REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

 

Um espectro ronda o Mundo: o espectro dos fins do Tempo!

O capitalismo, se não está morto, está moribundo! Mas não sucedeu, nem sucederá, uma sociedade socialista com vista à construção do comunismo. Nem tão pouco a “exploração do homem pelo homem” foi erradicada. Bem antes pelo contrário: intensificou-se e globalizou-se para patamares a que Keynes parecia ter posto ponto final no exagero, permitindo, inclusive a “vitória” do Ocidente sobre o “Império Soviético”, também ele, de resto, de uma interpretação e aplicação do socialismo de Marx muito distorcida, distorção essa com raízes no leninismo e não apenas na posterior e sanguinolenta época do estalinismo. Essa distorção, desde Lenine, para além de política é-o também económica e estende-se, com mais ou com menos horror, à sociedade soviética no seu todo desde os procedimentos burocráticos à dominação gerontocrática, totalitária e repressiva, numa lógica dogmática imobilista, percorrendo todo o aparelho de Estado, inclusive ao nível da propriedade e da funcionalidade do sistema em si. Com avanços e recuos, de Krutchov a Gorbachov prevalece, no essencial, o mesmo modelo. E se, em parte, a privação das liberdades públicas, contribuem moralmente para a derrocada do sistema, o aspecto fundamental da sua queda é o de uma economia estagnada, resultando muito mais numa implosão do Estado do que em qualquer explosão social revolucionária significativa (independentemente da posterior adesão popular em efeito dominó, antecedida ou não de manifestações populares pouco aguerridas e sem resposta do lado do Poder dotado de meios repressivos capazes de suster essas mesmas manifestações, mas incapaz de gerir o próprio sistema esgotado).

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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CASTRO GUEDES

O erro de Marx

                                                                  
 

Mas não foi nesse falhanço histórico do “socialismo real” que se possa dizer que Marx errou. Em certo sentido, ao invés, falhou, isso sim, toda a “leitura leninista” da sua obra: a tese marxista de que a “Revolução Socialista” começaria por ter lugar nos países industrializados, veio a confirmar, na sua lógica interna, como a “actualização” de Lenine era uma total impossibilidade, de que, primeiro que todos, no interior da Revolução de 1917, se apercebeu Trotsky, pensando-a à escala mundial.

A subsequente derrocada e “readaptação” ao modelo capitalista dos “socialismos à africana” e o desmembramento do União Soviética e dos países “satélites” em novos regimes e novas Nações confirmam o profundíssimo erro de Lenine, mas não ainda aquilo a que chamarei de “o erro de Marx”. Para já não falar na China Vermelha, afastada há muito da dominação directa da URSS, reclamando-se de um modelo “mais puro” (mas mais desviante ainda quer de Marx, quer mesmo de Lenine, porque assente no campesinato e não no operariado), convertendo-se incondicionalmente às “maravilhas” do capitalismo, defendido a ferro e fogo pelo seu partido comunista para permitir um capitalismo de mão-de-obra escrava sob o controlo do Estado!

Entretanto o modelo de um capitalismo de “rosto humano” baseado na doutrina keynesiana, aproximando práticas sociais-democratas e democratas-cristãs num modelo (sobretudo na Europa Ocidental e também alastrando-se, em alguns aspectos, aos Estados Unidos de Kennedy e mantido com maior ou menor ênfase pelo Partido Democrata), permitiu um modelo capitalista pacificado e pacificante: realizando a criação de um Estado Social e contribuindo para o alargamento de uma classe média determinante como força de equilíbrio e detentora do “poder eleitoral”, espécie de mediadora de “conflitos” sociais extremos e contra-balanço (e ao mesmo tempo “amortecedor”) político ao próprio poder económico, justamente por via do peso eleitoral.

Porém, mais tarde, iniciando-se como modelo teórico que se foi testando nas ditaduras latino-americanas, esse modelo de contenção de antagonismos sociais acesos foi apeado por um modelo ultra-neo-liberal, inspirado na “Escola de Chicago”, doutrinariamente chefiada por Milton Friedmann (uma “espécie de Mao-Tsé-Tung” do capitalismo), querendo, radicalmente “libertar” a sociedade de quaisquer constrangimentos à “liberdade e domínio” do mercado, sem quaisquer restrições ou regulamentação e limites da aplicação da lei da oferta e procura, para que “mil flores crescessem”, com uma “guarda vermelha” de especulação financeira, transformando esse mesmo mercado, baseado numa política monetarista, em novo Deus do próprio capitalismo. Foi o tempo, que ainda hoje se vive e não se esgotou a nível global na aplicação das suas receitas (alastradas a regimes democráticos como a Inglaterra de Tatcher e a América de Reagan), que rapidamente se desenvolve para um capitalismo financeiro especulativo (para responder aos sucessivos “grandes saltos em frente” a cada fracasso prático da teoria) e para que mesmo as tradicionais forças sociais-democratas se deixaram arrastar (na visão de uma “terceira via” de um Tony Blair no seio da antiga “Internacional Socialista”, desmembrada), prisioneiras de uma economia “libertária”, incapaz de servir mais de charneira entre a “força do trabalho” e o “domínio do capital”, na ânsia de competir com promessas de igual universalidade do consumo, que o neo-liberalismo, encontrara como forma potenciadora de um mercado de venda ampliado (a “sociedade de consumo” levada a extremos de massificação, em grande parte só possível com a mão-de-obra escrava, sobretudo no Sudoeste Asiatico e em “boom” exponencial, quando a China se incluiu nesse lote de “fornecedores”).

Hoje, porém, esgotada, pelo menos a nível do Hemisfério Norte, a condição de compra continuada pela classe média (em crescente pauperização provocada pelas teorias de Friedmann) e ainda completamente empobrecidas as populações do Hemisfério Sul, assim, como Noami Klein explica, surgiu o que classifica do “capitalismo de choque”. É que a necessidade de ao “choque neoliberal” que “proletarizou” e empobreceu a referida classe média, exaurida e endividada no consumo (além das suas possibilidades do razoável) teria de se seguir mesmo uma outra fórmula, ainda mais radical, para o sistema não ruir como um baralho de cartas.

Neste novo formato o “monetarismo” passa ao tal “capitalismo de choque”, de onde é intrinsecamente impossível erradicar a guerra: já não para responder em primeira mão à manutenção da indústria de guerra (sobretudo agravada por ausência da “justificação moral” de defesa do “perigo comunista”), nem sequer do policiamento do Mundo como factor prioritário (embora razão também não despicienda), mas muito mais por ser o pós-guerra, a partir da devastação provocada, uma grande “oportunidade” de mercado “desenvolvimentista” e de “recuperação” dessa mesma devastação (além de o material de guerra a ficar obsoleto ser menos caro destruir em terreno de guerra do que por processos pacíficos). De tal maneira cego e ávido, este novo tipo de capitalismo (ainda activo) faz o mesmo nos casos de cataclismos naturais, deixando-os actuar sem prevenção, mesmo quando ela é possível, com o mesmo fito de gerar oportunidades de mercado: tal como não muito longinquamente o fez Bush Filho, a conselho destes “gurus” do choque, não minorando o impacto demolidor do tufão na Florida.

Porém, ao mesmo tempo, porque esgotado esse mesmo mercado monetarista de forma descontrolada e sendo cada vez mais impossível seguir “ondas de choque” sem refluxo sobre o próprio sistema monetarista, sobretudo nas Bolsas, os “senhores do novo Mundo”, que já sem qualquer submissão do poder económico ao poder político, foram paulatinamente apropriando-se das empresas e foram transferindo o “consumo directo” para o “crédito”, onde o sistema financeiro tal e qual passou a tudo dominar e controlar: do empréstimo pessoal para a casa, o automóvel ou até as férias, ao sobre-endividamento do comércio e da indústria, na ânsia de resposta ao abaixamento do consumo pessoal, agravado com a transferência para grandes superfícies comerciais (alimentar, roupa ou o que seja), que são, mais do que um negócio propriamente comercial, um outro modo de negócio financeiro: compra-se a mercadoria (produzida em grande parte pela tal mão-de-obra escrava noutros países) em grande volume com contrapartida do preço esmagado e com pagamento a 120 ou 180 dias enquanto se escoam os stocks em “15 dias”, com margem de lucro também esmagada (competitivamente imbatível fora deste circuito, “anulando” o pequeno comércio e, assim, também, “matando” a classe média de proprietários), porque o cerne deste novo tipo de “distribuição da produção” está na rentabilização do depósito bancário entre o período de venda ao cliente directo e o período de pagamento ao fornecedor e não no lucro acrescentado pelo comércio sobre o da indústria.

Desta forma é todo o sistema financeiro (por via directa ou indirecta) que controla a economia, secundarizando em absoluto o poder político, que se lhe submete, por variadas razões, cujos casos de corrupção não explicam tudo, nem o essencial provavelmente. É toda uma lógica autonomizada dentro do sistema que previne (aparentemente) o desmoronamento desse mesmo sistema, sendo que daí (fora as ”perigosas ligações” entre o mundo da política e o mundo dos negócios e economias paralelas), para evitar o “colapso” se vive uma curiosa situação contraditória de todo o sistema financeiro com a lógica do capitalismo e a sua própria justificação moral (a da recompensa do “risco”): quando os lucros são chorudos o Estado deve abster-se de impedir o “crescimento” e o “desenvolvimento” económicos, não interferindo na lei da oferta e procura no mercado, deixando-o operar por si; mas quando a instituição atinge a falência, em nome da sustentabilidade da economia nacional, injecta-se capital público para minorar o “impacto negativo” da falência. Ou seja: o “risco” tem almofada garantida! E pior: não para a dinamização do processo produtivo e defesa do “exército laboral” (mesmo a baixo preço) e criação ou manutenção de postos de trabalho, mas da origem do “monstro letal”: a canalização do capital para o serviço bancário de “instantâneo” enriquecimento provoca o “desinvestimento” na indústria e no comércio, que passam – directa ou indirectamente – ao “controlo” efectivo do capitalismo financeiro.   

Entretanto quem opera e manipula tudo isto? Não os tradicionais capitalistas (no sentido de detentores do capital), caricaturados por Gröz de charuto na boca, cartola e pança proeminente com a fábrica fumegante ao fundo, mas muito mais os “gestores”, vestidos de elegantes roupas de marca, de físico mais ou menos atlético obtido nos ginásios. Os “proprietários” propriamente ditos, confiantes nesta geração “yuppie”, para multiplicar em catadupa a “fortuna” (nominal), delegaram-lhes o poder efectivo, primeiro, e, quando encantados com fórmulas matemáticas manobradas que “transformavam” perdas efectivas gigantescas em relatórios de êxito exuberante de lucros, viram-se maioritariamente reduzidos à figura de accionistas sem verdadeiro controlo sobre os “bens” possuídos - bens estes transformados num complexo sistema de fraudes e embustes aritméticos e de alterações quotidianas nos “mercados financeiros internacionais” (tal qualmente como com o endividamento crescente da classe média – alta ou baixa – na ilusão de posse e consumo de bens através de empréstimos a longo prazo, cartões de crédito e mercado de acções e fundos de altíssimo risco, mais promessas “garantidas” ou “oferta de oportunidades” para um consumo que lhes era, de facto inacessível). Entretanto, através das sociedades anónimas e outros processos complexos de “menorizar” ou liquidar a posse efectiva dos proprietários, cada acção, supostamente título dessa posse do bem e do resultado das mais-valias, pouco mais foi sendo do que um papel, que oscila de valor e de mãos, sem que eles possam intervir directamente, e… “rende” uma percentagem mínima do “lucro” efectivo, absorvido em ordenados, prémios, carros, despesas de representação, cartões de crédito, seguros, afectação directa de lucros e demais regalias e mordomias dos seus “gestores”, que (ainda que nem sempre nominalmente) se apoderaram, de facto, da empresa em particular, caso a caso, e do controlo quase absoluto do próprio sistema económico, “embrulhado” sobre si mesmo num negócio de “rifas” manhoso e perverso, com muitas dessas “rifas” extraídas de forma viciada a favor dos próprios ditos ”gestores”.  

Simultaneamente, com a concentração dos monopólios “apátridas”, em que também esses “gestores”, muitas vezes por vias transviadas ao próprio sistema, se apoderaram da “posse da decisão” e dos resultados da sobre-especulação, chegámos à globalização dos mercados (onde, em outra altura, se falará de que a economia não é o epicentro único desta sociedade, sendo “o erro de Marx” basear-se exclusivamente nisso), permitindo-lhes toda a “direcção” efectiva de todo o sistema, esgotando o que caracteriza verdadeiramente um sistema capitalista, de onde nasce (ou a quem sucede) o “monstro letal” de uma sociedade virtual e demencial, em que as elocubrações matemáticas se sobrepõem ao valor material existente, em que a propagação ideológica das novas quimeras já não é as do velho “sonho americano”, mas de um fraudulento “capitalismo popular” fictício, pois o possuidor da acção, como se disse, não é o real proprietário de nada coisa nenhuma!

Este negócio especulativo irreal em que os primeiros sinais de “fim de era” estão aceleradamente a chegar, fazem crer (e provavelmente alguns acreditarão sinceramente) de que não há saída que não seja sustentá-lo à custa da rendição da própria soberania nacional à soberania internacional dos grupos financeiros – cada vez mais especulativos - nem meio de o transformar, por incapacidade de análise de diferente ponto de observação, a partir de outros paradigmas. Hoje, no seio da União Europeia, os “pigs” são a Grécia, Irlanda, Portugal, a seguir será Espanha, talvez depois o Leste e amanhã, tarde ou cedo, a própria Alemanha (beneficiária imediata da teia urdida, mas que, enquanto povo e poder político “dominante”) também sucumbirá à insaciabilidade dos verdadeiros detentores da alta finança; e os Estados Unidos, assim que a diminuição inevitável no orçamento da “Defesa” lhes retire a superioridade militar absoluta do Mundo, perante a factura chinesa da “dívida externa”, que já detém maioritariamente a posse. Não vivemos mais em Nações com autonomia político-económica, mas num navio desgovernado, que mantém ao leme o “comandante” que o afunda, apoderando-se das balsas de socorro, nem que seja à custa do afogamento dos próprios marinheiros e tripulação: é a cabeça do “monstro letal”.

Porém, ainda que aí se chegue na transferência territorial a outras terras, novos Impérios do Mundo, o fenómeno replica-se com esses outros (sejam a China ou a Índia, Angola ou o Brasil) porque o processo começa por ser antropófago e termina autofágico. Só com a diferença de que a tal globalização da economia inevitavelmente acelera o processo de decaimento, até porque se a emergência destes tais novos “impérios” substituem os outros e os outros já se vampirizaram a si mesmos e ao “outro mundo” (nomeadamente a generalidade da África e do sudoeste asiático), onde estão os “animais” para abater? Onde está o “mercado” (de consumidores) que o “monstro letal”, em nome dele, destruiu?... Não serão também as do Mercossul, pois aí, como reacção à exploração sistemática dos mercados nacionais pelos Estados-Unidos, à excepção da emergência do Brasil, vêm-se criando “bolsas de resistência” nacionalistas, mais ou menos de “novo tipo socialista”, mas incapazes de, no contexto internacional, se poderem constituir, até por esse modelo de estagnação económica, “impedir” o aparecimento de uma classe média com poder de compra ou de “investimento”. Embora haja que aguardar e ver como essas contra-políticas do outro afundamento internacional possa evoluir e contribuir objectivamente para modelos económicos alternativos, a pressão dos paradigmas actuais globalizados levarão, à semelhança da URSS – as muito mis cedo – ao desmoronamento das visões utópicas e caudilhistas de Morales, Chávez e da velha referência “resistente” cubana. 

Evidentemente que estas “passagens históricas” são mistas e contraditórias. Só por facilidade de estabelecer balizas orientadoras, se escolheram datas para marcar o fim da Idade Média e declarar o Renascimento ou, na História Económica, se fala de sucessões de sistemas, como, por exemplo, do feudalismo ao capitalismo, quando se sabe que sistemas coexistem por centenas de anos em diferentes recantos do Mundo, a ponto de nem ainda hoje terem desaparecido totalmente as sociedades esclavagistas (no sentido literal histórico e não no do “novo esclavagismo”, por vezes bem mais violento e inumano do que o das “sociedades atrasadas”). Mas, pelo menos a Ocidente, naquilo que é a macro-economia dominante pode dizer-se que o capitalismo morreu ou está moribundo para dar lugar a esse tal muito estranho “monstro letal”, cujos contornos são escorregadios, mas os resultados bem ásperos e a auto-destruição imparável.

Guy Débord, na década de 70, numa autêntica “epifania” vislumbrou-o ao falar em “sociedade do espectáculo”, onde “num mundo realmente às avessas, o verdadeiro é um momento do falso”. E, de uma outra forma, mais baseada na observação do fenómeno do que nas estacas filosóficas de Débord, Andy Wharol igualmente o retratou nos célebres “5 minutos de fama” que disse cada um procurar. E é bem verdade: pela fama efémera os infelizes a todo se expõem , desde a indignidades de “bobos” a que se expõem até ao pagamento para executar esse triste papel, mas muito  contentes por esses tais 5 minutos de fama, custe o que custar, custe a quem custar, mesmo que ao próprio: os vizinhos com que rivalizam ficam “mordidos de inveja” e alimenta-se o sonho de uma fama que, mesmo quando se atinge, em 90% (ou mais) dos casos é a da pastilha elástica, descartável face à “necessidade” de estar a “alimentar” esse sonho, reintroduzindo novos protagonistas. A visibilidade no “espectáculo” da sociedade vale mais do que a continuidade da própria existência, traduzida também, por exemplo, no recurso a psicotrópicos que criem a sensação de poderes (mentais ou físicos) inexistentes ou na necessidade de afirmações extravagantes de indumentárias e aparências porque dar nas vistas, ser “diferente do outro” é a afirmação ilusionista do indivíduo, no fundo anulado na amálgama dos “consumidores”, que não sequer já clientes ou muito menos utilizadores... E menos ainda cidadãos ou nem pensar em seres humanos!

De facto, pouco mais ou pouco menos, mas tendencialmente, ciclo inegável da História, é essa a sociedade dominante (ou dominadora para onde as outras caminham) em que estamos. A da “economia virtual”, parida da mãe monetarista fecundada por uma ideologia do egoísmo e da desresponsabilização do mesmo indivíduo promovido à categoria máxima do “direito” e da identificação do ser humano sem “deveres” éticos e de cooperação, como se a humanidade não fosse ela mesma uma colectividade a que cada um pertence, sendo completamente impossível viver fora dela, mas que a ideologia reinante tenta dissimular através de mecanismos ilusórios como os da “concorrência de aparência”, seja através da própria indumentária vertiginosamente a passar de moda para moda, seja de modelos de diversão “mais in”, vá da Discoteca que se frequenta ao consumo de novas substâncias aditivas, seja mesmo o “estímulo” a uma sexualidade desresponsabilizada e desresponsabilizante ou à condução da frustração para objectivos (muitas vezes justos), mas desviantes da questão central criando em torno deles a “centralidade” de supostas alternativas e marginalidades.

Com atractivas (e historicamente enquadráveis como genuinamente libertadoras) frases de “é proibido proibir”, saídas de protestos e contestações sociais anti-capitalistas, o “monstro letal” apropriou-se delas para que o seu domínio subterrâneo “corresponda” à vontade real das massas. E pior: conseguiu que correspondesse já de facto na maioria das pessoas mais ou menos abúlicas, julgando-se em actividade defronte de um televisor (o grande instrumento de dominação, muito mais eficaz do que as velhas polícias políticas), que as massas julgam (“alienadas” para recorrer à terminologia marxista) ser de sua vontade a livre escolha. E, em nome do prazer, de todos os prazeres, descartáveis, às vezes promíscuos, outras tantas destruidores a prazo do próprio organismo bio-fisiológico (sejam as grandes feijoadas ou as sofisticadas bebidas brancas, sejam os velhos carrinhos de choque ou modelos electrónicos de jogo) anula-se mesmo toda a comunicação e convívio, que não sejam as de uma espécie de “autismo social” e “cegueira introspectiva”, acabando, tarde ou cedo, na mais do prazer terrível solidão, a que novas vagas de gerações passam ao lado “entretidas” na armadilha do tal prazer imediato e do “carpem diem” sem noção de futuro, mesmo o que recai sobre o próprio sujeito. E o mesmo acontece, mais variante, menos variante, sob esta ou outra forma (como a dos “workoholic”, em muitas decisões e avaliações de casos, ainda que realizadas por outras pessoas mais alerta, mas ensimesmando-se no cepticismo ou pessimismo de se sentirem cada vez mais uma minoria sem expressão, recolhendo ao seu próprio trabalho ou desligando-se, em estado abúlico, de qualquer intervenção (mesmo de pensamento) social. Porquê? Justamente porque cada “indivíduo”, mesmo que lhe seja criada semelhante ilusão de identidade (anulada pelos interesses do “mercado”), não escapa ao “padrão colectivo”, neste caso, paradoxalmente, o da afirmação do egoísmo individualista.

Assim, o que fica realmente por provar que é em liberdade, portanto, que cada qual faz a escolha, uma vez que essa escolha está completamente condicionada às “substâncias aditivas” ideológicas que lhe inculcam, em nome de “shares” e com iscos de “trendy” e afirmação de degrau subido na escada social. Mas isto já não é capitalismo sequer. É, de facto, algo muito mais perverso do que a “mera” extracção de mais-valias da força de trabalho alheia. Mais perverso, mais devastador, mais difícil sequer de combater ou denunciar.

O capitalismo assenta num processo produtivo. Essa base geradora de “produtos” palpáveis (basicamente na componente industrial, mesmo quando transposta para a industrialização da agricultura e pescas; mas também na comercial, correspondente à parte da distribuição e venda aos consumidores dos produtos e/ou troca de serviços com valor acrescentado, onde o sector financeiro, mesmo que “gigante”, não tinha saído dessa órbita, autonomizando-se como veio a acontecer depois) já não é a dominante económica. O capitalismo foi uma sociedade criadora de riqueza, a qual  Marx pretendia que se reformasse (ao caso através da “inevitabilidade” de uma “violência revolucionária de classe”), anulando essa “mais-valia” extraída da tal “força de trabalho”, para uma redistribuição igualitária na parte final (condicionada ao “a cada um conforme as suas necessidades”, o comunismo), passando pela etapa de negação da posse individual, com um Super-Estado Providência a garantir a fórmula “transitória” do “a cada um segundo o seu trabalho” (o socialismo “científico”), garantida pela “direcção” de uma classe “que nada tinha a perder, a não ser as suas grilhetas”: o proletariado, que, depois, Lenine substituiu pela “aliança operário-camponesa” (para justificar a realização da revolução num país onde o proletariado era mínimo) realizada pela sua “vanguarda”: o partido!

Miragem messiânica, a de Marx (de clara matriz hebraica), trazendo o Céu para a Terra, afirmando o primeiro como inexistente no plano espiritual, mas realizável no plano material das suas concepções… Miragem do sonho imperial russófilo e da paranóia do controlo absoluto do topo para a base em Lenine com a organização nessa tal “vanguarda” do “centralismo democrático”!

Porém, “derrotada e desmembrada” na Guerra Fria a União Soviética e suas áreas de influência, catequizada a China, a Ocidente, também a ponto de se “desfazerem os modelos”, foi montado este “monstro letal” - ainda que haja “mão-de-obra proletária” de onde se retiram “mais-valias” (numa escala intensificada inimaginável para Rockfeller ou Ford), ao nível dos sectores primário e secundário nalguns países de África e Ásia ou dos seus imigrantes na Europa. Assim, neste “primeiro mundo” (ainda sede das decisões) a “questão” já não se centra, enquanto “processo histórico contraditório”, nos antagonismos que deram lugar à “luta de classes” e à “apropriação do aparelho de Estado” para que, a partir da organização política, se determinasse o modelo económico, da organização da produção e do processo produtivo e da distribuição da riqueza gerada. No “monstro letal” não há propriamente um “Estado de classe” de facto (porque o Estado não é quem controla o mundo económico), nem há também linha de produção economicamente sustentável, mas tão só uma economia de casino sem saída, em que cada um de nós é o jogador e o proprietário da roleta está exausto porque a clientela vai caindo exangue e falida, sem que, a prazo, haja jogadores!

Ao contrário da “Depressão Americana” dos anos 20 ou do “Choque Petrolífero” da década de 70 no século passado, a “crise” não tem resolução porque por mais “injecções de dinheiro” que se façam, mais aumenta a distância entre o que o dinheiro era (a “representação abstracta” da riqueza) e o “produto em si mesmo” (não de riqueza realmente material) em que se tornou, mesmo que por ele “ainda” se manifeste o “poder de compra” e o fosso entre o “bem estar” e a “miséria” em graus de “obscenidade” arrepiante, mesmo para um velho capitalista, daqueles que, por respeito ao seu nome e da família, se suicidava quando a empresa falia e não tinha cara para aparecer sem o salário aos seus trabalhadores, nem o pagamento das facturas aos seus fornecedores. Coisa impossível de imaginar hoje, não só pela ideologia reinante, mas porque o “rosto” dos algozes da exploração são cada vez mais invisíveis e impessoais.

A questão fundamental e objectiva, mesmo quando abordada de um ângulo “amoral”, como o é o próprio comportamento desse tal “monstro”, não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Não por acção externa de combate (embora este, obviamente, contribua para saídas diferentes, conforme o sentido em que dirige a contestação a ele e possa acelerar a sua decomposição, não sendo, portanto, coisa dispensável ou desnecessária), mas porque traz no bojo a contradição insanável de fazer do “virtual” a realidade aparente… até que, quando chega o “game over”, nada ficou de concreto, desvanecendo-se no ecrã os “pixels” da sua própria imagem.

Todavia, a mais das vezes, a percepção exacta desta óbvia realidade é recusada por hábitos antigos de leitura da História (incluindo os leitores de raiz marxista) e por incapacidade e medo de a encarar, pois não se vislumbra (ainda) luz ao fundo do túnel, mesmo que se tenha o desejo e convicção que a haja. As próprias lutas sindicais e laborais, por mais justas que possam ser, não se constituem hoje em “arma” contra a “exploração” porque não se trata já da distribuição da riqueza produzida, mas muito mais da inexistência desta como coisa palpável: a maior ou menor produção fabril, ao contrário do passado mesmo recente, não interfere “necessariamente” com o “lucro”, porque este não resulta principalmente da mais-valia que cada “objecto” gerava – as greves no sector industrial não “atingem” o “coração do sistema” porque a diminuição da produção não fere a essência do “monstro letal”, que não vive propriamente da troca do produto com a mais-valia acrescentada à força de trabalho paga. Os “mercados” foram “inundados” de promessas e de “play-stations” que fazem rodar o “joystick” para a “posse” por entre diferentes mãos dos grandes “trusts” financeiros, numa espiral crescente e imparável para sobreviverem com os tais “produtos financeiros tóxicos”. Até que, como Torre de Babel, ruirão inevitavelmente: já se disse. Resta saber é para onde e qual será a dimensão humana da catástrofe e de que (ou se) o homem encontrará alternativa viável num Mundo saído de uma hecatombe tão grande.

Lembrando um artigo de grande lucidez do historiador Rui Tavares, a verdade é que este caldo histórico, mesmo admitindo a capacidade de regeneração com novos paradigmas, não está ainda na “destilação”, mas tão só na “fermentação”… E, acrescentarei eu: se durante essa fermentação as contradições de uma tecnologia não controlada cientificamente (quero dizer, posta “ao nosso uso” sem domínio total das suas consequências: do “estourar” das centrais nucleares ao degelo das calotes polares, do efeito real que se desconhece de tanta radiação electrónica e multiplicação de cancros, da escassez da água `sãs mutações climáticas…) nos levarem a um abismo ambiental e de saúde? Esperemos que não, mas tenhamos a coragem de admitir que é uma possibilidade e não uma fantasia. Grande parte dos recursos estão exauridos, a recuperação de quaisquer valores éticos representa um esforço hercúleo, até porque impõe a passagem do falso “epicurismo” em que vivemos a uma capacidade de “sacrifícios” solidários.

Aliás o cientista Carl Sagan, a propósito de uma equação matemática criada para a possibilidade de um dia se poder ou não contactar outras hipotéticas formas de vida inteligentes no Universo, introduziu justamente uma incógnita, que era a de saber se as civilizações, no seu percurso de evolução tecnológica em progressão geométrica se tornavam ou não auto-destrutivas, antes de construírem a tecnologia necessária para a tal hipotética possibilidade de contacto. Ou seja: não estou a pensar em “profecias” recorrentes do fim do Mundo, nem tão pouco da previsão matemática de Newton que o calculava para 2060! Estou a falar de possibilidades reais determinadas por um conjunto de vectores bem concretos.

Mas então, perguntar-se-á, porque não se acelera à mesma velocidade da fermentação para a destilação (da intensificação da exploração e da verificação do senso comum do “não há saída para isto” para uma revolta pró-activa) que reforme radicalmente este mesmo sistema falido, com ou sem recurso à “violência revolucionária”? Ora é aqui precisamente que tenho para mim, que, apesar de todo o brilhantismo do pensamento de Marx (mais no que concerne à análise dos sistemas do que às “utopias” da “redenção” da humanidade por uma “classe social” e a imposição de um colectivismo “destruidor e desaproveitador” da riqueza do individual em todas as esferas, ainda que impostas contra a vontade da maioria), houve um erro clamoroso! Poder-se-á argumentar com a “inevitabilidade” dos condicionalismos históricos aquando da enunciação da doutrina, restringida à visibilidade “possível” na época. É, obviamente uma parte (significativa) da explicação, sobretudo para o autor (Marx), mas não para os marxistas actuais. Mas essa “razão não explica tudo, porque, posto de outra maneira, numa época ainda mais distante, houve gregos que o enumeraram e questionaram de forma arquetípica e não apenas em enunciados de análise (comportamental e consequencial) da História. Se à leitura de Heráclito, Marx introduzisse a de Platão também, talvez as “sombras na caverna” ajudassem não só a prever a possibilidade do “monstro letal”, como – e isso é o mais importante, pois Marx não pretendia ser um “adivinho”, apesar de muitos marxistas o terem como tal para circularmente se explicarem a si mesmos -, mesmo para a construção de um novo modelo de sociedade, se tivesse tido nas experiências frustradas, em conta quer a importância em si do indivíduo (e da liberdade), quer como ser humano, quer como motor na criação da riqueza. Mas, sobretudo, tivesse sido possível superar o erro maior, que, quanto a mim, assenta no “reducionismo economicista” e na não consideração da acção do pensamento (imaterial) sobre a dialéctica da própria materialidade. Ou seja: não haveria lugar à criação do “materialismo histórico”, mas antes da compreensão antecipada dos dados que a psicologia e outras descobertas de natureza científica (nomeadamente as da física quântica, esta não tão distante assim do período de vida de Marx) vieram derrubar, por maiores “malabarismos” com que os marxistas – depois de as terem negado – procuram introduzir no marxismo. E talvez também em vez do “materialismo dialéctico”, a história do pensamento fizesse prever que o “ópio do povo” não era a religião em si, que à época seria apenas instrumento, mas todas as formas de alienação, incluindo o ateísmo militante de Estado no “socialismo real”.

O “erro” é, quanto a mim, implícito no tal pensamento salvífico, redentor, que, para se explicar e tornar crível a seus próprios olhos, reconduziu todo o comportamento humano a uma base económica e toda a economia à posse e processo dos meios de produção e da redistribuição material da riqueza. No que, chegados aqui, não há “renovação marxista” que resista porque cai pela base o alicerce da doutrina. Marx pode – e há-de ser – um dos pilares para a compreensão de parte dos fenómenos sociológicos, tal como eu mesmo nesta reflexão dele muito me socorri. Mas, para utilizar uma vez mais ainda uma expressão sua, requer-se “um salto histórico”, no sentido objectivo e subjectivo da abordagem da própria doutrina. Não basta uma “revisão”, precisa-se de uma construção nova, onde se aglutinem com a mesma importância pensamentos tão diversos sobre o que é o “progresso” como os da confrontação, por exemplo, entre o juízo nihilista de Ted Kadzinsky (o Unabomber) e o “optimismo histórico” de Marx. Ou entre este e as abordagens à informação de Chomsky e a compreensão do comportamento humano feita por Freud e Piaget, por exemplo.

Mas para tal, há que começar por uma libertação (quase do foro psicanalítico em termos da paternidade filosófica) e reconhecer “O erro de Marx”! Designação atrevida e provocatória em que me inspirei, por subtil gracejo, na fantástica obra de António Damâsio, cuja divulgação mais ou menos acessível partiu com um livro cujo título, todos o saberemos, foi “O erro de Descartes”.

Neste livro referido, de resto, ao mostrar-se alguns aspectos da funcionalidade do cérebro na componente afectiva do ser humano como determinante mesmo para a acção inteligente, a par do indeterminismo a que a física quântica determinou, são mais alguns exemplos onde também se pode identificar o tal “erro de Marx”, quando quis que a História tivesse leis rígidas (e deterministas), assentes em tudo na infra-estrutura material (económica) da sociedade, considerando que a super-estrutura era um mero reflexo desta. E não é, de todo. A componente subjectiva (afectiva, emocional e sentimental e mesmo os sistemas de crença e vontade própria) não pode negar de forma redutora a afirmação de Pascal sobre o nariz de Cleópatra. Não, certamente na asserção do pensador francês, mas na imprevisibilidade de acontecimentos que a ciência aceita e que se traduzem melhor do que nada na conhecida tirada (cito de cor a ideia) de que “um bater de asas de uma borboleta na América pode alterar o clima na China”.

Mesmo a passagem da “Escola de Chicago” para este novo “monstro letal” demonstra que é possível operar ao nível da super-estrutura para determinar a infra-estrutura e, no tal “mundo realmente às avessas”, inverter o sentido do acontecimento, comutando causa e efeito. A montante das alterações económicas realizadas pelo “monstro letal” relativamente ao capitalismo monetarista, aquilo que tornou possível a sua aceitação sem grandes interrogações (dentro ou fora do sistema) e a implantação lenta e fétida, perfumada com odores exóticos, foi o facto de se ter criado, precisamente a partir da ideia do “capitalismo popular”, a ilusão, ao nível do pensamento (na super-estrutura), da sua bondade e da abertura de portas à realização individual em igualdade de oportunidades… antes que ele, o “monstro”, se concretizasse e instalasse na infra-estrutura (económica).

Quando não, se o “motor da História” fosse só baseado na “luta de classes” (que existe sim, mas é só uma parte da construção do processo histórico, mais intensificada na criação inicial do capitalismo industrial, mas se nem sempre assim, muito menos hoje), de facto, ao capitalismo, na forma que Marx conheceu e na que previu (com mais ou menos acerto numa dedução analítica genial), sucederia, pelo menos, de facto, uma sociedade substantivamente parecida com a que imaginara, o que a própria História já se encarregou de demonstrar que não. Teríamos, esgotado o capitalismo, se não um socialismo pré-construtor do comunismo, uma outra forma de organização basicamente assente nos preceitos e pilares da proposta marxista como solução, introduzidas algumas correcções: a da supremacia do colectivo solidário, sem recurso à diluição do individual e uniformização dos cidadãos, que em Marx resulta em consequência quase incontornável, nem que seja, pelo menos, na livre iniciativa económica. Teríamos também a distribuição tendencialmente equalizante entre necessidades e trabalho “oferecido” à comunidade com retornos diferenciados, mas não igualitária, como fim último no marxismo, mas por via de taxações mais do que por estatização de toda a vida económica. Ou seja, no fundo: uma espécie de capitalismo “rectificado” em que o lucro se repercutia directamente na redistribuição e interesse geral e não na mera apropriação individual, ainda que com distinções da capacidade individual de criação maior dessa mesma riqueza. Algo não muito longe de Kautsky (e com a recuperação da leitura marxista gramsciana para reconduzir os “desvios revisionistas” do “renegado” a propostas de uma maior aproximação do Marx original, que não o da leitura leninista, de todo!), realizando uma sociedade (mas só possível com estabilidade numa outra globalização) da que chegou a estar muito próximo nos países escandinavos e se “re-ensaia” agora na Islândia. Mas será realmente assim? Será possível?

Ao centrarem-se os marxistas – como anti-capitalistas “generalistas”, sem apreciação efectiva de que o capitalismo já nem o é - na economia como única ferramenta de análise para explicação do comportamento e mola de acção das pessoas, desprezaram o que a ideologia, por si e em si é e não mera reprodução na super-estrutura da realidade da infra-estrutura basicamente económica, podendo soltar as amarras que os “empurra”, com maior ou menor heterodoxia (sobretudo relativamente às leituras “tradicionais” absolutizantes ou a práticas de modelos falhados) para uma cristalização que os afasta da própria realidade múltipla do mundo e da vida. Olhando sem preconceitos, não me parece difícil perceber que este “brig brother” que, mais do que nos vigiar, nos “conformata” a mente, facilmente manipula as massas para preferências absurdas na ânsia do “ter”, inviabilizando o início de uma “luta” indispensável, quiçá prioritária.

A escolha de menor imposto (para trocar de telemóvel, por exemplo) a um Serviço Nacional de Saúde eficaz e universal (embora, do meu ponto de vista possa e deva produzir comparticipações diferenciadas em função dos rendimentos auferidos: quando eu pago 3 euros por um acto médico num hospital público, o mesmo valor, em que ao meu lado um “desgraçado” que tem uma reforma de 1/10 do meu ordenado e um “magnata” que ganha mil vezes mais do que eu, sinto-me envergonhado com o “desgraçado” e indignado com o “magnata”) é uma, de entre várias, demonstração da incompreensão total do interesse comum, onde o próprio eu de cada um se inclui.

Mas este é um exemplo como outro. Como o mais visível do endividamento exponencial de famílias inteiras para um consumo perfeitamente dispensável, mas atraídas por esse mundo de fantasia (ia a dizer mesmo “esquizofrénica”) que as “revistas cor-de-rosa”, as telenovelas e todo o demais lixo comunicacional de ficção (as “revistas cor-de-rosa estão bem mais perto da ficção pura e simples do que de qualquer informação, mesmo que “pintada”) – onde a tv, por eficácia e rapidez do suporte é dona e rainha da imbecilidade – lhes cria como “desejo” e “aparência” de realização pessoal. Tal como – está de resto provado – o mundo da publicidade da “promessa do sonho” (seja a mulher fatal, o macho perfeito ou a família realizada; seja o carro potente, o tira-nódoas eficientíssimo ou o brinquedo mágico para as crianças) provoca frustrações sociais e pessoais de repercussões a nível de saúde pública: a diferença é enorme entre o “prometido” e “esperado” e o “alcançado”. Logo, o “falhanço” reorienta-se para um “ego” frustrado, não descobrindo a fraude objectiva do sistema, mas gerando depressões, agressividade ou mesmo tendências suicidas porque “falhar” neste Mundo de concorrência incontrolada de cada um contra todos os outros é sinal de uma impotência, que se transforma em desejos (inconscientes) auto-punitivos.

Aliás, o caso especialmente grave do uso e abuso das televisões, cria uma rede multi-factorial tão complexa que falar da comunicação social como o “quarto poder” não é de todo ajustado hoje em ia. Nem sequer a da sua redução a correia de transmissão do próprio poder económico: é-o à partida, claro, mas exerce entre si e o seu “patrão” uma relação de inter-penetrabilidade, se não dialéctica, pelo menos inter-activa. Fenómeno outro que falta estudar e, certamente, ainda clarificar-se a si mesmo para um melhor entendimento que proporcione esse mesmo estudo com conclusões científicas e não de mera intuição e um certo empirismo, verificável, mas não demonstrado.

Vivemos no sociedade do “parecer” e não do ser, que se manifesta materialmente e mais flagrantemente no que todos conhecemos de muitos e muitos casos em que em detentores de carros de gama alta, a gama é muito mais alta do que podem pôr na mesa para si e para os seus filhos… Para não falar em paradigmas como o da eterna juventude (com ou sem “lieftings”) ou o tabu da morte, em que o morto é “escondido” na capela rapidamente ou se toma por ideia mórbida a discussão lógica e sábia sobre o sentido (religioso ou ateu) da morte, que é o que empresta razão à vida.

É que esta “conformatação” das mentes (super-estrutura) é que possibilita depois a “liquidação” do pensamento próprio, não-exercitado, e a aceitação das desigualdades sociais a uma escala de grandeza abissal, a indiferença com o próximo e o individualismo feroz, que tanto não olha a meios na “competição” para subir na pirâmide económica e social, como dilui até os mais básicos princípios da cortesia e afabilidade e do mero civismo. É a lei “da selva”, a lei do “salve-se quem puder”, a lei da insaciabilidade (criada) do “quero mais, quero mais, quero mais”, de que, nos últimos anos mesmo o sindicalismo ocidental, contagiado pela pressão dos “desejos reais” criados pela própria sociedade de consumo, se tornou “pulmão de aço” (inconsciente) do acto desmedido desse consumo, por onde começou o momento da supremacia ideológica actual… Baseando de forma esmagadoramente maioritária a sua acção como grupo de pressão em defesa do aumento do consumo das diversas “corporações” que representa, foi em grande medida o combustível para alimentar, ao nível da super-estrutura, a máquina que pôs a andar o “ monstro letal”… Talvez em grande parte por via do “erro de Marx”, julgando que a “luta dos trabalhadores” se travava unicamente no âmbito da luta económica, nem se dando conta que a divisão tremenda entre o poder de compra de região a região do Globo (sobretudo Hemisfério Norte/Hemisfério Sul) iria provocar, com as migrações dos mais carenciados (eufemismo para dizer “vítimas” do próprio crescimento económico no poder de compra dos trabalhadores do “Primeiro Mundo”), o abaixamento de custos da mão-de-obra, a ponto de transformar o “ódio ao capital” em “ódio xenófobo”, de que Marselha é a mais evidente montra.

Assim, para contrariar com eficácia este “estado de espírito” que permite passivamente este “monstro letal”, é preciso, mais até do que um combate parcial contra os ”bancos do dinheiro”, um outro de “desconformatação” nos “bancos da escola”. Mais do que criticar a tv pela má ou deturpada informação política, exigir uma política de programação enriquecedora culturalmente, tornou-se questão central e não mera associada secundária. Não é possível, em nome do lazer (que lazer? mórbido?) aceitar com passividade, ou uma grande relativização da sua real importância, programas deploráveis de concursos atentatórios da dignidade da pessoa humana, nem, cavando mais fundo, sequer telenovelas e “talk-shows” condicionadores comportamentais de fantasias irrealizáveis e que servem ainda para esconder a realidade da vida e criar mitos, traduzidos em pequeninas “esperanças” que conduzem ao imobilismo, quer durante o consumo desse “produto” de ficção também letal por amolecimento dos neurónios, quer nas consequências idênticas às que a “publicidade da promessa subliminar” (não o aspecto da venda e valorização do bem, mas o da suposta “felicidade”  a que conduz o acesso a ele). É realmente a “matrix” tão bem configurada na metáfora do filme inicial com o mesmo nome (que já não nas sequelas) do que é o “modus operandi” deste “monstro letal”.

É esse condicionamento de um pensamento livre e autónomo, apesar da glorificação (falaciosa) do indivíduo, que antecede a eficácia da mentira na informação: já com os neurónios estropiados para que não se pense, pensando mesmo, permitem ao “monstro letal” propagar facilmente a sua ideologia para uma prática de abutre sem que as vítimas saibam ao menos que o são. Desnecessita do recurso à propaganda, mesmo que demagógica, porque integra no “pensamento” generalizado a sua ideologia, não como tal, mas como mera realidade, que não passa, de facto, de um filme passado dentro da nossa cabeça. Por onde, de resto, se pode melhor entender o porquê da “pessoalização” ou “factualização” evidente nas campanhas eleitorais, porque o que é “programático” não passa já por um discurso ideológico, uma vez que este está presente e é imanente às pequenas variáveis de forma dos partidos do sistema. Fazendo até que a tentativa de valorização de factos num contexto ideológico (mesmo de forma desajustada e baseada nas tais premissas do “erro de Marx”) sejam completamente inócuas, mais parecendo elas a fantasia do que a própria fantasia em que vivemos.

Não digo isto, atenção!, a partir da convicção plena de uma “teoria da conspiração” em que tudo isto se inventa numa “secretíssima organização central”, nem penso que tenhamos “chips” instalados no cérebro! Só em sentido figurado é que me parece verdade incontestável que os temos mesmo… Na “realidade real” (permita-se o pleonasmo) antes o vejo como parte integrante e auto-relacional inter-activa entre a super-estrutura e a infra-estrutura, em que, neste caso, é a super-estrutura do “pensamento” em que se não pensa, muito de perto relacionada com os sentimentos que se não sentem, que a despoletam ou sobre ela retroagem e condicionam-nos à aceitação (emocionalmente dessensibilizante) de uma infra-estrutura (económica) do desinteresse objectivo do próprio, mas que subjectivamente declina em nome de “necessidades” que nos foram impostas. E, aí sim, não acredito também na “ingenuidade” do procedimento. Tal como vejo na inércia da importância superior deste combate, um resultado negativo do “erro de Marx”, pelas razões mais que expostas sobre a menorização atribuída ao plano da riqueza do conhecimento face ao da riqueza material, aliás, em boa parte, pelo atraso do estudo das psicologias (emocionais, educativas ou outras) ao tempo de Marx e olhadas com alguma desconfiança pelos seus continuadores “in nomine”…

De resto mesmo que se tentasse – e fosse possível – criar ou “impor” um modelo materialmente mais justo, menos desigual nas oportunidades, mais solidário na cidadania e fazendo prevalecer outros valores aos do consumo, o mesmo facilmente se desmoronaria por uma, ou pelas duas, das seguintes razões: estando o conhecimento limitado a uns quantos, estes (ou grande parte deles) cairiam na tentação (geneticamente predadora?) de se apossarem do alheio “reconstituindo-se” em nova “elite económica dominadora”; e permanecendo na ignorância a maioria, fácil seria, por um lado, os primeiros dominarem e, para sobreviverem nessa dominação, se tornarem em novos “vendedores de sonhos”, mesmo que de natureza diferente, mas igualmente falsa e, mais tarde ou mais cedo, implodindo também. Só uma redistribuição prioritária do conhecimento e do saber (pela e na educação, cultura e ciência mesmo) cria previamente as condições de reorientação de paradigmas para que não só eles sejam possíveis de concretizar, promovendo entre si a “necessidade” e a “aceitação voluntária” maioritária de uma mais justa redistribuição da riqueza material, mas também para que as gerações sucessivas se mantenham vigilantes, naturalmente (e não por meios de “falanges organizadas de treino ideológico”) de qualquer tentativa de apropriação abusiva, seja de que natureza for, seja de quem for.  

E, por último, resolvendo em síntese dialéctica o permanente conflito entre o “indivíduo” e a “colectividade”, porque ambas têm lugar necessariamente em complementaridade: a primeira porque numa sociedade informada a tolerância do reconhecimento do direito à diferença é condição “sin qua non” do (re)conhecimento efectivo dessa realidade sem querer impor aos outros a do mero chamado senso comum; a segunda porque não seria necessário, se cada um realizado no campo da esfera pessoal absolutamente livre, contraditar o que fosse de superior interesse colectivo, uma vez que este nunca poderia ser indevidamente subjugado ao primeiro, mesmo que numa primeira fase houvesse recurso (consentido) a mecanismos de “repressão jurídica e judicial”. Mas, a não muito longo prazo, mesmo sem esse mecanismo repressivo, quem o quisesse fazer não lho seria permitido por um conjunto social civicamente crescido, sem recurso a forças especializadas na repressão. Bastaria a ética social de pensar a Humanidade como um todo de agregações de diferentes e irreplicáveis indivíduos e mesmo como, sendo a parte mais inteligente da Terra, não se lhe atribuísse o sentido de “reinante”, mas antes de “curadora” do restante.

Mesmo que assim idealizado – numa espécie de utopia referencial – tenho-o como assímptota mais eficaz para um percurso, na vez de, em nome de colectivos “amanhãs que cantam” se esmagar o indivíduo (totalitarismos “comunistas”), nem em nome do “crescimento económico” (?) se esmagar o cumprimento dos direitos sociais colectivos (totalitarismos capitalistas). Em ambos os casos, afinal, esmagando, de forma diferente, o ser humano e o próprio mundo, que é o que mais importa preservar. O que é absolutamente indispensável procurar (mesmo que por idealizações impraticáveis em absoluto no tempo previsível em que cada geração possa projectar-se) é alternativas mobilizadoras e consciencializadoras, pois o tempo do “monstro letal”, embora vá ser ainda certamente da intensificação de imenso sofrimento, sobretudo de excluídos e indefesos (como os velhos, as crianças e os sem-abrigo que caíram na degradação completa) se alguma coisa restar que não o fim da Humanidade, é preciso superar o que nos economicismos dos dois sistemas do século XX falhou clamorosamente: a felicidade individual e colectiva das pessoas.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Os alienados nada têm a perder a não ser a sua ignorância.
Alienados de todas as doutrinas: despertai!

 

Castro Guedes
(Lisboa, Maio de 2011)

 

 

(jorge) castro guedes (Portugal)
encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).