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Mário de Carvalho é dos ficcionistas
portugueses com mais potencial de audiência, não só em Portugal como no
mundo. Não sei se é o
mais conhecido, digo que tem características para figurar no topo de uma
tabela dos dez mais lidos. A sua maior virtude, capaz de
lhe conferir essa distinção por parte dos (escassos) leitores
portugueses, é a graça, a oferta de histórias de prazer, como «O
chochman», no seu mais recente livro de contos, «O homem de turbante
verde», que gostamos de
saborear sem quaisquer pretensões literárias, saboreamos pelo prazer de
ler, sentados numa cadeira de encosto, na varanda, nestas pacíficas
tardes que vão sendo de Verão, ou bem junto à lareira, debaixo de gorros
e lãs grossas, quando o frio não afasta do corpo as suas garras.
O prazer, entretanto, não é um viajante solitário. As
histórias, de andamento ligeiro, envolvem cargas muito pesadas. Se não
fosse o riso, aqui e ali, a desdramatizá-las, podiam na generalidade ser
consideradas negras, e algumas até se apresentam como guiões de
thrillers, cheios de suspense e ação violenta, à boa maneira
americana. |
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Não será bem o caso de «O celacanto», narrativa de
mistério e aventura, a desembocar, por força dos desvios zoológicos, num
cenário surrealista. Porém não lhe falta a dinâmica da busca do objeto
perdido, como no filme da esmeralda. Antes de mais, entretanto, Quem sabe o que é o Celacanto? - pergunta o narrador,
ignorando completamente aquilo a que o nome se refere. Muito poucos, não é
verdade? Apesar de nem a ciência o saber bem, o Celacanto estimula a imaginação. Herberto Helder, n'
«Os passos em volta», inclui um conto com esse título, e há bem pouco tempo,
em Inhotim, Minas Gerais, estive no interior de uma gigantesca
instalação, parte da qual intitulada "Celacanto provoca maremoto", na Galeria Adriana Varejão
(1). Aliás, o Celacanto de Mário de Carvalho também faz parte de uma
instalação, da qual é roubado num guarda-chuva, mas depois lá regressa
à galeria de arte, pelos seus próprios meios voantes.
Alguém sabe o que é um Celacanto? - pergunta o
protagonista.
Por acaso, sei, se bem que muito pouquinho. De outras celacantices li
dezenas de textos, mas do Celacanto propriamente dito, só um ou dois. O
suficiente para concordar que foi considerado espécie extinta, por só se
conhecer em registo paleontológico, até há coisa de uns cinquenta anos,
pouco mais, pouco menos, quando a comunidade científica, e mais
especificamente comunidade dos ictiologistas, teve de engolir uma abada
de sapos, ao verificar que os Celacantos eram pescados ao vivo, comidos
e digeridos, pelas populações limítrofes do Canal de Moçambique. Ignoro
se os lagartos gigantes (Macroscincus coctei) já foram
redescobertos nas ilhas de Cabo Verde, mas são outra das espécies ditas
extintas com probabilidade de redescobrimento ao vivo.
Parece depreender-se das minhas palavras que Mário de
Carvalho é um autor tão realista que a sua literatura se funde ou
confunde na científica, e realmente existe um nível de verosimilhança
espantosa no que escreve, apesar de se tratar muitas vezes de excursões
imaginárias ou até de divertimentos. A verosimilhança, mesmo quanto ao
modo de locomoção do Celacanto, não decorre de colagens ao
historiográfico, sim das capacidades de criador literário. Mas há sempre
colagens, nem era possível inventar no vazio: aproveitamento de factos
vividos, mas sobretudo lidos nos jornais e vistos na televisão. Ou podem
as referências estabelecer-se com a literatura, o que se patenteia logo
nas epígrafes de partes do livro, para não entrar no interior de contos
como «Na terra dos Makalueles», em que se invocam elementos do romance
de aventuras, e em especial de «As Minas de Salomão». Todo o ficcionista
usa dados da physis, digamos assim, e Mário de Carvalho não
constitui excepção. Porém o que o define é uma tremenda imaginação, ao
conduzir a narrativa, que começa por parecer normativa, para desfechos
absolutamente inesperados, com frequência situados fora dos limites da
physis.
Não, Mário de Carvalho está nos
antípodas de um Aquilino Ribeiro, que trago à colação por ter estado
ontem num local onde viveu, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa. À
direita da dupla igreja, fica um edifício de pedra comprido, que, ao seu
tempo, era um colégio jesuíta. Ali fez alguns estudos. Conversando com
um idoso proprietário de café, disse-me este que ainda conhecera o
escritor, de uma vez em que ele viera à Lapa, já de cabelos brancos,
para o funeral do Padre Ferreira, que fora seu professor. Para minha
surpresa, o meu interlocutor, comentando que "terras do demo" é
designação de Aquilino para esta região, relacionou "demo" com pobreza,
não pela carga negativa tão vária que pode assumir a expressão "terras
do diabo", sim pela forma do verbo "dar" - terras pobres, de
mendicidade, em que se estende a mão pedindo alguma coisinha para comer:
"dê-mo".
Aquilino escreveu "Demo" e não "dê-mo", mas é óbvio
que subjaz à confusão a cultura oral, própria de épocas em que era muito
alta a percentagem de analfabetos no nosso país. Fique esta nota
ortográfica alienígena a emparelhar com a distinção que Mário de
Carvalho faz no livro entre "besta" e "bésta"...
Nunca esquecerei aquele seu conto sobre a guerra
colonial, passado em África, «Era uma vez um alferes», vertido para
filme por Luís Filipe Costa. A cena foi rodada num bocado de parque com
palmeiras junto aos velhos Estúdios do Lumiar e demonstra que é falso o
julgamento, vindo do senso comum, segundo o qual o escritor só deve, ou
só sabe, escrever sobre o que conhece. De toda a farta narrativa que
surgiu no pós-25 de Abril, acerca dos tormentos passados no mato pelos
soldados, e neste livro, «O homem do turbante verde», permanece o rasto
dessa queimadura psicológica, o que senti como relato mais verídico foi
esse conto de Mário de Carvalho que, tanto quanto sei, não fez a guerra
colonial.
Desde a violência de um grupo terrorista, no conto
que dá título ao livro e o abre, até à violência individual, no último,
«O reduto», muitas formas de agressão e de resposta a ela se patenteiam
pela mão de Mário de Carvalho. Aliás, «O reduto», ao apresentar um homem
paranóico, que transforma a casa num reduto de onde se propõe
defender-se de agressores (imaginários?), desvia a violência de fora
para dentro, apontando o dedo à família, como base doente da sociedade,
também ela um foco gerador de violências brutais. |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |