REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

 

 

1. Físicos e Cirurgiões e a Medicina:
Factos, Influências e Desenvolvimentos
A Assistência nos primeiros tempos do Cristianismo

                                 

                                                  “A utilização das Ciências deve ser a base
para tornar o Cristianismo apto a competir,
intelectual e  moralmente,
com outras  reli
giões, infiéis e pagãs
”.
(Jacques Le Goff)

          Nos momentos iniciáticos da implementação do Cristianismo, séculos após a ocupação do território pelo Império Romano, as funções de “médico” seriam maioritariamente desempenhadas por servos. Estes, participariam em acções de misericórdia, cuidando dos doentes economicamente mais desfavorecidos. Contudo, se o enfermo pertencesse ao sexo feminino, os servos curandeiros não poderiam exercer a sua função de modo a que não surgissem ofensas do foro moral para com as mulheres. Foi, então, criada uma ordem de diaconisas, a fim de ficar preenchida esta lacuna no sector da assistência.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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JOÃO SILVA DE SOUSA 

A Medicina em Portugal,

na Idade Média    

                                                                  
 

          A par com a criação da Ordem das Diaconisas, surgiu a Ordem dos Diáconos. A cada um destes seria atribuído um bairro para habitar e a fim de tratar os doentes, igualmente residentes nesse mesmo bairro.

          Em relação às práticas medicinais romanas era notável a influência e a assimilação da Medicina grega (Ilustração 1), quer no que dissesse respeito a diagnósticos e prognósticos, fosse nas execuções de análise a doenças e prescrições de tratamentos. Na Literatura, os Gregos deram o seu contributo. O De materia medica, do turco Dioscórides [40? - 90?], foi considerado a principal fonte de informação sobre drogas medicinais desde o Século I até ao Século XVIII. Nela se descrevem cerca de 600 plantas, 35 fármacos de origem animal e 90 de origem mineral, dos quais só cerca de 130 já apareciam no Corpus hippocraticum e 100 ainda são considerados como tendo actividade farmacológica (Ilustração 5). A sua influência foi enorme até ao século XVIII, existindo inúmeras traduções do Grego para um grande número de línguas.

     Mas Dioscórides não parece ter sido original, pois baseou o seu texto nos escritos de Theophrastus [371-287 a.C.] e Cratenos, um servo da Ásia Menor que terá vivido no século I da nossa Era.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Hipócrates, o Pai da Medicina
(Cós, 371-Tessália, 287 a.C.)

 

        Theophrastus, de Lesbos, sucessor da Escola dos Peripatéticos de Aristóteles, preocupou-se com o estudo das plantas, trabalhos sobre o que levou até ao fim de sua vida. Os escritos originais do De materia medica teriam ilustrações de especiarias, óleos, produtos animais, plantas, vinhos e minerais que poderiam ser utilizados no tratamento de doenças.

          Todavia, adversos às práticas gregas – basicamente sustentadas na racionalidade – os Romanos tendiam a mistificar a medicina, criando concepções supersticiosas, no campo científico. Aqui a “Medicina” de Hipócrates [460-377 a.C.] perde prestígio, dando lugar ao misticismo, à magia, ao culto das divindades e à confiança exacerbada nos milagres, produto do cepticismo geral das comunidades. Apesar da ciência médica não ter sido totalmente descurada, os males de espírito e a higiene de alma ganharam importância superior, tendência verificada em cristãos e não cristãos.

          Foi, então, estabelecido no exercício da Medicina o chamado Juramento de Hipócrates, nestes termos:

"Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
aplicarei os regimes para o bem do doente, segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça." 

          Foi naquela corrente supersticiosa que se fundou a seita dos terapeutas, cujo programa místico-filosófico incluía o culto a Deus em toda a Sua supremacia, em toda a Sua pureza, conservação da castidade e isolamento dos Homens. O fim em si seria, além da aproximação pessoal a Deus, a cura das doenças por via sobrenatural.

          Já numa fase mais avançada da permanência romana em Portugal, novas alterações tiveram lugar. O ideal de assistência médica foi imposto como um dever ético e religioso, tanto ao indivíduo como à comunidade. Na mesma corrente idealista, inicia-se a assistência ao domicílio. Neste contexto, será de relembrar a inexistência de estabelecimentos apropriados para a execução das práticas medicinais. 

                          “(Por ver) tanta quantidade de banhos em diversos reinos
                           e  potentados,  e havendo tantos doentes de frialdades, de
                           ar, de opilação, que necessitam deles para recuperarem a
                          saúde em seus males […],obramos este piedoso edifício de
                          termas), para acudirem às suas necessidades”.
                         
(Livro da fundação deste Real Hospital sito nas Caldas)                   

          Foram também os Romanos que iniciaram o conceito terapêutico das práticas balneares em Portugal – o balneum -, conceito esse que teria continuidade com a civilização árabe – o Hamman -, mas que acabaria por ser desencorajado com o advento das cruzadas portuguesas, uma vez que, supostamente, o banho seria encarado como um dos principais inimigos das tropas, porquanto ele diminuiria o vigor físico dos homens. No século XI, Afonso VI, rei de Castela, mandou destruir todos os edifícios termais, promulgando, mais tarde, a sua proibição por serem incompatíveis com a moral vigente. Contudo, um século depois, estabelecem-se prescrições para os banhos. Foi em 1069 que D. Afonso Henriques, neto de Afonso VI, se foi curar de uma perna nas termas de S. Pedro do Sul, nos termos de Viseu, cidade em que nasceu (1109).

          Haveria dias destinados ao banho masculino e dias destinados ao banho feminino e, para quem não cumprisse as regras, haveria também penalidades. Os banhos teriam, no entanto um preço a pagar.

          Num panorama mais convulsivo e abrangente, poderá dizer-se que a assistência médica no período luso-romano distingue-se exactamente pela progressiva humanização dos seus processos, sobretudo devido à prática da caridade cristã própria do cumprimento dos princípios do Evangelho.

          Posteriormente à ocupação romana, Portugal é novamente palco de outra ocupação efectuada levada a termo por Suevos, Alanos Vândalos e Visigodos. Apesar da pouca informação existente sobre a Medicina praticada por estes povos, ainda é entre os Visigodos romanizados, responsáveis pela ponte feita entre os Romanos e a nossa Idade Média, que demos conta de um forte legado histórico deixado por este povo que se concentra num Código que em algo contribuiu para a componente legislativa da Medicina em Portugal.

           Vejamos algumas das cláusulas insertas no Liber Iudiciorum, ou Código Visigótico (654), promulgado por Recesvindo [653-672]: 

A.     Nenhum físico poderia sangrar uma mulher ou filha de nobre, caso um parente não estivesse presente. Se o fizesse, pagaria 10 soldos.

B.     Se o físico ferisse um nobre teria de pagar 100 soldos. E caso o paciente padecesse devido a uma intervenção, o cirurgião seria entregue à família do padecido para esta fazer do médico o que melhor lhe aprouvesse.

C.     Se o cirurgião estropiasse um servo, teria a obrigação de restituir um outro ao senhor.

D.     Após o exame efectuado a um paciente, estabelecia-se o preço da consulta. Contudo, em caso de morte do paciente, não haveria direito a quaisquer retribuições monetárias ou de outro tipo.

E.      Se o físico tivesse a oportunidade de leccionar, receberia, como pagamento da parte de cada discípulo, 12 soldos. 

          Estas seriam algumas das cláusulas visigóticas que se tornaram parte integrante da legislação médica em Portugal, sendo que pouco mais poderá acrescentar-se ao legado herdado deste povo nórdico.

  2.  As Categorias da Cultura Medieval.
 

          Se, numa primeira fase, a Medicina portuguesa contou com as influências romanas e, por acréscimo, visigóticas, posteriormente, foram os Muçulmanos a assumir esse papel, sobretudo nos séculos XII e XIII.

          Durante a centúria de Novecentos, a Medicina do Islão Ocidental instala-se por toda a Hispânia muçulmana, caracterizando-se por um forte nível de desenvolvimento científico e artístico. Córdova atinge o estatuto da maior cidade da Europa, sendo depois de Constantinopla o mais importante centro cultural.

          Os Árabes acabariam, indissociavelmente, por influenciar também a cultura portuguesa através das Letras e das Ciências. No entanto, determinar que fórmula teve a Medicina islâmica em Portugal não será uma tarefa simplificada se se tiver em conta a escassez de material de estudo sobre o assunto. Até porque a grande maioria dos textos referentes à Medicina ou Alquimia islâmicas foram unicamente traduzidos pelos Judeus, numa época mais tardia dos acontecimentos.

          Para a Medicina portuguesa, as inovações trazidas pelos Árabes para o território nacional foram estrondosas. O conceito farmacêutico ganhou uma nova concepção. Além da introdução de novos medicamentos, os Árabes adoptaram diversas fórmulas farmacêuticas autorizadas pelo seu governo e instituíram as inspecções periódicas às farmácias.

          A Astrologia e a Uroscopia (ou seja, o exame da urina) foram outros dos conhecimentos inovadores implantados. Para a comunidade islâmica, estes seriam os campos de estudo mais pertinentes na resolução das enfermidades.

          Com base na Astrologia, uma extracção sanguínea deveria ser efectuada exactamente cinco vezes por ano, precisamente nos meses de Março, Abril, Maio, Setembro e Outubro, sendo que cada um destes meses teria a sua própria função curativa. A título de exemplo, a extracção sanguínea de Maio combatia a febre e a de Setembro expulsava os maus humores. As fases lunares teriam igualmente influência na sangria, uma vez que, consoante as mesmas, seriam determinados os estados de enfermidade e de regeneração física. Logo a sangria funcionaria como um fim terapêutico e preventivo das doenças.

          A uroscopia teria como função a realização dos diagnósticos e dos prognósticos, através da análise da urina, na qual seriam despistadas todas as propriedades da sua composição e aparência: quantidade, cor, fluidez, cheiro e sabor.

          A Alquimia acabou por ser outra das grandes inovações médicas, o que determinou a descoberta de preparações como o sublimado e o precipitado do sulco ou simplesmente a confecção de ácidos. Nesta categoria merecem ainda menção especial os purgantes ecopráticos.

          Foi na Medicina prática que os Árabes mais mostraram a sua insipiência. Assim sendo, a Anatomia seria o campo médico menos cultivado, facto que se deve, puramente, à fé alcorânica, que, por sua vez, proíbe estreitamente a dissecação de corpos. Outro aspecto que poderá ser revelador da mediocridade da Medicina prática exercida será o facto de esta ser efectuada por indivíduos de condição inferior, ou seja, barbeiros ou charlatães, sendo que, na grande maioria dos casos, estes apenas se limitavam a prescrever os tratamentos.

          Aqui ficam alguns dos nomes mais sonantes da Medicina oriental, praticada em Portugal: 

A.     Abu-l-Qasiur [936-1009]. Apenas deste se sabe ter sido o mais famoso cirurgião árabe.

B.      Ibn Rushd Averróis de Córdova [1126-1198]. Era filho e neto de juristas, foi estudante de Filosofia, Direito e Medicina, bem como juiz, qadî, em Córdova. Durante o período Almóada, foi médico dos califas em Marrocos.

C.     Ibn Zuhr Avenzoar de Sevilha [1091-1162]. Era filho e neto de médicos também conhecidos e de prestígio, por se tornar o médico mais célebre do Islão Ocidental. Era oponente à Astrologia e a práticas mágicas. Escreveu unicamente sobre Medicina, sendo a sua mais importante obras sobre terapêutica e dialéctica.

D.     Avicena [980-1037], filho de um homem de negócios, com extraordinária precocidade, distingue-se, no domínio das ciências, antes de completar os 16 anos, exercendo a prática de Medicina. Depois de ter sido jurista, professor e administrador em Ray e Hamadã, na Pérsia, foi nomeado vizir de Shams al-Dawla. Amante do estudo e de mulheres, dissertou sobre saúde e fortuna, morrendo de doença misteriosa, aparentemente uma cólica mal-tratada, ou, talvez, de envenenamento, em Hamadã. A sua cultura foi enciclopédica. As suas obras sobre Medicina ainda eram reimpressas no século XVII. 

          Após o domínio islâmico, com o longo processo da “Reconquista” e as cruzadas, vem a mudança. O número de hospitais em Portugal aumenta por três motivos: 

A.            Propagação pelo Ocidente das doenças impuras e sobretudo um devastador surto de lepra (Ilustração 8).

B.             Intensificação do circuito comercial, resultando numa afluência ao Ocidente de mercadorias e medicamentos oriundos do Oriente.

C.            Aumento do número de homens livres com base nas imunidades concedidas aos defensores da fé cristã, fazendo crescer, deste modo, o número de físicos e cirurgiões, fora da Igreja. 

                                      “(O hospício dos meninos de Santarém recolhe enjeitados) por ocultarem suas mães o delito
com  que se profanaram, e que, acrescentando, delito a
 delito,
os lançassem em parte aonde, se os não  achavam  acaso
,
morriam sem receberem
a
água do baptismo por evitar as ofensas
a Deus e a perdição das almas”
. 
(Do compromisso do Hospício dos Meninos de Santarém – século XIX)

          Estes hospitais ou albergarias – como seriam apelidados, acolhiam tanto enfermos como peregrinos. Houve, todavia, dois estabelecimentos que se destacaram: Os Meninos Enjeitados de Lisboa e Os Meninos Enjeitados de Santarém. Ambas as instituições foram criadas por D. Martinho com o poderoso auxílio de D. Dinis e teriam ao seu dispor unicamente a religiosa Ordem de Santa Maria da Roca, que prestaria os seus serviços relativamente ao tratamento dos doentes hospitalizados.

          A partir do século XII, a Medicina medieval ganha um novo fôlego. Os hospitais passaram a definir-se como Casas de Acolhimento, lugares estes onde os doentes se dirigiam, na maioria dos casos, para morrer. No entanto, estes locais aparentavam ser também um verdadeiro estabelecimento de cuidados, com papel profilático e sanitário. Cada um dos maiores centros urbanos teria, pelo menos, uma destas instalações, geridas pelos cónegos e diaconisas da cidade.

          Simultânea e paralelamente às Casas de Acolhimento, haveria um número relativamente importante de pequenos hospitais para cuidados mais imediatos – Domus Dei ou Hospitale – distendidos pelas comunidades religiosas.

          Já nos finais do século XII, a Medicina reparte-se em dois campos de estudo: o teórico e as sessões práticas. Esta dicotomia tornou-se igualmente visível nos estatutos dos praticantes da ciência médica, ou seja, tanto médicos como astrólogos seriam igualmente respeitados na corte portuguesa. Ambos teriam garantias sólidas de recompensa em caso de sucesso ou sérios riscos se, acaso, fracassassem.

          Esta situação de igualdade era sustentada por uma única premissa: a Medicina científica ainda não era completamente eficaz, quando exercida por si só, sendo a superstição e a Alquimia a colmatar o grande vazio ainda existente. Embora a Medicina fosse já a primeira opção, a “cura milagrosa” seguia-se-lhe de pronto. Para exemplificar, existiu o caso de Luís VIII que, quando se encontrava doente, primeiro chamava os médicos da corte e, imediatamente a seguir, as procissões religiosas. Este seria o carácter da Medicina do século XII, extensiva à centúria seguinte.

          A sociedade prosseguia com a crença no sobrenatural como fonte explicativa de tudo aquilo que não poderia ser compreendido de outra forma mais racional. Na cura das enfermidades, este processo surgia sob a forma da invocação das relíquias dos mártires, dos santos óleos ou da água benta, uma vez que estas prescrições teriam prodigiosas virtudes.

          A terapêutica, por sua vez, apresentava um estado caótico, acabando por adoptar um carácter supersticioso na sua globalidade, de tão impregnada que se achava no seio da comunidade a crença no sobrenatural.

          Fontes de diversa natureza, nomeadamente relatos de peregrinos a santuários, permitem verificar a existência de doenças do foro psíquico e físico. Eram vulgares as doenças dos olhos, nomeadamente devido à falta da vitamina A, as doenças de pele e ainda as febres (tifóide, malária), “quebraduras”, inchaços e “tolhimentos”. A documentação da época fala ainda, para além de toda uma série de diarreias, dores e febres, a saber, de:  

A.       Ares (que consistiam numa parelisia que se julgava ser provocada por ares corruptos); 

B.        Espinhela caída ou mal de estômago, dor ou opressão na zona supra estomacal;

C.       Quebranto, ou trespasso, isto é, estado de indolência, apatia e tristeza que se considerava ser provocado por mau-olhado;

D.       Mal-sentido, ou de todo o tipo de lesões de membros – deslocados, torcidos ou fracturados;

E.        Cobrão ou irritações cutâneas que se julgava serem provocadas pela passagem pelo corpo de animais repelentes, tais como cobras, aranhas, lagartos e outros;

F.        Fogo ou Ozagre, que se manifestava através de irritações cutâneas que provocavam grande ardor;

G.       Feridas entendidas genericamente, umas feitas por lombrigas, outras resultado de mordeduras de animais vários, da carne talhada ou rendida;

H.       Dor de Reira, ou de rins, ou pedra nos rins. 

          Evidentemente que, ao atraso de meios de diagnóstico e de tratamento, terão de juntar-se a falta de higiene, as carências alimentares, as superstições e até a pouca protecção das pessoas face ao frio e à neve.

          Quanto às doenças do foro psiquiátrico, tantas vezes designadas por loucura ou possessão demoníaca, nem sempre é fácil saber-se do que se tratava realmente. Referimo-nos a casos de epilepsia, alucinações, ansiedade e stress, Levados às últimas consequências, podem ter sido uma realidade. Os humores, como se refere acerca de D. Duarte, o humor merencório, ou melancólico, é uma depressão que, numa alta percentagem, leva ao suicídio. 

                                    "Para aqueles que dizem como posso admitir a possi

                                    bilidade de infecção,  quando  a lei religiosa a nega,

                                   respondemos que a existência do contágio é constata

                                   da pela experiência, pela investigação e pela evidên-

                                   cia de relatórios confiáveis.  Estes  constituem argu-

                                   mento fácil e sólido. O contágio torna-se claro ao in

                                   vestigador,  quando observa como ele,  que está  em

                                   contacto com pessoas doentes, pega a doença, ao pas

                                   so que aquele que não tem o contacto, fica a salvo. A

                                   transmissão dá-se através de roupas e recipientes”.

                                   (Ibn-al-Khatib, séc. XIV). 

          A peste, como qualquer outro flagelo, lembrava a insegurança da vida e a eminência da morte. Desde a indiferença face aos defuntos à ironia, passando pela piedade, ódio, generosidade, divertimento, fanatismo e apego ao sagrado, tudo valia para fugir a um dos maiores inimigos da época. A de 1348 desenvolve-se de duas formas: a bubónica (Ilustração 6) que matava 75% das pessoas atingidas e a pulmonar de que morriam 100%.

          Ignoradas as verdadeiras causas da doença e atendendo ao estádio de desenvolvimento da Medicina, não poderá estranhar-se que as medidas tomadas pelas autoridades e pelos particulares se revelassem importantes face ao flagelo. E peste era todo o tipo de doença da qual se desconhecesse meios de tratamento e cura - uma gripe, por exemplo -, o que, sendo assim, causava larga e rápida propagação.

           Logo que se detectava o início de surto pestífero, os mais abastados (incluindo a Família Real) procuravam instalar-se em zonas sãs. Outros recorriam a amuletos, à purificação do ar das ruas e das casas, através de grandes fogueiras de ervas de cheiro (alecrim, por exemplo), ao isolamento dos doentes e das áreas infectadas, em especial das zonas portuárias, ao emparedamento de portas e janelas das habitações. Outra medida seria soltar nas ruas grande quantidade de gado, especialmente vacas creadeiras. Chegar-se-ia a encerrar escolas e impuseram-se multas para quem mentisse sobre o local de onde vinha. Paralelamente, instituíram-se hospitais para pestíferos e atraíam-se médicos estrangeiros. Fechou-se a entrada de Judeus pela fronteira ou que aportassem ao Algarve.

          Se os factores originários reais da peste eram desconhecidos, o mesmo não poderemos afirmar da identificação da sua sintomatologia. A vivência de surtos epidémicos frequentes – recordem-se, além dela, a encefalite letárgica, o tifo e o tabardilho -, levava os médicos e a população em geral a terem ideias muito claras acerca dos sintomas: dores de cabeça intensas, febres, vómitos e dificuldade em respirar. A resposta mais comum era a prática de sangrias, que seria a resposta base de tratamento para quase todas as enfermidades.

          Igualmente, a água desempenhava uma importante função no campo da terapêutica, devido às suas benéficas virtudes. Foi através deste princípio que se reiniciaram as práticas balneares e o uso das águas medicinais, tradição que viria a estabelecer-se e a desenvolver-se em Portugal, mas apenas como privilégio das classes sociais mais afortunadas.

          O século XIII apresenta-se como a centúria das universidades. Entre 1200 e 1400 foram fundadas, na Europa, 52 universidades, e 29 delas foram mandadas instituir por papas. A transformação cultural gerada pelas universidades no século XIII, ficou expressa na frase de Charles H. Haskins: “Em 1100, a Escola seguia o Mestre; em 1200, o Mestre seguia a Escola”, tendo sido, então, que o estudo da Medicina atingiu algum relevo e importância considerável num Portugal muito voltado para a espiritualidade, onde a Igreja Católica era dominante, dado, provavelmente, que a proliferação se tivesse verificado por toda a Europa Ocidental.

          Paralelamente, com a criação das Ordens Mendicantes (Dominicanos e Franciscanos) desenvolvem-se os campos educacionais da Filosofia, das Ciências, em geral, e da Teologia, três áreas de estudo implementadas e em crescimento de saber científico, com contribuições antecipadas de D. Sancho I e concretizadas em Portugal, com D. Dinis. Com as quantias doadas pelo rei, os cónegos já poderiam ir aprofundar os seus estudos para o estrangeiro, para que quando voltassem, tivessem a capacidade de leccionar as matérias por si mesmos, de maneira a promoverem a escolástica em Portugal. No reinado de D. Sancho I, D. Paio Gonçalves, Prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, mandou D. Mendo Dias, seu sobrinho e cónego no mesmo mosteiro, que fosse estudar para Paris, a fim de, quando voltasse, pudesse leccionar a primeira aula pública de Medicina no Reino.

          No entanto, anteriormente aos estudos efectuados no referido Mosteiro, diferentes investigações já haviam sido levadas a cabo por outros homens como D. Pedro Amarello, Prior do colégio de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, médico de D. Henrique e seu filho e por D. Martinho, bispo da Guarda, médico de D. Sancho I e de D. Afonso II. O estudo da Medicina em Conventos e Mosteiros seria o único meio favorável para o desenvolvimento da mesma, uma vez que Portugal se situava num enquadramento histórico de guerras e lutas.

          A antiguidade das gafarias em território português está bem atestada. No testamento da condessa D. Mumadona Dias (950), surgem referências à doença, o que parece desmentir que a introdução da doença se fizesse por alturas da 2.ª Cruzada (1147-1149), proclamada pelo Para Eugénio III. Mais tarde, na época da “nacionalidade” lusa, encontram-se bastantes legados e doações de tipologias diversas: as leprosarias. D. Sancho I determina também a fundação de uma gafaria em Coimbra, e o mesmo sucede com os reis seguintes (Ilustração 8).

          Os Cónegos Hospitalários de Santo Antão eram uma das congregações que se dedicavam ao apoio a Leprosos ou Gafos, a quem chamavam “padecentes de Santo Antão”. As leprosarias ou gafarias espalham-se e multiplicam-se por toda a Idade Média. Existiam inúmeras gafarias por todo o País: em Braga, havia três; em Guimarães, duas; no Porto, uma, em Leiria, outra; em Lisboa, cinco; em Torres Vedras, uma; em Évora, outra, entre várias.

          Novamente, será de referir o facto da saída dos aprendizes da ciência médica para outros países no estrangeiro, sendo Paris o itinerário mais procurado bem como as universidades de Salamanca, Montpellier e os hospitais do mosteiro de Guadalupe que se tornou num importante centro de aprendizagem de cirurgia. Em atenção a esta situação, o Clero tentava desesperadamente criar o ensino das artes e das ciências em Portugal, de modo a conservar o seu domínio. Foi, então, como já mencionado  acima, enviado um pedido ao papa Nicolau IX, a suplicar a criação do ensino geral das Ciências em Lisboa, com a promoção de D. Dinis e do clero menor. A construção da Universidade pelo monarca estava já realizada anteriormente à chegada da bula, a conceder autorização para a edificação da mesma em 1289. 

                               E porem mando a todolos scolares e studantes na dicta

                               cidade de coinbra, e a todolos outros do meu Señoryo q

                               quiseren  aprender sciençias q daqui  en deante sse vaã

                               para o dicto studo de Lixboa  e deus querendo hy auera

                               auondamento de doctores, e de mestres, e de bachareles

                              en cada huã das sciençias assi como deue auer em studo

                              geeral” (D. Afonso IV, 1334). 

          Não é unânime a data em que se considera ter tomado lugar a fundação da Universidade de Coimbra. Parece ser melhor opinião a de que ela tenha sido instituída entre 12 de Novembro de 1288 (data da súplica a Nicolau IV) e 1 de Março de 1290 (ano em que já funciona o Estudo Geral e se ampliam os seus privilégios. Data, igualmente, de 1290, de 9 de Agosto, a bula Do statu regni portugallie, pela qual veio sancionar a fundação.

          É a bula endereçada à universitas formada por mestre e estudantes. Neste documento, diz o papa ter tido conhecimento de que D. Dinis havia fundado em Lisboa estudos de cada uma das faculdades lícitas (entre estas, a Medicina), que seriam mantidos com auxílio eclesiásticos. O Pontífice dá, então, a sua aprovação ao realizado. Pede ainda ao rei de Portugal que obrigue os cidadãos lisboetas a arrendar aos estudantes as casas devolutas, de acordo com uma renda a estabelecer. O Infante D. Henrique, 140 anos mais tarde, governava D. João I, seu pai, oferecia casas suas à Universidade e, deste modo, se constituiria o Bairro dos Escolares, em Lisboa. Sobre este último ponto falaremos no n/ capítulo seguinte.

  3. A Medicina nos Descobrimentos e na Expansão Portuguesa
 

                                                   “E foi que, de doença crua e feia,
                                                    A mais que eu nunca vi, desempararam
                                                    Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
                                                    Os ossos pêra sempre sepultaram.

                                                    Quem haverá que, sem o ver, o creia,
                                                    Que tão disformemente ali lhe incharam
                                                    As gingivas na boca, que crecia

                                                    A carne e juntamente apodrecia?  

                                                     Apodrecia cum fétido e bruto
                                                     Cheiro, que o ar vizinho infeccionava”.
                                                     (Luís de Camões)

          Ao focarmos a última fase da Medicina em Portugal na Idade Média, entramos no século XIV, onde, indissociavelmente, ter-se-á de falar sobre Medicina e a Expansão Portuguesa, o que se deve sobretudo ao marcante contributo do Infante D. Henrique em ambos os campos.

          Neste período, a Medicina seria praticamente um assunto de sabedoria enciclopédica, com referências a textos clássicos, sendo que, na Europa Ocidental, a cirurgia atinge a sua era dourada neste século, dados os avanços conseguidos durante o século XIII. Os maiores feitos realizados nesta área devem-se sobretudo aos cirurgiões do exército, outrora trabalhadores manuais, desdenhados pelos docentes universitários de então.

          A cirurgia começou a ser efectuada directamente no corpo humano, o que constituiu um enorme choque para a sociedade, apesar da pequena evolução de mentalidades ocorrida. Nos gabinetes de cirurgia, além de se realizarem as operações cirúrgicas, também se preparavam medicamentos através da utilização de ervas, de propriedades animais e só mais raramente de minerais. A aplicação destas mezinhas seria efectuada por físicos, curandeiros e cirurgiões. Contudo, a escassez de produtos medicinais e de recursos humanos continuava elevada. Como tal, devido à falta de pessoas oficialmente habilitadas para o exercício da Medicina, procedeu-se ao recrutamento e ensino de autóctones, incrementando, desta feita, as lições de Medicina. Até porque em meados do século XIV, haveria já muito poucos físicos genuínos, sendo a grande maioria dos praticantes mágicos, farsantes, feiticeiros ou simplesmente charlatães.

          Este grupo que se desempenhava da arte da cirurgia era considerado como “investigadores da natureza”, atingindo, posteriormente, os estatutos de adivinhos, alquimistas ou astrólogos. A doutrina cristã acreditava e deixava passar a ideia de que era mais proveitoso conquistar os descrentes pela sabedoria e verdadeira erudição, do que através das guerras conduzidas por letrados belicosos de sucesso que acabavam por vir a ser esquecidos.

          Com a “odisseia” dos Descobrimentos, a figura do Infante D. Henrique é destacada, precisamente, devido ao seu contributo ma Expansão por conquistas no Norte de África e achamentos na Costa Ocidental, pelo Mar Oceano até à Guiné e desta ad ultram, visando o exaustivo desenvolvimento da Ciência portuguesa, aprofundando-a e impulsionando-a.

          Como já acima o referimos, a amplitude da Ciência no nosso País encontrava-se fortemente debilitada, devido a motivos diversos. Esta situação resultou no incremento de profissionais mal apetrechados para a execução da Medicina, o que, por sua vez, resultou numa maior descrença da população relativamente à Ciência Médica, atribuindo-lhe cada vez mais um carácter sobrenatural.

          Como medida preventiva, dada a corrente situação, D. João I institui as cartas de exame obrigatórias, mas tal não foi suficiente para melhorar o valor científico português (Ilustração 4)

                                           aos que dizem que consente, e trazem em casa

                                            judeus físicos e solorgiões, e lhes dá cartas que

                                           usem dos dictos officios. A esto respondo el rrey

                                           que assy ho fazem em corte de Roma como elles

                                           bem sabem

                                           (Archivos de História da Medicina Portuguesa, p. 10).

           Ao tomarem consciência deste panorama, os médicos judeus viram em Portugal um terreno propício para a aplicação dos conhecimentos que haviam adquirido no estrangeiro durante as suas peregrinações. E foi através do seu árduo empenhamento que conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pelo fanatismo religioso, apresentando uma Medicina que com ela traz dados novos, como relativa valorização teórica, ganhando a progressiva protecção do monarca no quadro científico português. Esta nova situação acabaria, inevitavelmente, por levantar a discórdia entre as várias ordens sociais, levando D. João I, em 1427, a facilitar a questão, a aproveitar a mão-de-obra já considerada especializada, tal como em Roma, comummente, se fazia.

          Inserida neste contexto, surge, então, a figura do Infante D. Henrique que, influenciado pela convivência com a comunidade judaica, se apercebe da contribuição inovadora que este povo poderia trazer à Medicina no Reino, que continuava a apresentar os já conhecidos atrasos na farmacêutica, terapêutica e cirurgia.

          A sua primeira acção de reformulação do quadro criado anteriormente dirige-se à fundação de hospitais para o tratamento das doenças africanas, com o auxílio de frades Trinitários. Em 1415, esta Ordem obtém, como dádiva, umas casas do cavaleiro, alcaide-mor de Faro, Pedro Afonso de Âncora, onde se fundaram um convento e um hospital para acolhimento e tratamento de cativos resgatados aos Mouros. O hospital acabaria por ganhar prestígio, contudo, muito efémero. Em 1425, o porto de Faro perde a sua importância, em detrimento do porto de Tavira, onde, igualmente, se havia fundado o hospital do Santo Espírito. Estas duas iniciativas desenvolveram a ciência médica nacional pelo tratamento de doenças até então desconhecidas.

          Em 1431, processa-se à nomeação do Infante como protector do Estudo Geral de Lisboa, promovendo as Ciências, como não podia deixar de ser. Conjuntamente, D. Henrique oferece para a instalação de estudos algumas casas que anteriormente havia comprado a Joanne Anes e sua mulher. Criou o Bairro dos Escolares em Lisboa.

          Todavia, apesar destas e outras medidas de desenvolvimento médico, as dificuldades materiais persistiam e os rendimentos de sustentação da Universidade eram incertos. Para resolver a situação, o Infante cria novos Estatutos relativos à prática da Medicina e desenvolvimento dos Estudos Médicos, substituindo os anteriores, promulgados por D. Dinis, que recuavam a 15 de Fevereiro de 1309. 

          O Regimento referia que:

A.   O grau de bacharel seria concedido a quantos cursassem as aulas durante três anos e fizessem um acto de conclusões magnas perante os Mestres e Doutores.

B.    Quando os Mestres não julgassem o aluno (o companheiro) habilitado, este teria de estudar mais tempo para novo exame.

C.   O grau de licenciado só seria concedido aos bacharéis que estudassem quatro anos e efectuassem um acto de conclusões magnas. 

          Em 1438, após uma epidemia de peste, D. Henrique promove a vinda do Mestre Ananias de Ceuta e de outros boticários que consigo trariam medicamentos até então desconhecidos em território nacional. Vieram a ser privilegiados por D. Afonso V a 22 de Abril de 1449. Sabemos, de igual modo, que, na mesma data, o infante funda o primeiro hospital de Tomar, sede da Ordem de Cristo, que administrava desde 1420, protegendo avultado número de médicos que, em terras da sua jurisdição, iam permitindo auxílio aos moradores. Essa mesma protecção aos médicos - físicos e cirurgiões - sob a sua alçada, iria repercutir-se na promulgação do Regimento do Cirurgião-mor, a 25 de Outubro de 1448, obrigando todos os cirurgiões a serem submetidos a um exame geral perante o cirurgião-mor (Ilustração 4). Nos anos que se seguiram, não mais se esqueceram meios de promover a Medicina, em geral.

          Uma das doenças mais conhecidas nos séculos em que os Portugueses viajaram pelo mar foi o escorbuto.

          A função principal da vitamina C é estimular a produção do colagénio, substância fundamental para os tecidos conjuntivos, decorrendo os sistemas de tal doença do comprometimento da integridade desses tecidos. Além da hemorragia gengival, outros sintomas são: sensação de fraqueza, dores musculares, dificuldade de coagulação e cicatrização, menor resistência às infecções, inflamação, vermelhidão. Seria recomendável, por consequência, o consumo de frutas frescas cítricas: limão, laranja e tangerina para prevenção ou tratamento. Entretanto, a vitamina C é muito instável, decompondo-se facilmente e o sumo daqueles frutos deve ser tomado imediatamente após a sua preparação. Nada disto era possível nos meses que os marinheiros passavam no mar, tornando-se vítimas daquele mal que os atacava com regularidade.

  4.  A Medicina e o Sistema Social
 

      No decurso da Idade Média, as concepções idealistas acerca da ciência médica mantiveram-se continuadamente repartidas em três correntes de formação: 

A.   Concepção da Medicina unicamente no campo racional, prático e científico – os “médicos”.

B.    Concepção da Medicina na vertente espiritual de acção sobrenatural e metafísica - “investigadores da natureza”.

C.   Concepção de Medicina como um produto da junção indissociável do científico e do espiritual – teóricos (praticantes ou não). 

          Devido a esta visão pluralista, relativamente à compreensão do conceito de Medicina, esta seria efectuada por diferentes especialistas na área das ciências e nem sempre em instalações apropriadas para o efeito.

          Em termos de contributos para o desenvolvimento da ciência médica portuguesa ao longo deste período historiográfico, a ocupação romano-goda estabeleceu as bases estruturais, legislativas e idealistas do que viriam a tornar-se a Medicina nacional e a progressiva humanização dos seus processos.

          Se durante a ocupação luso-romana, as práticas medicinais eram realizadas por genes de condição inferior (servos e eclesiásticos de estatuto menor), a situação prolongou-se pelo século X com a cultura árabe. Neste caso, a excepção seriam os indivíduos que acabavam por ganhar o respeito e a consideração da sociedade através da longevidade atingida na profissão médica, não só por mérito próprio como também por mérito familiar, uma vez que a Medicina praticada pela comunidade islâmica seria de carácter hereditário na grande maioria dos casos. Talvez fosse devido a esta transmissão de saberes acumulados que a cultura árabe providenciou alguns dos melhores “médicos”, conhecidos durante a Idade Média, na sua grande maioria provenientes de famílias praticantes da ciência médica há várias gerações.

          Cientistas muçulmanos da Hispânia islâmica também contribuíram para a Medicina. Embora os maiores clínicos muçulmanos estivessem em Bagdade, os do al-Andalus não ficaram atrás. Ibn al-Nafs descobriu e estudou a circulação sanguínea do pulmão. Abu-al-Qasim al-Zahrwi, o mais famoso cirurgião medievo, foi autor do Tasrif, um livro que, traduzido para o latim, se tornou num texto médico obrigatório nas universidades europeias. Na parte dedicada à cirurgia, são encontradas ilustrações de instrumentos cirúrgicos extremamente práticos e de grande precisão. Ibn Zuhr, conhecido como Avenzoar, um clínico habilidoso, foi o primeiro a descrever abcessos pericardiais e a recomendar a traqueotomia quando necessário. O último dos grandes médicos andaluzes, Ibn al-Khatib, também famoso historiador, poeta e estadista, escreveu um livro importante sobre a teoria do contágio, onde ele diz: "A infecção fica clara para o investigador quando ele, não estando em contacto, permanece a salvo", e descreveu como se dá a transmissão das doenças através de roupas e recipientes. Ficou célebre o Tratado de Oftalmologia  de Ibn-al-Khatib e a perícia como se fazia a cirurgia aos olhos, tratado esse que se acha em vários volumes na Bibliothèque Nationale de France, ainda hoje consultados.

          A Hispânia islâmica também contribuiu para a ética médica e a higiene. Um dos mais eminentes teólogos e juristas, Ibn Hazam, insistia em que as qualidades morais eram obrigatórias para qualquer clínico. "Um médico", escreveu ele, "deve ser gentil, compreensivo, amigo e capaz de suportar insultos e a crítica adversa. Além disso, deve ter cabelos e unhas curtos, vestir roupas limpas e comportar-se com dignidade."

          Paralelamente à contribuição muçulmana, uma nova casa de praticantes ganha força e credibilidade. São os praticantes da Medicina popular. Aqui surgem designações como barbeiro, charlatão, astrólogo, curandeiro e físico, entre outros. Eram praticantes da Medicina popular, nas suas diferentes vertentes, estes “investigadores da natureza” (estatuto atribuído no século XIII). Seriam, na sua grande maioria, reformadores religiosos.

          O barbeiro encarregava-se da pequena cirurgia ou cirurgia quotidiana. Realizava sangrias, pensos, tratava de feridas em estado avançado e aplicava ampolas. Basicamente, exerciam uma espécie de Medicina geral, onde se incluía a estomatologia mais elementar e muito violenta. Ainda a enfermagem e a cirurgia. Contudo, os barbeiros que, supostamente, deveriam tão-só exercer a profissão de barbearia, não seriam detentores de qualquer poder científico, estando sujeitos a pesadas multas no caso de efectuarem práticas medicinais. Apesar deste risco, importantes nomes surgiram neste contexto como o de Arnolde de Villanova, nascido, em 1238, na Catalunha. Estudante em várias cidades da Península Itálica e de França, Arnolde procurou uma Medicina que curasse todos os males, rejuvenescendo a alma.

          Como praticantes da ciência médica, haveria os físicos de Medicina geral e os cirurgiões. Se bem que ambas as categorias pertencessem à ciência médica, no século XIII, devido a um crescimento das segregações das categorias sociais, a Medicina e a Cirurgia (praticadas por físicos, cirurgiões e físico-cirurgiões) dividem-se em dois ramos distintos. A Medicina era para o letrado; consistia na constante busca do saber enciclopédico mais do que a observação do doente.

          Já a cirurgia, por definição, apresentava-se como a vertente prática que agia sob prescrição do médico (de vertente mais teórica) e estava relacionada com as Artes Mecânicas, cujos representantes eram os artesãos.

          O cirurgião seria, por princípio, o mais exímio conhecedor da anatomia humana, de modo a conseguir resolver entre outros, casos de fracturas ósseas e de chagas mais profundas de difícil resolução. Este grupo detinha já algumas técnicas e materiais para intervenções cirúrgicas de maior calibre como, por exemplo a “talha” que seria usada na extracção de pedras renais. A título de especialização, o cirurgião poderia ainda intervir em casos bicudos de obstetrícia.

          No caso de trabalharem em urbanizações, os cirurgiões seriam muitas vezes colocados junto aos barbeiros, o que resultaria numa situação mal aceite por parte dos primeiros. Como tentativa de término para tamanha promiscuidade, os cirurgiões procuraram ser proprietários de títulos universitários, de modo a deixarem de ser denominados de barbeiros-cirurgiões. Esta situação acaba com a sua expulsão dos colégios universitários, originando uma situação de revolta que contribuiria no século XV, para uma transformação do seu estatuto original. Como resultado, todos os cirurgiões acabam por atingir o grau das artes, imprescindível para as faculdades de Direito, Teologia e Medicina. Os cirurgiões são assim separados dos barbeiros, devendo exercer a sua profissão e mais nenhuma, sob a pena de perda dos privilégios, direitos e honras alcançadas. Como meta final, passam a integrar a casta de burgueses notáveis, podendo até ser libertos por pagarem impostos.

          Ao longo dos séculos XIII e XIV, a figura do médico surge, por consenso, como padrão de virtudes, mas surge igualmente como sinal de contradição e mau relacionamento entre grandes médicos. As suas roupas seriam características, com a cabeça coberta e vestes longas.

          Quanto ao pagamento, os médicos seriam muito bem remunerados pelos seus serviços e muitas vezes seriam também incluídos em testamentos e doações, sobretudo, pro anima, como forma de agradecimento.

          Por exemplo, no século XV, D. Afonso V recompensou o seu médico Stuart com a doação inter vivos de uma quinta com todos os seus foros, jurisdições, direitos, lavradores e mordomos para aí passar o resto dos seus dias.

          Outro exemplo da mesma era secular é o de Fernando Abarca Maldonado, médico de uma princesa, que receberia cem mil reais brancos por ano, além de privilégios e rações a título vitalício. Um último exemplo, de uma carta datada de 21 de Dezembro de 1442, manda atribuir: “tenças de cinco mil reais brancos, uma peça de cristal e três moios de trigo, a Mestre Martinho Valeinho, físico do Infante D. Pedro, em recompensa de serviços prestados em Ceuta durante vinte e seis anos”. A autorização para se deslocar em besta muar era outro privilégio, entre os mais comuns, dispensando o físico de sustentar cavalo para o efeito.

          Mas para poder beneficiar dos privilégios e para poder exercer Medicina, não bastava dizer que se sabia como fazê-lo. A partir de 25 de Outubro de 1445, passaram a ser exigidas cartas de exame que comprovassem a aptidão para a execução da Medicina.

          As cartas de exame consistiriam em perguntas sobre a ciência e simulações de doenças requerentes de tratamento e explicação do mesmo (Ilustração 4). Caso os resultados fossem aprovados pelo cirurgião-mor encarregado do exame, um diploma seria redigido e entregues às autoridades devidas. O exame poderia ser requisitado por qualquer praticante que se julga apto, tendo para tal de mandar uma petição ao Rei para que este lhe enviasse o cirurgião-mor que iria proceder à avaliação.

          Todo o médico praticante teria de apresentar a sua carta selada como prova de que se encontrava apto à prática médica. Quem assim não o fizesse, sofreria duras penas podendo inclusivamente ser preso. Tal mostrava-se necessário, visto existirem muitos homens que, querendo usar da ciência e da Física, nada sabendo sobre isso, provocaram mortes ou ferimentos a quem outrora os procurou.

          Ainda, quando referida a Medicina portuguesa, nomes como a família dos Guedelha, Pedro Hispano e Mestre Bartolomeu (capelão e médico de D. Afonso III) deverão ser mencionados pelos seus vastos contributos.

          No que diz respeito à farmacêutica medieval se encontrar em constante recuo, além da dificuldade na obtenção de matéria-prima, seria a propensão da sociedade (extremamente religiosa) para a crença nos males de ordem divina enquanto castigos consequentes da má conduta terrena a determinada altura da vida de cada um. Como tal, as comunidades procuravam, com bastante frequência, a Medicina supersticiosa dos “feiticeiros”, sendo que a ironia da situação se encontrava no facto dos produtos farmacêuticos utilizados por estes, serem exactamente compostos da mesma forma e com as mesmas matérias que os farmacêuticos usados pelos físicos ou cirurgiões: ervas, animais e minerais (Ilustração 5).

          Este preconceito conduz Mateus Platearius, no século XII, a compor tratados racionais, como o Circa Instans (1166), onde estão descritas duzentas e setenta e três novas drogas vegetais e mais algumas da farmacopeia islâmica, o que deu origem à primeira Escola europeia, em Salerno, na Campânia.

          Três séculos mais tarde, Paracelso, através da Alquimia, tentaria descobrir a quinta-essência activa de drogas vegetais, recorrendo para esse fim às drogas da origem mineral: Opera Omnia Medico-Chirurgica tribus voluminibus comprehensa (Genebra, 1658). Estão as suas ideias juntas em três volumes in-fólio. Nesta obra está reunido quase todo o seu labor, a saber no Volume I: Tratados médico, patológico e terapêutico ocultos. Mistérios magnéticos; Volume II: Obras mágicas, filosóficas, cabalísticas, astrológicas  e  alquímicas;   Volume  III: Anatomia e cirurgia propriamente ditas. Num só volume, o Arcanum Arcanorum seu Magisterium Philosophorum (Leipzig, 1686). Também esta obra é interessantíssima, por tratar extensamente das Ciências Ocultas. Foi reeditada em Frankfurt, em 1 770; e, também num só tomo, Disputationum de Medicina Nova Philippi Paracelsi. Pars prin in qua quias de remediis superstitionis et magicis curationibus ille prodidit, proecipue examinantur a Thoma Erasto, medicina schola Heydelbergenti professore ad ilustris, principium. Liber omnibus quarumcunq; artium et scientiarum studiosis opprime cum necessarius tum utilis. Basileae apud Petrum Perna (1536).

          Relativamente às práticas terapêuticas medievais, os métodos curativos mais usuais estariam relacionados com os processos de cirurgia, cauterização, farmacologia e sangria. A sangria seria mesmo a base imperativa de praticamente todos os tratamentos, devido ao estado caótico em que a terapêutica se encontrava. Como alternativa à sangria, circulavam remédios de composição proveniente de peles, excrementos e órgãos de animais, para uso interno ou externo.

          Todavia, a partir do século X, passaram a desenvolver-se as especialidades médicas no campo da ortopedia, estomatologia, obstetrícia, e, inclusive, da veterinária. Estes “especialistas”, os alveitares, trabalhavam especificamente para os grandes possidentes e aristocratas. Assim sendo, nos séculos vindouros, o empreendimento projectado nestas novas áreas de estudo mostrou atingir resultados referentes ao alargamento dos conhecimentos científicos, sobretudo desde o século XIII.

          No século XIV, a flebotonia (designação dada à Ciência que produz unguentos e xaropes e que pratica sangrias e clisteres nos pacientes) é desenvolvida com novas fórmulas provenientes dos contactos de carácter médico com o Norte de África, que providenciaram a entrada em Portugal de novos conhecimentos nas áreas da fauna, flora e mineralogia, facilitando o tratamento de doenças tropicais desconhecidas até então.

          O resultado deste intercâmbio cultural traduziu-se no alargamento dos conhecimentos científicos, situação que se fortaleceu com o advento das Descobertas pelo Mar Oceano, onde a Medicina é superiormente desenvolvida, inclusivamente, recuperada.

          O conhecimento de novas ervas e plantas variadas no campo da Farmácia, numa Ciência voltada à Botânica e aos Descobrimentos, traduz-se num grande desenvolvimento em Portugal, com a obra de Garcia de Orta, publicada, em 1563, em Goa, os Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, na forma de diálogo entre o próprio Orta e Ruano, um colega recém-chegado a Goa e ansioso por conhecer a matéria médica da Índia. Os Colóquios incluem 57 capítulos onde se estuda um número aproximadamente igual de drogas orientais, principalmente de origem vegetal, como o aloés, o benjoim, a cânfora, a canafístula, o ópio, o ruibarbo, os tamarindos e muitas outras.

          Nesses capítulos, Orta apresenta a primeira descrição rigorosa feita por um europeu das características botânicas (tamanho e forma da planta), origem e propriedades terapêuticas de uma grande série de plantas medicinais que, apesar de conhecidas anteriormente na Europa, o eram de maneira errada ou muito incompleta e apenas na forma da droga, ou seja, na forma de parte da planta colhida e seca. Apesar de se debruçar prioritariamente sobre a matéria médica, Orta apresenta-nos também, além de vários outros assuntos, algumas observações clínicas, entre as quais, é de destacar a primeira descrição da cólera asiática feita por um europeu, baseada na autópsia de um doente seu, falecido com a doença.

   
 

          Como se viu, a Medicina medieval esteve relacionada com uma visão particular do mundo, própria da época em que se inseriu. Para ser estudada, há que ter em conta a estruturação cultural que a rodeia, verificando-se a dificuldade de uma análise, enquanto esferas isoladas. Quer dizer, ao investigador, para a aceitação social da Medicina e dos seus praticantes, é necessário ter em consideração as conjunturas políticas, religiosas, económicas e intelectuais, de modo a não desfigurar os factos, já de si incertos.

          Nos séculos XII e XIII, a Medicina conta com grande aceitação da população, uma vez que se verificava a entrega dos doentes à Medicina como primeira opção. Caso a via científica não resultasse, os pacientes enveredariam, então, pela corrente religiosa através de procissões e promessas aos Santos. Seria, neste ponto, que se verificava maior atrito entre a ciência e a Igreja que, inicialmente, dominaria o monopólio médico através das suas instituições.

          Com o andar da Idade Média, a execução e a instrução da Medicina, generaliza-se para o resto da população, adquirindo cada vez mais instalações próprias como hospitais, consultórios e universidades.

          Todavia, apesar da ilusória vitória da Medicina, a religião e as crenças populares prosseguiram, influenciando, fortemente, a visão generalizada da Medicina na sociedade medieval: o sobrenatural continuaria a ser convictamente aceite pela população aquando da falta de uma outra explicação mais plausível. As relíquias dos Santos, os óleos e as águas sacralizadas continuavam a ser procurados em substituição das técnicas científicas. Paralelamente, a magia e as mezinhas caseiras são largamente difundidas e, por vezes, até preferidas aos farmacêuticos.

          Esta situação acaba por ser legitimizada com a divisão da Medicina em duas vertentes: a teórica e a prática, em que a segunda pretende a invasão do corpo, uma vez que seria também o Corpo de Cristo, sendo ele igualmente vandalizado. Dentro desta corrente, a anatomia seria encarada com repúdio por toda a sociedade, uma vez que a sua prática seria considerada um acto funesto, tanto por cristãos como por pagãos.

          Se o ramo prático da Medicina foi contestado, a vertente do estudo teórico foi alvo de grande consideração pela Sociedade, dotando os seus praticantes de grande aceitação e prestígio. Como resultado, a Medicina adoptaria uma forma mais intelectual, realçando-se o seu teor escolástico e enciclopédico.

          No século XIII, a centúria das universidades, o estudo da ciência médica atingiu um certo relevo, o que contribuiu para um crescimento da reputação portuguesa. Certas localidades foram consideradas centros do saber e da cultura e, igualmente, surgem nomes sonantes no meio científico como será o caso de Pedro Hispano, nascido em 1216, em Lisboa. Filho de médico, foi estudar Medicina em Paris, onde escreveu algumas obras práticas sobre o tema, e vindo a ocupar o cargo de docente na universidade portuguesa e em estrangeiras, e trabalhando, simultaneamente, em terapêutica infantil. Mais tarde, atinge o grau de Bispo de Tusculum, Cardeal e, por último, consagrar-se-ia como o único Papa Português, tendo escolhido o nome de João XXI.

          Outro médico de renome data do século XIV e foi Vasco de Taranta, escritor de variadas obras médicas e do aclamado Tractatus de Epidemia et Prestis.

          A maior calamidade do século XIV foi a Peste negra, como já tivemos ocasião de referir. Deu azo a uma razia humana sem precedentes, mas passageira. Assim como chegou, também desapareceu, deixando o seu lugar à tuberculose que dura ainda hoje. O homem deitou mãos a tudo para tentar salvar-se da doença. Surgiram os Flagelantes que acreditavam na libertação pela auto-martirização e pela dor, crescendo, radicalmente, em número, e tendo sido, no Sacro Império Romano-Germânico e em outros estados do Oriente ao Ocidente, os principais responsáveis pela perseguição fanática aos judeus (Ilustração 8). Aquela, mais uma das “pragas”  que os físicos não conseguiam controlar, disseminando-se, com uma rapidez enorme, por todo o mundo que se conhecia e pelo Ocidente e África que ainda se não sabia da sua existência, pela certa.

          Sendo assim, a par da crescente aceitação popular da Medicina, existia uma diminuição do rigor científico, uma vez que os males de espírito seriam destacados em detrimento dos males físicos. A perda de noção das coisas e dos acontecimentos, as oscilações de humor, a bipolaridade (a depressão), a bissexualidade, a homossexualidade, o descontrole emocional, a pedofilia – uns mais conhecidos e valorizados que outros – eram, então, em larga percentagem. A guerra dera largo contributo aos que participavam nela e aos familiares que aguardavam o desenrolar dos acontecimentos. Àquelas, juntaram-se os movimentos expansionistas que causavam nas populações os mesmos resultados. A peste havia dado origem ao desregramento dos costumes, o que não era saudável de todo. Apareceu o escorbuto com casos adicionais repentinos, aumentavam as febres, o tifo, a malária, as pestes. Mesmo assim, por força da Igreja e pelo desconhecimento dos processos de cura dos males físicos, as doenças do foro psiquiátrico afectavam os Físicos, em particular, e as populações, na generalidade, dadas as associações que, de imediato, se faziam ao facto de se estar possesso do demónio, à feitiçaria e bruxaria, ao desconhecimento total das doenças, das suas origens, tratamento e cura.

          A partir de finais de Trezentos, os hospitais, quer em Portugal fosse no Estrangeiro, começaram a caracterizar-se pelo acolhimento dos doentes, obtendo assim a atenção dos monarcas que aprovavam compromissos, instituíam legados testamentários e faziam doações. De qualquer maneira, esta situação não evitou que o final da Idade Média e as décadas de transição para a Modernidade, coincidentes com os reinados de D. João II e de D. Manuel I, fossem de crise para os estabelecimentos de assistência - não obstante os esforços particulares da rainha D. Leonor, mulher do apelidado “Príncipe Perfeito” e irmã do sucessor deste, o Venturoso, - devido, em muitos casos, à inexistência de gestores, ao descuido de provedores e administradores ou ainda ao não cumprimento dos compromissos ou dos testamentos dos instituidores.

          Estas situações levaram à intervenção régia na administração dos hospitais, a qual começou por traduzir-se na nomeação de pessoas de confiança do rei para a respectiva gestão. Adicionalmente, obrigou-se a que estes estabelecimentos redigissem os seus Regimentos, de modo a facilitar o controle por parte do soberano e a minimizar os abusos dos provedores. Contudo, a principal solução para estes problemas passou pela incorporação de pequenos hospitais em outros maiores (Ilustração 7).

          Não obstante a existência de instalações e de profissionais mais ou menos adequados, o exercício da Medicina no final da Idade Média, estava longe de ser eficaz e de dar solução aos problemas de saúde da população. Na verdade, a Medicina encontrava-se ainda numa fase em que as autoridades máximas eram Hipócrates, grego, [460 a.C.- 377 a.C.], Aristóteles, grego, [384 A.C. – 322 a.C.], Cláudio Galeno ou Hélio Galeno de Pérgamo [129-217], Avicena ou Ibn Sina (nome abreviado de Abu Ali al-Hussein ibn Abd-Allah-ibn Sina], Persa, [980-1037] e Averróis ou abû’-l’-Wâlid Muhammad ibn Muhammad ibn Rushd, hispânico [1126-1198], se bem que se tivessem dado alguns passos nos estudos da fisiologia e da anatomia (Ilustrações 2 e 3).

          Por outro lado, os meios de diagnóstico mostravam-se rudimentares: observação da urina, das fezes e dos tumores quando visíveis a olho nú. Era igualmente difícil verificar se uma pessoa tinha realmente morrido. De facto, uma síncope ou um coma confundiam-se frequentemente com a morte, não havendo sequer um tempo de espera razoável entre a morte aparente (letargia, catalepsia) e a morte propriamente dita ou o regresso à vida. O enterramento fazia-se de imediato.

          Atendendo a que a Medicina era incapaz de dar resposta eficaz e adequada aos problemas da população, não é de estranhar que os doentes procurassem soluções alternativas, especialmente numa época em que a relação entre práticas mágicas e domínio sobre o corpo era uma constante. Sendo assim, a alternativa radicava na Medicina popular e na magia, aliadas aos amuletos e relíquias, na posse de alguns curadores, benzedores, feiticeiros, mezinheiros e curandeiros, em geral, cuja existência se tornaria suficientemente atestada pelos registos da Inquisição, nas mãos da qual muitos destes indivíduos acabariam por cair num futuro não muito distante e já em curso na Península Itálica desde o século XIII.

          Os motivos aqui aduzidos, ao longo desta entrada, mais os de ordem supersticiosa levam a Medicina medieval a ser tomada, em Portugal, como um misto de ciência, magia e folclore popular e não deveremos, por princípio, esquecer as diferenciadas influências culturais a que a Medicina foi exposta desde os ensinamentos legados pelas civilizações clássicas às inovações importadas do Norte de África islamizado.

  ILUSTRAÇÕES
 
Ilustração 1 – Médico tratando um paciente (Museu do Louvre, Paris)

Ilustração 2 – O Corpo humano estudado por Leonardo Da Vinci

 
  (Ilustração 3- Uma cesariana - criada por Teixaredo)
 
  (Ilustração 4. O estudo da Medicina. Um Exame)
 
Ilustração 5. Um livro de plantas curativas)

Ilustração 7. Hospital Real de Todos os Santos em Lisboa (Rossio com o Hospital à direita)

 

  Ilustração 6. – A Peste Bubónica, variante da Peste Negra (1348)
 

Ilustração 8. – A Lepra. Os leprosos eram obrigados ao uso de um sino

(Ilustração 9 – Os Flagelantes)

  BIBLIOGRAFIA
 

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João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História