torrentes, para em baixo ser transformada em motor económico.

          Dizeis-me que estamos em Dezembro de 1828; que tudo agora ali está velado por farto lençol de neve; que atravessa o corpo o frígido vento, que de lá sopra…” (31).

          Numa roda de personagens, o P.e Marício conhecia bem a história do papado e condenava-lhe os abusos. Voltara-se muito mais para a simplicidade de Jesus e para a pureza de seus actos e palavras, tal como era conhecido. Rezava “orações sem palavras, que o Céu entende muito bem” (32). Seguia e espalhava, entre as crianças, que a caridade era para tudo quanto vivia, homem ou sapo.

 

 

1.  Constituição de 1822, na sequência da Revolução de 1820

 
  Constituição Portuguesa

Dedicada à Excelsa Soberania das Cortes Lusitanas

A Constituição de 1822 foi subscrita por 141 deputados, entre os quais se contam os mais ilustres representantes da denominada ideologia vintista (de 1820).

Índice: 

# Preâmbulo.

# Título I. Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses.

# Título II. Da Nação Portuguesa e seu território, religião, governo e dinastia.

# Título III. Do Poder Legislativo ou das Cortes.

# Título IV. Do Poder Executivo do Rei.

# Título V. Do Poder Judicial.

# Título VI. Do Governo Administrativo e Económico

 

A família real portuguesa: D. Amélia Augusta,
D. Pedro IV e D. Maria da Glória

Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1826) e
D. João VI (1767-1826)

 

D. Miguel, rei de Portugal  (1802-1866)

D. Pedro IV de Portugal, I do Brasil
(1798-1834)

 
 

D. Maria II  (1819-1853)

 
 
  Batalha do Buçaco (Imagem usada pelo Sr. Ten-Cor. Abílio Pires Lousada)
 
  Do Sinédrio à Revolução de 1820
 

 

(1) João Silva de Sousa, Professor da F.C.S.H. da U.N.L., Académico correspondente da Academia Portuguesa da História.

(2) Cf. Fernando Pereira Marques, Introdução a António da Silva Gaio, Mário, Vol. I, ed. dir. por António Reis, Lisboa, Alfa, Testemunhos Contemporâneos, 1990, p. 5.

(3) Silva Gaio, Mário, Vol. I, p. 66-67.

(4) Ver Maximiano de Aragão, Viseu (Província da Beira). Subsídios para a sua história desde fins do século XV, Vol. III, Porto, Tip. Sequeira, Lda., 1928. Está em curso uma 2.ª ed., dir. por João Silva de Sousa, cujo 1.º Vol. se encontra no prelo (Viseu, Fundação Dona Mariana Seixas, 2009)

(5) Ver por todos A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Vol. III, Lisboa, Palas Editores,

(6) Tomás Ribeiro, “Esboço Biográfico” que acompanha a 4.ª ed. de Mário, de 1917 (Porto, Companhia Portuguesa Editora).

(7) Fernando Pereira Marques, ib., p. 6

(8) Autor pouco conhecido, a ele ficaram a dever-se Primeiras Rimas (1887); Canções do Mondego (1892), a novela Últimos Crentes (1904), o romance realista e naturalista Torturados (1911), Novos Poemas (1906), Chave Dourada (1916), o poema épico D. João (1924), O Santo (1927), Sulamite (1928). Como ensaísta, Eça de Queirós (1919), Os Vencidos da Vida (1930). No conto, destaca-se A Dama de Ribadalva (1903), no drama A Volta da Índia (1898) e Encruzilhada (1903), entre muitos outros.

(9) Acerca desta personalidade, vejam-se António Caetano de Amaral, Memórias para a história da vida do venerável D. Frei Caetano Brandão, 2 vols., Lisboa, Na Impressaõ Regia, 1818, 2.ª ed., Braga, 1867; Feliciano Ramos, “História Breve do Arcebispo António Brandão”, in O Distrito de Braga, Braga, 2 (1-2), 1963, pp. 209-262; José Carlos Peixoto, Pensamento social e pedagógico de D. Frei Caetano Brandão, Braga, Colégio dos Órfãos de S. Caetano, 1991; José Paulo Leite de Abreu, D. Frei Caetano Brandão: o reformador contestado, Bragas, Faculdade de Teologia, 1997.

(10) Há uma ed. desta peça, publicada em Coimbra. Imprensa Universidade, 1969. Na Biblioteca Nacional de Lisboa, existem ainda dois trabalhos de carácter académico: Dissertação Inaugural para o Acto de Conclusões Magnas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858 e Theses Ex-Universa Medicina, Selectar, Conimbricae, Typ. Academicis, 1858.

(11) Silva Gaio, Mário, pp. 34-35.

(12) Entre todos, figuravam como principais, o Panorama (Lisboa, 1837), Ramalhete (Lisboa, 1837), Revista Estrangeira (Coimbra, Porto e Lisboa, 1837), Revista Literária (Porto, 1838), Universo Pitoresco (Lisboa, 1839), O Mosaico (Lisboa, 1839), O Cosmorama Literário (Lisboa, 1840), Museu Pitoresco (Lisboa, 1840) e a Revista Universal Lisbonense (Lisboa, 1841).

(13) Id., ibid. p. 37 do I Vol..

(14) Id., ibid., p. 106. Era a personificação do fanatismo político, absoluto, intolerante e cruel (p. 107).

(15) Id., Ibid., pp. 45 e 59 do I. Vol.

 (16) Cf. ed. cit., p. 20 do vol. I

(17) Ed. cit., p. 16 do I.º vol.

(18) Ed. cit., vol. I, p. 25.

(19) Ver esta sumária representação em António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa, Vol. 2. Séc. XVII-XX, 4.ª ed., Lisboa, Editora PAX, s/d., pp. 375-376. Silva Gaio, obr. cit., p. 48.

(20) Silva Gaio, obr. cit., 149 e ss..

(21) Fernando Pereira Marques, ob. cit., p. 10.

(22) António José Barreiros, obr. cit., p. 265.

(23) Silva Gaio, obr. cit., pp. 54-57.

(24) Id., ibidem, pp. 58-59.

(25) Silva Gaio, Mário, ed. cit., Vol. I, p. 82.

(26) A viagem de Mário e dos outros, com partida da barra do Tejo e chegada a Luanda, é contada, como se o autor, melodicamente, cantasse uma ode, na quebra súbita do próprio drama: “Vento de servir enfuna as velas da corveta Urânia que corre para Sul. Salvé flor do oceano, pérola do Atlântico! Salvé formosa Madeira! […]. Caminha! Desfralda de novo as velas! […] Segue para o Sul! Aí tens o arquipélago de Cabo Verde para te refazeres do novo cansaço […] Caminha sempre! Dobra o cabo das Palmas, e balouça-te no grande golfo! Como é esplêndida a vegetação de São Tomé! […] Voga, voga para mais longe, e sempre ao sul! Corta a linha; reage contra a soma das águas que o grande Zaire lança no oceano! Avante! Navegas em hemisfério novo coroado de luminosa cúpula. Avante! Alguns passos ainda, e vais repousar no porto de São Paulo de Luanda!” (Vol. I, p. 81). 

(27) Ibid., Vol. I, p. 84.

(28) Ibid., Vol. I, p. 92.

(29) Cf. As Constituições Portuguesas de 1822 ao texto actual da Constituição, introd. de Jorge Miranda, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Petrony, 1977.

(30) Acerca desta trama, veja-se o desenvolvimento em Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal [1807-1832], Lisboa, Editorial Verbo, 1984.

(31) Ed. cit., pp. 13-14.

(32) Ed. cit., Vol. I, p. 18.

 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor de História Medieval do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e membro da Academia Portuguesa da História