REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

 

 

 

CENA I        

 

No espaço um banco de jardim, um soldado sentado. O personagem deverá encher balões, atá-los e espalhá-los na cena.

Tudo no maior silêncio, depois ouvem-se pássaros e som de mar. 

SOLDADO - Creonte acaba de me convidar para jantar, deve querer que estrangule alguém... estou aqui sentado vai para duas horas e apenas vi passar um osso que corria desalmadamente atrás dum cão. 

Passa Hémon lendo um livro em voz alta.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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MANUEL ALMEIDA E SOUSA

 

ANTIGONA

CASCAIS, 1994 

Este texto foi apresentado pela primeira vez na Escola Secundária Passos Manuel pelos alunos de Oficinas de Expressão Dramática (11º ano de artes e humanidades) - 1994 

 

 

HÉMON  (Lendo) - Não há horizonte. Apenas o reflexo de uma praia onde pairam anjos pálidos que se exercitam na travessia de espaços imaginados na memória... 

SOLDADO  (Levantando-se) - Senhor! 

Ouve-se uma trombeta.

SOLDADO   (Impaciente) - Senhor! 

HÉMON - Eu sei rapaz, é complicado. 

SOLDADO - Nem por isso, eu mesmo... (Olha para todos os lados) Promete não contar nada ao chefe? 

HÉMON - Claro! 

SOLDADO - Uma vez ela passou por mim com a filha, então eu despi-me e corri à sua frente. 

HÉMON - Todo nu? 

SOLDADO - Só pele... Bem, e pelos. 

HÉMON - Óptimo!... Queres jogar às cartas? 

SOLDADO - Se visse os gestos de prazer... 

HÉMON - Não tenho muito tempo para dissertações filosóficas, afinal todas as saliências e reentrâncias são fontes de prazer e eu tenho de me pôr a andar. Tenho de salvar a minha amada ou morrer com ela se o comboio chegar atrasado.   

SOLDADO - As tragédias são sempre situações imprevisíveis... por mim prefiro penetrar a fundo nas comédias...  Um cientista disse um dia na TV que rir é mais divertido que chorar. 

HÉMON - Por mim, tudo é bom quando acaba bem. 

SOLDADO - Quando o tempo passa, passa para todos. 

HÉMON - O sol também é assim, quando nasce é para todos. 

SOLDADO - Papo a papo enche a formiga o grão. 

HÉMON - Gato que mia, não ladra. Não é o que se costuma dizer? 

SOLDADO  - E o hábito é que faz o ladrão. 

HÉMON - Creonte deve estar a chegar, o osso e o cão já passaram há alguns quartzos, tenho de ir.  (Sai) 

SOLDADO - Tive muito gosto em conhecê-lo, senhor... E esta?... Bom, vou aproveitar para retocar a maquilhagem, pôr-me mais jovem, enfim... Ouve-se um estrondo Porra! Que foi isto? Já um soldado não pode maquilhar-se em tempo de paz?

 

Escuro total 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

CENA II 

 

Antígona ocupa o banco onde estava o soldado, Isménia brinca no chão com uma boneca de trapos. 

ISMÉNIA  (Para a boneca) - Vá, vamos, come o teu bolinho patriótico feito pelas mãos do titio! Come minha menina e recorda as ilhas que passearam pelo teu corpo. 

ANTÍGONA - Ouve esta; “procura-se corpo de combatente ou ex combatente das campanhas...” 

É interrompida por um tiro. 

ISMÉNIA  (Que se abraça  à irmã) - Minha irmã, que foi? 

ANTÍGONA - Não te preocupes, é o nosso tio e nosso rei num exercício demonstrativo da verdade. 

ISMÉNIA (Agarra Antígona)- Os poetas costumam demonstrar a verdade na ponta dos pés... Não é verdade minha irmã? Foi o que nos disse sempre o... 

ANTÍGONA (Interrompendo)- Senta-te minha irmã, contempla o que resta de ti na paisagem. 

Isménia olha o ciclorama onde se projecta o corpo de um jovem. 

ISMÉNIA - Polinices jaz morto e apodrece. 

ANTÍGONA - Cala-te, pareces um heterónimo do Fernando Pessoa. 

ISMÉNIA - Creonte recusa-lhe a morte. 

ANTÍGONA - Oh não!... (em  êxtase) Apetece-me gritar. Falar uma  língua de lugar nenhum!  Bááá... iiiiáá... Nhaccccccccc...  Ouvir-me em todas as línguas num imenso bom dia!... Envolver-me com ligaduras de uma qualquer múmia. Amanhecer de repente numa praia. Só, mas devagar. 

ISMÉNIA - Loucura, minha irmã, nunca o deverás fazer, a lei não o permite...

Jamais!... 

ANTÍGONA - Como dizia Breton: “Tudo é permitido, só o prazer é divino”. 

ISMÉNIA - Creonte mata-te! 

ANTÍGONA - Morrerá também. 

ISMÉNIA - Como sabes? 

ANTÍGONA  - Sempre se cumpriram as previsões do velho Tirésias. 

ISMÉNIA - Então... para disfarçar, vou pintar a pátria. Vou... 

ANTÍGONA - Faz o que entenderes, eu vou beijar-lhe os lábios e lançar sobre a sua pele a areia que deseja. A areia que ouço pedir-me a cada segundo que passa... Oh!... Meu irmão, meu irmão!... Vou lamber e cobrir os teus poros com veludo vermelho... quero-te muito mais quente... mais...

 

   
 

CENA III

 

O espaço está vazio, depois de algum tempo passam soldados em passo de marcha militar, cantam em coro. 

CORO DOS SOLDADOS 

     A passo de caracol

     Sol... sol... sol...

     Vamos defender o rei

     No ano que vem

     Ei... ei... ei...

     De cana e anzol

     Mol... mol... mol... 

COMANDANTE - Aí, oh!... Vamos a isto que se faz tarde. Vou começar por ler-vos as instruções: Por detrás de tudo isto desfilam outros soldados, marinheiros, corpos mutilados e o olhar de uma Gioconda que nos vê a todos... 

CORO DOS SOLDADOS - Na virtude e no pecado, até à grande eternidade. 

COMANDANTE - Percebido? 

CORO DOS SOLDADOS - Que remédio!... 

COMANDANTE - Remediado está. 

CORO DOS SOLDADOS - Assim seja. 

Antígona entra, os soldados agarram-na, a luz baixa, gritos, tiros, passos doble, olés...

 

   
 

CENA IV

 

Creonte entra em cena no seu trono, a seu lado uma bicicleta. 

CREONTE - Soldado!... 

SOLDADO  (Entrando a roer um osso exageradamente grande) - Cá estou eu, só me falta palitar os dentes. 

CREONTE - Palita lá isso depressa! 

SOLDADO - Aqui?... À frente do rei? 

CREONTE - Bom, então sobe para cima da bicicleta do poder e executa as tuas funções higiénicas num repente. 

SOLDADO - Posso mesmo? 

CREONTE - Claro. 

SOLDADO - Como sois generoso. 

CREONTE - Deixa-te de merdas e despacha-te! 

 O soldado senta-se na bicicleta, pedala enquanto palita os dentes. Música de Erick Satie.  

HÉMON  (Entrando) - Outra vez?... 

SOLDADO - Se...nhor... foi o rex... 

HÉMON  - Vai-te lixar, não falei para ti. 

SOLDADO - Desculpe lá. (À parte) Já agora fico mais um pouco na bicicleta do poder... Oh!... Que prazer! 

HÉMON (Declamatório) - Infâmia!... 

Pausa de alguns segundos 

CREONTE - Ouve lá, isso é da peça? 

HÉMON - Se quiseres repito a deixa. 

CREONTE - Repete lá isso... 

HÉMON - Só a última sílaba?

CREONTE - Poderás, ao menos, seguir as indicações do encenador? 

HÉMON - Pronto. Atenção; Infâmia!... 

CREONTE - A filha da pátria foi quem mo disse. Tu, meu filho, obedece. 

HÉMON - Nunca!... 

CREONTE - Capacho de mulheres... 

HÉMON - Ela é o meu sol. 

SOLDADO (A pedalar) - O sol quando nasce é para todos. 

HÉMON - Ela é o corpo e o espírito sempre presente nos meus sonhos. 

CREONTE - Eu dei uma ordem, as ordens são para se cumprir. Guardas!...  

 Entram os guardas a gritar 

CORO DOS GUARDAS 

- Tu és o meu sol

  Sol... Sol... Sol... 

CREONTE - Matem aquela mulher, matem-na!... 

CORO DOS GUARDAS 

- Que mulher?...

  Qual?... Qual?... Qual?... 

CREONTE - Antígona!... Estúpidos, estou rodeado de estúpidos. Isto não é uma corte, não é nada... Executem o que eu mandei!... Rápido! Ou querem que eu... 

SOLDADO (Saindo da bicicleta) - Senhor!... 

CREONTE - Que queres tu agora?...  

SOLDADO  - Posso dissertar? Dizer umas coisas que estão para aqui engasgadas? 

CREONTE - Se é só isso que queres... 

SOLDADO - Não sou eu quem a tem de estrangular?... É curioso como as coisas se passam nestes tempos modernos, deixei o meu barco do outro lado do lago, ensinaram-me a voar e pronto!... Cheguei e jantei consigo. É incompreensível, não está certo... Então agora manda estes estranhos executarem o que mais divertido se afigura a meus olhos? 

CORO DOS GUARDAS - Estranhos olhos? Nós?... Nós?... Nós?... 

HÉMON - Meu pai, não posso acreditar... Devo ter envelhecido muito. Quando tínhamos vinte anos ela possuía um cavalo que nunca desejei, os meus desejos foram sempre na direcção do seu corpo, dos seus cabelos... 

CREONTE - Chegou o momento de retocar o percurso das vidas. 

SOLDADO - E da maquilhagem. Caro Hémon tome este creme branco, ponha-se pálido como convém nestas circunstâncias. A morte empalidece sempre os amantes... e que tal umas lágrimas?... Também não ficavam mal.  

Hémon pinta-se, os guardas saem, o rei Creonte salta do seu trono rolante, o soldado volta para a bicicleta. 

HÉMON  (Pintando-se) - Bons dias, soldado. 

SOLDADO (Pedalando) - Bons dias, Hémon. Nós formamo-nos no meio de um ventre... Agora veja como estou crescido. 

HÉMON - É um facto... Desde a casa do bosque até à escada de serviço toda a relva do palácio está de pé. 

SOLDADO - A falta de Antígona... 

HÉMON - Antígona está presa; oh!... Eu sei como a encanta correr pelos bosques. Queria convidar o notário, mas ele teima em não largar a cana de pesca... 

SOLDADO - Creonte nunca o permitirá... A mim confiaram-me um garoto de seis anos, perdi-o a noite passada. 

HÉMON - Só há uma solução... 

SOLDADO - Vamos procurá-lo? 

HÉMON - Espera!... sinto algo inexplicável... algo, assim como... sei lá como! Entendes?

 

   
 

CENA V 

 

TIRÉSIAS (Entrando guiado por um menino) - Como estão, jovens amigos? Venho guiado pelos olhos que vêem o exterior e devoram as entranhas do tempo à chegada da noite. Ontem encontrei-os, enquanto os deuses anunciavam que o jovem Polinices estava coberto pelo veludo vermelho e que em breve o moribundo estará à mesa dos familiares. Bah! Levo os óculos de sol como todos os meus iguais e corro mais que vós no tempo que se aproxima. 

SOLDADO E HÉMON  (Em coro) - A profundidade do teu saber choca-nos, oh Tirésias!... 

TIRÉSIAS - Aos sábados é sempre assim.  

SOLDADO E HÉMON - Assim seja!... Salvé! 

 Escuro total

 

   
 

CENA VI

 

O espaço está vazio, Creonte entra no seu trono rolante seguido do soldado, este monta a bicicleta do poder.  

CREONTE - Um jovem seguiu-me de bicicleta... Ah!... Eras tu? 

SOLDADO - O seu filho é encantador. 

CREONTE - E tu, muito amável. 

SOLDADO - Os desportos interessam-no. 

CREONTE - Sim, esse meio de comunicação é  muito prático. Ele é jovem, sabes como são os jovens, não é? Para eles tudo se resume ao espírito de aventura e outras intelectualices do género... 

 SOLDADO - Sabe?... Tenho uma garagem. 

CREONTE - Muito obrigado. 

SOLDADO  - Diria mesmo; tem dois metros. 

CREONTE - Cabe perfeitamente a jovem Antígona. 

SOLDADO - Mesmo, mesmo; três metros. 

CREONTE - Melhor ainda, cabe Antígona e quase Esménia.  

SOLDADO - Talvez mesmo... Quatro metros. 

CREONTE - Oh!... Que maravilha, parece-me  que Clitmenestra está a queimar-se. 

SOLDADO - Clitmenestra?... Mas essa não entra nesta tragédia. 

CREONTE - Óptimo. Não te pareço simpático? 

HÉMON (Entrando) - Encerraste-a viva?... 

CREONTE - Que dizes?... Repara naquele espelho, tens uma bela cabeça meu filho, serás um lindo rei. Eu deveria mandar esculpir a tua fronte, deveria dar uma grande festa, prometer-te em casamento aos pais de Clitemenestra, fazer-te amar a natureza, senti-la...  

HÉMON - Onde está Antígona que alegra os meus bons dias, as ervas e os ventiladores? 

SOLDADO - Na minha garagem, filho de Creonte. Na minha garagem de um, dois, três, quatro metros... 

Ouvem-se choros e gritos          

 

   
 

CENA VII 

 

Creonte só e desesperado. Entra Eurídice. 

 EURÍDICE - Creonte!... Eu sou a imagem de olhos fechados e do sonho desconhecido, tenho a cabeça decepada pela tristeza. 

CREONTE - Eu estou nu de alegria. 

EURÍDICE - Malvado!... Onde está Hémon? 

CREONTE - Não na obscuridade.  

EURÍDICE - Então és cego. 

CREONTE - Não é possível... 

EURÍDICE - As janelas do meu nariz, que não têm pelos alongados, já pressentiram a desgraça. Oh!... Maldito sejas. (Sai chorando) 

 CREONTE - Não na obscuridade!?... Não na obscuridade... 

As luzes baixam até ao escuro total.

   
 

 

CENA VIII

 

O rei Creonte entra com Hémon ao colo, estende-o no chão. 

CREONTE - Como queres que duvide de ti, da tua travessia pelos trópicos?... Até agora todas as mulheres gritam, confessam o amor que ainda têm pelo fósforo branco e os homens rebolam na lama que construíram com as lágrimas de Antígona.

Hémon! Os cristais da minha adolescência têm vindo a quebrar-se. Tenho de confessar que durante muito tempo me deixei enganar pelas falsas discussões, pelo farol do estado. A doçura do viver, em que todos intervêm, não passa de um cântico suave que depressa se desvanece. 

 Escuro.

 

   
 

CENA IX 

ANTÍGONA - Adeus Hémon... Tenho-me perguntado muitas vezes qual será a forma mais rápida de acabar com uma tragédia. 

HÉMON - Espetar este punhal no meu peito de adolescente... 

ANTÍGONA - Enrolar com força as correias dos meus cabelos na garganta. 

HÉMON  - E o nosso grito libertário, banhado pelo suor do amor, tornar-se-á tão veloz como o voo de uma mosca de uma parede para outra que se desenhe à sua frente. 

Escuro total.

 

 

MANUEL ALMEIDA E SOUSA (PORTUGAL)
Enquanto "actor" na acção plástica expôs em várias galerias do país e criou a sua própria galeria no BAIRRO ALTO (anos 70) - Galeria Elefante Circular na travessa da Cara (Lisboa). Nos últimos anos tem-se limitado a actividades na área da arte postal, performance e artes gráficas - mais concretamente na criação de publicações como "Bicicleta" e grafismos de alguns números da revista "Utopia". Está representado em várias publicações de poesia visual (Espanha, Portugal, Polónia, Republica Checa, Itália, França e Brasil). Ainda nesta área tem colaborado na criação de espaços teatrais e, mais recentemente, desenvolve projectos com marionetas por si criadas.
CONTACTO: utopikuscirkus@aim.com