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Voltei à minha mesa, coloquei o cartão,
exatamente, no
lugar onde o tinha
encontrado, e comecei a trabalhar. Num escritório como
o nosso,
filial
de uma companhia
americana
de mineração, cada
funcionário escritura os seus próprios livros.
Claro que alguns colegas já, algumas vezes,
tentaram saber o
total
de todos os
livros.
Mas nenhum
conseguiu. Todos viraram
ex-colegas. Uma vez, eu próprio informei o chefe que um deles
estava querendo saber o
total
do meu
livro.
Como prova do
meu zelo, até hoje uso a caneta
Parker, folheada a
ouro,
que ganhei como presente.
Entrei para a Collins Woodhouse do
Brasil S/A, filial de Belo Horizonte,
como contínuo.
Era a única vaga. Andei de
jaleco branco dois anos, servindo cafezinho, até que Seu
Nestor, hoje
chefe
da contabilidade,
mas
contador-auxiliar naquele tempo, me chamou e perguntou se eu
sabia pagar títulos.
Sabia, sim,
senhor. Tirei o jaleco
branco
e vesti um azul,
e Seu Dorneles, o
pagador anterior, foi demitido.
Um ano depois, foi
a vez de D. Arlete. D. Arlete já era antiga de casa
e fazia a escrituração dos impostos
estaduais. Uma semana depois de ela ter entrado de licença-maternidade,
Seu
Nestor voltou a me
chamar
e perguntou se eu sabia
mexer com máquinas
de calcular. Sabia,
sim,
senhor. Quando
D. Arlete voltou, não sentou nem na mesa. Foi
direta ao departamento
de pessoal,
falar com Seu
Fiuza. Levei dois
anos para ganhar o que D. Arlete ganhava. Mas,
pelo menos, já não usava mais jaleco.
No ano seguinte, a bola
da vez foi
Seu
Toninho. Seu Toninho era o assessor fiscal e Seu
Nestor, quando
ele
ficou doente, chamou-me e perguntou se eu sabia mexer com tributos.
Sabia, sim,
senhor.
Quando a licença
terminou, Seu Toninho não entrou nem
na sala.
Seu
Fiuza nem deu
tempo. Dizem que
Seu
Nestor até foi aumentado por causa disso. Mas, para mim, foi ótimo. Hoje, posso dizer tranqüilamente, conheço mais legislação
tributária
do que o
próprio Seu Nestor. E,
por isso, já
vai para mais
de cinco
anos que sou eu que faço,
oficialmente, a escrituração de
todos os impostos da Collins Woodhouse do Brasil S/A, filial de Belo Horizonte.
Seu Nestor, em que pese a amizade que lhe tenho, não
é à toa
que
trabalhamos juntos há dez anos, é um sujeito bitoladíssimo, incapaz seja do que
for, se não
lhe
mandarem fazer. Mas,
o pior, é
que Seu Nestor não
é só
bitolado.
Seu Nestor é o
filho
da puta mais
invejoso que eu
conheço. Agora,
só me pede ajuda quando não
tem mais
jeito.
Mas não me importo. Como
sei que o chefe
sabe quem
eu
sou, os dias do
puxa-saco
estão contados. O filho da puta
tem mais de vinte anos
de casa, é do
tempo
da fundação da
filial,
ganha sete ou oito vezes mais
do que eu,
mas não
faz nem a
metade
do que eu
faço. Só tem
pose.
Sem querer me meter onde não sou
chamado, realmente, o incompetente é o maior desperdício de dinheiro que a filial de
Belo Horizonte
tem na folha de
pagamento.
Mas o chefe também sabe disso. Tenho
certeza.
Por isso, ontem, quando encontrei o cartão
do chefe na minha mesa, me
emocionei. Quem sabe tinha chegado a
hora da verdade?
Como ainda era cedo,
concentrei-me no trabalho e esperei. Conheço bem o chefe.
Quando
chegasse a hora,
ele me chamaria.
O pessoal começou a chegar às nove horas. Primeiro, o filho da puta, depois
os contínuos e os
auxiliares,
depois a Deise e a
Marinha,
telefonistas, e,
logo em seguida,
Seu Fiuza e D. Amélia, a secretária do chefe. Seu Paulino, do contas
a pagar, resfriado como sempre,
chegou às nove e
dez, e, depois
dele, Seu
Antenor, do controle, que chegou às nove
e quinze. O chefe,
como sempre, só
chegou às nove e
meia.
Era a hora de agradecer o cartão. Levantei-me e bati na
porta
do gabinete. O
chefe nunca mandava
ninguém entrar. Duas batidas antes de abrir
a porta,
era
a norma. Bati
outra vez e rodei a maçaneta,
mas a porta não abriu.
Preocupado, voltei para a
minha mesa, pensando no
que poderia ter
acontecido.
Mas nada tinha
acontecido. O filho da puta
continuava sorrindo e olhando para
mim
e, na minha
mesa,
só sentava uma
moça que eu nunca tinha visto. |
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Cunha de Leiradella (Póvoa de
Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que
escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder,
Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha
urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas
línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria
Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte:
caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento,
etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando
Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão,
1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em
Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt |