REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

       

 

 

        Ontem, eu completei dez anos de serviço. E fiquei muito satisfeito. Quando cheguei ao escritório, sou sempre o primeiro a chegar, encontrei um cartão do chefe em cima da minha mesa. Em, exatamente, doze palavras o chefe me dava os parabéns por ter trabalhado todos estes anos ao lado dele.

         Apesar de, nas horas da raiva, achar o meu chefe um idiota e prometer a mim mesmo nunca ser um chefe como ele, na hora em que vi o cartão em cima da mesa, emocionei-me. O meu chefe podia ser um idiota, podia ser até um filho da puta, mas sabia ser um chefe. Satisfeito com aquele gesto, entrei no gabinete para lhe deixar um bilhete, agradecendo. Cheguei a pegar uma folha do bloco-notas personalizado, mas parei. Um cartão como aquele não se agradecia com um bilhete. Agradecia-se pessoalmente.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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CUNHA DE LEIRADELLA

O deserto

da ponte levadiça

                                                                  
 

     Voltei à minha mesa, coloquei o cartão, exatamente, no lugar onde o tinha encontrado, e comecei a trabalhar. Num escritório como o nosso, filial de uma companhia americana de mineração, cada funcionário escritura os seus próprios livros. Claro que alguns colegas já, algumas vezes, tentaram saber o total de todos os livros. Mas nenhum conseguiu. Todos viraram ex-colegas. Uma vez, eu próprio informei o chefe que um deles estava querendo saber o total do meu livro. Como prova do meu zelo, até hoje uso a caneta Parker, folheada a ouro, que ganhei como presente.

         Entrei para a Collins Woodhouse do Brasil S/A, filial de Belo Horizonte, como contínuo. Era a única vaga. Andei de jaleco branco dois anos, servindo cafezinho, até que Seu Nestor, hoje chefe da contabilidade, mas contador-auxiliar naquele tempo, me chamou e perguntou se eu sabia pagar títulos. Sabia, sim, senhor. Tirei o jaleco branco e vesti um azul, e Seu Dorneles, o pagador anterior, foi demitido.

         Um ano depois, foi a vez de D. Arlete. D. Arlete já era antiga de casa e fazia a escrituração dos impostos estaduais. Uma semana depois de ela ter entrado de licença-maternidade, Seu Nestor voltou a me chamar e perguntou se eu sabia mexer com máquinas de calcular. Sabia, sim, senhor. Quando D. Arlete voltou, não sentou nem na mesa. Foi direta ao departamento de pessoal, falar com Seu Fiuza. Levei dois anos para ganhar o que D. Arlete ganhava. Mas, pelo menos, já não usava mais jaleco.

         No ano seguinte, a bola da vez foi Seu Toninho. Seu Toninho era o assessor fiscal e Seu Nestor, quando ele ficou doente, chamou-me e perguntou se eu sabia mexer com tributos. Sabia, sim, senhor. Quando a licença terminou, Seu Toninho não entrou nem na sala. Seu Fiuza nem deu tempo. Dizem que Seu Nestor até foi aumentado por causa disso. Mas, para mim, foi ótimo. Hoje, posso dizer tranqüilamente, conheço mais legislação tributária do que o próprio Seu Nestor. E, por isso, já vai para mais de cinco anos que sou eu que faço, oficialmente, a escrituração de todos os impostos da Collins Woodhouse do Brasil S/A, filial de Belo Horizonte.

         Seu Nestor, em que pese a amizade que lhe tenho, não é à toa que trabalhamos juntos há dez anos, é um sujeito bitoladíssimo, incapaz seja do que for, se não lhe mandarem fazer. Mas, o pior, é que Seu Nestor não é só bitolado. Seu Nestor é o filho da puta mais invejoso que eu conheço. Agora, só me pede ajuda quando não tem mais jeito. Mas não me importo. Como sei que o chefe sabe quem eu sou, os dias do puxa-saco estão contados. O filho da puta tem mais de vinte anos de casa, é do tempo da fundação da filial, ganha sete ou oito vezes mais do que eu, mas não faz nem a metade do que eu faço. Só tem pose. Sem querer me meter onde não sou chamado, realmente, o incompetente é o maior desperdício de dinheiro que a filial de Belo Horizonte tem na folha de pagamento. Mas o chefe também sabe disso. Tenho certeza.

         Por isso, ontem, quando encontrei o cartão do chefe na minha mesa, me emocionei. Quem sabe tinha chegado a hora da verdade? Como ainda era cedo, concentrei-me no trabalho e esperei. Conheço bem o chefe. Quando chegasse a hora, ele me chamaria.

         O pessoal começou a chegar às nove horas. Primeiro, o filho da puta, depois os contínuos e os auxiliares, depois a Deise e a Marinha, telefonistas, e, logo em seguida, Seu Fiuza e D. Amélia, a secretária do chefe. Seu Paulino, do contas a pagar, resfriado como sempre, chegou às nove e dez, e, depois dele, Seu Antenor, do controle, que chegou às nove e quinze. O chefe, como sempre, só chegou às nove e meia.

         Era a hora de agradecer o cartão. Levantei-me e bati na porta do gabinete. O chefe nunca mandava ninguém entrar. Duas batidas antes de abrir a porta, era a norma. Bati outra vez e rodei a maçaneta, mas a porta não abriu. Preocupado, voltei para a minha mesa, pensando no que poderia ter acontecido.

         Mas nada tinha acontecido. O filho da puta continuava sorrindo e olhando para mim e, na minha mesa, só sentava uma moça que eu nunca tinha visto.

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt