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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 16
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ALGUMAS PALAVRAS
Por João Garção
“Mistério em três actos com um prólogo e um epílogo”, a
intriga desenvolvida parece ser também um pretexto para colocar em
evidência uma grande carga lírica nos gestos, nos diálogos e no mundo em
que se movimentam as personagens (veja-se o sótão da casa de Adrian
Cactus, repleto de objectos estranhos e maravilhosos, um mundo
plenamente surrealista). Contudo, essa grande densidade poética da peça
não anula a sua intriga, antes a envolve numa atmosfera fascinante:
mesmo os momentos que, em princípio, deveriam revelar maior tensão, pela
existência de choques entre as personagens (como o primeiro encontro
entre Pedro Colibri e Justiniano) revelam uma subalternização desses
embates em benefício da introdução de um ambiente poético,
verificando-se desse modo que os conflitos assumem um cariz algo lírico.
Mas não nos deixemos enganar: subjacente está uma violência que palpita
como, sob a pele aparentemente saudável, um tumor maligno o faz. (…) |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Contacto:
revista@triplov.com |
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NICOLAU SAIÃO
PASSAGEM DE NÍVEL
Mistério em 3 actos
com um prólogo e um epílogo
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Esse ambiente lírico mas também místico (místico à maneira surrealista,
claro…) mistura personagens perfeitamente possíveis, ou melhor,
habituais, com outras mais inverosímeis. É o caso dos três gnomos (Senhorinho,
Papito e Teia d’Aranha) e do Cavaleiro Negro. Mas, se bem verificarmos,
aperceber-nos-emos de que muitas das atitudes das personagens,
inteiramente poéticas e desataviadas, se nos revelam “incoerentes”: ora
assumem um ar circunspecto, ora se lançam em tiradas decididamente
talhadas no material do humor negro e do onirismo fingidamente
quotidiano (não existem, por exemplo, as teorias astrofísicas de Isaac
Constantinople…).
Mas atenção, na peça não há daquelas construções frásicas sem
sentido ou disparatadas como é de uso em certos trechos
pseudo-surrealistas destrambelhados. Tudo assenta num realismo
discursivo que por isso mesmo é mais subversor. E isto porque os
poetas são, parafraseando Raul Hausmann, “esses idealistas em valores
de Bolsa” que realizam algo de mais grandioso do que uma qualquer
apoteose do efémero. Na peça que analisamos, é evidente que se nota
que o seu autor, dissimuladamente, deixa transparecer umas quantas “mensagens”
sob o manto dos diálogos, da intriga, da acção geral. Apologia da
sabedoria e do conhecimento, na peça de NS é fácil entender o elogio do
amor, da rebeldia, da alegria de viver e a censura do fideísmo, do
autoritarismo e dos constrangimentos sociais.
Como disse Rimbaud “o poeta fala não só pelos homens mas também
pelos animais”. E pelas coisas, acrescentaríamos nós, já que a
verdadeira poesia deverá ser uma proposta englobando todos os reinos da
Natureza.
Se nos pedissem para encontrarmos uma frase definidora desta peça,
escolheríamos a de Louis Pauwels que refere: “Se me disserem que não
existe nenhuma espécie de maravilhoso para encontrar neste mundo,
recusar-me-ei obstinadamente a dar ouvidos. Eu continuarei com os meus
fracos recursos e com toda a minha paixão a procurá-lo”.
É esse maravilhoso que se exprime em toda a peça, após o aviso que
constitui o Prólogo fornecido por Este e Aquele.
João Garção
in
“O
teatro surrealista em Portugal - Coimbra |
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PERSONAGENS
Este
Aquele
Pedro Colibri
Maria Botafogo
Adrian Cactus
Jagodes
Marta e Maria
Justiniano
Leonarda Combatente
Heraclófones
Padre Joaquim Gráfico
O Cavaleiro Negro
Doutor Filipão
Professor Honório
Gnomo Senhorinho
Gnomo Papito
Gnomo Teia d’Aranha
Cabo Miquelina
Comandante Graciliano
Homens e mulheres do Povo
A acção decorre nos tempos actuais, que
é como quem diz: em tempo indeterminado. Palco nu ou quase. Iluminação
eléctrica dada por lâmpadas de fio, como na “Guernica”. A decoração
estará de acordo com os actos: no prólogo, dois bancos de madeira
pintada; no primeiro acto, uma cama de ferro e uma cadeira de quarto; no
segundo, uma sala com espelhos e estantes de livros; no terceiro, um
armário de médico, um canapé, um cadeirão antigo e um candeeiro alto de
“abajour”. Os actores irão vestidos com normalidade, excepto num que
outro detalhe insólito: um vasto papilon, uma écharpe vistosa, um belo
casacão de abas…
Música: trechos de Haydn, Bach, Wagner,
Villalobos. Ruídos de vozes do povo, em off. |
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PRÓLOGO |
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(Palco nu. Dois
bancos de madeira, onde os actores não se sentarão)
ESTE – Coevo dos
grandes sáurios, o bosque onde ninguém mora está silencioso. A esta hora
ainda dormem os pequenos animais temerosos do dia. A lua baixou no
horizonte.
AQUELE – As torradas
estão prontas. A água ferve. Na rua a claridade espalha-se em redor das
últimas árvores que a urbanização poupou. Para os lados da Serra o olhar
pode descobrir alguns automóveis que circulam pelas curvas da estrada
que leva ao mar.
ESTE – Talvez se
possa começar a falar…
AQUELE – A mão, ao
acaso, percorre lugar de coisas na mesa misturando-se com as chávenas,
os copos, o queijo, o pão, os guardanapos.
ESTE – Há palavras
que a acompanham, que descem até aos pés e se espalham pelo chão como
insectos ressequidos.
AQUELE – Sim. Talvez
se possa começar a falar…
ESTE – Como se fosse
o primeiro dia.
AQUELE – Como se
tudo, ou nada, estivesse morto.
ESTE – Fala-se, quer
se queira quer se não queira.
AQUELE – Há um lenço
no bolso do casaco que faz um pequeno volume contra o lado direito do
peito. Alguém acende uma lâmpada eléctrica. Uma porta abre-se e depois
fecha-se.
ESTE – Começaram
definitivamente os mistérios!
AQUELE – É a altura
de começar a alegria…a indiferença…
ESTE – Sejamos
sinceros! No fundo, que importam os aviões que se despenham sobre as
árvores ou as casas? Hoje existo como se soubesse os nomes de todos os
meus antepassados. Usariam chapéu? Comeriam figos, olhariam o sol por um
vidro baço?
AQUELE – Calemo-nos,
por favor. Antes de falarmos como se o diabo viesse sobre os nossos
passos!
ESTE – Ora bem!
Vamos então recapitular: o homem sai da cama…
AQUELE – Respira com
certa convicção…
ESTE – Calça os
sapatos…
AQUELE – As meias
não estão rotas. Atenção ao passarinho!
ESTE – Onde é que
isso se integra?
AQUELE – Na retorta
já se nota alguma cor. Hum, hum…
ESTE – Poderemos
rezar uma oração?
AQUELE – Sem
comentários.
ESTE – Compre-me uma
florzinha, meu senhor. E que seja pelos seus mortos!
AQUELE – Lá fora não
há negrume. É um segredo tão grande como urinar contra uma parede! Esta
frase é tão estranha como um bom-dia…
ESTE – Delicioso,
este queijo! Como é estranho…Posso contar até cem, até quatrocentos, até
cinquenta mil, que nunca encontrarei o perfil de quantas raças há na
Terra. A minha infância começa mesmo agora!
AQUELE – Digo não,
convictamente. Se tiver dinheiro, irei comprar um par de calças novo.
Como as coisas vulgares nos entram no pâncreas!
ESTE – Tudo poderia
começar a todas as horas. É preciso é querermos.
AQUELE – Ou não
querermos.
ESTE – A estupidez é
um privilégio entre parêntesis. Vamos falar a sério como costumávamos:
começando – na vila de nome tal…
AQUELE – Agora
levanto-me. E depois sento-me. Ponho a mão direita por cima da cabeça,
como um guarda-sol e de repente tudo ficou mais explicado. Como é fácil
ser alegre!
ESTE – E como é
bonito!
AQUELE – Delicioso!
Uma vez, li num jornal que os príncipes também podiam ser pessoas
simples…
ESTE – Lá fora os
passarinhos cantam. Ó, a santidade da Natureza!
AQUELE – E depois o
gajo ferido começou a abanar a cabeça. Tinha levado com duas tracejantes
nas tripas. A seguir rebentaram-lhe os cornos à coronhada.
ESTE – O barco,
primeiro, para contornar as ilhas, dirigia-se para Sul. E eu pensei:
esquisito, a minha terra fica ao Norte! Mais adiante, os peixes-voadores
começaram a seguir-nos a rota.
AQUELE –
Conhecêmo-nos num café de Lisboa. Tinha uma blusa branca que sublinhava
a pequenez dos seios. Não fumava.
ESTE E depois,
quando estava quase em ponto de rebuçado, apareceu o major.
AQUELE – É difícil,
com o relógio estragado, chegar a tempo aos encontros!
ESTE – Que
significará a expressão “Morto com um colapso cardíaco”?
AQUELE – O que é
preciso é entrar pela porta certa. Que Deus se amerceie de nós!
ESTE – Que S.
Jerónimo nos guarde o armazém! Doutra vez, li num jornal que uma criança
morreu no fundo de um poço em Itália, enquanto os bombeiros durante seis
dias tentavam sem êxito trazê-la à superfície.
AQUELE – A criança
comunicava com a mãe através de um tubo acústico mandado instalar sem
encargos. No fim, disse: “Mãe, porque não me tiras do escuro?”.
ESTE – Tinha só
cinco anos. Nessa idade ainda não se têm noções de filosofia.
AQUELE – Nem barba.
ESTE – Enfim, é a
infância da arte. Pergunto a mim mesmo…
AQUELE – Atenção! Um
apito de fábrica significa que o Génesis está mesmo por aí. Iniciemos
então o que se espera já de nós.
ESTE – O apito da
fábrica soou. É o momento de juntar dias e noites, como durante os meses
de Inverno. Quer tomar qualquer coisa?
AQUELE – Um copo de
vinho tinto. Faz bem aos intestinos e adoça o coração, sejamos homens ou
perus. Mas, afinal, em que é que baseia a sua argumentação?
ESTE – Poderemos
dizer, sucintamente, que é uma história de roubo. Nada de filosofias, um
tipo sai sempre disto com os bolsos vazios…ou rotos, ou então com uma
dor nas costas, ou nos ombros. Deixe-me apagar a luz.
AQUELE – Gosto mais
assim, está-se em plena sombra. Ouça, vou-lhe dizer um segredo…um grande
segredo. Mas não o repita a ninguém, está bem? Um dia, vi um gato
perseguindo um morcego dentro de uma loja de electrodomésticos. Depois
de muita brincadeira, o homem da loja veio apagar a luz da montra,
deu-se conta de tudo e, afastando o gato, pôs o morcego na rua. E o
morcego lá foi esvoaçando, esvoaçando – o gato não o magoara – até se
perder na penumbra. Foi isto em África…lá os gatos não são tão risonhos.
ESTE – Nem os
morcegos.
AQUELE – Enfim,
deixemo-nos de contos religiosos. Afinal, o que é que o meu amigo veio
aqui fazer?
ESTE – Isso é o que
todos perguntam. Quero eu dizer, a sua interrogação é legítima:
efectivamente estou vestido como para uma festa. Sabe, sou criado num
restaurante, o chamado empregado de mesa. E pode crer que já me vi a
contas com histórias de arrepiar…ou de ir à retrete…lá como lhe queira
chamar.
AQUELE – Uma
borboleta!
ESTE – Que estranho!
Uma borboleta, esvoaçando, em pleno equinócio. E como as suas asas são
amarelas!
AQUELE – Como o seu
pequeno corpo brilha sob a lua de Agosto! Em volta do castanheiro junto
àquele muro na tal azinhaga, centenas de abelhas tentavam libar o polén
disperso em flores sinistras.
ESTE – Ora urine o
meu amigo nas suas palavras…subtis! O que eu queria dizer-lhe e pelos
vistos não consegui era que o mundo ora incha… ora desincha…é como um
balão desses que os gaiatos a dada altura…pum!
AQUELE - Foi cerca
dos trinta e cinco anos que ele se apercebeu que à sua volta cresciam as
caras patibulares. Gente suja, gente porca, gente cuja garganta continha
várias espécies de pus, cuja pele era baça como a dos enforcados e que
cheirava a trampa seca, ovos podres…
ESTE – Brrrr! Uma
vez, tinha eu ido ao Porto, passei por uma lixeira municipal: aquilo
deu-me volta às tripas, mas não havia nada a fazer, a estrada passava
mesmo ao pé!
AQUELE – É servido?
ESTE – Um bolo de
arroz? Não, obrigado, prefiro o bolo-de-côco.
AQUELE – Tem razão,
é mais sugestivo. Escute: o vento de repente amainou. Andará alguém lá
fora? Haverá lobos…mulheres de saia rodada?
ESTE – Há tantos
anos…havia. Tenha eu uns quatro anos, ouvi um dia os pais falarem que lá
para os lados de S.Julião os lobos eram mais que muitos. Durante o
Inverno, davam-lhes caça. Uma noite, na Herdade do Chancrão…o lobo veio
e levou uns animais domésticos. Os cães e os homens deram-lhe caça. A
certa altura, num mato mais cerrado, dispararam sobre o lobo, que se
havia escondido num maciço de arbustos. Quando foram por ele, tinha-se
transformado num vagabundo muito conhecido no lugar.
AQUELE - Era,
portanto, lobisomem.
ESTE – Claro. Andava
com uma saca de quadrados, mesmo folclórica. Parece que era para levar
meninos dentro. Os que não comiam a sopa e a fruta.
AQUELE – O demónio
serve-se sempre de vagabundos. Repare que nunca se serve, por exemplo,
de um banqueiro.
ESTE – Ou de um
director de Finanças…
AQUELE – Ou de um
maitre-d’hotel…
ESTE – Ou de um
bispo…
AQUELE – Ou de um
médico…
ESTE – Alto lá!
Nisso, lembre-se do “Médico e o Monstro”!
AQUELE – Por favor,
não me estrague os raciocínios! Vamos é a coisas importantes: podemos
começar então?
ESTE – Já falta
pouco. Deixe lá, que terá muito tempo para se aborrecer.
AQUELE – Como os
distintos assistentes…
ESTE – Não assim tão
distintos. Talvez felizes, ou desgraçados. Enfim, não divaguemos. Todos,
mais ou menos vezes, tomamos banho. É o que nos torna iguais uns aos
outros.
AQUELE – Isso é o
que você pensa. Existem canalhas que nem com o chapelinho vermelho na
mona se tornariam deglutíveis. E há mulheres de roda…Nem lhe conto nada!
Até as tripas lhe saíam pela boca!
ESTE – Refere-se a
canalhas? Também percebo disso. E de luas. E de manteiga. E de
rosas-chá. Bem vê…Afinal, tudo é mais ou menos assim-assim…
AQUELE – O menino
fala bem, mas vai-se a ver e é tudo pechisbeque. Diga-me antes: a peça
termina bem?
ESTE – Mete várias
gentes alucinadas: um homem, algumas mulheres…animalejos
fabulosos…crianças…A história gira à volta do especialista de uma
empresa de aparelhos científicos que vai orientar a instalação de um
radar para a captação de sinais de satélites e naves galácticas numa
pequena cidade do interior. Depois dá-se o bom e o bonito!
AQUELE – É sempre a
mesma jiga-joga…Dramalhões, tragédias…
ESTE – Pelo
contrário, é uma comédia! No fim duas das personagens dão o badagaio.
Pode crer, vai-se fartar de rir!
AQUELE – Disseram-me
que a peça começava quando o herói, acabado de chegar à povoação,
enquanto muda de roupa e lava o rabo no seu quarto da pensão “Setenta e
Dois”, se apercebe de que conhece muito pouco daquilo que está para lá
das realidades.
ESTE – Quem diz lá
diz cá. Não. O herói não lava o rabo, era demasiado metafísico. Lava é
as mãos. A peça começa quando o herói decide lavar as mãos no pequeno
lavatório de pó-de-pedra azul e, olhando pela janela, repara nas pessoas
que passam na rua com um ar entre o espanto e a sordidez contente.
AQUELE – Oh!
ESTE – Como as horas
passam depressa! Estamos para aqui a conversar… a conversar – e de
repente é noite.
AQUELE – Olhe como
as luzes se acocoram lá para o Rossio!
ESTE – Ah!
AQUELE – Não
disfarce, todos sabemos que a peça trata da relação entre os mundos
sagrados e profanos. E dos preços. E das alcunhas. E das palavras
perdidas.
ESTE – Hi!
AQUELE – Em contacto
com a Natureza recebem-se belas lições. Por exemplo: sabe quando, em que
época, ser semeiam os agriões?
ESTE – Os caçadores
lá iam, com alguns cães atrás. Depois, passavam algumas mulheres, para a
monda. Mas tudo com um ar distante, abstracto. Como se tudo fosse uma
grande saudade.
AQUELE – Deixe-me
tirar-lhe… do ombro…Ora já está!
ESTE – O que era
isso?
AQUELE – Um
mosquito. E lá em baixo, diz-se, na cozinha, a dona da Pensão aprontava
o jantar. Suculento, como todos os jantares de teatro.
ESTE – Coelho
estufado…
AQUELE – Bacalhau à
Gomes de Sá…
ESTE – Atum fresco
de cebolada…
AQUELE – E é quando
o herói chega à janela e contempla o céu estrelado.
ESTE – Não esquecer
que o homenzinho era assim a modos que cientista…
AQUELE – Coitado!
ESTE – Andar de
pucarinho com Deus é o cabo dos trabalhos. Ficar dentro dos seus
desígnios é coisa de arrebentar!
AQUELE – Veja, por
exemplo, Dostoievsky.
ESTE – Mas esse era
professor e não astrónomo!
AQUELE – É a mesma
coisa. Entre um professor de ski e um geómetra existe apenas a diferença
do número do colarinho do pescoço da camisa!
ESTE – Excepto
quando um nasceu sob o signo do Aquário e o outro do Leão. Ou não
acredita na predestinação?
AQUELE – Tal como
acredito na fotografia…ou na mecânica…ou na motonáutica…
ESTE – Pelo que
vejo, um estóico!
AQUELE – Diga antes:
um gastrónomo. Com efeito, sei de ciência certa que o herói preferia o
bacalhau cozido com batatas.
ESTE – Percebo.
Aquela velha questão do azeitinho puro…O lento prazer da batatinha que
se leva à boca!
AQUELE – Bom, nada
de divagações místicas. O herói entra portanto no seu quarto de Pensão…
ESTE – Numa mão uma
mala, na outra mão um saco. Camisa azul clara de Verão. Calça cinzenta
leve. Um blusão cor de pervinca. Sapatos de basquetebolista daqueles
confortáveis. O cabelo aloirado.
AQUELE – E depois de
pousar as malas junto ao guarda-fatos espreguiça-se, puxa as calças para
cima ajeitando o armamento e dirige-se à janela, que abre. Pôça, como é
vasto o continente!
(Escuridão
rápida). |
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I Acto
Primeira Cena |
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(Quarto da Pensão
“Setenta e Dois”. Cerca das sete da tarde)
COLIBRI – (respirando
fundo) - E cá estamos nós! Um pé à frente do outro e pronto. Embora
tenha vindo de automóvel. O gajo da recepção tem ar de facínora…Deve ser
da barbicha. E vai-se a ver é um excelente cidadão. A realidade frustra
sempre os nossos melhores sonhos…(Vai até junto da bagagem)
Vejamos: três pares de calças, cinco camisas, cuecas e camisolas,
lenços, um exemplar de “O Rei dos Álamos”, uns binóculos, duas tabletes
de chocolate, pastilhas e comprimidos. Material diverso. Um guia dos
caminhos-de-ferro. Enfim, não tenho de que me queixar.
LEONARDA COMBATENTE
- (batendo à porta) – O senhor doutor dá-me licença?
COLIBRI – Entre!
LEONARDA – Que de
estrelas! Parece que o mundo entra inteiro pela janela!
COLIBRI - (surpreendido)
– Acha? Esta deixa-me atónito… Ainda é de dia!
LEONARDA – Se bem
percebi, você estará cá mais ou menos até ao próximo mês de Março. E
depois, já não volta?
COLIBRI – Depende.
Se os técnicos que depois virão ainda tiverem necessidades dos meus
préstimos, virei por mais um mês ou dois.
LEONARDA – O senhor
doutor é portanto astrónomo…ou lá o que é?
COLIBRI – (com
decisão) – Nããão! Sou especialista em localizações. Para se montar
uma estação de captação como a que aqui vai ser montada é preciso
escolher-se o lugar mais conveniente. Tudo depende de um conjunto que
mete perfis de horizontes…casas sugestivas…o próprio ar que sopra nas
vielas…
LEONARDA – Portanto,
é padre. E como quer o senhor Padre os ovos? Mexidos ou estrelados? Ou
gosta mais de croquetes de carne de vaca?
COLIBRI – (distraidamente)
– Não, minha senhora, não sou Padre. Tive de ouvir muita música…Mozart,
Beethoven, Canteloube…até completar a minha educação. Não faça caso,
estou a divagar. Sabe que há um futuro, minha senhora? Eu tento
perscrutar esse futuro, através de actos simples: semear alguns agriões,
estudar um pouco o curso de grandes rios, dizer numa taberna certas
anedotas sem maldade e muito espírito. Depois, é o resto. Em suma: aqui
há uns anos, alguns homens de ciência pensaram que era imprescindível
montar uma estação de captação de sinais exteriores à nossa Terra:
satélites, naves oscilando por aqui e por ali…Depois de muita
insistência conseguiram que o nosso Príncipe entendesse a importância da
coisa. A seguir foi fácil, entregaram o assunto à idoneidade da firma a
que estou ligado por razões sucintas: ter andado na escola primária com
o filho do proprietário. Este, numa tarde de trovoada, disse ao Pai:
para este trabalho, a prospecção de localizações, só o Pedro Colibri. E
cá estamos nós.
LEONARDA – As
estações vêm, as estações vão…É como o título de um conto policial! Sim
senhor doutor, creio que percebi. Vossência é assim como um
farmacêutico, desses que apanham as quintessências. E olhe que é um
trabalho bem bonito!
COLIBRI – (com
certa tristeza) – Peço desculpa, mas tenho de discordar. É um
trabalho penoso, arrastado, por vezes perigoso. Sabe, é que há as
radiações.
LEONARDA – (assustada)
– Diabos me levem! Então isso mete bombas H? E o material passará, mesmo
em parte, pela minha Pensão?
COLIBRI – (prazenteiro)
– Não se assuste, minha senhora. As radiações a que me refiro são de
outra ordem. Talvez até mais perigosas, porque partem de todo o lado.
Sabe, é que o corpo humano é uma pilha de alta voltagem. Pode mesmo, em
certas circunstancias, influenciar o sistema ambiente no seu âmbito de
acção. De uns saem raios beta, doutros gama, doutros ainda cores que nos
deixam perplexos. Essa é a matéria mais perigosa…porque não se sabe
ainda, com garantias, qual a causa, ou de que lado nos virá. (Ligeiramente
inquieto) Certa vez, o impedimento veio dum velhote que ao princípio
me parecera absolutamente inofensivo…
LEONARDA – Mas
estamos para aqui a conversar…e lá se vai a sopa. Se precisar de alguma
coisa, senhor doutor…
COLIBRI – Chamarei,
esteja descansada. Mas, se não se importa, a partir de amanhã passarei a
tomar as refeições aqui. Não é por nada, mas é necessário manter-se uma
grande disponibilidade, assim como que um estado de pureza, entende? E a
frequentação de convivas às vezes perturba-me as faculdades. Tenho pois
boas razões para lhe pedir que providencie, valeu?
LEONARDA – (em
aparte) – Como ele fala bem! (Um besouro entra no quarto pela
janela aberta e esvoaça em círculos) Oh! A Natureza acorre ao
chamamento do Verbo! (O besouro sai pela porta, demandando melhor
poiso. Leonarda segue-o agitando um lenço branco, perseguindo-o sem
qualquer convicção).
COLIBRI – (algo
perplexo) – E eis que o universo se precipita ao meu encontro! O ar
está repleto de presságios…além disso a estalajadeira é maluca. O que
aliás me agrada, sempre me dei bem com os que sabem colorir as suas
próprias indecisões. (Vai até à janela) Quem sabe para o que
estarei guardado…O sol baixou, começará daqui a pouco o crepúsculo. E
contudo…Não sei porquê, mas uma estranha esperança me enche o peito…e
não deve ser da gasosa que tomei no cafezito da praça!
(De repente,
um gnomo de média estatura materializa-se com um flop no meio do quarto.
É louro e usa óculos, veste calções de ginástica verdes e uma camisola
cor-de-rosa, sapatilhas de basquetebolista e uma rosa branca do lado
esquerdo. Colibri encara-o sem se atrapalhar)
PAPITO – E hop! Meu
caro Colibri, saúdo-te! (olhando-o atentamente) Diviso na tua
nobre face sinais de confusão…Mas eis ao que venho: faço-te saber que
ainda antes que o galo cante três vezes terás conhecimento de coisas
singulares…
COLIBRI – Isso é
fácil de dizer. Se formos a isso até se pode inventar de novo a “Nona
Sinfonia”…
PAPITO – Em todo o
lado onde estive ultimamente os cépticos eram a maioria. Mas tu pareces
ser um tipo sensato. Sabes que estás em grande perigo?
COLIBRI – (um
pouco atarantado) – Deixa-te de graças!
PAPITO – É como te
digo. Encontrarás o alfa e o ómega quando menos o esperares. Posso
dar-te um conselho? Acredita sobretudo nas baixas materialidades…desde
que tenham um certo espírito indefinível…Em breve o verás…mas deixo-te
esta rosa paras que mantenhas o sangue-frio.
COLIBRI – (pondo
a rosa ao peito) – Obrigado. Em relação ao mistério da existência
não há nada a fazer, com efeito. Há isto (aponta para a sua figura)há
quilo (aponta para fora) há estrelas e cometas, ainda que tudo se
possa traduzir, em suma, tudo fica transfigurado lá de tempos a tempos.
PAPITO –
Entendeste-me bem! E agora adeus! (desaparece envolto em fumo).
(Colibri
agita o fumo com as mãos e dá um ou outro pontapé no vácuo. Enquanto
está nisto batem à porta. A noite caíu definitivamente)
COLIBRI – Entre quem
é!
HERACLÓFONES – (entrando,
com uma vénia digna) – Meu caro senhor! Não quis deixar de o vir
cumprimentar. Sou seu colega de pensão. Filósofo, para o servir. Também
relojoeiro, hortelão e calista e se precisar de umas bebidas em
condições é só dizer a marca.
COLIBRI – Muito
agradecido, senhor…
HERACLÓFONES -
…Rudolfo Heraclófones! Mas já tenho usado, algumas vezes, outros
nomes…coisa de somenos. É que também lanço o meu versinho na
tranquilidade dos dias…Em suma: ao seu dispor…
COLIBRI – O mesmo
digo eu. Sabe ao que venho?
HERACLÓFONES – Hum,
hum! Já me chegou qualquer coisa aos ouvidos. Antecipo-me ao destino, se
me permite: tenha cuidado! Nesta terreola as coisas não são como
parecem: de noite há presenças estranhas pela rua…Talvez dragões…talvez
feiticeiros…Vá-se lá saber!
COLIBRI – (mirando-o
incisivamente) – Ficou viúvo muito cedo, não é verdade?
HERACLÓFONES – (com
um sobressalto) – Os segredos…são como as cerejas! Nesta terra há um
mistério que é qualquer coisa…ou tenebroso…ou maravilhoso…Em todo o caso
não conte muito com a paz e o sossego. Como calcula, há sempre ameaças
que chegam, coisas indefiníveis como o pó…Se não lhe vierem do norte,
vir-lhe-ão do sudeste…ou do lado do mar – o vasto oceano onde se acoitam
os celenterados...(sonhador) Foi em Junho que ela morreu! O velho
pessegueiro cobrira-se de flores cor-de-rosa forte. No quintal as
galinhas pareciam doidas, bicavam, esgravatavam…Ficou estendida no
corredor ao pé do quarto grande, da boca escorria-lhe um fio de sangue.
O coração rebentara-lhe. Ficou-se como um pavão real! Tinha demasiadas
coisas por dentro, era como um baú muito cheio…(mirando de novo
Colibri atentamente) O senhor deve apreciar uísque, não é verdade?
Tenho por ali algo que o deslumbrará!
COLIBRI – A verdade
é que não bebo nem fumo. Ou por outra: bebo mas só de Inverno. A chuva
põe-me de pé atrás…e então bebo para esquecer.
HERACLÓFONES – O
Inverno propõe-nos sempre grandes raciocínios…Mas agora deixo-o, senhor.
Tive muito gosto, muitíssimo gosto até!
COLIBRI – O mesmo
digo eu. E obrigado pelo aviso…
(Heraclófones
sai. Colibri bate com as mãos e põe-se a arrumar objectos)
COLIBRI – (entredentes)
– Dá-me a impressão que as influencias astrais estão encarquilhadas…Ou
então sou eu que desperto em mim ilusões, quimeras…Saber falar, que
bonito! Lá fora é noite e, contudo, eu estou para aqui perfeitamente
normal. Factos, dêem-me factos…
(Batem à porta.
Colibri, sem se aborrecer, vai até ela e abre-a. Quem ali está é uma
rapariga morena e de olhos vivos. Parece nervosa)
COLIBRI – Boa noite,
menina…
MARIA BOTAFOGO –
Maria. Permite-me que entre? Venho talvez devassar a sua intimidade, o
seu descanso…
COLIBRI – Isso não
importa! Queira entrar…Já lhe chego uma cadeira…
MARIA – (sentando-se)
– Obrigada. Vou entrar já no assunto sem subterfúgios. Além do mais
tenho pouco tempo, ainda que a noite mal tenha começado. Ora bem: tenho
um irmão, o Adrian, que de há uns tempos a esta parte (sorri) se
entrega a experiencias singulares. Experiencias algo inquietantes, que
perturbam sem ofender. Note bem que eu sou quase uma rapariga do povo,
porque apesar de rica conservei sempre cá por dentro a vontade de comer
pevides e amendoins. Entende-me?
COLIBRI – (olhando-a
atentamente) Mas tem consciência disso?
MARIA – (com um
sorriso brejeiro) – O silencio…e o ruído…interpenetram-se por vezes.
Ou com muita frequência! Certo?
COLIBRI – (com um
ar sereno) – Nem mais! Ora continue…
MARIA – Moramos numa
quinta onde há figueiras, couves, coelhos e até um poço junto a um
castanheiro. O burro chama-se Aldebaran e coxeia um pouco; quando
tasquinha os cardos assume um ar sonhador…A uns oitenta metros do solar
há uma outra casa de dois andares a que chamamos “O Sótão”. É lá que de
há gerações se guardam objectos trazidos, pelos antepassados, de todos
os cantos que visitaram. Tem três divisões: duas no rés-do-chão e uma no
primeiro andar. A de cima, que é muito grande, contém móveis, objectos
estranhos – normais, quero eu dizer – e vitrinas, fatos de rainhas e
palhaços, brinquedos e muitas pinturas. Nas dependências de baixo o
Adrian instalou um gabinete cheio de livros, com um espelho em cada
parede. (fica absorta) Um dia mirei-me num: fiquei um bocado
tonta e o Adrian disse-me que me devia ter mirado demais. (fica
absorta) O Adrian, vindo da outra divisão, onde nunca entrei,
recomendou-me que não me mirasse, porque os espelhos faziam parte duma
experiencia com raios e bissectrizes…Mas não sei se o estou a maçar!
COLIBRI – (com
voz rouca) – Por quem é! Peço-lhe que continue…
MARIA – Soube há
dias, pelo Padre Joaquim Gráfico, director do jornal da terra, que o
senhor chegaria em breve. Como especialista, gostaria que conversasse
com o Adrian. Estou inquieta. Há dias vieram contar-me que o Senhor
Justiniano, um homem muito influente e que já foi deputado às Cortes,
disse umas coisas sobre o meu irmão que me assustaram. (repentinamente
ansiosa) Diga-me, senhor Colibri, acredita em feiticeiros?
COLIBRI – Claro que
sim…Mas só nos magros. E você, Maria, acredita que ainda há quem defenda
que o Poder, sendo um resultado das forças sociais naturais, é um bem e
não um mal?
MARIA – Não o
percebo, senhor…
COLIBRI – (com um
gesto apaziguador) – Nada tema. Falarei com muito gosto com o seu
irmão. E deixe cá as minhas perguntas paralelas…
MARIA – Oh!
COLIBRI – Porque diz
oh!? Irei visitá-lo de manhãzinha.
MARIA – Hei-de
preparar-lhes um pequeno-almoço de figos frescos e mel…
COLIBRI – Irei!
Chegarei pelas nove horas, quando os ares já se habituaram ao novo dia.
MARIA – O senhor
Heraclófones servir-lhe-á de cicerone e guia.
COLIBRI – Os anões
esperam na sombra a parte do fogo…
MARIA - …e os
vigilantes da noite agitam os seus leques enormes e cheirando a
madressilva…
COLIBRI - …enquanto
nas ruas, como o “cutter” dum milionário grego, a esperança abre
caminho…
MARIA - …aos
retratos que alguém traz numa algibeira sem ser por engano.
COLIBRI – Oh!
MARIA – Ah!
COLIBRI – Seja então
pelas nove horas. Mas porque diz ah!?
MARIA – Gosta de
ovos mexidos? E de pêssegos sobre o pão acabadinho de fazer?
COLIBRI – (surpreso
e deliciado) – E dos filmes sobre os primeiros anos do século? E de
cerâmica “cheyenne”?
MARIA – Oh!
COLIBRI – E diga ao
seu irmão que irei equipado: fato-macaco de amianto, vara caduceu,
lâmpada eléctrica de luz fria, enfim, pode crer qu4e sou competente no
meu trabalho. Falaremos mais intensamente depois…sobre esse tal
Justiniano.
(Maria olha-o
com naturalidade. Vai a sair, mas de repente entra pela janela um homem
vestido de preto como o Zorro. Mas na cabeça, em vez do chapéu de aba
direita, usa um barrete de dormir também preto. É o Cavaleiro Negro).
CAVALEIRO NEGRO – Já
me habituei a que estranhem as minhas entradas súbitas, por isso nem
peço desculpa. Menina Maria, Senhor Colibri…
MARIA – (encantada)
– O Cavaleiro Negro! Há uns bons quatro ano que não o divisava…desde
aquela tarde, nos arredores da Herdade dos Cucos…
CAVALEIRO NEGRO – Em
que amachuquei o focinho a dois pica-paus…
COLIBRI – Linguagem
vernácula! Agrada-me…
CAVALEIRO NEGRO –
Senhor Colibri: sei ao que vem. E sei que há gente que está interessada
em lhe frustrar a missão. Há interesses furta-cores que se movem na
sombra. Fala-se numa cadeia de hotéis…
COLIBRI - …rente ao
mar…no melhor, mais apropriado sítio para a montagem da Estação…
CAVALEIRO NEGRO –
Estamos conversados, pois. Saiba que andarei por aqui e por ali, sempre
de olho atento e pé sereno. Apesar da minha aparência de habitante da
fábula, não se equivoque: já tive necessidade de matar.
COLIBRI – Claro. As
comédias são sempre lugares onde escorrem matérias inquietantes. A vida
e a morte são tão naturais que por vezes trocam de posições.
MARIA – Quando
trocam!
CAVALEIRO NEGRO – A
mim, o que mais me preocupa é a questão da memória. Sou pessoa de
hábitos simples. Estou agora mesmo a lembrar-me da última vez que cortei
o cabelo. E o que me ocorre é: lembro-me de tudo perfeitamente? E se não
me lembro? E se em vez do corte do cabelo for, por exemplo, uma mensagem
sagrada de algum momento, de alguma pessoa que eu ame? Lembro-me às
vezes de acordar, e ir ao penico, de sacudir uma mosca. O que é que isto
representa?
COLIBRI – Não
gostaria de dizer uma asneira, mas já se lembrou de ir ao dentista?
MAQRIA – Ou de comer
papas de aveia?
CAVALEIRO NEGRO – A
minha veia erótica é toda…como dizer…bucólica.
MARIA (ligeiramente
sarcástica) – Outro que errou os estudos! (em voz alta)
Querido Cavaleiro Negro, tem pouca confiança no destino!
COLIBRI – Já me
apercebi que as coisas por vezes não coincidem. Apesar de tudo, não faça
caso. As coisas aconteceram todas há muito tempo, muitíssimo tempo…não
vale a pena preocupar-se. Olhe, faça como eu: já desisti de assentar
recados em folhinhas de papel. Esquecia-me sempre onde as guardava, era
uma confusão. Agora prefiro confiar no instinto, assim como assim tanto
faz começar por cima como por baixo! Digo isto na brincadeira, claro!
MARIA – Posso então
contar consigo? (olha Colibri intensamente)
CAVALEIRO NEGRO –
Hum, hum!
COLIBRI – Mesmo que
se não queira, somos sempre levados a consentir na cabeça frases e
palavras idiotas…Coisas que ouvimos aqui e ali, a estática das
conversas! Às vezes é desesperante…Estou a olhar um pedacinho de
presunto, ou uma esquina de rua, ou um gato cinzento…e aparece-me na
cabeça um bocadinho do discurso de um ministro que ouvi por acaso, sem
ter tido tempo de fugir, na televisão…
CAVALEIRO NEGRO –
Por mim, não há que enganar…é fogo para cima. Já liquidei três.
MARIA – Ai, às vezes
tenho medo de mim. Mas não posso deixar de rir sempre que dão cabo de
um!
COLIBRI – Ná, eu
limito-me a fechar o aparelho. E dou a seguir um grande traque…
CAVALEIRO NEGRO –
Também dou um traque, mas não fico aplacado. Sou todo pão pão, queijo
queijo…
MARIA – (divertida)
– Que ditado mais patusco! Não podia dizer, como toda a gente, sou todo
orelha bife/ progressão matemática?
CAVALEIRO NEGRO –
Bom, não se esqueça senhor Colibri. Para os assuntos fortes sou todo
ouvidos. E ainda não me conseguiram apanhar!
COLIBRI – Ah!
MARIA – Oh!
(Mas antes
que o Cavaleiro possa sair entra no quarto Leonarda)
LEONARDA – (para
Colibri, como que interdita) – Está alguém lá em baixo que o quer
ver e falar consigo. Mas não se esqueça da sopa, deve estar cheio de
fome. (para o Cavaleiro Negro) Então, Ricardo, tens-te divertido?
CAVALEIRO NEGRO –
Chiu! Não devem saber o meu nome!
LEONARDA – (sonhadora)
– Os teus olhos…eram como barquinhos ao longe! Nunca percebi bem porque
não gostavas de hamburguers…
COLIBRI – Então até
amanhã, Maria. (para o Cavaleiro Negro) Senhor Ricardo…
CAVALEIRO NEGRO - …
LEONARDA – Não faça
caso, é uma jóia de moço. E tem uns lindos cabelos! Aconselho-a a ir
pelas escadas dos hóspedes, Maria. Evitará assim os maus encontros. (para
Colibri) Então, doutor, já encontrou a palavra perdida? (Maria
sai. O Cavaleiro Negro sai pela janela. Leonarda, após pequena
hesitação, também sai. Passam alguns instantes. Batem à porta, enquanto
Colibri ajeita ao espelho o papilon).
Segunda Cena
(Entra
Justiniano. É um homem forte e bem vestido, com uma grande gravata
vermelha. Ar inteligente e decidido, mas matreiro. Casaco preto e calça
cinzenta de riscas. Algo caricatural, como um primeiro-ministro. Um
duro, em suma).
JUSTINIANO – (com
perfeita cortesia) - Senhor Pedro Colibri, não é verdade?
COLIBRI – E que é a
verdade? Mas disse bem, senhor…
JUSTINIANO –
Justiniano Santos. Agricultor e comerciante. Posso sentar-me?(senta-se)
COLIBRI – Sabe jogar
bilhar?
JUSTINIANO – A minha
média é oito carambolas por tacada.
COLIBRI – Eu também
prefiro o vinho tinto. E agora que já nos conhecemos, diga-me ao que vem
se faz favor.
JUSTINIANO – (com
um olhar frio) - Pelo que vejo, um humorista…
COLIBRI – (interrompendo-o
com um sorriso suave) – Engana-se. E desiluda-se também. Não sou um
humorista, a não ser que dê esse nome a um tipo que esteve na guerra,
que já leu muita coisa, que já visitou o parlamento e que já fornicou
com duas chinesas e quatro pretas. E agora peço-lhe que fale, mas sem
subterfúgios que não lhe ficariam bem
JUSTINIANO – (com
acidez) Também não sou um humorista e também já vi morrer pessoas. O
que sou…é um bom coração! Às vezes, chego a suspeitar que a doçura da
vida tem como intuito dar-nos cabo das artérias! Quando eu era
pequeno…Mas deixemos isso. Vou antes fazer-lhe uma proposta…uma pergunta
simples: já leu as teorias astrofísicas de Isaac Constantinople?
COLIBRI –
Perfeitamente. Mas não vejo onde quer chegar…
JUSTINIANO – Claro.
Claro que não vê onde quero chegar…(escarninho) Ah! Quando é que
tu, coração, deixarás de ser ingénuo? O cavalheiro não percebe onde
queres chegar! Se calhar também não sabe o que é a teoria da
relatividade…ou a mecânica dos paradoxos…
COLIBRI – (incisivo)
Se se refere ao ponto em que Isaac Constantinople defende que a massa
estelar se renova constantemente, tendo apenas como fio condutor o sonho
e o acaso objectivo, cuja intenção é fazer perdurar as inocentes
recordações provindas da paixão e do terror, da pena e das uvas de Maio,
das sedimentações do caulino e do caule de centeio quando as rochas da
montanha próxima são de granito cinzento claro, o que proporciona à obra
ao verde a sua primeira grande transpiração, antes do sal efectuar no
mercúrio e no enxofre certas acções inomináveis…claro que o percebo. Mas
o que o senhor pretende dizer-me não é isso. O senhor Justiniano tem
maneiras de enfermeira e de polícia numa segunda-feira de Inverno!
Adivinhei imediatamente que o senhor Justiniano está muito preocupado
com uma coisa muito mais bonita ou talvez não: a saber – poderá a sua
propriedade aumentar-se? E outra ainda: poderá continuar a roubar no
peso do açúcar e do café? E, como corolário: serão perigosas para a sua
reputação as experiencias inofensivas do Adrian Cactus? Por isso se deu
ao incómodo de vir falar comigo – eu que sou um cientista pobre. Não me
interrompa! É claro que tenho uma certa influencia, sou para além de
tudo um gajo de tomates! E além disso tenho um cachecol de Outono e sei
fazer contas de multiplicar. Não era isto que ia dizer?
JUSTINIANO – (seco)
– Exprimiu-se bem. Mas julga que tento intimidá-lo?
COLIBRI – Isso pouco
me preocupa. E daí?
JUSTINIANO – Não me
julgue um vilão feito à pressa. Sou antes um secundário...Peço-lhe que
escute com atenção: o senhor veio até nós, como um emissário bíblico.
São azares, mas não que não se emendem. Dispõe da possibilidade de
indicar como local mais apropriado um certo sítio que me interessa para
outros mesteres…Tenho debruçado a cabecinha sobre tal facto
e…garanto-lhe que sei o que digo. Coisas do instinto? Chame-lhe como
quiser. (com amabilidade) Em resumo: aquele lugar, que é tão
maneirinho, merece melhor sorte que uma estação pesquisadora. Fiz-me
entender? E é só dizer a quantia…desde que não exagere!
COLIBRI – Entendi.
Nada mais tem a dizer?
JUSTINIANO – Poderei
contar-lhe uma história?
COLIBRI – Não!
JUSTINIANO – Uma
só…pequenina…Vá lá, não seja desmancha prazeres!
COLIBRI – Já lhe
disse que não!
JUSTINIANO – Bom,
ficará para mais tarde. Silêncio, por ora. Visitará dentro de um dia ou
dois – não recuse! – a minha casa e então lhe direi tudo. Mas acredite
que não é um assunto vulgar, apenas coisas de dinheiro!
COLIBRI – O senhor
fala com convicção. Não digo que não o ache curioso. O que eu digo é que
o seu problema não me interessa. É muito natural que o local mais
propício seja esse que você pensa. Nesse caso, fique ciente que o
indicarei sem tirar nem pôr. Já pensou no que significa perscrutar os
céus…os espaços…sentir que de novo poderão vir por aí abaixo os velhos
colegas do Olimpo? (como que recordando-se de algo, de repente) E
ainda não é tudo! Porquê essa subreptícia cólera contra o Adrian? É só
porque ele busca com denodo o segredo da vida? Um poeta sonhador…
JUSTINIANO –
Engana-se! Adrian não é um sonhador inofensivo. É um tipo perigoso. Só
lhe digo isto – sei qual o tipo de luzes que de noite saem daquelas
janelas, quando as nuvens correm no céu como um avançado-centro
preparado para marcar. Ou pensa que não tenho gente que me elucida?
COLIBRI – Não
duvido, mas o que é que lhe contaram? Que havia brilhos súbitos e
invocações que mudavam de tom? Que de lá se propagava em torno um cheiro
a lilás de Outono?
JUSTINIANO – Muito
mais do que isso! Não finjamos, caro senhor Colibri. Um dos meus
confidentes, o Pinona, um antigo contrabandista de carne que era
igualmente campeão de tiro desportivo, conseguiu saber, ou julgar saber,
que o Adrian se prepara para criar um perfume total, desses que dão fala
aos mudos e vista aos cegos. Enfim, uma maçada…E como os simples vão
atrás dessa gente! É uma sensaboria! Não, qualquer dia o Adrian
deixar-se-á de charadas…mas tenho tudo preparado. E quanto a nós, em que
ficamos?
COLIBRI – Compreendo
o seu ponto de vista, mas a verdade é que não me parece que me entenda
consigo…
JUSTINIUANO – E
agora digo-lhe eu: e o que é a verdade? Enfim, é pena. Teria imenso
gosto em o levar a visitar a minha sala-arquivo, o meu laboratório…Sabe
que tenho um exemplar do jurássico, perfeitamente nítido? É
efectivamente muita pena…mas quem somos nós para mudar o destino? Bom,
pode tentar-se. Mas nesse caso, haverá suor…Faço-me compreender?
COLIBRI – (poético)
O jurássico! Sim, sim, faz crescer água na boca. E o pliosticeno também
não está nada mal. (aspirando em torno) Cheire-me este aroma de
rosas…e deixe-se levar pela mansidão do ar…
JUSTINIANO –
Tornaremos a ver-nos. A seu tempo. (sai)
(Com um
suspiro, Colibri acaba de arranjar o papilon. Dá um traque, para
preparar o estômago)
COLIBRI – Vamos lá
então ao repasto da dona Leonarda! Antes que esfrie!
Fim do Primeiro Acto |
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II ACTO
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Primeira Cena
(Na Sala de Fora
da casa onde Adrian Cactus estuda e trabalha, pesquisando a dimensão do
Homem e outras coisas por enquanto crípticas. Escuridão. A cena
ilumina-se pouco a pouco e quando se entra em plena luz vê-se uma figura
imóvel. É Teia d’Aranha. Fato de treino vermelho com reforços
cinzento-azulados; cartola de cerimónia, luvas de guarda-redes, no braço
um chapéu de chuva à inglesa. Alto, jeitoso, solene e muito educado)
TEIA d’ARANHA – Ora
vivam! Sou Teia d’Aranha, um gnomo especialista em sequencias.
Desejo-vos muito boa noite do fundo do coração! (com um grande e
melancólico suspiro) Até agora isto foi suave como uma oração…Daqui
em diante, receio-o bem, é que começam as grandes chatices! Verão…Tudo
se vai complicar, porque a história, afinal, tem pouco a ver com
construções e interesses deste salafrário ou daquele videirinho. Os mais
inteligentes de vós já começaram se calhar a desconfiar da marosca.
Claro, porque nem só os imbecis vão ao teatro! Isto de teatro é um lugar
suspeito, tanto lá andam cretinos como gente muitíssimo esperta. E
desculpem a sem-cerimónia, creiam que não está no meu hábito. A noite…o
dia…já viram coisa mais patusca? E, ao fim e ao cabo, venerável? Bem,
deixemos isso…(com um gesto acautelando os espectadores ou leitores)
Por quem é, não se mire! Pelo menos por enquanto…É que estes espelhos
não são vulgares – estão mesmo muito longe de ser vulgares! Mas
vossência verá, no decorrer da funçanata. Por enquanto os nossos amigos
vagueiam lá por fora: Colibri, um especial amigo meu, Maria Botafogo,
Adrian, Heraclófones e um tal Jagodes. É o ajudante de Adrian, moço
cordato e com barba de pirata. Em tudo o mais, pacífico e sonhador.
Passeiam, dizia eu, depois de terem comido figos, pãozinho fresco e
estaladiço e uns copitos de hidromel. Agora anda Maria a mostrar o
jardim da mansão ao bom do Colibri, que aliás já ficara encantado com a
moradia da família. Coisas de séculos, não sei se percebem…Também o
Sótão é uma bela brincadeira: uma grande sala no primeiro andar, cheia
de objectos heteróclitos e corredores entre as espécies e duas salas em
baixo – uma das quais é esta onde vossências têm o prazer de me ver; na
outra só Adrian e Jagodes entram, pssssttt, chiu! Andaram pelo jardim,
com suas áleas e árvores fraternais e seus recantos simpáticos e amenos.
Falando de coisas naturais e sedutoras: o que se esconde por detrás duma
tarde passada em Nova Iorque, a mecânica do cinismo, o grito de um lobo
na Serra Nevada, o plexo solar dos franceses, o último filme
declaradamente simbolista, enfim, além de coisas mais complicadas como a
brisa que sopra neste começo de manhã ou de que forma é que um pássaro
salta às cinco da tarde. Eles aproximam-se daqui. É tempo de me retirar.
Não se esqueçam que os segredos são uma raça muito estranha, meus
amigos. Até breve! (sai, esfumado).
Entram
Colibri, Adrian e Heraclófones)
ADRIAN - …fiquei
positivamente banzado!
COLIBRI – E o caso
não era para menos!
HERACLÓFONES – Safa!
ADRIAN – Escusado
será dizer que o Comandante Graciliano deu ordem ao Cabo Miquelina para
que se abrisse um processo em regra. Mas até agora ainda nada se apurou.
HERACLÓFONES – Se
algo se apurou, não transpira nada…
COLIBRI - …e não há
fogo sem fumo!
ADRIAN – Seis numa
semana…temos de confessar que é obra!
HERACLÓFONES – Cá
por mim, já não saio sozinho a partir das oito.
COLIBRI – No que me
respeita, sou de hábitos fixos: quem me tira o passeio higiénico depois
do jantar, tira-me tudo. Com desaparecimentos ou sem desaparecimentos,
sairei depois da refeição…Pois não! A dona Leonarda não é para graças…É
cada pratada! De se perder a respiração!
ADRIAN – Pois sim!
Mas o que é certo é que só ficaram as calças do último.
COLIBRI – Não teria
ido nadar ao crepúsculo depois da ceia?
HERACLÓFONES – Podia
ter sido. Mas os outros? Dum só restou a gravata, doutro ficou a meia
direita…Quanto ao primeiro só ficou uma espécie de sombra na parede…
ADRIAN – Bom, bom, o
que não tem remédio remediado está. (para Heraclófones)
Importa-se de ir ver se a menina Maria e o senhor Jagodes ainda estão
junto do coreto?
HERACLÓFONES – Por
quem é, doutor. E como já cumpri a minha missão de cicerone, dou às de
Vila Diogo. He! he! Tenho ali umas doses de “pipermint” para um
coleccionador…Aproveito e levo-lhas. Além disso hoje ainda nem vi o
mar…E o doutor bem sabe como isso me suscita a veia! Sem ironias: a si o
mar não o empolga, Adrian?
ADRIAN – (com
certa melancolia) – Às vezes até de mais…Nos dias de nevoeiro, quase
sou capaz de ouvir buzinas chegando de muito longe…E em certas
manhãs…quando eu tinha tempo para manhãs…podia sentir a própria memória
dos antigos elementos, os vultos de tantos que por ali andaram quando
nós pertencíamos ainda ao murmúrio da espécie! (sacudindo a cabeça
com certa mágoa) Não quer dizer que o trabalho de agora me
solidifique as células cor-de-laranja, de maneira nenhuma!
HERACLÓFONES –
Vou-me então. E sobre aquilo que sabe, doutor…nem uma palavra! (sai
fazendo uma vénia ligeira)
ADRIAN – Valente
amigo! Fiel como um cão de água! Leal como um noitibó da Toscânia! Pode
não pertencer ao mármore, mas pertence sem dúvida ao granito!
COLIBRI – (convictamente)
– Ora bem: agora que já o mandou embora, pode falar sem receio. Pela
minha parte serei um ouvinte atento e um interlocutor de primeira
apanha. (algo nostálgico) A minha boa-fé, Adrian, é perfeitamente
o contrário do absoluto da eternidade.
ADRIAN – (absorto)
– Primeiro foi a questão do frio que entrava por debaixo da porta e dos
interstícios. Um frio de rachar cimento armado. (andando em volta da
sala, abstracto) Depois foi o calor, um calor temível,
surpreendente. (apontando os espelhos) E foi então que tudo se
enredou…ou melhor, que a realidade desceu à terra!
COLIBRI – (detendo-o
pelo braço) – Sinto na sua voz uma certa mágoa!
ADRIAN – Não é
mágoa…Ou antes, não é totalmente mágoa. Colibri, acredita no destino?
COLIBRI – Prefiro os
abrunhos. No mais, sou agnóstico.
ADRIAN – (sentando-se)
– O que merecemos é o que escolhemos? Ou é como jogar à malha? Embora a
questão não importe, às vezes…não posso deixar de pensar nela. Não se
aborreça, vou começar pelo princípio.
COLIBRI – (algo
ansioso) Sinto um estranho formigueiro nas orelhas…O que me vai
contar, espero, não prejudicará em nada a Maria, não é verdade?
ADRIAN – (com
certa lassidão) - Antes pelo contrário, Colibri…Nada tema. A maneira
dela andar…Bem, faz-lhe lembrar alguma coisa?
COLIBRI – (com
ironia mansa) – Não me faça dizer coisas esquisitas! Uma adivinha:
qual o tamanho do dedo mindinho do cientista que descobriu a cura da
malária? Hein?
ADRIAN – (com um
gesto apaziguador) – Pronto, já percebi. Mas assim tão depressa…como
um contratorpedeiro?
COLIBRI – (apontando
para o espelho maior) – A nossa vaidade é leve, caro Adrian. Há por
aqui indícios muito, muito sugestivos!
ADRIAN – (levantando-se)
– Vamos então à…história, Colibri. (com decisão) Claro que tudo o
que lhe contarei irá ficar entre nós, não é assim?
COLIBRI – (com
firmeza) – Evidentemente!
ADRIAN – Ouça-me
então: os meus pais faleceram tinha eu 12 anos, tinha a Maria 9. Os
cavalos dos charabã espantaram-se junto à Ravina das Sereias e os seus
corpos, destroçados, foram na manhã seguinte encontrados pelo senhor
Heraclófones – que tinha ido ver o mar, inspirando-se para mais umas
folhas filosóficas – nas rochas junto da praia pequena. Estão hoje
enterrados no cemitério da povoação. Quem tomou conta de nós foi o nosso
amigo Giuseppi Jagodes, secretário do meu pai. Na altura, jovem
licenciado de 33 anos. Meu pai, historiador, como aliás meu avô,
felizmente deixara indicações precisas. Como pensava nos mistérios do
Tempo deixara escrito o seu pensamento, que Jagodes iria seguir ponto
por ponto. Este bom e fiel secretário, agora já com algumas brancas nas
barbas de corsário, é o meu ajudante…presença sempre segura! Mas já lá
iremos. Entre os escritos do meu pai figurava um sobrescrito grosso, de
bom papel, com a indicação por fora “Para o Adrian abrir quando tiver
vinte e quatro anos”.
COLIBRI – (um
pouco admirado) – Desculpe o aparte, mas habitualmente não costuma
ser aos vinte e um?
ADRIAN – Disse-me o
Jagodes que o meu pai era muito dado aos mistérios do Tempo. Vinte e
quatro horas…vinte e quatro anos…Deve ter sido por isso!
COLIBRI – (abanando
a cabeça e sentando-se) – Percebo perfeitamente! Era um homem que
amava a simetria entre o que passa, o que vem e o que fica! Era capaz de
apostar que gostava muito de usar meias brancas.
ADRIAN – (perplexo)
– Você deixa-me atónito! Como adivinhou?
COLIBRI – Não
adivinhei, meu amigo! Fiz apenas um raciocínio elementar…uma coisinha
simples. O Tempo, se formos a ver, começa por baixo, o seu princípio
deve ter sido o um, depois o dois, a seguir o três…E por aí fora! Sendo
um amador da simetria, o seu pai ao vestir peúgas brancas devolvia aos
princípios, digamos, a pureza original…A simbologia, como o meu caro
Adrian sabe, serve-se de sistemas muitíssimo complicados…
ADRIAN – Diz bem!
Quanta perspicácia no que diz! É precisamente por isso que eu nunca
limpo os cacos ao lenço de assoar…Ponho-os sempre numa parede,
arrastando o dedo; quando ia ao café punha-os sempre distraidamente sob
o tampo da mesa…Ninguém dava por nada!
COLIBRI – (com um
suspiro leve) – Estamos pois entendidos. Mas, peço-lhe, continue.
ADRIAN – Isto agora
vai-se pôr sério!
COLIBRI – E a
conversa sobre os cacos ajudou! O que está no alto é como o que está em
baixo, para que se faça o milagre…
ADRIAN – Nem mais.
Ou nem menos. Mas adiante: quando fiz os tais vinte e quatro, ou seja,
quase há dois anos pois vou em breve fazer vinte e seis, abri o
sobrescrito. Era de noite, estávamos na grande sala com a lareira a todo
o pano. Lá fora piava um passaroco qualquer, mas a noite trazia até nós
o cheiro do feno cortado. O que lá dizia era o seguinte: “Querido filho:
tu e a Maria estão a coberto de dificuldades, por isso é sem remorso que
te concito a que faças o que aqui te deixo dito. Deverá ir ao Sótão e,
da estante dezassete (à esquina antes de chegares à gaiola com a múmia
dum pintassilgo) retirar um livro de capa negra intitulado “O
Problema do Tesouro – subsídios para uma interrogação” (o título
justifica-se e de que maneira!). A sua leitura te levará a acções
conformes. Nunca desanimes e lembra-te de nós, que te amámos mesmo
quando não o sabias”. (profundamente comovido) Li o livro com
atenção, Colibri. Devido a isso, montei um laboratório aqui ao lado…e
pus-me ao trabalho. Já alguma vez pensou naquilo a que meu pai chamou “o
problema do tesouro”?
COLIBRI – (respirando
fundo) – Sim. Já tenho pensado nisso. Em primeiro lugar, há o
género…Depois, as diversas subdivisões!
ADRIAN – Nem menos.
O tesouro pode ser de índole material ou espiritual. Se é material pode
ser de cariz pecunioso…
COLIBRI – …directa
ou indirectamente. Pode ser uma arca de ouro ou diamantes escondida, a
fórmula industrial ou comercial para a feitura barata de um produto
importantíssimo, o esquema que revela como alcançar a mezinha que cure
uma doença letal ou ainda…
ADRIAN – …o bê-a-bá
de como aperfeiçoar ou fazer uma arma definitiva…
COLIBRI – …o
documento absoluto para arrasar sem contemplações um político corrupto
ou bem sucedido…
ADRIAN - …o mapa de
uma invasão garantida… o velho documento que revela o lugar do
testamento perdido…
COLIBRI – Enfim, a
lista está mais ou menos completa ou exaustiva!
ADRIAN – Quanto ao
tesouro espiritual…
COLIBRI – Aí a coisa
é diferente! Temos primeiro o segredo da alegria…
ADRIAN - …a maneira
de ver o lugar e as coisas como se tivéssemos de novo dezassete anos…
COLIBRI – A maneira
de deslindar um nó enovelado no caminho para a Grande Obra…
ADRIAN – O
hieróglifo que nos permite saber qual a verdade sobre um rei de legenda…
COLIBRI - …a forma
de lembrar em tempo próprio o rosto de quem mais amámos ou o objecto
antigo que julgávamos perdido para sempre…
ADRIAN – As mãos
intensamente antigas dos nossos pais quando tínhamos quatro anos e
brincávamos embevecidos no larguinho em frente da nossa casa com uma
latada e uma roseira…
COLIBRI …como passar
para outro planeta ou outra dimensão…
(Olham-se
surpreendidos e confusos. O silencio instala-se pé-ante-pé e então
ouve-se um rumor de vozes que se aproximam).
COLIBRI – (apressadamente)
– E os espelhos? Como descobriu…
ADRIAN – (interrompendo)
– Falaremos melhor depois, agora o momento não é propício! Eu ficarei
aqui em baixo. Você irá lá para cima…percorrer aqueles corredores, olhar
aqueles livros, aqueles vestígios do passado! Deixe-se penetrar pela
maravilha que aquilo sua – depois será mais fácil acabarmos a nossa
conversa…
COLIBRI – E as
luzes? E os odores? E as invocações?
ADRIAN – (com
decisão) – Não há invocações! A palavra, a forma…percebe? Depois lhe
contarei o resto. Vá e passeie…pelos resíduos da Terra.
(Colibri
olha-o por um segundo e depois abre com a chave a porta de acesso à sala
do andar superior. Mas antes que a descerre, as vozes aumentam e entram
na sala dos espelhos o Padre Joaquim Gráfico, Maria e Jagodes. Adrian já
se recompôs e finge ler um livro tirado da estante. Colibri mete a chave
no bolso e finge olhar as lombadas).
Segunda Cena
JAGODES – (entrando,
em amena conversa com o Padre) - …e eis o porquê de eu nunca ter
gostado de andar de avião!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (um machacaz magro e esgalgado) – Explicou-se
muitíssimo bem! (para Adrian) Meu bom Adrian! (fica interdito
ao ver Colibri) Meu jovem amigo…
COLIBRI – (entredentes,
olhando-o com interesse) – E esta? Um cuco!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (demonstrando prazer) – Não sei com quem tenho a honra
de falar…mas desde já os meus respeitos. Vejo que se trata dum
conhecedor e de um homem de bem!
JAGODES – (pressuroso)
– Perdão, vou já apresentá-los. Este senhor é Pedro Colibri, epicurista
de gema e perito em localizações. O reverendo Padre Joaquim Gráfico,
oftalmologista e jornalista distinto, além de membro da Entidade que se
nota!
ADRIAN – Velho amigo
da casa, velho amigo da família…Uma estrela!
COLIBRI – (apertando-lhe
vigorosamente a mão) – Um cuco autentico…Em pequeno, acompanhando
minha mãe, não perdia nenhuma das actuações dos seus colegas. Com que
saudade lembro os sermões do genial Jorginho Feijão! Aquilo é que era um
“performer”…A declamação! Os temas! A expressão!
MARIA – (com
graça feminil) – Colibri: aqui onde o vê, é o sal da terra!
COLIBRI – (apalpando-lhe
a manga da sotaina) – E usa tudo tal qual como na tradição dos
livros! Tudo o que está prescrito! É admirável!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (com modéstia) – Meus filhos, confundem-me…Que a
Santíssima Trindade vos proteja do mau olhado, eu não mereço tanto…
COLIBRI – (fitando-o
atentamente) – Ora pule lá!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (bondosamente, com um pulinho) – Assim está bem? Ou
quer mais alto?
COLIBRI – (amistosamente)
– Não pense o reverendo que eu duvidava! É a emoção que me domina e
confunde um bocado…Faz-me lembrar o monte Sinai!
ADRIAN – O nosso
Colibri é um realista e um musical!
COLIBRI – (com
bonomia) – Fui apanhado um pouco de surpresa… Saulo, Saulo, porque
me persegues…Desculpem, estava a divagar!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Não se justifique, meu filho, não é preciso. Que pôrra, afinal
o caraças do momento justifica estas merdas e muito mais, se tivermos a
sacana vontade de verificar essa cagada!
MARIA – (sorrindo)
– E as frases de sacristia que cá faltassem… (elevando a voz) Já
estão apresentados, podemos conversar. Senhor Colibri, sabia que o
Senhor Padre tem uma teoria para o mistério dos desaparecimentos?
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (com voz melíflua) – A meu ver, meus amigos, pode
tratar-se de assassinatos.
MARIA, JAGODES;
COLIBRI – Assassinatos???!!!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (esfregando as mãos) – Nem mais! Vejamos, com
calma: os desaparecidos eram todos sãos de espírito e de profissões
diferentes; não tinham características especiais. Apenas uma coisa os
ligava: o salutar exercício da pesca à linha! Tanto quanto sei, antes de
desaparecerem, tinham estado nessa tarefa frutuosa nas rochas da praia
do Carapuço. Ora bem, o meu raciocínio é: teriam visto algo de
comprometedor ou tenebroso? …Ou então foram seduzidos por uma sereia!
Eheheh!
JAGODES – (com um
sobressalto) – Por uma sereia?
ADRIAN – (com um
riso nervoso) – Essa é mesmo de espantar…!
COLIBRI – Vamos,
reverendo, não me diga que acredita em sereias…
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (com ar místico) – Tenho de acreditar, as sereias são
presenças metafísicas e como tal…Mas continuando…
JAGODES – (interrompendo-o)
– Mas…mas…porque iria ela…uma sereia…fazer isso?
MARIA – E porque não
um centauro? Ou um sátiro?
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (com bonomia) – É apenas uma hipótese, notem. Mas quem
sou eu para vos descerrar as leis da vida?
COLIBRI – Diz muito
bem, porque há-de correr atrás dos mitos? Mas com sereia ou sem sereia,
porquê o desaparecimento daquela gente? Havia, pelo que me disse a minha
estalajadeira, um que era professor, outro que era carteiro, um
barbeiro, um poeta…
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – O poeta foi o que deixou a silhueta na parede…
COLIBRI – Afinal,
bastava uma mocada e…já estava! Qualquer um podia ter feito isso.
Contrabandistas…o lugar-tenente do senhor Justiniano…enfim, as hipóteses
são várias.
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Eheh! Meu jovem amigo, o racionalismo cega-o. O senhor
Justiniano por enquanto só manda espancar. E os contrabandistas são
quase membros da comunidade. Repare bem: as sereias não agem como os
vulgares carteiristas…O seu ardor, segundo se diz, é como um copo de rum
da Jamaica…ferve por dentro!
JAGODES – (tentando
certa ponderação) E se se tratasse de raptos?
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Qual! Eram uns pobres de Cristo! Pessoas vulgares, apesar de
cordatas e de boa índole.
ADRIAN – Bom, isto é
tema para horas! E se falássemos noutro qualquer assunto mais
interessante? Por exemplo, a estação que o nosso amigo Colibri está
encarregado de situar.
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Bom tema, sim senhor! Como vai isso andando?
COLIBRI – Logo de
tarde irei dar os primeiros passos, fazer as primeiras medições. Embora
já tenha algumas ideias!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Ao senhor Justiniano essas coisas complicam-lhe os nervos!
Além disso não gosta de gente a andar por aqui e por ali…
ADRIAN – O que
interessa ou não interessa ao senhor Justiniano é uma consequência de
tudo o que os séculos rejeitam. Por isso, o melhor é virarmo-nos para o
lado e pensarmos em queijos…moléculas de água e outras coisas afins. A
mecânica é para esse senhor uma espécie de almofariz…portanto…
COLIBRI – Falemos a
sério. Esse homem é apenas um interesseiro ou é algo mais? Qualquer
coisa mais…sugestiva?
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Noutras circunstancias, noutra época, poderia ser uma pessoa
bem útil!
MARIA – No fundo é
um sujeito misterioso. No seu palacete tem um telescópio e uma luz que
por vezes, de noite, roda nas trevas…
JAGODES – Um
holofote! Um morcego, uma rosa, uma pequena janela…
MARIA – Parece que é
para pesquisar a essência da natureza! E tem uma grande sala onde só ele
entra. Nem a mulher-a-dias lá põe os pés! Foi ela que mo disse, numa
manhã em que a encontrei na praça…
COLIBRI – Em suma,
um que anda nas bordas do tema…
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – É dono de algumas terras. Até à Coutada das Freiras é tudo
dele!
COLIBRI – Parece ter
receio de que eu recomende esse local para edificarem o Observatório.
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – O senhor Justiniano é um homem de progresso! Julga que ali
ficaria bem uma cadeia de hotéis. Parece que já há contactos
sólidos…coisa de futuro!
COLIBRI – Enfim, um
caso razoavelmente compreensível. É um sujeito determinado, também gosta
de influenciar os outros com palavras incisivas. Poderia ser um tipo
perigoso.
MARIA – (baixinho
para Colibri) – Então?
COLIBRI – (no
mesmo tom de voz) – Nada tema, está tudo sob controle; os seus
receios honram-na mas descanse que está tudo bem.
MARIA – (pegando-lhe
discretamente no braço) – Amanhã, a partir das dez horas, estarei
sentada sob o caramanchão perto do cedro.
COLIBRI – Lá
estarei. (alto) Senhor Padre, quererá acompanhar-me de regresso à
Vila ou vai depois? E aonde almoça?
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Vou consigo! Gostaria de trocar algumas impressões
teológicas…assuntos de Dogmática. Até breve, meus filhos!
COLIBRI – Então,
retiro-me! (baixo para Adrian) Amanhã antes das dez, cá estarei.
(passa-lhe discretamente a chave)
JAGODES –
Acompanho-os até ao portão, meus amigos.
MARIA – Até logo,
Adrian. Não venhas tarde para o almoço…
(Saem.
Adrian vai colocar a chave na porta e senta-se com um livro nas mãos. A
cena vai escurecendo de leve, ficando na penumbra).
Terceira Cena
(Adrian vai
virando as folhas, está absorvido no livro. A porta do laboratório
abre-se suavemente e um vulto de mulher vestido de verde entra na sala
dos espelhos. Mira-se num dos mais pequenos e vai colocar-se por detrás
de Adrian. Trata-se de Marta e Maria. Chama por ele, numa voz algo
triste mas terna)
MARTA E MARIA –
Adrian!
ADRIAN – (com um
pequeno sobressalto) – Ah! És tu…Devo ter adormecido por momentos.
MARTA E MARIA – (avançando
e dando-lhe um beijo rápido) – Lias e viajavas por longínquas
paragens. Havia pássaros nesse deserto…ou era nalguma floresta cheia de
macacos e flores exóticas…
ADRIAN – Lia as
memórias de um antigo médico. (acaricia-lhe a mão) Passeava entre
girassóis e violetas…
(Levanta-se
e passeia pela sala)
MARTA E MARIA – (pondo
um dedo no ar) – Adivinha de que lado sopra o vento!
ADRIAN – (com um
sorriso aberto) – Hoje a brisa passa por entre as folhas escritas e
acaricia mansamente os aparadores de cozinha…Os balões, nas romarias,
brilham como uma estrela na constelação da Lira…
MARTA E MARIA – (esboçando
uns passinhos de dança) – O Senhor Adrian Bebe muito café! E
descansa de vez em quando e descobre coisas horríveis! (abraçando-o)
Lá fora o sol cobre tudo…rios e pedras dos montes. Olha, Adrian, penso
que hoje irei de novo à tardinha ver o mar!
ADRIAN – (com
certa lassidão) – Porque não vais antes passear pelo jardim? A Maria
dispôs lá uma nova espécie de dálias. Ou poderemos jantar, em grande
estilo, na sala do relógio dos pêndulos. E depois ficaremos no terraço,
como dois babilónicos, a olhar as luzes da vila. O Jagodes assegurará a
vigilância do fogo…
MARTA E MARIA – Irei
antes do jantar…Não te preocupes, não falarei com ninguém. Apetece-me ir
ver o horizonte sobre as ondas, quero sentir o odor da maresia. Já
reparaste como o dia hoje está tão abafado? A propósito, temos de
comprar uma lâmpada nova para a banqueta do lado da mesa de mármore…
ADRIAN – (ligeiramente
inquieto) – Fundiu-se quando? Como está a cozedura?
MARTA E MARIA – Foi
há bocadinho. Ferve como deve, não te preocupes. (mirando-se no
espelho grande) Adrian, aonde iremos ter? Qual o nome do rato que
rói a rolha da garrafa do rei da Rússia? (brincalhona, ri um pouco)
ADRIAN – Porque
perguntas isso assim? (pega-lhe na mão)
MARTA E MARIA – O
Jagodes, há dias, perguntou-me se gostava mais de meninas ou de meninos.
Lembras-te que, quando nos conhecemos, eu andava muito preocupada com o
problema de como fazer coincidir o azul com o anil? Ora bolas, Adrian,
tu sabes como eu me preocupo contigo! Um amor como o nosso, deves
concordar, é tudo menos corriqueiro. A luz e a treva…Sabes como a
natureza pode ser cruel!
ADRIAN – (imperiosamente)
– Não é corriqueiro, Marta e Maria, nem deixa de ser…É uma coisa assim
como o som e o silencio, uma cerveja que está muito fresquinha, muito
fresquinha e consegue fazer aparecer pinheiros e bancos de madeira para
nos sentarmos ao luar. (pega no livro que lia) Olha, aqui diz que
a morte é como um espaço desfeito de modo que o medo não caiba lá.
Afinal, que mal fazemos nós?
MARTA E MARIA – (circulando
pela sala) – Sim, que fizemos nós? Que fazemos nós? Afinal como tu
dizes, tocámos apenas, aflorámos apenas ao de leve os segredos da Mamã
Gansa…A soma e a subtracção…O esquerdo e o direito…
ADRIAN – E não é o
que todos fazem, os que vivem perigosamente? Os que trazem sandes de
fiambre numa pasta ou numa lata, ou então que avançam com dificuldade
entre os detritos dum universo? O alto e o baixo...(desdenhosamente)
Trazer o de dentro para fora…é um truque que apenas deve interessar aos
cábulas. A vida, Marta e Maria, é constituída por movimentos, riscos e
pontinhos negros correndo em todas as direcções, ora para cá…ora para
lá. Alguns estendem a mão, vai interromper, dão um pulo no ar e apanham
um dinossauro, um pardal, uma roseira…Onde está o problema? Não sentiste
tu já também, em certos momentos, o cansaço definitivo de certas
palavras, certas construções (ela vai interromper, ele continua
incisivo) certas imensas construções, uma pequenina desilusão que
parece circular entre o jota e o éme, o ésse e o hagá? Ou entre coisas
mais difíceis como (procura a comparação) entre uma loja de
roupas e o (hesita) som duma cadeira a arrastar-se? Como se tudo
estivesse muitíssimo antes ou depois do contexto?
MARTA E MARIA – Tens
razão, perdoa-me. Mas tens de convir que é natural por vezes um certo
desânimo…
ADRIAN – Claro,
minha querida! Eu sei que tu por vezes temes por mim…Mas que temes? Que
me tomem por endemoninhado? Que te dêem por vampira ou fada maléfica?
MARTA E MARIA – (com
ar abstracto) – Começou a tremer, a tremer…e só ficou a silhueta no
muro da cal branca…Um espectáculo estranho e estarrecedor…
ADRIAN – Não penses
mais nisso, a culpa não te cabe. Lembra-te do que te digo: que culpa
podes tu ter se esses que falaram contigo não resistiram ao teu encanto,
ao conhecimento?
MARTA E MARIA – (absorta)
– Sabes, foi muito estranho…Havia como que uma luz a envolvê-los…e
fzzzzttt! Um deles, antes de desaparecer, dizia-me “quanta claridade!”.
E depois só ficou uma meia no chão…
ADRIAN – Os momentos
de inteira lucidez podem ser raros. Já agora, uma boa notícia…Os meninos
estão outra vez a nascer com os olhos fosforescentes e, quando chegam de
tarde a chorar a casa, com um galo na cabeça, fica tudo de novo nos
eixos…
(Riem. Marta
e Maria leva Adrian, mansamente, até junto do espelho grande)
MARTA E MARIA – Lá
estamos nós, Adrian, com um traço negro rodeando-nos a silhueta! Vejo-te
e vejo-me claramente. E em volta há como que a luz de uma vela, há um
sopro como de um vento, ora negro, ora branco. Não sentes passar em
volta como que pássaros e animais da Terra, os cães e os búfalos,
perdizes, coelhos e andorinhas? Vejo cintilar nas trevas rubis, opalas,
esmeraldas…Até um lenço aos quadrados!
ADRIAN – (com
súbita alegria) – E depois, não estamos sós! Há o bom Jagodes, a
Maria, o Heraclófones, o Cavaleiro Negro…apesar da sua loucura mansa! (repondo
o livro na estante) Este cá o Colibri, como te deste conta…e podes
crer que ele entende muita coisa! E ainda entenderá mais. Amanhã,
levá-lo-ei lá acima para que se familiarize com o inimaginável. E depois
falaremos, far-lhe-emos revelações. Dir-lhe-emos tudo pouco a pouco.
Creio que podemos confiar no seu discernimento. Ficará consigo
mesmo…poderá reflectir.
MARTA E MARIA – Tens
razão! Perdoa-me por me inquietar. Compreendes, Adrian, isto é tudo por
vezes demasiado novo…Concorda que isto é belo e surpreendente.
Desvendaste-me um pedacinho dos segredos do dia e da noite…Não estou a
ser pomposa? Ora, não faz mal…Não estou a falar bem?
ADRIAN – É bom
sinal. É a corrida das palavras que deu volta à casa onde tudo mora de
cambulhada! (beijando-a no olho direito) Como o teu coração
bate…E agora, voltemos. Viajemos de faz de conta um pouco mais pelos
campos onde crescem figueiras! (com ar falsamente inspirado)
Pelas ruas cheias de gente, pelos pinheirais misteriosos! (ouve-se um
barulho, lá fora, que aumenta). Pergunto a mim mesmo…(o barulho
aumenta, a porta abre-se bruscamente e Jagodes entra na sala com a
camisa em farrapos e a cara ensanguentada).
JAGODES – (com
voz entrecortada) – Adrian! Marta e Maria! Colibri…Sucedeu uma
grande desgraça! Colibri…
(Escuridão
rápida)
Fim do Segundo Acto |
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III
ACTO |
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Primeira Cena
(Consultório
do Doutor Filipão. Entra Senhorinho, gnomo vestido de branco com uma
capa escarlate. Na cabeça um boné de ciclista)
SENHORINHO – Ora
vivam, seus caras de búzios! Oh! Desculpem, creiam que não é menos
consideração! (suspira fundo) Um mês se escoou desde a manhã em
que três marmanjos ferraram três tiros no bom Colibri e deram umas
trancadas no Giuseppi Jagodes que acorrera em sua defesa. O Padre ficara
paralisado, tudo que não é rezas escapa-lhe ao entendimento, a sua
vontade era ajudar mas as pernas pareciam de pau-santo…Colibri,
transportado de urgência para o hospital, ficou lá internado e aqui o
nosso joão-semana fez um belo trabalho. O Colibri vai escapar mas ficará
irreparavelmente pateta. Uma bala entrou no crâneo…Que fim trágico, não
acham? É hoje transferido para esta casa, o Doutor Filipão achou que
aqui ficaria mais aconchegado e perto dos seus cuidados. Entretanto, o
Comandante Graciliano mandou o Cabo Miquelina abrir um rigoroso
inquérito, mas até agora pouco se apurou. Este Miquelina é um bom
traste, os marmanjos vão ter certamente a vida facilitada…Têm corrido
rumores da mais diversa ordem. As pesquisas para se encontrar o lugar
mais apropriado à construção da Estação estão naturalmente paradas.
Entretanto, desapareceram mais três pescadores à linha. O povo começou a
tentar falar numa lenda antiga, dum monstro vindo do mar que comeria os
que se atrevessem a deambular pelas falésias depois das nove da noite,
mas o Padre Joaquim escaqueirou a superstição no seu jornal, ameaçando
vigorosamente os que se atrevessem a propalar tolices. O senhor
Justiniano teve uma entrevista no Solar com o Adrian, mas retirou-se
muito mal humorado. O Adrian estava com uma cara…Sei por
portas-travessas que o Jagodes foi à Capital, ou ao outro lado da
fronteira, comprar umas coisas que fazem pum e uns rolos de arame…Enfim,
bom material. O senhor Justiniano pediu uma entrevista com o Doutor
Filipão. A Maria está inconsolável. O Jagodes tem uns olhos de fazer
cair rolas! (interrompe-se e cheira com decisão) A propósito, não
notam um cheiro esquisito? Bom, adiante…Chegou hoje também à Vila um tal
Senhor Honório, tipo com cara de duro…Deve andar qualquer coisa
fisgada…Enfim, vai ser um forrobodó. (apanha qualquer coisa no ar)
Um mosquito! Nesta altura do ano, deitam um cheiro horrível! Bom,
caríssimos amigos, retiro-me. Vou até umas paragens onde posso ainda
contemplar os cachorrinhos a nascer! Fiquem acompanhados com os recursos
do Verão. Tenham lá muita saúde! (cheira de novo) De certeza que
ninguém pôs hoje um perfume de longes terras, de longínquas paragens?
Então até depois, seus zuftes!
(Esfuma-se
na escuridão crescente. Quando a luz volta estão na sala Leonarda
Combatente e o Doutor Filipão)
LEONARDA – Mas não
há mesmo esperança, Doutor?
DOUTOR FILIPÃO – A
bala atingiu-lhe o crâneo…Já vê! Bom Leonarda, fará como lhe disse. A
dieta, a comida a horas…Isso é tão importante como os remédios! Dentro
de quinze dias poderemos mandar de ambulância para casa. Não se
preocupe! Ele ficará com uma boa reforma…
LEONARDA – Um rapaz
tão delicado! Que tristeza!
DOUTOR FILIPÃO – A
doença não escolhe raças, Leonarda! Ele tem uns tios que tratarão dele.
E poderá divertir-se vendo passar as pessoas na rua!
LEONARDA – (distraída)
– Os mitos de Pondichéry…A figura nunca abordada de Sebastião…pelo menos
por mim… (tocando no peito do médico) Para além das acácias, dos
castanheiros e dos pequenos maciços de dálias…( como que acordando)
Oh! Não sei o que me deu…
DOUTOR FILIPÃO – (com
bonomia) – Não se preocupe, Leonarda, os sulcos da nossa vida
levam-nos por vezes por caminhos indecifráveis…
LEONARDA – (tentando
explicar-se) – É como com o caso de S.Francisco de Assis, doutor…Li
aquelas referencias numa revista da especialidade…E fiquei a pensar
porque nunca me teria lembrado de escrever sobre tal figura…
DOUTOR FILIPÃO – (com
um sorriso ambiguamente doce) – Quem nos diria que há sempre tanta
coisa escondida, em tão pequeno território, debaixo dumas simples
cuecas…
LEONARDA – (com
um suspiro) – E o Ricardo também me inquieta, doutor. Sempre a
pensar na Pátria…Nos quês e nos mas…
DOUTOR FILIPÃO – (pondo
termo, brandamente, à conversa) – Minha cara: o Absoluto, quer se
veja quer se não veja, deixa-nos sempre insatisfeitos. Portanto…
LEONARDA – (com
firmeza) – Tem razão, doutor! (preparando-se para sair) E
creia que tudo se fará como deseja! (sai)
(O Doutor
Filipão parece reflectir por uns momentos. Depois vai junto da estante,
abre-a e retira um pequeno livro, que consulta. Suspira também ele,
recoloca o livro e fica-se durante um momento a reflectir)
Segunda Cena
DOUTOR FILIPÃO – A
lua…as manhãs de Março, o lento acordar dum corpo cansado…Vá-se lá saber
onde está a ingenuidade e a gravidade!
(Ouve-se
barulho lá fora. Gente que faz subir, pela escada, uma maca com um
ferido. Trata-se de Colibri)
DOUTOR FILIPÃO – (precipitando-se
para fora a participar) – Calma! Um momento, um momento…!
(Por alguns
segundos a cena fica deserta, ouve-se música. Depois Papito atravessa a
cena dando um que outro pulo. Seguem-no Senhorinho e Teia d’Aranha, mais
solenemente. Desaparecem pelo outro lado da cena)
DOUTOR FILIPÃO e
JAGODES – (reentrando) – Por quem é, faça favor de passar!
JAGODES – Ora passe
o doutor… (consegue que o doutor passe) Ainda bem, doutor, que o
senhor é uma pessoa disponível! Não terá por aí um conhaque?
DOUTOR FILIPÃO – (tirando
uma garrafa e dois copos do armário) – Quem vai para o mar avia-se
em terra. Ora pegue lá!
(Bebem.
Jagodes saboreia, dá estalinhos com a língua. O Doutor Filipão bebe com
dignidade. Jagodes arrota com decisão)
DOUTOR FILIPÃO – Vai
mais uma para o caminho?
JAGODES – (protestando)
– Por quem é, doutor…
(Bebe de novo.
Assim que bebe, fica como que maior. O Doutor Filipão arrecada os copos
e a garrafa e acende um cigarro. Jagodes rapa de um cachimbo, ataca-o e
ficam por uns segundos a fumar. O Doutor senta-se)
DOUTOR FILIPÃO – (agitando
o fumo com a mão) – E o Adrian pô-lo na rua?
JAGODES – Não foi
preciso…Ele retirou-se mais ou menos de bom grado. O Adrian disse-lhe: “Nos
oito meses que me restam você ainda tem possibilidades de ficar um
bocadinho mais pesado…” e agitou-lhe na frente dos olhos um…coiso
que lhe ofereci, aliás com dinheiro dele. Foi o bastante, ele não
insistiu…
DOUTOR FILIPÃO -
Sabe, Giuseppi, o problema das decisões definitivas é que há sempre algo
inoportuno que se põe em volta a piscar…Ora azul, ora verde…como os
sinais dos aviões nos céus!
JAGODES – (com
voz surda) Disse ainda que um tal Senhor Honório tinha vindo da
capital, mais ou menos com conhecimento do nosso Príncipe, para levar a
bom termo uma missão…O sujeito parece que é coronel, ou comandante…ou
qualquer coisa assim…
DOUTOR FILIPÃO – (com
um sorriso) – Um bófia…Mas não percebo…
JAGODES – Parece que
circulam uns rumores a propósito do Adrian...Até de mim dizem coisas…!
DOUTOR FILIPÃO – Já
que falamos nisso…(levantando-se) Sejamos claros, Giuseppi:
afinal o que é aquilo tudo?
(Jagodes
senta-se e fica de olhos pregados no Doutor. Fita-o atentamente)
JAGODES – As
invocações…Isso é treta, doutor! Não há invocações, não há odores…Ou
antes, odores há: os odores da lavanda, dos mil e um perfumes que uma
mulher inteligente e bonita, em fase súbita de ascensão, asperge depois
do banho…E as invocações…são poemas! Quer dizer: são frases com que os
intervenientes no…jogo…exprimem o seu mergulho n0o conhecimento…no saber
que isto é uma couve, aquilo um muro de tijolo, um prato de batatas
fritas…Percebe?
DOUTOR FILIPÃO – (muito
atento) – Penso que sim! E poderia eu…embora ao de leve…entrar nesse
tal…jogo?
JAGODES – Doutor,
no…jogo ou se entra ou se não entra…Bem vê, não depende de regras, é um
jogo livre!...
DOUTOR FILIPÃO – (intenso)
– Então ainda é…pior do que eu pensava. Você, o Adrian…e quem mais?
JAGODES – Por favor,
doutor, não me caberá a mim…
DOUTOR FILIPÃO – (com
força contida) – Ora deixe-se de coisas! Sabe que pode confiar em
mim, não sabe? Vamos, vomite tudo cá para fora! Ou terei (sorri)
de lhe dar um emético?
JAGODES – (um
pouco atrapalhado) – Doutor, o caso é que o Adrian encontrou uma
companheira.
DOUTOR FILIPÃO – Já
tinha percebido. (senta-se) Mas o que é que isso tem de
extraordinário? Ela é marreca? Ou gosta de rebentar os vidros das
janelas? Estou em crer que até é capaz de ser bem jeitosa…
JAGODES – Sobre
isso, pode apostar que sim…(hesita) Sabe, doutor, é que a Marta e
Maria tem poderes estranhos…surpreendentes!
DOUTOR FILIPÃO – Com
que então, Marta e Maria…Bom, a verdade é que os pólos da Terra também
ficam em lugares opostos…Poderes surpreendentes, diz você? Poderes de
que género?
JAGODES – De que
género? Isso também queria eu saber! (reflectindo) Olhe, doutor,
coisas assim: para me divertir, de repente no meio duma conversa levanta
uma das mãos…e eis que aparece um avestruz no meio da sala! Ou então, a
figura duma rainha antiga, a Semiramis e por aí, como que sonâmbula, a
recitar: “Na montanha onde moram as estrelas”…É como o Mandrake!
Mas o melhor…ou o pior…em todo o caso mais surpreendente…é quando eu
chego e ela sem me fitar diz enquanto continua a mexer as matérias, ou a
espevitar uma solução, uma chama: “Eram talvez seis horas. Ainda
estava um grande sol. Na pequena casa, mais funda que o nível do
passeio, mergulhada em penumbra, viam-se dezenas de melancias e melões
pelo chão e, sentada numa cadeira perto da parede, a mulher vestida de
preto, mas risonha, ia pesando os frutos que os transeuntes ocasionais
ou os fregueses fixos lhe compravam”. E eu dou comigo como se
tivesse chegado de muito longe, com as lágrimas escorrendo pela cara
abaixo… E há mais, doutor!
DOUTOR FILIPÃO – (cheio
de interesse) – Mais? Ainda mais?
JAGODES – Pode
apostar, doutor! Há dias, por exemplo, o Adrian disse-lhe depois de uma
operação particularmente delicada que lhe doíam muito os olhos. Ela
soprou-lhe para as mãos e o Adrian começou a desvanecer-se…a
desvanecer-se…Quando reapareceu começou a bocejar e disse que tinha
dormido muito bem…que nem tinha sentido o gato a subir-lhe para cima da
colcha…e que estava cheio de fome!
DOUTOR FILIPÃO –
Essa é que me deixa de calças caídas!
JAGODES – O Adrian
encontrou-a numa pequena vila do interior. Era costureira. O Adrian diz
que quando a conheceu ela levava uma peça de tecido na mão. Era um
vestido às ramagens…Ou antes, iria ser. Ia tão absorvida que chocou com
ele. Dizia entre dentes: “Este findou aqui sua vasta carreira…de rato
vivo e escuro ante as constelações!”. Um dia, estava connosco há já
um certo tempo, confidenciou-me: “Giuseppi, o Adrian ajudou-me a
compreender em que altura amadurecem as castanhas!”. Percebi a
mensagem…Isto é tudo incrível, não acha o doutor?
DOUTOR FILIPÃO – Não
mais que o habitual.
JAGODES – Repare que
eu não trocaria o meu lugar por nada. Aliás, desde que…trabalhamos, já
aprendi muita coisa! Por exemplo: o doutor sabia que é mais fácil sentir
a angústia às terças-feiras?
DOUTOR FILIPÃO –
Percebo…(com um suspiro) Quando eu era novo, também pensei um dia
que poderia interrogar a matéria! Mas depois as voltas da vida…Enfim,
fui útil ao meu semelhante…E a verdade é que não perdi a faculdade de me
entusiasmar. Por isso, Giuseppi, já sabe: se eu puder ser útil em
qualquer coisa…E diga ao Adrian que gostaria de o ver…e à tal senhora
das frases a cheirar a avelã…Eles que apareçam se não lhes der muito
trabalho. (batem à porta, com certo vigor) Entre!
CABO MIQUELINA – (um
sujeito atarracado e com uma cara talhada a machado, com inocentes olhos
verdes tapados por uns óculos de sol) – Com licença, senhor doutor.
(olha Jagodes de revés) Desculpem lá o incómodo mas parece-me que
chegou a altura de interrogar…de fazer algumas perguntas, ao senhor
Pedro Colibri…à vítima. O doutor dá licença que eu proceda?
DOUTOR FILIPÃO – (acompanhando-o)
- Vamos lá subir! Mas não espere grandes resultados. Só um
momento, meu caro Giuseppi… (saem)
JAGODES – (tirando
um livro da estante) – Este Miquelina é um bom traste! Lá na
esquadra tentou fazer-se esperto…mas depressa o fiz calar. Bastou um
olhar frio – este tipo de gente fica grelhado por dentro…(batem de
novo à porta) Quem vive?
HONÓRIO – (entrando)
– Peço perdão! (hesita) Vinha à procura do senhor doutor
Filipão…Não sei a quem tenho a honra…
JAGODES – Sou um
amigo…Giuseppi Jagodes… (repõe o livro na estante)
HONÓRIO – (subitamente
interessado) – Ah! O senhor Jagodes! Pois tenho muito gosto, pode
crer! (deambula pela sala, olhando tudo atentamente) Não é todos
os dias que se tem o ensejo de contactar…de falar…com um protagonista! (tira
um livro, que folheia).
JAGODES – (algo
hirto) – Um protagonista? Não percebo…
HONÓRIO – (sorrindo
algo sardonicamente) – Nem é preciso! Todavia não se preocupe,
acredite que não o encaro como um sujeito…perigoso.
JAGODES – (com um
tom algo enxofrado) – E porque deveria eu ser…perigoso?
HONÓRIO – Peço-lhe
que se contenha. (repõe o livro na estante) O caro doutor é um
homem de leituras, pelo que vejo. Sabe como se diz madrugada em olmeca,
senhor Jagodes?
JAGODES – Claro! E o
senhor sabe como se diz horizonte em islandês?
HONÓRIO – (sinceramente
divertido) – Um homem inteligente! Pois bem, senhor Jagodes:
encarrego-o de uma missão que notará ser da maior importância.
Garanto-lhe que só terão a ganhar se aceitar. Peço o seu interesse, a
sua alta compreensão: trazer aqui o senhor Adrian e a menina Marta e
Maria! (notando a inquietação de Jagodes) Creia que não o estou a
intrujar. (tira algo do bolso) Antes de ir, faça o favor de ver
isto. (Jagodes, depois de ler de relance, olha-o com alguma
inquietação) Já viu? Então, está combinado? (vira-se para a porta)
Por ali, teremos hoje também o gosto de ver entrar o senhor
Justiniano…que certamente nos contará coisas admiráveis! Então, se não
se importa…
JAGODES – (olhando-o
a fundo) – Seja! Repare que confiei em si. Se algo correr mal, eu…
HONÓRIO - (com um
gesto) – Por quem é! Faz muito bem em confiar!
(Jagodes sai.
Honório deambula um pouco pela sala, observando tudo. Parece reflectir.
O Doutor Filipão reentra, seguido do Cabo Miquelina. Fica a olhar para
Honório)
Terceira Cena
HONÓRIO – (virando-se)
– Oh! Perdão! Tomei a liberdade de entrar, doutor e de me apresentar ao
senhor Giuseppi Jagodes. O senhor estava ocupado com o nosso
doente…Prof. Álvaro Honório, para o servir…
DOUTOR FILIPÃO –
Muito gosto. Este é o Cabo Miquelina, um vistoso ornamento da polícia do
Reino. E a que devo o gosto da sua visita?
HONÓRIO – Já lá
iremos…Entretanto, presumo que tenha algum assunto a tratar aí com o
nosso cabo…
DOUTOR FILIPÃO – É
coisa rápida…(para Miquelina) Tenha ânimo, homem! A sua
investigação não ficará embaraçada por este pequeno fracasso!
CABO MIQUELINA – (tristemente
agastado) – Pode ser verdade, mas o doutor terá de concordar que
aquelas respostas…são de fazer perder a cabeça!
HONÓRIO – (interessado)
– Respostas, doutor?
DOUTOR FILIPÃO –
Exactamente. Respostas às perguntas aqui do nosso cabo.
CABO MIQUELINA –
Coisas da boca de um doente, senhor…Perguntei-lhe se reconhecera algum
dos agressores e sabe o que me respondeu? “Possas tu reconhecer os
teus filhos, Miquelina, possas tu conseguir dizer-lhes que a meditação é
como um cardo num campo de milho!”. Conversa de doido, coitado! E
quando lhe perguntei se se lembrava das circunstancias em que decorrera
a agressão, respondeu-me: “Há caixotes de lixo a mais, mas no entanto
os gatos vadios agradecem desvanecidos a oferta!”. Que se pode
responder a isto, caro senhor? E quando vínhamos a sair ainda me atirou:
“Miquelina, as frases que disseste na infância descrevem um grande
arco e esperam-te numa esquina quando menos o esperares!”. Pobre
moço, está taralhouco.
HONÓRIO – Já vejo…É
a evocação das artes dos limites…
CABO MIQUELINA – (entre
dentes) – Outro que está nas lonas…(aceitando o papel que o
Doutor Filipão lhe entrega) Muito obrigado, doutor. Então, se me dão
licença, retiro-me…
HONÓRIO – Não se
esqueça de ver onde põe os pés!
CABO MIQUELINA – Eu
vejo sempre onde ponho os pés, caro senhor! (sai, com uma vénia)
DOUTOR FILIPÃO – (indicando
a Honório que se sente) – Ora bem, estou à sua disposição…
HONÓRIO – (sem se
sentar) – Doutor, o que tenho para lhe dizer é simples: dentro em
pouco, estarão nesta sala algumas pessoas que tive a lembrança de
convidar…se assim me permite. O senhor Justiniano, o Padre Joaquim
Gráfico, o senhor Adrian Cactus, a sua companheira de excursões e o
multifacetado Rodolfo Heraclófones. Será uma apoteose, verá. Acontece
que desde que cheguei tenho feito alguns contactos, dado algumas voltas…
DOUTOR FILIPÃO – (interrompendo)
– Sei de quem se trata, senhor Honório. Assim que o vi, notei
imediatamente que estava em presença de um dos membros de uma certa
associação que ajuda o nosso Príncipe…
HONÓRIO – (atalhando)
– Então estamos entendidos…Acontece que é de extrema importância que uma
Estação de certo cariz aqui seja montada. E a verdade é que isso foi
entravado. Por diversas razões. Mas o pior não é isso. O realmente mau é
que nesta terreola perdida há influencias estranhas pelas ruas…coisas
que escapam ao que faz falta haver. A imaginação nem sempre pode ser a
rainha das faculdades, doutor…Resumindo: temos que esclarecer certas
coisas.
DOUTOR FILIPÃO –
Antes de poder proceder a prisões…
HONÓRIO – Por quem
é, doutor! Creia que as coisas nem sempre são tão trágicas…Aliás, veja
que sou um homem dialogante…Podia simplesmente levar tudo de embrulho…
DOUTOR FILIPÃO –
Isso não é nada apoteótico. Além de que o senhor Justiniano tem
dinheiro…e o senhor Adrian não anda propriamente de rastos…Enfim,
veremos. Não quer beber nada?
HONÓRIO – Uma
amêndoa amarga. Se estiver boa!
(Batem à
porta. Depois, entram Adrian, Jagodes e Marta e Maria. O Doutor Filipão
olha-os com muito interesse)
ADRIAN – Meus caros,
creio que já cá temos a comissão de recepção…(olha Honório com certa
ironia) Viva, professor!
HONÓRIO – Senhor
Adrian, menina…
Quarta Cena
MARTA E MARIA –
(para o Doutor Filipão) – Este senhor por acaso não lhe falou de
segredos temíveis, doutor? De verbos e advérbios?
HONÓRIO - Sei que é
uma hábil utilizadora de verbos irregulares, cara senhora. Uma
sonhadora, uma jovem muito prestável. Creia que sinceramente a
aprecio…Ou antes, aprecio o que sei de si, de ouvir dizer…Trata-se
indiscutivelmente de uma personalidade!
(Marta e Maria
vai junto de Honório e, inclinando-se, diz-lhe qualquer coisa ao ouvido.
Honório vai ficando com uma expressão furiosa, depois perplexa e depois
senta-se, com um ar aturdido)
HONÓRIO – (com
voz entrecortada) – Não pense que não tenho posto a mim mesmo esse
problema! Mas a coisa não é fácil de decidir…de saber. Tudo vem de muito
longe, tudo é assim como um rádio trabalhando numa sala vazia…
MARTA E MARIA – (com
voz clara) – Nunca é tarde para reconhecermos os nossos. Neste caso
o seu. Porque foi sempre seu, repare!
HONÓRIO – (com
ansiedade e apertando as mãos) – Mas onde está ele? Peço-lhe, se o
sabe diga-mo! Nem a senhora sabe quanto me tenho lembrado dele…
MARTA E MARIA – Terá
em breve notícias. Mas não repita o mesmo erro, valeu?
HONÓRIO – Juro-lhe!
Assim que chegar a casa…
MARTA E MARIA – Não
tenha pressa, vá lá. Limite-se a fazer o que parece a coisa mais
nobre…mais natural. (pondo-lhe a mão no rosto desfeito) Pobre de
si! (ajudando-o mansamente a levantar) E agora parta, divirta-se,
diga o que lhe vier à cabeça, jogue um bocado de bilhar e coma muita
fruta!
HONÓRIO – (um
pouco atarantado) Mas olhe, menina, juro-lhe…
MARTA E MARIA – (cortando
amistosamente) – Não jure nada…Vá em paz e não pense mais nisso.
(Honório,
olhando em volta como que a desculpar-se, sai a passos trôpegos)
DOUTOR FILIPÃO – (siderado)
– Isto ainda é melhor do que aquilo que me contaram! (Marta e Maria
aproxima-se dele e diz-lhe qualquer coisa ao ouvido)
DOUTOR FILIPÃO – (com
o rosto iluminado) – Isso foi o que eu lhe disse sempre e ela não me
quis nunca dar ouvidos! (o rosto de repente ensombra-se-lhe. Marta e
Maria diz-lhe mais qualquer coisa)
DOUTOR FILIPÃO – (abanando
a cabeça) – Sem dúvida. Sem dúvida! Sim, é nessa direcção que se
movem as realidades adivinhadas…Como se a gente, afinal, não o soubesse!
(sai um pouco trôpego mas muito alegre)
MARTA E MARIA – (para
Adrian e Jagodes) Só espero que a manhã não perca esta frescura tão
agradável…Ontem esteve um calor!
JAGODES – (para
os dois) – Não sentem um zumbido no ar?
(Adrian
senta-se. Marta e Maria faz um gesto e começa a ouvir-se uma música
encantadora. A porta abre-se e entram o Padre Joaquim Gráfico,
Heraclófones e Justiniano)
HERACLÓFONES – Não
me calhou lá muito bem, mas aqui estou!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Antes marinheiro que ciclista…como sempre digo. Ou então o
contrário. Há pessoas repugnantes, as Dulces e os Amadeus, mas isso não
altera a cor dos pessegueiros em pleno Maio. Ora vivam! (aspirando em
torno) Não notam um perfume esquisito?
JUSTINIANO – (incisivo)
– O senhor Prof. Honório pediu-me para eu estar presente nesta…reunião.
Onde está ele? Ainda não chegou?
JAGODES – Já
chegou…e já se foi embora. Não se admire, em certos dias as pessoas são
particularmente rápidas.
JUSTINIANO – Então
não estou aqui a fazer nada…
JAGODES – Fale-nos
um bocadinho nas suas noites de meditação!
JUSTINIANO – Para
quê? As noites de cada homem são assunto onde não deve meter o pé.
JAGODES – Por
exemplo: as reflexões sobre a morte arrastam inevitavelmente um certo
apetite. E o que eu pergunto é: como extingui-lo? Porque não se trata
apenas de conversa fiada. As pessoas sofrem…
JUSTINIANO – As suas
brincadeiras não me agradam.
JAGODES – Sou como
uma espécie de melro, que debica sobre corações.
ADRIAN – As
horas…Passam inevitavelmente, também. Como em certas alturas não há nada
a fazer, cresçamos em sabedoria.
JUSTINIANO – O vosso
passado não me interessa. O que eu quero dizer é que há coisas que
representam coisas. São tão verdadeiras como uma batata, ou um saco de
tabaco…um assobio.
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (conciliador) No fundo, Deus é que sabe…
JAGODES – Ou seja, a
luz que desce sobre tudo e flutua…
JUSTINIANO – Isso
são como que lições de um dado argumento. Se se virar a coisa ao
contrário…dá o mesmo resultado.
ADRIAN – (escarninho)
Ou antes: o mesmo contrasenso…
JUSTINIANO – Basta
de histórias ocas. O Prof. Honório não está. Portanto, parece-me que não
estou a fazer nada aqui.
MARTA E MARIA – (aproximando-.se)
– Pelo contrário!
JUSTINIANO – (semi-tirando
a mão do bolso das calças) – Não se aproxime, por favor! E, já
agora, mantenha-se à distancia. Sofro muito de calor e sinto que me
gastam o ar…Agora vou-me embora. Terão em breve notícias minhas…talvez
mais cedo do que pensam…(sai recuando)
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – (pensativo) – Curioso homem!
JAGODES – Um amante
das soluções provisórias…Talvez um macambúzio!
COMANDANTE
GRACILIANO – (entrando) – Boa noite a todos. O Prof. Honório
pediu a minha presença. Onde está ele?
ADRIAN – Foi mijar
ali ao quintal mas vem já. Entretanto sente-se, excelentíssimo senhor
comandante.
COMANDANTE
GRACILIANO – (agastado) – Venho fazer uma prisão. De quem? Essa é
que é a incógnita! Enigmas instrutivos não aparecem todos os dias! Ora
bem, esclareçam-me: quem vou eu prender?
JAGODES – Prenda o
Cabo Miquelina. É forte e pesado.
COMANDANTE
GRACILIANO – Vou-o prender a si. Acompanhe-me!
JAGODES – Mas porquê
perder tempo comigo?
COMANDANTE
GRACILIANO – Você é um indivíduo misterioso. Sempre pelos cantos,
agitando as águas…os ares…
ADRIAN – Em suma: o
comandante está ao serviço do senhor Justiniano…
COMANDANTE
GRACILIANO – E prendo-o também a si. Você, pelo contrário, não remexe
mas esconde. Ainda é pior. (tira a pistola do coldre)
Acompanhe-me!
MARTA E MARIA – (avançando)
– Ouça…
COMANDANTE
GRACILIANO – Cabo Miquelina! Agarre-me estes pássaros!
CABO MIQUELINA – (entrando)
– Quais são eles, senhor comandante?
ADRIAN – Não seja
burro!
JAGODES – Não se
precipite, Miquelina!
COMANDANTE
GRACILIANO – Leve-os, sem brutalidade mas com firmeza. Vá!
ADRIAN – Você está
feito com o Justiniano, Graciliano! Quanto irá receber pela sua boa
vontade…quando os hotéis estiverem prontos?
JAGODES – Você é um
bom traste, Graciliano! (avança agressivamente)
COMANDANTE
GRACILIANO – Alto lá! E levanta as patinhas.
CABO MIQUELINA – (rapando
dum pistolão) – Vai tudo raso!
PADRE JOAQUIM
GRÁFICO – Eli, Eli, lamma sabachtani…
(Miquelina
aproxima-se de Adrian com umas algemas na mão, mas nesse momento entra
pela janela o Cavaleiro Negro, de pistola em punho)
CAVALEIRO NEGRO –
Larguem a artilharia…ou estão fritos!
(Atarantados,
Miquelina e Graciliano tentam disparar sobre ele. Troca de tiros, fumo e
ruído. Quando tudo termina, verifica-se que estão estendidos no solo.
Jagodes geme a um canto. Foi atingido numa perna e queixa-se docemente)
CAVALEIRO NEGRO – E
agora vou ver do Justiniano. Gosto de deixar os trabalhos bem acabados.
(safa-se pela janela)
ADRIAN – (perplexo)
– O anoitecer…o amanhecer…Afinal é assim?
HERACLÓFONES – Vá-se
lá acreditar no destino!
JAGODES – (gemendo)
– Nunca percebi bem a mecânica dos conflitos…
HERACLÓFONES – (aproximando-se
dos corpos e apalpando-os) – Tanto um como outro…já não gastam mais
camisolas!
(Entram
populares, que pouco a pouco ocupam a cena)
(Escuridão)
Fim do III Acto |
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EPÍLOGO |
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ESTE – Tudo se
passou como cumpria: dois lindos enterros, com muitas flores mas pouca
gente a acompanhar. Houve um certo reboliço, mas pouco a pouco tudo
acalmou. Digo isto porque é quase sempre assim, principalmente quando os
intervenientes merecem.
AQUELE – Além disso
a equipa da terra começou a perder, o que inquietou toda a gente e
orientou as conversas noutra direcção. Para as bandas do mar a brisa
soprava calmamente.
ESTE – Os
desaparecimentos cessaram, um novo sacerdote chegou em substituição do
Padre Joaquim, mandado para Roma a estudar astronomia aplicada.
AQUELE – E
recebeu-se um novo comandante, com banda de música, um diabo magrinho e
peludo de nome qualquer coisa Simplício.
ESTE – O voraz
Comandante Simplício.
AQUELE – Enfim,
deixemos isso. O que importa é que a Maria abalou para a Capital.
ESTE – Com boas
plaquinhas de ouro na algibeira. Estabeleceu-se com uma loja de artigos
de pintura perto da casa de Colibri. Quem passasse por volta das dez da
manhã por ali e deitasse uma vista de olhos para o quintal do enfermo,
vê-lo-ia sob um caramanchão, com uma paleta na mão esquerda, a tentar
penosamente reproduzir a montanha de Cézanne ou os telhados de Van Gogh…
AQUELE – E Maria,
muito atenta, ao lado ou por vezes transportando um tabuleiro com duas
carcassas com fiambre…
ESTE – É a
terapêutica ocupacional. Mas que traz sobre o ombro?
AQUELE – Um grilo…o
primeiro da estação! Cacei-o num prado dos arredores.
ESTE – Jagodes foi
recuperando bem. A bala, que o atingira numa perna, felizmente não lhe
fez mais que obrigá-lo a usar uma prótese de madeira. Até lhe fica bem,
parece o John Silver. Humoristicamente, Heraclófones ofereceu-lhe um
papagaio. Enquanto jogam ao dominó no terraço do solar, repenica
asneiras engraçadíssimas ou declama trechos a carácter: “Minha mesa
de café/quero-lhe tanto, a garrida…”. De Honório nunca mais se ouviu
falar, mas deve ter tido uma audiência com o Príncipe, uma vez que na
Coutada das Freiras, em vez de uma Estação de pesquisa de satélites e
brincadeiras que tais, se construiu uma pérgola toda florida donde os
turistas contemplam docemente o Oceano.
AQUELE – A propósito
de segredo: tudo, mais ou menos, fará sentido se lhe dermos sem alarde a
direcção conveniente. Pergunto a mim mesmo…
ESTE – O azul do céu
como que ficou às escuras, por isso não se atormente sem razão. O que é
preciso é que a consciência durma, envolta em alegria e saudade.
AQUELE – Adrian
engordou um pouco, comprou um vídeo, usa agora o cabelo mais curto o que
aliás o favorece. Foi a um congresso em Itália e veio de lá muito
animado. De noite, Marta e Maria protege-lhe o sono com uma canção
acompanhada por trechos de harpa celta. Passeiam pelos campos dos
arredores enquanto no laboratório a matéria evolui mansamente na sua
caminhada tranquila.
ESTE – Leonarda e
Ricardo não se enrolaram de novo. Parece que o Cavaleiro Negro sofre de
nostalgia.
AQUELE – Chega a
dizer que a vida é um absurdo! Leonarda esbofeteou-o com genica de
trinta diabos. Ele limitou-se a olhá-la com tristeza e desde então…
ESTE – Ouvi ontem
uma história estranhíssima! Um rapazito, transido de frio, foi
encontrado numa sala da sua casa a balbuciar entre dentes: “Tapem-me,
por favor!”.
AQUELE – Jagodes tem
por vezes nostalgias estranhas: olha para longe, com um ar abstracto,
engolindo em seco.
ESTE – Diga-se o que
se disser, não é uma história circular.
AQUELE – Boa noite,
caro Príncipe, deixo-vos em paz com os vossos fantasmas.
ESTE – Ou então:
toma lá pastéis de Sintra.
AQULE – O que não
modificaria nada na história individual de cada um!
ESTE – Absolutamente
nada!
AQUELE – Pelo que,
talvez seja melhor irmo-nos deitar.
ESTE – Quando as
coisas terminam bem, sinto-me frustrado
AQUELE – E nem vale
a pena lembrarmo-nos da infância!
ESTE – Isso seria
ainda pior.
AQUELE – Vamo-nos
então
ESTE – Apoiado.
AQUELE – Sem
remorsos, sem dores, sem amarguras.
ESTE – Inteiramente
felizes.
AQUELE – Fazendo
pouco barulho, para não manchar as ruas.
ESTE – Deixando
apenas vagas sombras num que outro muro.
AQUELE – Lentamente.
Um pé em frente do outro e…já está!
(Saem
pé-ante-pé)
(Escuridão).
Fim
da Peça |
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Capa de António Luís Moita,
sobre desenho de João Garção.
Com um desenho de Rui Leal, ao lado. |
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NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTATO:
nicolau49@yahoo.com |
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