REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

 

1.

sangra-se a criatura.
introduzida entre os músculos
a faca (ou lança) encontra imagens em dispersão
objectos com bolor ou com ferrugem
mãos cheias de sangue
folhas e livros com nódoas de tinta e de gordura.

para que viva e permaneça
é necessário que o golpe rasgado entre os ossos
lance nos olhos do criador
alguns decilitros de água
salgada, nascida nas vísceras de um corpo
em que algumas manchas na pele
revelam úlceras no estômago ou no duodeno.

apenas água – sal onde todos os sedimentos
(do tempo e do espaço?), todas as secreções
(da existência?) se dissolveram
para produzirem uma luz branca
que, tendo atravessado o prisma
das palavras, se multiplicou num espectro – sem limites.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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RUY VENTURA

 

Contramina

(Tirando o nº. 7, estes poemas foram publicados no número 1 da revista Suroeste, editada em Badajoz por Antonio Sáez Delgado. Surgem agora numa versão versificada.)

  *

aberta a ferida, o sangue pode alimentar o criador
mas jamais sustentará a criatura.
guardado nos intestinos, permanece –
até à solução nas entranhas
de quem se escreve e modifica.
em parte assimilado, em parte defecado
poucos vestígios deixa para além de uma memória
cujos fragmentos ninguém consegue (ou deseja) registar.

*

nada resulta da análise do sangue ou da água.
colocados sobre lâminas de vidro
não deixam vestígios que permitam ao criador
avaliar a consistência da criatura.
glóbulos e plaquetas depressa apodrecem
na insegurança de um plasma
sem capacidade para resistir à erosão
de algumas células, cujo núcleo se divide
até à explosão do tempo.


numa das lamelas há contudo
pequenos cristais de cloro e de sódio.
regressada ao vapor do início, a água
proveniente do tórax
entra de novo num ciclo feito de fogo e de metamorfose.
mesmo sem espaço, volta a irrigar
quanto transcende a estrutura
de um edifício perfurado pela faca ou pela lança.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

*

sangra-se o poema. não sobrevive –
se a água não circula pelas veias.
70 % do poema é apenas água – salgada –
sal da terra. a mina sustenta
todas as formas de vida que povoam
e elevam a existência.


haverá células mortas (o ferro evita a anemia
mas não impede a secura
e o apodrecimento das palavras).
o corpo permanece. com sangue, sem água
não passará no entanto de um cadáver –
múmia conservada como pedra
numa redoma de vidro.

   
  2.

a gordura (das palavras)
altera a circulação do sangue
nas veias que conduzem ao coração (do poema).
a cisão dos átomos difunde sobre o corpo
uma sombra invisível.
cria – na garganta e nas glândulas –
nódulos que vão resistindo à estabilidade da matéria.


a luz (não nego) atravessa a edificação dos ossos.
chega a devorar pedaços de carne
que Saturno não poderia rejeitar.
mas a gordura (das palavras)
vai alterando a circulação (no poema).
há corações que explodem
mãos que enegrecem quando a tarde avança.


cessante, a escrita anula
a escrita e a leitura.
(traduzir aumentaria a instabilidade das células.)


há ouro lançado no aterro.
a amputação dos dedos salvar-se-ia por ali.



3.

a gordura submerge os ossos –
e o poema. a anorexia (a que alguns chamam
“elegância” ou “concisão”) impede os movimentos de um corpo
que precisa de músculos para subir
até à boca – do vento ou do inferno –
lugares sem espaço nem semáforos
na circulação da alma.


é preciso que as glândulas funcionem
apenas o necessário.
o excesso e o defeito
perturbam o equilíbrio do organismo.


o trânsito, nos intestinos, rejeita uma vida sedentária.
fibras, bífidus e muita água, sem aromas, da nascente
auxiliam a digestão de um mundo
com pés mergulhados em óleo de fritura
comendo carne e tubérculos
sem qualquer capacidade de dissolução na corrente
que alimenta os vasos sanguíneos.


submersos os ossos, entupidas as veias –
o colesterol do poema impede a circulação
do sangue nas palavras (água salgada a irrigar as estruturas do cérebro).


pode bater o coração. pode bater.
sem a agilidade e o dinamismo
das estruturas e do pensamento
nada nem ninguém conseguirá contudo
evitar a síncope das válvulas do sentido.
ou, pelo menos, o inchaço dos membros inferiores –
à espera da amputação pela gangrena.


4.

o retrocesso dos músculos e da carne
colou aos ossos uma pele sem água.
o esqueleto surge à superfície.


(sem reboco, a estrutura não resiste
ao embate da chuva e do vento.
pilares e tijolos sujeitam-se a uma erosão
que, em pouco tempo, arrasa o edifício.)


a pele protege os ossos e a cartilagem.
não é contudo suficiente para compensar
a atrofia dos músculos.


o movimento do corpo apresenta
um frágil equilíbrio. quase morta, a criatura
espera sobre a mesa
o avanço do lume e a dispersão das cinzas.


5.

uma longa tábua (de castanho? de vidoeiro?)
apresenta sobre os veios
um corpo em decomposição.
o quadro, composto em Basileia
no ano de 1521, chama-nos
para o seu exercício de síntese.


pintado agora, o apodrecimento das células
seria apenas uma linha sinuosa sobre o espaço.
o grafiti ocuparia paredes e paredes
de betão sem tinta. nada mais seria necessário.


ressuscitar é recompor os átomos
carbonizados pela introdução do ferro e da madeira
entre os músculos e os ossos.



6.

a autópsia confirma o estado do cadáver.
a putrefacção suspende-se entre o quarto
e o sexto dia de enterramento.
aberta a caixa toráxica, verifica-se
uma total ausência de vísceras.
sem coração, sem baço nem pulmões
sem fígado nem estômago nem intestinos
às paredes internas encostam-se no entanto
restos de uma complexa estrutura de circulação
que conduz o sangue e a linfa
do cérebro às diversas partes do corpo.
observado o esqueleto, nota-se a presença
de cristais de salgema entre as vértebras
e também, em menor quantidade,
sobre o externo e noutros ossos do tronco.
a pele, a iniciar o processo de desidratação,
apresenta pequenas manchas, entre o verde e o roxo,
distribuídas de maneira quase uniforme –
mas com maior incidência sobre o polegar
o médio e o indicador da mão direita.


7.

cinza. sobre as cinzas, a raiz do zambujeiro.
sobre as raízes da árvore, o mijo dos canídeos
ou de qualquer bexiga apressada
na incontinência dos cálculos
literários.

*

não espereis azeite desses ramos.
placas de mármore não estimula as raízes.
sem mão na poda ou na enxertia
escórias de chumbo e cinza de papel
nada podem fazer pelo zambujeiro.

*

palavras dessas não servem para estrume
mesmo com esterco de bichos à mistura.


8.

a impureza dos astros compõe o firmamento.
o poeta entra de burro na cidade
deixando pelas ruas o estrume das palavras.
resíduos de palha e de verdura
fermentam na calçada
fazendo romper por entre as casas
línguas de fogo que queimam o rosto e os cabelos.
o odor do estrume incomoda os transeuntes.
com a mão no nariz, abanam a cabeça
não percebendo que o gás libertado
aqueceria o interior da casa onde habitam.

*

batem latas do lado do rio.
afugentam os abutres que tentam debicar
a madeira do poeta. não seria necessário.
ao seu lado, os corvos resguardam a impureza
do corpo, onde brilha ainda a memória dos navegantes
e de outro esperma lançado sobre as sílabas.



o navio reflecte a terra inteira.
os espelhos trazem de dentro todo o sangue
que enobrece a madrugada.
há risos e fumo cortando o horizonte.
as ondas agasalham a montanha.
trazem de longe o asfalto pisado
e as imagens estranhas que povoam a forja
onde fundiram a imperfeição dos sonhos.

*

nada subsiste do corpo do poeta.
ossos, cabelo, tripas, veias, pele
e outras vísceras irão participar da podridão dos mortos.
os átomos dispersar-se-ão. se o outro disse a verdade
reviverão nas árvores, na pedra, noutros pedaços
da madeira de deus (alguns, talvez, abutres como os de agora).



o estrume do poeta reverdecerá de outro modo.
em ervas daninhas que nunca alimentarão
o estômago de um anjo ou de uma besta
mas guiarão os olhos até à justiça da sombra
permitindo a constante e discreta movimentação do vento
que levará – sem pressas – sementes igualmente daninhas
até aos confins da terra.


9.

as flores, nesse prado, são de plástico.
brilham. parecem lançar sobre nós um odor intenso.
são na verdade plantas de cemitério
dispostas sobre o campo –
nos seus caules de arame revestido.


gotas de chuva deslizam nas pétalas de uma rosa.
toco-a com os dedos. não encontro água
mas imitação de água.
acrílico ou silicone colado sobre o plástico
em que a cor – iluminando embora o olhar
(e a sepultura) – nada oferece aos sentidos.


enterradas, essas flores permanecerão –
mas nunca serão flores.
para viverem, precisariam de morrer
de apodrecer – como escreveu Saúl
das rosas (verdadeiras)
com raízes, espinhos e perfume.



10.

a memória-descritiva assegura-nos
de que a estátua (ou medalhão)
é de bronze, de pedra ou cera d’ abelhas –
mas no fundo temos a certeza
de que o miolo da efígie
não passa de sabão ou detergente.


em segredo, a imagem do poeta
foi talhada nos litros de gordura
que a reciclagem juntou com devoção
em latas ferrugentas ou bacias –
e que a diligência misturou em casa
com certo químico, para esfregar a roupa.


há um ar de barrela na escultura
sujeita à erosão dos elementos
(para que a face não se reconheça).


se a cinza branqueava o pano-cru
e o sol corava, sobre a erva, a roupa branca –
do esperma, da urina ou da catinga –
porque não lavrar no sabonete
(no omo, no clarim, noutro produto –
bom prà lavagem do corpo ou da farpela)
busto ou memória que pareça bronze
pedra-mármore ou placa de cantaria?


lavam mais branco estes rituais
quando não têm espinha ou criação.
assim se evitam sobre as faces cândidas
as nódoas e as manchas do passado:
         de um lado a graxa, o unto, o beija-mão;
         do outro o escarro, o pontapé, a morte.

 

 

RUY VENTURA (Portugal, Portalegre, 1973)
Professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.