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Esquematicamente, ouvira falar, de
amiúde, das invasões francesas: a 17 de Novembro de 1807, a primeira,
comandada pelo general Jean-Andoche Junot; a segunda, a 10 de Março de
1809, liderada pelo marechal Nicolas Jean de Dieu Soult; a terceira, a
24 de Julho de 1810, chefiada pelo marechal André Masséna e a quarta,
que apenas durou 20 dias, tomou lugar a 3 de Abril de 1812, comandada
pelo Marechal Marmont; da partida da Família Real para o Brasil (1807);
do desembarque das tropas inglesas em Portugal (1808); da insurreição no
Porto e noutros lugares contra os invasores franceses e a ocupação da
cidade (1808-1809); das batalhas de Roliça, Vimeiro e Buçaco
(1808-1810); da das Linhas de Torres Vedras (1810-1812); da elevação do
Brasil a Reino (1815); da revolução liberal no Porto (1820); da
Martinhada (1820); da morte do rei e da abdicação do sucessor a favor de
D. Maria II (1826); do regresso do infante D. Miguel e do início da sua
regência, após jurar a Carta Constitucional (1827-1828); do golpe de
estado absolutista e da dissolução das Cortes (1828): D. Miguel é rei
absoluto e inicia-se um período de terror, com execuções de liberais;
desembarque da expedição liberal no Mindelo e cerco do Porto (1832);
desembarque de D. Pedro em Lisboa (1833) … Um nunca acabar de situações
que alteraram as mentalidades da época e que se reflectiram nos
trabalhos dos letrados e outros intelectuais. Presenciara a eterna luta
entre ‘o Trono e o Altar’ (3) – como ele mesmo, por estas palavras o
refere no seu livro, não sem desfiar razões de Victor Hugo, no seu
extenso Les Misérables
António da
Silva Gaio passou a sua infância atribulada, devido às lutas acérrimas
que envolveram todo o País, vividas que foram na Beira e, especialmente,
em Viseu e em todo o seu distrito, como no-lo atesta, entre outros,
Maximiano de Aragão (4).
A acalmia,
após a Revolução da Maria da Fonte (1.ª fase: Abril-Maio de 1846; 2.ª,
Outubro de 1846- Junho de 1847) e o acidentado governo de D. Maria II
[1826-1853], só chegou com D. Pedro V [1853-1861] e D. Luís [1861-1889],
explicável no enquadramento geral da expansão económica e da
prosperidade para as classes dirigentes. Regeneradores e Históricos ou
Progressistas – como estes últimos vieram a chamar-se mais tarde –
alternam no poder. Saldanha, como marquês e duque, presidente do
Conselho de Ministros, é titular da pasta, como tal, de Maio a Novembro
de 1835, de Outubro de 1846 a Abril do ano a seguir, de Maio de 1851 a
Junho de 1856 e de Maio de 1870 a Agosto seguinte (5).
Neste
ambiente que convidava o proletariado literário ao partidarismo, Silva
Gaio deambulou de cadeia em cadeia, tendo conhecido a liberdade apenas
para vir a morrer, no Buçaco, a 8 de Agosto de 1870.
Frequentou os
estudos num Seminário em Viseu, formou-se em Medicina, em 1857, na
Universidade de Coimbra, de que se tornaria professor, no ano seguinte
(6). É Tomás António Ribeiro Ferreira [1831-1901], seu amigo de
infância, estudante no liceu de Viseu, natural de Parada de Gonta,
Tondela, quem nos refere acerca do seu conterrâneo: “amava a vida, era
namoradeiro, eloquente, corajoso e temerário, ao ponto de se bater em
duelo, em 1854, com Filipe do Quental, por um motivo fútil” (7). Pouco
depois de se doutorar, casou com a prima Emília de Campos Paredes, a
quem, aliás, dedicou Mário. Foram pais de Manuel da Silva Gaio [Coimbra,
6/V/1860-Coimbra, 11de Fevereiro de 1934), poeta, teorizador e ensaísta
(8), neto de António Manuel Joaquim de Almeida da Silva Gaio, advogado
visiense prestigiado que teve de fugir “aos esbirros miguelistas – cena
que o autor de Mário inclui no seu livro.
Em 1864, é-lhe
entregue a regência da Cadeira de “Higiene Pública”, criada na Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra.
Procurando
participar na vida política, lançava, em 1863, um efémero periódico, o
Comércio de Coimbra, pelo que criou um centro em Viseu, um “grupo de
pressão”, lugar em que tentou estabelecer as bases da sua candidatura a
S. Bento. No entanto, não fora bem sucedido.
Romancista –
da 1.ª fase –, dramaturgo, contista e activista político foi
representante da uma nova geração de escritores portugueses. A sua obra
– quer Mário, ou Frei Caetano Brandão (1869) – é um mosaico de situações
e personagens representativas da vida política dos Anos Vinte e de então
em diante, em Portugal (9).
Na década de
1850, via levada à cena, em Viseu, um drama de cinco actos, intitulado
Luíza e, ao que se julga, com rasgado êxito. De seguida, já pelos finais
da vida, terminou o seu D. Frei Caetano Brandão, (1869), também um drama
que viria a ser representado no Teatro D. Maria II, em Lisboa (10). Frei
Brandão, da Terceira Ordem Regular de S. Francisco, foi, em 1782,
nomeado bispo do Pará pela rainha D. Maria I, fazendo a sua solene
entrada na Catedral de santa Maria de Belém do Grão Pará, no dia 1 de
Novembro, no ano seguinte. Em 28 de Junho de 1790, tomou posse como
titular da Arquidiocese de Braga.
2. Silva Gaio
romanceou a época das lutas liberais e o cerco do Porto, muito vivos
ainda na lembrança dos seus contemporâneos, num livro que se tornou
muito popular, Mário, em 2 vols., terminado em 1867. Tem todo o aparato
de um drama também. Os diálogos leves ou pungentes são seguidos de
lágrimas, prostrações e leves expressões de amor, comparadas com altivas
ordens de comando, de condenação e brutalidade.
No seu
conjunto, os dois tomos de Mário descrevem todo um rol de tropelias,
vinganças e traições por parte de alguns energúmenos apoiantes de D.
Miguel contra liberais. Lêem-se no subtítulo, episódios das lutas civis
portuguesas de 1820 a 1834, embora não tivesse vivido esses anos, mas,
por um lado, ouvira contar os mais velhos e assistira às primeiras
impiedosas consequências do mesmo.
Diz o nosso
autor: “De feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um governo
intolerante, que tinha achado um chefe ostensivo no infante D. Miguel e
um, real, na coorte que cercava a Senhora D. Carlota Joaquina”. A rainha
representava deveras o cinzentismo conservador que há muito havia sido
liberalizado e democratizado pelas monarquias do Norte da Europa, onde
fome, desemprego, trabalho infantil, subordinação das mulheres e
iletracia quase se haviam esfumado para dar lugar a novas sociedades
assentes em pilares humanizados e onde os reis tinham pouco mais do que
um papel de representação do Estado: o rei, a bandeira e o hino. Ao
povo, entretanto, era dada a palavra. Por cá, “mantinham-se as vexações
antigas e mandavam-se para a forca, para o exílio, ou para a cadeia,
todos os que acatavam o juramento à Carta Constitucional, que o infante
também jurara. Reinavam os capitães-mores, os dízimos e toda a espécie
de alcavalas, os frades tribunos, o populacho com a sua espantosa
ignorância, os fidalgos com a sua bazófia, o conde de Basto com a sua
crueza, a corte com as touradas, os delatores com a sua infâmia e as
milícias com a sua memoranda oficialidade” (11)
Novela
romântica, advém na sequência do Romantismo, aberto com Garrett. O autor
nomeia como seus exemplos máximos na escrita histórica e no romance
Alexandre Herculano – historiador e romancista – e Camilo Castelo Branco
– romancista de costumes e passional – tendo ambos, na soma das suas
vidas, assistido a todo aquele ambiente de revolução (1810-1890).
3. É do
conhecimento geral que o Romantismo – literatura nova de carácter
nacional e popular – teve o seu começo, pelo menos extrinsecamente,
ligado às lutas civis entre miguelistas e liberais. Até 1837, a nova
corrente que bebeu as tendências de Scoth e Byron quase só se
manifestaram em tentativas isoladas, tendo aumentado o número dos seus
adeptos tão-só no período mais agudo das lutas liberais. Entre as
revistas e jornais que todos os admiradores das letras liam com
entusiasmo, figura, embora já tardiamente, o Comércio de Coimbra,
fundado por António da Silva Gaio (12). Entre os anos de 1865 e 1879, o
romantismo introduzido por Almeida Garrett, Alexandre Herculano e
António Feliciano de Castilho mudou as suas características preambulares
e iniciáticas. A Questão Coimbrã e as Conferências do Casino puseram o
terminus ao primeiro momento romântico com a introdução de uma estética
realista.
4. No Mário –
Episódios das Lutas Civis Portuguesas (1868), o autor apresenta-nos bem
definidas as suas personagens miguelistas:
Jorge Pinto,
um freire da Ordem de Malta, homem de 45 anos, estatura alta e vigorosa,
rosto severo e frio, coroado por uma fronte inteligente e arrogante, é
uma figura pouco menos que asquerosa e sem consciência, embora esperta e
ladina, o que nos leva a presenciar um certo criticismo e satiríase. A
fim de poder atingir os seus torpes objectivos, deita mão a tudo o que
pode: rouba, incendeia, calunia e chantageia: nada abona em seu favor.
Os métodos da sua tirania são descritos de tal forma que apenas podemos
compará-los, mutatis mutandis, com os de algumas personagens de Máximo
Gorki [1868-1936] ou com os polícias nazis de Virghil Gheorghiu
[1916-1992]. Sejamos mais claros: Gorki representa a força natural e a
beleza do espontâneo que tanto fascinavam na busca – por Silva Gaio – da
ordem em que assenta a legitimidade; Gheorghiu, é o espelho do
impressionante realismo com que apresenta as terríficas consequências da
tragédia levada a termo pelas hordas nazis e a consequente subjectiva
representação das estruturas construtivas. Diga-se que, neste sentido, o
número de idealistas não teria fim. Jorge Pinto, comendador, personifica
o Poder Absoluto, o arbítrio despótico e sem razão, o poder
discricionário, com que actuavam os partidários de D. Miguel. Para ele,
o povo era “uma classe de servos”. Assim, o “gentil cavaleiro de Malta”
afigura-se-nos uma alma “fria e desdenhosa, quase indiferente ao perigo,
a crueza implacável, que nem dobram lágrimas, nem receios”, conclui
silva Gaio (13). Apaixona-se por Teresa, sobrinha do vigário.
A par de Jorge
Pinto, surgem, no decurso da obra, certos ministros e políticos sem
carácter – como seria de esperar –, tal o 1.º Conde de Basto, José
António de Oliveira Leite de Barros [1749-1833], com importante cargo
outorgado, a 12 de Janeiro de 1829, por D. Miguel I, como ministro da
Marinha, com os seus sessenta e oito anos de idade, “um velho decrépito,
ignorante e cruel” (14). A par o Jordão, o brigadeiro Joaquim Teles
Jordão [guarda, 1777 - Cacilhas, 1833], já (precocemente) velho e
encolhido, que, depois de se mostrar um dos militares responsáveis pelo
movimento liberal de 24 de Agosto de 1829, se revelara partidário do
miguelismo exacerbado e, sobretudo, pela crueza com que exercia o cargo
de governador do Forte de São Julião da Barra, onde estavam encarcerados
muitos liberais.
João de Melo,
parente de Jorge Pinto, mas seu rival, familiar de Mário que vem de
Espanha, com o pai, Fernão Guedes – e primo do primeiro –, visitá-lo à
sucapa. Fernão de Melo é um jogador compulsivo arruinado. Pai de Mário,
bom rapaz, valente, brioso, o seu orgulho e vaidade, que cai como morto
aquando da perseguição por Jorge Pinto e é socorrido depois pelo Padre e
por Teresa.
Mário, jovem
alto, de 23 anos, barba inteira castanho-escura, tez pálida, rosto
expressivo, alumiado de brilhantes olhos, fronte larga e alta, feições
bem caracterizadas e vivas, trocara cedo a ‘perfumada atmosfera da
riqueza’ pela carreira militar, levada a sério por quem quer cumprir
todos os seus deveres, como tenente da arma da cavalaria, cedo tendo-se
indignado com o absolutismo da rainha-mãe e do filho D. Miguel (15).
Teresa e Mário apaixonaram-se e no enlevo de ambos, Silva Gaio
questiona-se – ‘que pena poderia descrevê-los? ‘
Ainda as
personagens liberais. O Padre Maurício, reitor de S. Romão (16), um
homem de excelente simpatia, um velho alto de sessenta e quatro anos, de
“rosto magro, e pálido, faria lembrar as figuras ascéticas dos painéis
religiosos” (17). Parece irmão gémeo de tantos outros sacerdotes que nos
surgem de bom carácter e excelente integridade que os romancistas do
século XIX descobriram, como o Pároco da Aldeia (em Herculano), o Senhor
Reitor (de Júlio Dinis), o Padre João (de Camilo) e o Padre Vigário (de
Rebelo da Silva). Maurício encarnava a caridade evangélica, a religião e
todos os actos de compaixão pregados por Jesus Cristo.
Leonor, irmã
do padre, dois anos mais velha do que ele, queria ver nos homens o seu
irmão, com todas as suas qualidades piedosas e de boa-vontade. Os homens
e os padres, pois distinguia sempre uns dos outros.
Paulo – pai de
Teresa –, sobrinho do vigário, alto, com aspecto militar, bigode farto,
feições magras e pálidas, olhos grandes e negros e de uma vivacidade
desmentida “pelo andar tardo e mal seguro” (18).
Ainda Teresa,
filha de Paulo, sobrinha-neta do padre Maurício e sobrinha do Abade
Fernando Garcia, um dos assassinos dos lentes em Condeixa, Mário,
perseguido, caluniado, condenado ao exílio em África e combatente no
cerco do Porto… areja o texto romântico com a sua mocidade, amor e
heroísmo, rapariga de quinze anos, de graciosa figura, alta e elegante –
uma verdadeira figura de Ticiano (19). Será ela o símbolo da abnegação e
da grandeza, na humildade. Ama Mário e repele Jorge Pinto.
Fernando
Garcia, bom e mau consoante as circunstâncias, considerava-se um
enjeitado a quem deixaram alguma riqueza, provavelmente para poder
perdoar a tristeza a que o votaram. Vivera com o padrinho, assim, pelo
menos, lhe chamava, e “cujos folares eram só puxões de orelhas
quotidianos” (20). Recolhera-se num moinho, numa salutar convivência com
o moleiro, pois tratava-se de um dos estudantes que foram a Condeixa
esperar os lentes, e está condenado `a forca, pois quando regressou do
estrangeiro, fugido para onde havia ido, regressou com a expedição
liberal que desembarcou no Mindelo, chegando a ser condecorado pelo seu
comportamento em combate. Nesta figura reputada a Francisco Sedano,
inspirou-se Silva Gaio na construção desta personagem, responsável pelas
cenas mais cómicas do livro.
Finalmente
Tadeu, que é “o símbolo do povo embrutecido pela escravidão e pela
ignorância” – retrato recorrente na época – e que, contudo, pode ser
grande, “se o alumiam a instrução e a moralidade, a crença e a caridade”
(21). Grato, fica sempre ao lado de Mário, lá para as margens do Cuanza,
em Angola, admirado com a invulgar bondade de um branco para com um
negro, como ele, para mais vendido a negros como um escravo, como lhe
havia sucedido, longe de casa. É a Tadeu que se ficam a dever os
preparativos da fuga de Mário daquela prisão desumana.
Não
estranhamos, ante o quadro tão brevemente retratado, ver na obra e no
“sistema” do Romantismo – perdoem a expressão –, apercebermo-nos do
culto do ego, que decorre da oposição óbvia ao objectivismo absorvente e
da sujeição às regras escravizantes dos neoclássicos: o espírito
individualista e a acérrima exaltação da própria personalidade. Ante as
lutas absolutistas versus liberais e as tremendas demoradas
consequências, de quanto já advinha das Invasões Francesas, da partida
da Família Real para o Brasil, da Independências deste, um ano depois do
regresso ao Reino de D. João VI e de Carlota Joaquina, do confronto
entre partidários de D. Pedro e outros de D. Miguel e da Ditadura que se
lhe seguiu…, o “eu” torna-se o grande, o máximo ser real. O mundo
externo terá apenas a realidade que nele projectar a inteligência e a
imaginação da pessoa que o examina, lê e vê. A velha ânsia pela
liberdade, como não podia deixar de ser, que se viu quantas não foram as
vezes, limitadas e coarctadas, em prol de políticas despóticas e da
falta de forças do braço popular. Do acentuado individualismo do homem
romântico, brota, naturalmente, um desejo desmedido de quebrar os elos
que acorrentavam Silva Gaio, e tantos outros letrados, à colectividade –
daí a liberdade na manifestação dos sentimentos e instintos: a liberdade
política, moral e de sentimentos.
A juntar a
tudo isto, o espírito idealista, na crença de um palco de vida superior
que a razão não consegue definir. Por isso, fica a sonhar.
Ainda o choque
com a realidade: os castelos que os românticos constroem são de areia, e
quando baixam do sonho á terra, não vêem mais esse mundo.
Enfim, todos
se “evadem no tempo e no espaço, refugiam-se no sonho e no fantástico,
na orgia e na dissipação” (22). Veja-se, como exemplo, a lutar interior
que se coloca em Fernão Guedes, – quando, prestes a partir para Viseu e
fugir para a fronteira, já sem Mário, seu filho –, se há-de ou não
furtar o cordão e o retrato emoldurado por diamantes, da casa do Padre
Maurício, para ir jogar as valiosas pedras na Alemanha, onde pensa que
poderá ganhar e devolver tudo, a todos e ao filho que antes já espoliara
de seus bens (23). Triste o padre haveria que pensar: “Por bem fazer,
mal haver” (24) – a situação política que se gerava no País era assim,
também.
Vozes houve
que o censuraram de plagiar textos da Revista Jean Diable (1861) de Paul
Féval, pai, sobretudo nas passagens referentes a Angola, onde nunca
teria estado e para onde, no romance, segue Mário, preso a bordo da
corveta Urânia – feita prisão flutuante –, na companhia de alguns
exilados, por ideias políticas, e de homens condenados por crimes contra
a sociedade (25). O facto é que o nosso autor documentou-se ao pormenor
(26). A alma de Mário era, então, enérgica e forte, e ergueu-se,
resistente e tenaz, contra o peso que queria esmagá-la – qual liberal
com um labarum de esperança contra absolutistas, quanto mais poderosos
mais caducos.
A nova terra,
na sua grandeza a perder de vista, mostrava-se bela e variada: “aos
plainos arenosos, vivificados em muitas partes por zigofiláceas com
grandes flores cor de ouro, sucediam porções de terreno pantanoso, aqui
e além, para, mais adiante, serem substituídas por longos espaços
cobertos de capim ou de eufórbios arborescentes, em bosques limitados,
ou de acácias pouco viçosas. Como agigantadas sentinelas, num e noutro
ponto, adansónias solitárias (27).
Tinha, pois, o
partido de D. Miguel, por agentes, no encalço dos Liberais, muitas das
suas sombrias autoridades; por comparsa desta política amarga e
extemporânea, desadequada dos tempos que na Europa se iam apagando de
cena… deste drama… a plebe por elas sublevada; por demagogos mentirosos
e empalados, muitos padres que do púlpito repisavam nos desaforos; por
argumento as prisões e o exílio; por vezes, ainda, e em conclusão, a
forca.
O Partido
Liberal fazia representar-se por mulheres de luto, com filhos órfãos ou
separados dos seus pais e casas completamente arruinadas e empobrecidas.
O que nele havia de válido “jazia entre ferros, estava exilado ou
escondido” (28).
5.
Prosseguindo com a análise do seu principal livro Mário, embora
sumariamente, Gaio apresenta o seu texto, com um pano de fundo
interessante e agitado: 1820-1834. Mas os recuos que são ainda numerosos
e representativos de movimentos – chave são feitos, com recurso a
alusões aos factos históricos que conhecemos e que enunciámos acima.
Preocupa-se, nestes trechos com a verosimilhança com os factos que, como
já o dissemos, ele parece bem conhecer de ouvir falar. Refere-os com
exaltação, sobretudo o Cerco do Porto.
Como o resume
Fernando Pereira Marques e bem, com a leitura de Mário, é possível obter
boas representações da época e das personagens do livro em causa.
Após nos
apresentar a “sua” Beira Alta e laivos da sua riqueza paisagística,
roçou o poético, passando para a história da época. Estamos nos
princípios de 1829: “de feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um
governo intolerante, que tinha achado um chefe ostensivo no infante D.
Miguel e um, real, na coorte que cercava a Senhora D. Carlota Joaquina.
Mantinham-se as vexações antigas” e as forcas, as autoridades, usavam
abusivamente delas, do exílio, também, o mesmo faziam com as cadeias,
como penas para os que acatavam o juramento feito à Carta Constitucional
que o Infante D. Miguel havia também jurado.
Paralelamente,
não podemos esquecer. Como nunca o fez Silva Gaio que Portugal se
encontrava numa situação de total bloqueio que impunha uma viragem
rápida. Na cidade do Porto, ecoou o grito de revolta contra o regime
absoluto. O movimento passou, então, a dispor de apoio militar,
pontificado pelo coronel Bernardo de Castro Correia de Sepúlveda e
contando com outros chefes de guarnição activos e empenhados.
Se pretendiam,
acima de tudo, o regresso do rei a Portugal, ele aí estava, no Tejo, às
portas de Lisboa, a 3 de Julho de 1821, depois de ter jurado no Brasil a
Constituição, por conivência de seu filho D. Pedro
Em Portugal,
publicava-se a Constituição por decreto de 11 de Outubro de 1822.
António da
Silva Gaio enreda o seu texto com total indiferença por parte dos
populares das aldeias beirãs que não se apercebem da evolução política e
muito menos a eles chega o texto jurado. A importância deste reside nos
pontos seguintes:
Título I – É uma
declaração de direitos.
Título II –
Afirmação de que a soberania reside em a Nação e a separação dos
poderes.
Título III – Trata
do poder legislativo e faz a consagração do princípio de uma só
câmara, eleita bienalmente, por sufrágio directo e universal, com
exclusão das mulheres, dos analfabetos e dos frades.
Título IV – Consagra
o princípio de larga autonomia política e administrativa para o
Brasil, com o qual se estabelecia uma união real.
Título V – Trata do
poder judicial.
Título VI – Ocupa-se
do governo administrativo e económico (29).
Após o
reconhecimento da independência do Brasil e da morte de D. João VI,
iniciam-se os confrontos ente absolutistas e liberais já acima
referidos. E assim se chega a 1832, termo do enredo de Mário, com a
chega de D. Pedro ao Mindelo, vindo de ilhas Terceira, para onde se
deslocou, no regresso do Brasil (30).
À margem de
toda esta perturbação, Silva Gaio, prossegue na descrição paradisíaca
dos lugares da Beira e do aproveitamento da força da natureza para
movimentar a economia da região. É assim que abre a seu livro em ambos
os volumes.
“Conheceis a
Beira Alta?
É uma fértil
província portuguesa de lei, que vê, a leste a serra da Estrela com as
suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua tristeza; ao sul, o Buçaco de
gloriosa memória e de mística tradição.
É acidentado o
solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno as colinas, os
cerros e os montes, separados uns dos outros por quebradas e valeiros,
onde sussurram as águas, caídas das alturas.
As cumeadas ou
são vestidas de urzes e de ásperos tojos ou são toucadas com a rama
verde-negra dos pinheiros […] Aos soutos de castanheiros de carcomido
tronco e aos pinhais e carvalhedos, segue-se aqui rico plantio animado
pelo ribeiro e pelo moinho ruidoso; ali, a vinha e espreguiçar-se na
encosta […] Caminhai para leste, vinde comigo. Na falda dessa Estrela,
desse velho Hermínio, vereis unidas a agricultura e a indústria: que dos
alcantis da montanha lhe corre a água em torrentes, para em baixo ser
transformada em motor económico.
Dizeis-me que
estamos em Dezembro de 1828; que tudo agora ali está velado por farto
lençol de neve; que atravessa o corpo o frígido vento, que de lá sopra…”
(31).
Numa roda de
personagens, o P.e Marício conhecia bem a história do papado e
condenava-lhe os abusos. Voltara-se muito mais para a simplicidade de
Jesus e para a pureza de seus actos e palavras, tal como era conhecido.
Rezava “orações sem palavras, que o Céu entende muito bem” (32). Seguia
e espalhava, entre as crianças, que a caridade era para tudo quanto
vivia, homem ou sapo. |
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(1) João Silva de Sousa, Professor da
F.C.S.H. da U.N.L., Académico correspondente da Academia Portuguesa da
História.
(2) Cf. Fernando Pereira Marques,
Introdução a António da Silva Gaio, Mário, Vol. I, ed. dir. por António
Reis, Lisboa, Alfa, Testemunhos Contemporâneos, 1990, p. 5.
(3) Silva Gaio, Mário, Vol. I, p.
66-67.
(4) Ver Maximiano de Aragão, Viseu
(Província da Beira). Subsídios para a sua história desde fins do século
XV, Vol. III, Porto, Tip. Sequeira, Lda., 1928. Está em curso uma 2.ª
ed., dir. por João Silva de Sousa, cujo 1.º Vol. se encontra no prelo
(Viseu, Fundação Dona Mariana Seixas, 2009)
(5) Ver por todos A. H. de Oliveira
Marques, História de Portugal, Vol. III, Lisboa, Palas Editores,
(6) Tomás Ribeiro, “Esboço Biográfico”
que acompanha a 4.ª ed. de Mário, de 1917 (Porto, Companhia Portuguesa
Editora).
(7) Fernando Pereira Marques, ib., p.
6
(8) Autor pouco conhecido, a ele
ficaram a dever-se Primeiras Rimas (1887); Canções do Mondego (1892), a
novela Últimos Crentes (1904), o romance realista e naturalista
Torturados (1911), Novos Poemas (1906), Chave Dourada (1916), o poema
épico D. João (1924), O Santo (1927), Sulamite (1928). Como ensaísta,
Eça de Queirós (1919), Os Vencidos da Vida (1930). No conto, destaca-se
A Dama de Ribadalva (1903), no drama A Volta da Índia (1898) e
Encruzilhada (1903), entre muitos outros.
(9) Acerca desta personalidade,
vejam-se António Caetano de Amaral, Memórias para a história da vida do
venerável D. Frei Caetano Brandão, 2 vols., Lisboa, Na Impressaõ Regia,
1818, 2.ª ed., Braga, 1867; Feliciano Ramos, “História Breve do
Arcebispo António Brandão”, in O Distrito de Braga, Braga, 2 (1-2),
1963, pp. 209-262; José Carlos Peixoto, Pensamento social e pedagógico
de D. Frei Caetano Brandão, Braga, Colégio dos Órfãos de S. Caetano,
1991; José Paulo Leite de Abreu, D. Frei Caetano Brandão: o reformador
contestado, Bragas, Faculdade de Teologia, 1997.
(10) Há uma ed. desta peça, publicada
em Coimbra. Imprensa Universidade, 1969. Na Biblioteca Nacional de
Lisboa, existem ainda dois trabalhos de carácter académico: Dissertação
Inaugural para o Acto de Conclusões Magnas, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1858 e Theses Ex-Universa Medicina, Selectar, Conimbricae,
Typ. Academicis, 1858.
(11) Silva Gaio, Mário, pp. 34-35.
(12) Entre todos, figuravam como
principais, o Panorama (Lisboa, 1837), Ramalhete (Lisboa, 1837), Revista
Estrangeira (Coimbra, Porto e Lisboa, 1837), Revista Literária (Porto,
1838), Universo Pitoresco (Lisboa, 1839), O Mosaico (Lisboa, 1839), O
Cosmorama Literário (Lisboa, 1840), Museu Pitoresco (Lisboa, 1840) e a
Revista Universal Lisbonense (Lisboa, 1841).
(13) Id., ibid. p.
37 do I Vol..
(14) Id., ibid., p.
106. Era a personificação do fanatismo político, absoluto,
intolerante e cruel (p. 107).
(15) Id., Ibid., pp. 45 e 59 do I. Vol.
(16)
Cf. ed. cit., p. 20 do vol. I
(17) Ed. cit., p. 16
do I.º vol.
(18) Ed. cit., vol. I,
p. 25.
(19) Ver esta sumária representação em
António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa, Vol. 2. Séc.
XVII-XX, 4.ª ed., Lisboa, Editora PAX, s/d., pp. 375-376. Silva Gaio,
obr. cit., p. 48.
(20) Silva Gaio, obr. cit., 149 e ss..
(21) Fernando Pereira Marques, ob.
cit., p. 10.
(22) António José Barreiros, obr.
cit., p. 265.
(23) Silva Gaio, obr. cit., pp. 54-57.
(24) Id., ibidem, pp. 58-59.
(25) Silva Gaio, Mário, ed. cit., Vol.
I, p. 82.
(26) A viagem de Mário e dos outros,
com partida da barra do Tejo e chegada a Luanda, é contada, como se o
autor, melodicamente, cantasse uma ode, na quebra súbita do próprio
drama: “Vento de servir enfuna as velas da corveta Urânia que corre para
Sul. Salvé flor do oceano, pérola do Atlântico! Salvé formosa Madeira!
[…]. Caminha! Desfralda de novo as velas! […] Segue para o Sul! Aí tens
o arquipélago de Cabo Verde para te refazeres do novo cansaço […]
Caminha sempre! Dobra o cabo das Palmas, e balouça-te no grande golfo!
Como é esplêndida a vegetação de São Tomé! […] Voga, voga para mais
longe, e sempre ao sul! Corta a linha; reage contra a soma das águas que
o grande Zaire lança no oceano! Avante! Navegas em hemisfério novo
coroado de luminosa cúpula. Avante! Alguns passos ainda, e vais repousar
no porto de São Paulo de Luanda!”
(Vol. I, p. 81).
(27)
Ibid., Vol. I, p. 84.
(28)
Ibid., Vol. I, p. 92.
(29) Cf. As Constituições Portuguesas
de 1822 ao texto actual da Constituição, introd. de Jorge Miranda, 4.ª
ed., Lisboa, Livraria Petrony, 1977.
(30) Acerca desta trama, veja-se o
desenvolvimento em Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal
[1807-1832], Lisboa, Editorial Verbo, 1984.
(31) Ed. cit., pp.
13-14.
(32)
Ed. cit., Vol. I, p. 18. |