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Mas não foi nesse falhanço histórico do “socialismo
real” que se possa dizer que Marx errou. Em certo sentido, ao invés,
falhou, isso sim, toda a “leitura leninista” da sua obra: a tese
marxista de que a “Revolução Socialista” começaria por ter lugar nos
países industrializados, veio a confirmar, na sua lógica interna, como a
“actualização” de Lenine era uma total impossibilidade, de que, primeiro
que todos, no interior da Revolução de 1917, se apercebeu Trotsky,
pensando-a à escala mundial.
A subsequente derrocada e “readaptação” ao modelo
capitalista dos “socialismos à africana” e o desmembramento do União
Soviética e dos países “satélites” em novos regimes e novas Nações
confirmam o profundíssimo erro de Lenine, mas não ainda aquilo a que
chamarei de “o erro de Marx”. Para já não falar na China Vermelha,
afastada há muito da dominação directa da URSS, reclamando-se de um
modelo “mais puro” (mas mais desviante ainda quer de Marx, quer mesmo de
Lenine, porque assente no campesinato e não no operariado),
convertendo-se incondicionalmente às “maravilhas” do capitalismo,
defendido a ferro e fogo pelo seu partido comunista para permitir um
capitalismo de mão-de-obra escrava sob o controlo do Estado!
Entretanto o modelo de um capitalismo de “rosto
humano” baseado na doutrina keynesiana, aproximando práticas
sociais-democratas e democratas-cristãs num modelo (sobretudo na Europa
Ocidental e também alastrando-se, em alguns aspectos, aos Estados Unidos
de Kennedy e mantido com maior ou menor ênfase pelo Partido Democrata),
permitiu um modelo capitalista pacificado e pacificante: realizando a
criação de um Estado Social e contribuindo para o alargamento de uma
classe média determinante como força de equilíbrio e detentora do “poder
eleitoral”, espécie de mediadora de “conflitos” sociais extremos e
contra-balanço (e ao mesmo tempo “amortecedor”) político ao próprio
poder económico, justamente por via do peso eleitoral.
Porém, mais tarde, iniciando-se como modelo teórico
que se foi testando nas ditaduras latino-americanas, esse modelo de
contenção de antagonismos sociais acesos foi apeado por um modelo
ultra-neo-liberal, inspirado na “Escola de Chicago”, doutrinariamente
chefiada por Milton Friedmann (uma “espécie de Mao-Tsé-Tung” do
capitalismo), querendo, radicalmente “libertar” a sociedade de quaisquer
constrangimentos à “liberdade e domínio” do mercado, sem quaisquer
restrições ou regulamentação e limites da aplicação da lei da oferta e
procura, para que “mil flores crescessem”, com uma “guarda vermelha” de
especulação financeira, transformando esse mesmo mercado, baseado numa
política monetarista, em novo Deus do próprio capitalismo. Foi o tempo,
que ainda hoje se vive e não se esgotou a nível global na aplicação das
suas receitas (alastradas a regimes democráticos como a Inglaterra de
Tatcher e a América de Reagan), que rapidamente se desenvolve para um
capitalismo financeiro especulativo (para responder aos sucessivos
“grandes saltos em frente” a cada fracasso prático da teoria) e para que
mesmo as tradicionais forças sociais-democratas se deixaram arrastar (na
visão de uma “terceira via” de um Tony Blair no seio da antiga
“Internacional Socialista”, desmembrada), prisioneiras de uma economia
“libertária”, incapaz de servir mais de charneira entre a “força do
trabalho” e o “domínio do capital”, na ânsia de competir com promessas
de igual universalidade do consumo, que o neo-liberalismo, encontrara
como forma potenciadora de um mercado de venda ampliado (a “sociedade de
consumo” levada a extremos de massificação, em grande parte só possível
com a mão-de-obra escrava, sobretudo no Sudoeste Asiatico e em “boom”
exponencial, quando a China se incluiu nesse lote de “fornecedores”).
Hoje, porém, esgotada, pelo menos a nível do
Hemisfério Norte, a condição de compra continuada pela classe média (em
crescente pauperização provocada pelas teorias de Friedmann) e ainda
completamente empobrecidas as populações do Hemisfério Sul, assim, como
Noami Klein explica, surgiu o que classifica do “capitalismo de choque”.
É que a necessidade de ao “choque neoliberal” que “proletarizou” e
empobreceu a referida classe média, exaurida e endividada no consumo
(além das suas possibilidades do razoável) teria de se seguir mesmo uma
outra fórmula, ainda mais radical, para o sistema não ruir como um
baralho de cartas.
Neste novo formato o “monetarismo” passa ao tal
“capitalismo de choque”, de onde é intrinsecamente impossível erradicar
a guerra: já não para responder em primeira mão à manutenção da
indústria de guerra (sobretudo agravada por ausência da “justificação
moral” de defesa do “perigo comunista”), nem sequer do policiamento do
Mundo como factor prioritário (embora razão também não despicienda), mas
muito mais por ser o pós-guerra, a partir da devastação provocada, uma
grande “oportunidade” de mercado “desenvolvimentista” e de “recuperação”
dessa mesma devastação (além de o material de guerra a ficar obsoleto
ser menos caro destruir em terreno de guerra do que por processos
pacíficos). De tal maneira cego e ávido, este novo tipo de capitalismo
(ainda activo) faz o mesmo nos casos de cataclismos naturais,
deixando-os actuar sem prevenção, mesmo quando ela é possível, com o
mesmo fito de gerar oportunidades de mercado: tal como não muito
longinquamente o fez Bush Filho, a conselho destes “gurus” do choque,
não minorando o impacto demolidor do tufão na Florida.
Porém, ao mesmo tempo, porque esgotado esse mesmo
mercado monetarista de forma descontrolada e sendo cada vez mais
impossível seguir “ondas de choque” sem refluxo sobre o próprio sistema
monetarista, sobretudo nas Bolsas, os “senhores do novo Mundo”, que já
sem qualquer submissão do poder económico ao poder político, foram
paulatinamente apropriando-se das empresas e foram transferindo o
“consumo directo” para o “crédito”, onde o sistema financeiro tal e qual
passou a tudo dominar e controlar: do empréstimo pessoal para a casa, o
automóvel ou até as férias, ao sobre-endividamento do comércio e da
indústria, na ânsia de resposta ao abaixamento do consumo pessoal,
agravado com a transferência para grandes superfícies comerciais
(alimentar, roupa ou o que seja), que são, mais do que um negócio
propriamente comercial, um outro modo de negócio financeiro: compra-se a
mercadoria (produzida em grande parte pela tal mão-de-obra escrava
noutros países) em grande volume com contrapartida do preço esmagado e
com pagamento a 120 ou 180 dias enquanto se escoam os stocks em “15
dias”, com margem de lucro também esmagada (competitivamente imbatível
fora deste circuito, “anulando” o pequeno comércio e, assim, também,
“matando” a classe média de proprietários), porque o cerne deste novo
tipo de “distribuição da produção” está na rentabilização do depósito
bancário entre o período de venda ao cliente directo e o período de
pagamento ao fornecedor e não no lucro acrescentado pelo comércio sobre
o da indústria.
Desta forma é todo o sistema financeiro (por via
directa ou indirecta) que controla a economia, secundarizando em
absoluto o poder político, que se lhe submete, por variadas razões,
cujos casos de corrupção não explicam tudo, nem o essencial
provavelmente. É toda uma lógica autonomizada dentro do sistema que
previne (aparentemente) o desmoronamento desse mesmo sistema, sendo que
daí (fora as ”perigosas ligações” entre o mundo da política e o mundo
dos negócios e economias paralelas), para evitar o “colapso” se vive uma
curiosa situação contraditória de todo o sistema financeiro com a lógica
do capitalismo e a sua própria justificação moral (a da recompensa do
“risco”): quando os lucros são chorudos o Estado deve abster-se de
impedir o “crescimento” e o “desenvolvimento” económicos, não
interferindo na lei da oferta e procura no mercado, deixando-o operar
por si; mas quando a instituição atinge a falência, em nome da
sustentabilidade da economia nacional, injecta-se capital público para
minorar o “impacto negativo” da falência. Ou seja: o “risco” tem
almofada garantida! E pior: não para a dinamização do processo produtivo
e defesa do “exército laboral” (mesmo a baixo preço) e criação ou
manutenção de postos de trabalho, mas da origem do “monstro letal”: a
canalização do capital para o serviço bancário de “instantâneo”
enriquecimento provoca o “desinvestimento” na indústria e no comércio,
que passam – directa ou indirectamente – ao “controlo” efectivo do
capitalismo financeiro.
Entretanto quem opera e manipula tudo isto? Não os
tradicionais capitalistas (no sentido de detentores do capital),
caricaturados por Gröz de charuto na boca, cartola e pança proeminente
com a fábrica fumegante ao fundo, mas muito mais os “gestores”, vestidos
de elegantes roupas de marca, de físico mais ou menos atlético obtido
nos ginásios. Os “proprietários” propriamente ditos, confiantes nesta
geração “yuppie”, para multiplicar em catadupa a “fortuna” (nominal),
delegaram-lhes o poder efectivo, primeiro, e, quando encantados com
fórmulas matemáticas manobradas que “transformavam” perdas efectivas
gigantescas em relatórios de êxito exuberante de lucros, viram-se
maioritariamente reduzidos à figura de accionistas sem verdadeiro
controlo sobre os “bens” possuídos - bens estes transformados num
complexo sistema de fraudes e embustes aritméticos e de alterações
quotidianas nos “mercados financeiros internacionais” (tal qualmente
como com o endividamento crescente da classe média – alta ou baixa – na
ilusão de posse e consumo de bens através de empréstimos a longo prazo,
cartões de crédito e mercado de acções e fundos de altíssimo risco, mais
promessas “garantidas” ou “oferta de oportunidades” para um consumo que
lhes era, de facto inacessível). Entretanto, através das sociedades
anónimas e outros processos complexos de “menorizar” ou liquidar a posse
efectiva dos proprietários, cada acção, supostamente título dessa posse
do bem e do resultado das mais-valias, pouco mais foi sendo do que um
papel, que oscila de valor e de mãos, sem que eles possam intervir
directamente, e… “rende” uma percentagem mínima do “lucro” efectivo,
absorvido em ordenados, prémios, carros, despesas de representação,
cartões de crédito, seguros, afectação directa de lucros e demais
regalias e mordomias dos seus “gestores”, que (ainda que nem sempre
nominalmente) se apoderaram, de facto, da empresa em particular, caso a
caso, e do controlo quase absoluto do próprio sistema económico,
“embrulhado” sobre si mesmo num negócio de “rifas” manhoso e perverso,
com muitas dessas “rifas” extraídas de forma viciada a favor dos
próprios ditos ”gestores”.
Simultaneamente, com a concentração dos monopólios
“apátridas”, em que também esses “gestores”, muitas vezes por vias
transviadas ao próprio sistema, se apoderaram da “posse da decisão” e
dos resultados da sobre-especulação, chegámos à globalização dos
mercados (onde, em outra altura, se falará de que a economia não é o
epicentro único desta sociedade, sendo “o erro de Marx” basear-se
exclusivamente nisso), permitindo-lhes toda a “direcção” efectiva de
todo o sistema, esgotando o que caracteriza verdadeiramente um sistema
capitalista, de onde nasce (ou a quem sucede) o “monstro letal” de uma
sociedade virtual e demencial, em que as elocubrações matemáticas se
sobrepõem ao valor material existente, em que a propagação ideológica
das novas quimeras já não é as do velho “sonho americano”, mas de um
fraudulento “capitalismo popular” fictício, pois o possuidor da acção,
como se disse, não é o real proprietário de nada coisa nenhuma!
Este negócio especulativo irreal em que os primeiros
sinais de “fim de era” estão aceleradamente a chegar, fazem crer (e
provavelmente alguns acreditarão sinceramente) de que não há saída que
não seja sustentá-lo à custa da rendição da própria soberania nacional à
soberania internacional dos grupos financeiros – cada vez mais
especulativos - nem meio de o transformar, por incapacidade de análise
de diferente ponto de observação, a partir de outros paradigmas. Hoje,
no seio da União Europeia, os “pigs” são a Grécia, Irlanda, Portugal, a
seguir será Espanha, talvez depois o Leste e amanhã, tarde ou cedo, a
própria Alemanha (beneficiária imediata da teia urdida, mas que,
enquanto povo e poder político “dominante”) também sucumbirá à
insaciabilidade dos verdadeiros detentores da alta finança; e os Estados
Unidos, assim que a diminuição inevitável no orçamento da “Defesa” lhes
retire a superioridade militar absoluta do Mundo, perante a factura
chinesa da “dívida externa”, que já detém maioritariamente a posse. Não
vivemos mais em Nações com autonomia político-económica, mas num navio
desgovernado, que mantém ao leme o “comandante” que o afunda,
apoderando-se das balsas de socorro, nem que seja à custa do afogamento
dos próprios marinheiros e tripulação: é a cabeça do “monstro letal”.
Porém, ainda que aí se chegue na transferência
territorial a outras terras, novos Impérios do Mundo, o fenómeno
replica-se com esses outros (sejam a China ou a Índia, Angola ou o
Brasil) porque o processo começa por ser antropófago e termina
autofágico. Só com a diferença de que a tal globalização da economia
inevitavelmente acelera o processo de decaimento, até porque se a
emergência destes tais novos “impérios” substituem os outros e os outros
já se vampirizaram a si mesmos e ao “outro mundo” (nomeadamente a
generalidade da África e do sudoeste asiático), onde estão os “animais”
para abater? Onde está o “mercado” (de consumidores) que o “monstro
letal”, em nome dele, destruiu?... Não serão também as do Mercossul,
pois aí, como reacção à exploração sistemática dos mercados nacionais
pelos Estados-Unidos, à excepção da emergência do Brasil, vêm-se criando
“bolsas de resistência” nacionalistas, mais ou menos de “novo tipo
socialista”, mas incapazes de, no contexto internacional, se poderem
constituir, até por esse modelo de estagnação económica, “impedir” o
aparecimento de uma classe média com poder de compra ou de
“investimento”. Embora haja que aguardar e ver como essas
contra-políticas do outro afundamento internacional possa evoluir e
contribuir objectivamente para modelos económicos alternativos, a
pressão dos paradigmas actuais globalizados levarão, à semelhança da
URSS – as muito mis cedo – ao desmoronamento das visões utópicas e
caudilhistas de Morales, Chávez e da velha referência “resistente”
cubana.
Evidentemente que estas “passagens históricas” são
mistas e contraditórias. Só por facilidade de estabelecer balizas
orientadoras, se escolheram datas para marcar o fim da Idade Média e
declarar o Renascimento ou, na História Económica, se fala de sucessões
de sistemas, como, por exemplo, do feudalismo ao capitalismo, quando se
sabe que sistemas coexistem por centenas de anos em diferentes recantos
do Mundo, a ponto de nem ainda hoje terem desaparecido totalmente as
sociedades esclavagistas (no sentido literal histórico e não no do “novo
esclavagismo”, por vezes bem mais violento e inumano do que o das
“sociedades atrasadas”). Mas, pelo menos a Ocidente, naquilo que é a
macro-economia dominante pode dizer-se que o capitalismo morreu ou está
moribundo para dar lugar a esse tal muito estranho “monstro letal”,
cujos contornos são escorregadios, mas os resultados bem ásperos e a
auto-destruição imparável.
Guy Débord, na década de 70, numa autêntica
“epifania” vislumbrou-o ao falar em “sociedade do espectáculo”, onde
“num mundo realmente às avessas, o verdadeiro é um momento do falso”. E,
de uma outra forma, mais baseada na observação do fenómeno do que nas
estacas filosóficas de Débord, Andy Wharol igualmente o retratou nos
célebres “5 minutos de fama” que disse cada um procurar. E é bem
verdade: pela fama efémera os infelizes a todo se expõem , desde a
indignidades de “bobos” a que se expõem até ao pagamento para executar
esse triste papel, mas muito contentes por esses tais 5 minutos de
fama, custe o que custar, custe a quem custar, mesmo que ao próprio: os
vizinhos com que rivalizam ficam “mordidos de inveja” e alimenta-se o
sonho de uma fama que, mesmo quando se atinge, em 90% (ou mais) dos
casos é a da pastilha elástica, descartável face à “necessidade” de
estar a “alimentar” esse sonho, reintroduzindo novos protagonistas. A
visibilidade no “espectáculo” da sociedade vale mais do que a
continuidade da própria existência, traduzida também, por exemplo, no
recurso a psicotrópicos que criem a sensação de poderes (mentais ou
físicos) inexistentes ou na necessidade de afirmações extravagantes de
indumentárias e aparências porque dar nas vistas, ser “diferente do
outro” é a afirmação ilusionista do indivíduo, no fundo anulado na
amálgama dos “consumidores”, que não sequer já clientes ou muito menos
utilizadores... E menos ainda cidadãos ou nem pensar em seres humanos!
De facto, pouco mais ou pouco menos, mas
tendencialmente, ciclo inegável da História, é essa a sociedade
dominante (ou dominadora para onde as outras caminham) em que estamos. A
da “economia virtual”, parida da mãe monetarista fecundada por uma
ideologia do egoísmo e da desresponsabilização do mesmo indivíduo
promovido à categoria máxima do “direito” e da identificação do ser
humano sem “deveres” éticos e de cooperação, como se a humanidade não
fosse ela mesma uma colectividade a que cada um pertence, sendo
completamente impossível viver fora dela, mas que a ideologia reinante
tenta dissimular através de mecanismos ilusórios como os da
“concorrência de aparência”, seja através da própria indumentária
vertiginosamente a passar de moda para moda, seja de modelos de diversão
“mais in”, vá da Discoteca que se frequenta ao consumo de novas
substâncias aditivas, seja mesmo o “estímulo” a uma sexualidade
desresponsabilizada e desresponsabilizante ou à condução da frustração
para objectivos (muitas vezes justos), mas desviantes da questão central
criando em torno deles a “centralidade” de supostas alternativas e
marginalidades.
Com atractivas (e historicamente enquadráveis como
genuinamente libertadoras) frases de “é proibido proibir”, saídas de
protestos e contestações sociais anti-capitalistas, o “monstro letal”
apropriou-se delas para que o seu domínio subterrâneo “corresponda” à
vontade real das massas. E pior: conseguiu que correspondesse já de
facto na maioria das pessoas mais ou menos abúlicas, julgando-se em
actividade defronte de um televisor (o grande instrumento de dominação,
muito mais eficaz do que as velhas polícias políticas), que as massas
julgam (“alienadas” para recorrer à terminologia marxista) ser de sua
vontade a livre escolha. E, em nome do prazer, de todos os prazeres,
descartáveis, às vezes promíscuos, outras tantas destruidores a prazo do
próprio organismo bio-fisiológico (sejam as grandes feijoadas ou as
sofisticadas bebidas brancas, sejam os velhos carrinhos de choque ou
modelos electrónicos de jogo) anula-se mesmo toda a comunicação e
convívio, que não sejam as de uma espécie de “autismo social” e
“cegueira introspectiva”, acabando, tarde ou cedo, na mais do prazer
terrível solidão, a que novas vagas de gerações passam ao lado
“entretidas” na armadilha do tal prazer imediato e do “carpem diem” sem
noção de futuro, mesmo o que recai sobre o próprio sujeito. E o mesmo
acontece, mais variante, menos variante, sob esta ou outra forma (como a
dos “workoholic”, em muitas decisões e avaliações de casos, ainda que
realizadas por outras pessoas mais alerta, mas ensimesmando-se no
cepticismo ou pessimismo de se sentirem cada vez mais uma minoria sem
expressão, recolhendo ao seu próprio trabalho ou desligando-se, em
estado abúlico, de qualquer intervenção (mesmo de pensamento) social.
Porquê? Justamente porque cada “indivíduo”, mesmo que lhe seja criada
semelhante ilusão de identidade (anulada pelos interesses do “mercado”),
não escapa ao “padrão colectivo”, neste caso, paradoxalmente, o da
afirmação do egoísmo individualista.
Assim, o que fica realmente por provar que é em
liberdade, portanto, que cada qual faz a escolha, uma vez que essa
escolha está completamente condicionada às “substâncias aditivas”
ideológicas que lhe inculcam, em nome de “shares” e com iscos de
“trendy” e afirmação de degrau subido na escada social. Mas isto já não
é capitalismo sequer. É, de facto, algo muito mais perverso do que a
“mera” extracção de mais-valias da força de trabalho alheia. Mais
perverso, mais devastador, mais difícil sequer de combater ou denunciar.
O capitalismo assenta num processo produtivo. Essa
base geradora de “produtos” palpáveis (basicamente na componente
industrial, mesmo quando transposta para a industrialização da
agricultura e pescas; mas também na comercial, correspondente à parte da
distribuição e venda aos consumidores dos produtos e/ou troca de
serviços com valor acrescentado, onde o sector financeiro, mesmo que
“gigante”, não tinha saído dessa órbita, autonomizando-se como veio a
acontecer depois) já não é a dominante económica. O capitalismo foi uma
sociedade criadora de riqueza, a qual Marx pretendia que se reformasse
(ao caso através da “inevitabilidade” de uma “violência revolucionária
de classe”), anulando essa “mais-valia” extraída da tal “força de
trabalho”, para uma redistribuição igualitária na parte final
(condicionada ao “a cada um conforme as suas necessidades”, o
comunismo), passando pela etapa de negação da posse individual, com um
Super-Estado Providência a garantir a fórmula “transitória” do “a cada
um segundo o seu trabalho” (o socialismo “científico”), garantida pela
“direcção” de uma classe “que nada tinha a perder, a não ser as suas
grilhetas”: o proletariado, que, depois, Lenine substituiu pela “aliança
operário-camponesa” (para justificar a realização da revolução num país
onde o proletariado era mínimo) realizada pela sua “vanguarda”: o
partido!
Miragem messiânica, a de Marx (de clara matriz
hebraica), trazendo o Céu para a Terra, afirmando o primeiro como
inexistente no plano espiritual, mas realizável no plano material das
suas concepções… Miragem do sonho imperial russófilo e da paranóia do
controlo absoluto do topo para a base em Lenine com a organização nessa
tal “vanguarda” do “centralismo democrático”!
Porém, “derrotada e desmembrada” na Guerra Fria a
União Soviética e suas áreas de influência, catequizada a China, a
Ocidente, também a ponto de se “desfazerem os modelos”, foi montado este
“monstro letal” - ainda que haja “mão-de-obra proletária” de onde se
retiram “mais-valias” (numa escala intensificada inimaginável para
Rockfeller ou Ford), ao nível dos sectores primário e secundário nalguns
países de África e Ásia ou dos seus imigrantes na Europa. Assim, neste
“primeiro mundo” (ainda sede das decisões) a “questão” já não se centra,
enquanto “processo histórico contraditório”, nos antagonismos que deram
lugar à “luta de classes” e à “apropriação do aparelho de Estado” para
que, a partir da organização política, se determinasse o modelo
económico, da organização da produção e do processo produtivo e da
distribuição da riqueza gerada. No “monstro letal” não há propriamente
um “Estado de classe” de facto (porque o Estado não é quem controla o
mundo económico), nem há também linha de produção economicamente
sustentável, mas tão só uma economia de casino sem saída, em que cada um
de nós é o jogador e o proprietário da roleta está exausto porque a
clientela vai caindo exangue e falida, sem que, a prazo, haja jogadores!
Ao contrário da “Depressão Americana” dos anos 20 ou
do “Choque Petrolífero” da década de 70 no século passado, a “crise” não
tem resolução porque por mais “injecções de dinheiro” que se façam, mais
aumenta a distância entre o que o dinheiro era (a “representação
abstracta” da riqueza) e o “produto em si mesmo” (não de riqueza
realmente material) em que se tornou, mesmo que por ele “ainda” se
manifeste o “poder de compra” e o fosso entre o “bem estar” e a
“miséria” em graus de “obscenidade” arrepiante, mesmo para um velho
capitalista, daqueles que, por respeito ao seu nome e da família, se
suicidava quando a empresa falia e não tinha cara para aparecer sem o
salário aos seus trabalhadores, nem o pagamento das facturas aos seus
fornecedores. Coisa impossível de imaginar hoje, não só pela ideologia
reinante, mas porque o “rosto” dos algozes da exploração são cada vez
mais invisíveis e impessoais.
A questão fundamental e objectiva, mesmo quando
abordada de um ângulo “amoral”, como o é o próprio comportamento desse
tal “monstro”, não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Não por acção
externa de combate (embora este, obviamente, contribua para saídas
diferentes, conforme o sentido em que dirige a contestação a ele e possa
acelerar a sua decomposição, não sendo, portanto, coisa dispensável ou
desnecessária), mas porque traz no bojo a contradição insanável de fazer
do “virtual” a realidade aparente… até que, quando chega o “game over”,
nada ficou de concreto, desvanecendo-se no ecrã os “pixels” da sua
própria imagem.
Todavia, a mais das vezes, a percepção exacta desta
óbvia realidade é recusada por hábitos antigos de leitura da História
(incluindo os leitores de raiz marxista) e por incapacidade e medo de a
encarar, pois não se vislumbra (ainda) luz ao fundo do túnel, mesmo que
se tenha o desejo e convicção que a haja. As próprias lutas sindicais e
laborais, por mais justas que possam ser, não se constituem hoje em
“arma” contra a “exploração” porque não se trata já da distribuição da
riqueza produzida, mas muito mais da inexistência desta como coisa
palpável: a maior ou menor produção fabril, ao contrário do passado
mesmo recente, não interfere “necessariamente” com o “lucro”, porque
este não resulta principalmente da mais-valia que cada “objecto” gerava
– as greves no sector industrial não “atingem” o “coração do sistema”
porque a diminuição da produção não fere a essência do “monstro letal”,
que não vive propriamente da troca do produto com a mais-valia
acrescentada à força de trabalho paga. Os “mercados” foram “inundados”
de promessas e de “play-stations” que fazem rodar o “joystick” para a
“posse” por entre diferentes mãos dos grandes “trusts” financeiros, numa
espiral crescente e imparável para sobreviverem com os tais “produtos
financeiros tóxicos”. Até que, como Torre de Babel, ruirão
inevitavelmente: já se disse. Resta saber é para onde e qual será a
dimensão humana da catástrofe e de que (ou se) o homem encontrará
alternativa viável num Mundo saído de uma hecatombe tão grande.
Lembrando um artigo de grande lucidez do historiador
Rui Tavares, a verdade é que este caldo histórico, mesmo admitindo a
capacidade de regeneração com novos paradigmas, não está ainda na
“destilação”, mas tão só na “fermentação”… E, acrescentarei eu: se
durante essa fermentação as contradições de uma tecnologia não
controlada cientificamente (quero dizer, posta “ao nosso uso” sem
domínio total das suas consequências: do “estourar” das centrais
nucleares ao degelo das calotes polares, do efeito real que se
desconhece de tanta radiação electrónica e multiplicação de cancros, da
escassez da água `sãs mutações climáticas…) nos levarem a um abismo
ambiental e de saúde? Esperemos que não, mas tenhamos a coragem de
admitir que é uma possibilidade e não uma fantasia. Grande parte dos
recursos estão exauridos, a recuperação de quaisquer valores éticos
representa um esforço hercúleo, até porque impõe a passagem do falso
“epicurismo” em que vivemos a uma capacidade de “sacrifícios”
solidários.
Aliás o cientista Carl Sagan, a propósito de uma
equação matemática criada para a possibilidade de um dia se poder ou não
contactar outras hipotéticas formas de vida inteligentes no Universo,
introduziu justamente uma incógnita, que era a de saber se as
civilizações, no seu percurso de evolução tecnológica em progressão
geométrica se tornavam ou não auto-destrutivas, antes de construírem a
tecnologia necessária para a tal hipotética possibilidade de contacto.
Ou seja: não estou a pensar em “profecias” recorrentes do fim do Mundo,
nem tão pouco da previsão matemática de Newton que o calculava para
2060! Estou a falar de possibilidades reais determinadas por um conjunto
de vectores bem concretos.
Mas então, perguntar-se-á, porque não se acelera à
mesma velocidade da fermentação para a destilação (da intensificação da
exploração e da verificação do senso comum do “não há saída para isto”
para uma revolta pró-activa) que reforme radicalmente este mesmo sistema
falido, com ou sem recurso à “violência revolucionária”? Ora é aqui
precisamente que tenho para mim, que, apesar de todo o brilhantismo do
pensamento de Marx (mais no que concerne à análise dos sistemas do que
às “utopias” da “redenção” da humanidade por uma “classe social” e a
imposição de um colectivismo “destruidor e desaproveitador” da riqueza
do individual em todas as esferas, ainda que impostas contra a vontade
da maioria), houve um erro clamoroso! Poder-se-á argumentar com a
“inevitabilidade” dos condicionalismos históricos aquando da enunciação
da doutrina, restringida à visibilidade “possível” na época. É,
obviamente uma parte (significativa) da explicação, sobretudo para o
autor (Marx), mas não para os marxistas actuais. Mas essa “razão não
explica tudo, porque, posto de outra maneira, numa época ainda mais
distante, houve gregos que o enumeraram e questionaram de forma
arquetípica e não apenas em enunciados de análise (comportamental e
consequencial) da História. Se à leitura de Heráclito, Marx introduzisse
a de Platão também, talvez as “sombras na caverna” ajudassem não só a
prever a possibilidade do “monstro letal”, como – e isso é o mais
importante, pois Marx não pretendia ser um “adivinho”, apesar de muitos
marxistas o terem como tal para circularmente se explicarem a si mesmos
-, mesmo para a construção de um novo modelo de sociedade, se tivesse
tido nas experiências frustradas, em conta quer a importância em si do
indivíduo (e da liberdade), quer como ser humano, quer como motor na
criação da riqueza. Mas, sobretudo, tivesse sido possível superar o erro
maior, que, quanto a mim, assenta no “reducionismo economicista” e na
não consideração da acção do pensamento (imaterial) sobre a dialéctica
da própria materialidade. Ou seja: não haveria lugar à criação do
“materialismo histórico”, mas antes da compreensão antecipada dos dados
que a psicologia e outras descobertas de natureza científica
(nomeadamente as da física quântica, esta não tão distante assim do
período de vida de Marx) vieram derrubar, por maiores “malabarismos” com
que os marxistas – depois de as terem negado – procuram introduzir no
marxismo. E talvez também em vez do “materialismo dialéctico”, a
história do pensamento fizesse prever que o “ópio do povo” não era a
religião em si, que à época seria apenas instrumento, mas todas as
formas de alienação, incluindo o ateísmo militante de Estado no
“socialismo real”.
O “erro” é, quanto a mim, implícito no tal pensamento
salvífico, redentor, que, para se explicar e tornar crível a seus
próprios olhos, reconduziu todo o comportamento humano a uma base
económica e toda a economia à posse e processo dos meios de produção e
da redistribuição material da riqueza. No que, chegados aqui, não há
“renovação marxista” que resista porque cai pela base o alicerce da
doutrina. Marx pode – e há-de ser – um dos pilares para a compreensão de
parte dos fenómenos sociológicos, tal como eu mesmo nesta reflexão dele
muito me socorri. Mas, para utilizar uma vez mais ainda uma expressão
sua, requer-se “um salto histórico”, no sentido objectivo e subjectivo
da abordagem da própria doutrina. Não basta uma “revisão”, precisa-se de
uma construção nova, onde se aglutinem com a mesma importância
pensamentos tão diversos sobre o que é o “progresso” como os da
confrontação, por exemplo, entre o juízo nihilista de Ted Kadzinsky (o
Unabomber) e o “optimismo histórico” de Marx. Ou entre este e as
abordagens à informação de Chomsky e a compreensão do comportamento
humano feita por Freud e Piaget, por exemplo.
Mas para tal, há que começar por uma libertação
(quase do foro psicanalítico em termos da paternidade filosófica) e
reconhecer “O erro de Marx”! Designação atrevida e provocatória em que
me inspirei, por subtil gracejo, na fantástica obra de António Damâsio,
cuja divulgação mais ou menos acessível partiu com um livro cujo título,
todos o saberemos, foi “O erro de Descartes”.
Neste livro referido, de resto, ao mostrar-se alguns
aspectos da funcionalidade do cérebro na componente afectiva do ser
humano como determinante mesmo para a acção inteligente, a par do
indeterminismo a que a física quântica determinou, são mais alguns
exemplos onde também se pode identificar o tal “erro de Marx”, quando
quis que a História tivesse leis rígidas (e deterministas), assentes em
tudo na infra-estrutura material (económica) da sociedade, considerando
que a super-estrutura era um mero reflexo desta. E não é, de todo. A
componente subjectiva (afectiva, emocional e sentimental e mesmo os
sistemas de crença e vontade própria) não pode negar de forma redutora a
afirmação de Pascal sobre o nariz de Cleópatra. Não, certamente na
asserção do pensador francês, mas na imprevisibilidade de acontecimentos
que a ciência aceita e que se traduzem melhor do que nada na conhecida
tirada (cito de cor a ideia) de que “um bater de asas de uma borboleta
na América pode alterar o clima na China”.
Mesmo a passagem da “Escola de Chicago” para este
novo “monstro letal” demonstra que é possível operar ao nível da
super-estrutura para determinar a infra-estrutura e, no tal “mundo
realmente às avessas”, inverter o sentido do acontecimento, comutando
causa e efeito. A montante das alterações económicas realizadas pelo
“monstro letal” relativamente ao capitalismo monetarista, aquilo que
tornou possível a sua aceitação sem grandes interrogações (dentro ou
fora do sistema) e a implantação lenta e fétida, perfumada com odores
exóticos, foi o facto de se ter criado, precisamente a partir da ideia
do “capitalismo popular”, a ilusão, ao nível do pensamento (na
super-estrutura), da sua bondade e da abertura de portas à realização
individual em igualdade de oportunidades… antes que ele, o “monstro”, se
concretizasse e instalasse na infra-estrutura (económica).
Quando não, se o “motor da História” fosse só baseado
na “luta de classes” (que existe sim, mas é só uma parte da construção
do processo histórico, mais intensificada na criação inicial do
capitalismo industrial, mas se nem sempre assim, muito menos hoje), de
facto, ao capitalismo, na forma que Marx conheceu e na que previu (com
mais ou menos acerto numa dedução analítica genial), sucederia, pelo
menos, de facto, uma sociedade substantivamente parecida com a que
imaginara, o que a própria História já se encarregou de demonstrar que
não. Teríamos, esgotado o capitalismo, se não um socialismo
pré-construtor do comunismo, uma outra forma de organização basicamente
assente nos preceitos e pilares da proposta marxista como solução,
introduzidas algumas correcções: a da supremacia do colectivo solidário,
sem recurso à diluição do individual e uniformização dos cidadãos, que
em Marx resulta em consequência quase incontornável, nem que seja, pelo
menos, na livre iniciativa económica. Teríamos também a distribuição
tendencialmente equalizante entre necessidades e trabalho “oferecido” à
comunidade com retornos diferenciados, mas não igualitária, como fim
último no marxismo, mas por via de taxações mais do que por estatização
de toda a vida económica. Ou seja, no fundo: uma espécie de capitalismo
“rectificado” em que o lucro se repercutia directamente na
redistribuição e interesse geral e não na mera apropriação individual,
ainda que com distinções da capacidade individual de criação maior dessa
mesma riqueza. Algo não muito longe de Kautsky (e com a recuperação da
leitura marxista gramsciana para reconduzir os “desvios revisionistas”
do “renegado” a propostas de uma maior aproximação do Marx original, que
não o da leitura leninista, de todo!), realizando uma sociedade (mas só
possível com estabilidade numa outra globalização) da que chegou a estar
muito próximo nos países escandinavos e se “re-ensaia” agora na
Islândia. Mas será realmente assim? Será possível?
Ao centrarem-se os marxistas – como anti-capitalistas
“generalistas”, sem apreciação efectiva de que o capitalismo já nem o é
- na economia como única ferramenta de análise para explicação do
comportamento e mola de acção das pessoas, desprezaram o que a
ideologia, por si e em si é e não mera reprodução na super-estrutura da
realidade da infra-estrutura basicamente económica, podendo soltar as
amarras que os “empurra”, com maior ou menor heterodoxia (sobretudo
relativamente às leituras “tradicionais” absolutizantes ou a práticas de
modelos falhados) para uma cristalização que os afasta da própria
realidade múltipla do mundo e da vida. Olhando sem preconceitos, não me
parece difícil perceber que este “brig brother” que, mais do que nos
vigiar, nos “conformata” a mente, facilmente manipula as massas para
preferências absurdas na ânsia do “ter”, inviabilizando o início de uma
“luta” indispensável, quiçá prioritária.
A escolha de menor imposto (para trocar de telemóvel,
por exemplo) a um Serviço Nacional de Saúde eficaz e universal (embora,
do meu ponto de vista possa e deva produzir comparticipações
diferenciadas em função dos rendimentos auferidos: quando eu pago 3
euros por um acto médico num hospital público, o mesmo valor, em que ao
meu lado um “desgraçado” que tem uma reforma de 1/10 do meu ordenado e
um “magnata” que ganha mil vezes mais do que eu, sinto-me envergonhado
com o “desgraçado” e indignado com o “magnata”) é uma, de entre várias,
demonstração da incompreensão total do interesse comum, onde o próprio
eu de cada um se inclui.
Mas este é um exemplo como outro. Como o mais visível
do endividamento exponencial de famílias inteiras para um consumo
perfeitamente dispensável, mas atraídas por esse mundo de fantasia (ia a
dizer mesmo “esquizofrénica”) que as “revistas cor-de-rosa”, as
telenovelas e todo o demais lixo comunicacional de ficção (as “revistas
cor-de-rosa estão bem mais perto da ficção pura e simples do que de
qualquer informação, mesmo que “pintada”) – onde a tv, por eficácia e
rapidez do suporte é dona e rainha da imbecilidade – lhes cria como
“desejo” e “aparência” de realização pessoal. Tal como – está de resto
provado – o mundo da publicidade da “promessa do sonho” (seja a mulher
fatal, o macho perfeito ou a família realizada; seja o carro potente, o
tira-nódoas eficientíssimo ou o brinquedo mágico para as crianças)
provoca frustrações sociais e pessoais de repercussões a nível de saúde
pública: a diferença é enorme entre o “prometido” e “esperado” e o
“alcançado”. Logo, o “falhanço” reorienta-se para um “ego” frustrado,
não descobrindo a fraude objectiva do sistema, mas gerando depressões,
agressividade ou mesmo tendências suicidas porque “falhar” neste Mundo
de concorrência incontrolada de cada um contra todos os outros é sinal
de uma impotência, que se transforma em desejos (inconscientes)
auto-punitivos.
Aliás, o caso especialmente grave do uso e abuso das
televisões, cria uma rede multi-factorial tão complexa que falar da
comunicação social como o “quarto poder” não é de todo ajustado hoje em
ia. Nem sequer a da sua redução a correia de transmissão do próprio
poder económico: é-o à partida, claro, mas exerce entre si e o seu
“patrão” uma relação de inter-penetrabilidade, se não dialéctica, pelo
menos inter-activa. Fenómeno outro que falta estudar e, certamente,
ainda clarificar-se a si mesmo para um melhor entendimento que
proporcione esse mesmo estudo com conclusões científicas e não de mera
intuição e um certo empirismo, verificável, mas não demonstrado.
Vivemos no sociedade do “parecer” e não do ser, que
se manifesta materialmente e mais flagrantemente no que todos conhecemos
de muitos e muitos casos em que em detentores de carros de gama alta, a
gama é muito mais alta do que podem pôr na mesa para si e para os seus
filhos… Para não falar em paradigmas como o da eterna juventude (com ou
sem “lieftings”) ou o tabu da morte, em que o morto é “escondido” na
capela rapidamente ou se toma por ideia mórbida a discussão lógica e
sábia sobre o sentido (religioso ou ateu) da morte, que é o que empresta
razão à vida.
É que esta “conformatação” das mentes
(super-estrutura) é que possibilita depois a “liquidação” do pensamento
próprio, não-exercitado, e a aceitação das desigualdades sociais a uma
escala de grandeza abissal, a indiferença com o próximo e o
individualismo feroz, que tanto não olha a meios na “competição” para
subir na pirâmide económica e social, como dilui até os mais básicos
princípios da cortesia e afabilidade e do mero civismo. É a lei “da
selva”, a lei do “salve-se quem puder”, a lei da insaciabilidade
(criada) do “quero mais, quero mais, quero mais”, de que, nos últimos
anos mesmo o sindicalismo ocidental, contagiado pela pressão dos
“desejos reais” criados pela própria sociedade de consumo, se tornou
“pulmão de aço” (inconsciente) do acto desmedido desse consumo, por onde
começou o momento da supremacia ideológica actual… Baseando de forma
esmagadoramente maioritária a sua acção como grupo de pressão em defesa
do aumento do consumo das diversas “corporações” que representa, foi em
grande medida o combustível para alimentar, ao nível da super-estrutura,
a máquina que pôs a andar o “ monstro letal”… Talvez em grande parte por
via do “erro de Marx”, julgando que a “luta dos trabalhadores” se
travava unicamente no âmbito da luta económica, nem se dando conta que a
divisão tremenda entre o poder de compra de região a região do Globo
(sobretudo Hemisfério Norte/Hemisfério Sul) iria provocar, com as
migrações dos mais carenciados (eufemismo para dizer “vítimas” do
próprio crescimento económico no poder de compra dos trabalhadores do
“Primeiro Mundo”), o abaixamento de custos da mão-de-obra, a ponto de
transformar o “ódio ao capital” em “ódio xenófobo”, de que Marselha é a
mais evidente montra.
Assim, para contrariar com eficácia este “estado de
espírito” que permite passivamente este “monstro letal”, é preciso, mais
até do que um combate parcial contra os ”bancos do dinheiro”, um outro
de “desconformatação” nos “bancos da escola”. Mais do que criticar a tv
pela má ou deturpada informação política, exigir uma política de
programação enriquecedora culturalmente, tornou-se questão central e não
mera associada secundária. Não é possível, em nome do lazer (que lazer?
mórbido?) aceitar com passividade, ou uma grande relativização da sua
real importância, programas deploráveis de concursos atentatórios da
dignidade da pessoa humana, nem, cavando mais fundo, sequer telenovelas
e “talk-shows” condicionadores comportamentais de fantasias
irrealizáveis e que servem ainda para esconder a realidade da vida e
criar mitos, traduzidos em pequeninas “esperanças” que conduzem ao
imobilismo, quer durante o consumo desse “produto” de ficção também
letal por amolecimento dos neurónios, quer nas consequências idênticas
às que a “publicidade da promessa subliminar” (não o aspecto da venda e
valorização do bem, mas o da suposta “felicidade” a que conduz o acesso
a ele). É realmente a “matrix” tão bem configurada na metáfora do filme
inicial com o mesmo nome (que já não nas sequelas) do que é o “modus
operandi” deste “monstro letal”.
É esse condicionamento de um pensamento livre e
autónomo, apesar da glorificação (falaciosa) do indivíduo, que antecede
a eficácia da mentira na informação: já com os neurónios estropiados
para que não se pense, pensando mesmo, permitem ao “monstro letal”
propagar facilmente a sua ideologia para uma prática de abutre sem que
as vítimas saibam ao menos que o são. Desnecessita do recurso à
propaganda, mesmo que demagógica, porque integra no “pensamento”
generalizado a sua ideologia, não como tal, mas como mera realidade, que
não passa, de facto, de um filme passado dentro da nossa cabeça. Por
onde, de resto, se pode melhor entender o porquê da “pessoalização” ou
“factualização” evidente nas campanhas eleitorais, porque o que é
“programático” não passa já por um discurso ideológico, uma vez que este
está presente e é imanente às pequenas variáveis de forma dos partidos
do sistema. Fazendo até que a tentativa de valorização de factos num
contexto ideológico (mesmo de forma desajustada e baseada nas tais
premissas do “erro de Marx”) sejam completamente inócuas, mais parecendo
elas a fantasia do que a própria fantasia em que vivemos.
Não digo isto, atenção!, a partir da convicção plena
de uma “teoria da conspiração” em que tudo isto se inventa numa
“secretíssima organização central”, nem penso que tenhamos “chips”
instalados no cérebro! Só em sentido figurado é que me parece verdade
incontestável que os temos mesmo… Na “realidade real” (permita-se o
pleonasmo) antes o vejo como parte integrante e auto-relacional
inter-activa entre a super-estrutura e a infra-estrutura, em que, neste
caso, é a super-estrutura do “pensamento” em que se não pensa, muito de
perto relacionada com os sentimentos que se não sentem, que a despoletam
ou sobre ela retroagem e condicionam-nos à aceitação (emocionalmente
dessensibilizante) de uma infra-estrutura (económica) do desinteresse
objectivo do próprio, mas que subjectivamente declina em nome de
“necessidades” que nos foram impostas. E, aí sim, não acredito também na
“ingenuidade” do procedimento. Tal como vejo na inércia da importância
superior deste combate, um resultado negativo do “erro de Marx”, pelas
razões mais que expostas sobre a menorização atribuída ao plano da
riqueza do conhecimento face ao da riqueza material, aliás, em boa
parte, pelo atraso do estudo das psicologias (emocionais, educativas ou
outras) ao tempo de Marx e olhadas com alguma desconfiança pelos seus
continuadores “in nomine”…
De resto mesmo que se tentasse – e fosse possível –
criar ou “impor” um modelo materialmente mais justo, menos desigual nas
oportunidades, mais solidário na cidadania e fazendo prevalecer outros
valores aos do consumo, o mesmo facilmente se desmoronaria por uma, ou
pelas duas, das seguintes razões: estando o conhecimento limitado a uns
quantos, estes (ou grande parte deles) cairiam na tentação
(geneticamente predadora?) de se apossarem do alheio “reconstituindo-se”
em nova “elite económica dominadora”; e permanecendo na ignorância a
maioria, fácil seria, por um lado, os primeiros dominarem e, para
sobreviverem nessa dominação, se tornarem em novos “vendedores de
sonhos”, mesmo que de natureza diferente, mas igualmente falsa e, mais
tarde ou mais cedo, implodindo também. Só uma redistribuição prioritária
do conhecimento e do saber (pela e na educação, cultura e ciência mesmo)
cria previamente as condições de reorientação de paradigmas para que não
só eles sejam possíveis de concretizar, promovendo entre si a
“necessidade” e a “aceitação voluntária” maioritária de uma mais justa
redistribuição da riqueza material, mas também para que as gerações
sucessivas se mantenham vigilantes, naturalmente (e não por meios de
“falanges organizadas de treino ideológico”) de qualquer tentativa de
apropriação abusiva, seja de que natureza for, seja de quem for.
E, por último, resolvendo em síntese dialéctica o
permanente conflito entre o “indivíduo” e a “colectividade”, porque
ambas têm lugar necessariamente em complementaridade: a primeira porque
numa sociedade informada a tolerância do reconhecimento do direito à
diferença é condição “sin qua non” do (re)conhecimento efectivo dessa
realidade sem querer impor aos outros a do mero chamado senso comum; a
segunda porque não seria necessário, se cada um realizado no campo da
esfera pessoal absolutamente livre, contraditar o que fosse de superior
interesse colectivo, uma vez que este nunca poderia ser indevidamente
subjugado ao primeiro, mesmo que numa primeira fase houvesse recurso
(consentido) a mecanismos de “repressão jurídica e judicial”. Mas, a não
muito longo prazo, mesmo sem esse mecanismo repressivo, quem o quisesse
fazer não lho seria permitido por um conjunto social civicamente
crescido, sem recurso a forças especializadas na repressão. Bastaria a
ética social de pensar a Humanidade como um todo de agregações de
diferentes e irreplicáveis indivíduos e mesmo como, sendo a parte mais
inteligente da Terra, não se lhe atribuísse o sentido de “reinante”, mas
antes de “curadora” do restante.
Mesmo que assim idealizado – numa espécie de utopia
referencial – tenho-o como assímptota mais eficaz para um percurso, na
vez de, em nome de colectivos “amanhãs que cantam” se esmagar o
indivíduo (totalitarismos “comunistas”), nem em nome do “crescimento
económico” (?) se esmagar o cumprimento dos direitos sociais colectivos
(totalitarismos capitalistas). Em ambos os casos, afinal, esmagando, de
forma diferente, o ser humano e o próprio mundo, que é o que mais
importa preservar. O que é absolutamente indispensável procurar (mesmo
que por idealizações impraticáveis em absoluto no tempo previsível em
que cada geração possa projectar-se) é alternativas mobilizadoras e
consciencializadoras, pois o tempo do “monstro letal”, embora vá ser
ainda certamente da intensificação de imenso sofrimento, sobretudo de
excluídos e indefesos (como os velhos, as crianças e os sem-abrigo que
caíram na degradação completa) se alguma coisa restar que não o fim da
Humanidade, é preciso superar o que nos economicismos dos dois sistemas
do século XX falhou clamorosamente: a felicidade individual e colectiva
das pessoas. |