O homem silencia.
- Quando eu era menina, achava que o mar acabava no
horizonte.
- Você nunca me contou isso.
- Agora que eu tô lembrando. Pensava que a água se
transformava numa cachoeira gigante lá no fim. Ficava com medo de entrar
e de ser levada pela água.
- Você ainda tem medo?
- Não tenho medo de mais nada... O Túlio nunca teve.
- Por isso escolheu o mar.
- É... se tivesse, não teria se arriscado tanto.
- A paixão do Túlio era o fundo do mar, era a vida dele.
- Ele era a nossa vida.
- Ainda é.
- Mas a nossa vida não é mais a mesma.
- Nem este é o mesmo mar.
- Nunca será como antes.
O homem silencia novamente.
Manaíra
Não são nem sete horas em João Pessoa. Na praia de Manaíra,
outro casal entra na água. A mulher carrega a criança, uma menina de
pouco mais de um ano. Meia hora de banho de mar, antes que o sol levante
fervura. Na calçada e na rua ao longo da orla, pessoas de todas as
idades, a pé e de bicicleta, exercitam-se antes de mergulhar de cabeça
nos compromissos do dia. Duas cinquentonas conversam enquanto caminham.
- Quê que ele queria? Que você esquecesse tudo num piscar de
olhos?
- Eu tava bem de botar um par de chifres no safado.
- Mas pensa com calma, não precipita.
- Precipitar? Eu vou é dar uma lição no cachorro! Vou ligar
pro Carlos. Ele odeia o Carlos, morre de ciúmes!
- Toma cuidado pra não complicar as coisas...
Em sentido contrário, quatro homens de meia idade igualmente
confabulam durante a marcha.
- Nessas horas tem que cortar o mal pela raiz.
- E quanto foi?
- Calculei bem uns cem mil.
- Chamou a polícia?
- Não, um couro no cabra vai bem melhor.
Um garoto caminha de mãos dadas com a mãe. A outra mão
segura firme uma bola debaixo do braço. Ela estende a toalha na areia. O
menino observa um rapaz a chutar uma bola em direção a duas crianças
dentro da água.
- Pode brincar com eles, se quiser.
- Não, quero ficar aqui.
- Leva sua bola e joga com eles.
- Não quero!
O menino quer, mas tem receio de ver a bola nova ser
embicada da mesma forma para a água. E se perder mar adentro.
Um senhor de meia idade senta-se na murada que separa a
calçada da areia. Preso à coleira, o rottweiler imita o dono e
acomoda-se no passeio. O pensamento do homem está bem além do Mandacaru.
Tenta farejar de onde vai tirar mais dinheiro. Não são apenas as contas
a pagar, precisa enviar uma quantia ao irmão doente no sertão.
Uma mulher nada a uns trinta metros da praia. Só ela sabe o
que veleja na cabeça enquanto tenta costurar, uma vez mais, uma linha
reta até a Ponta do Seixas. Repete o trajeto todo dia como se fora um
ritual, iniciado na adolescência.
No céu, a brisa empurra nuvens desgarradas rumo ao
continente.
Uma senhora, de chapéu de palha e vestido branco, de tramas
vazadas de algodão colorido sobre o maiô azul, ajoelha-se sobre a
esteira de palha. Os olhos fechados, as mãos em oração. Inspira calma e
profundamente. Aprecia o ar puro que vem do mar.
A jornada é consagrada a Nossa Senhora da Conceição. É dia,
também, de festa para Iemanjá. Para alguns seguidores, Nossa Senhora das
Águas começou a ser cultuada logo cedo.
Um homem de tênis corre na praia. Saiu do Bessa. Pretende
seguir até Cabo Branco antes de retornar. No caminho, em meio aos
sargaços, constata vestígios das primeiras oferendas lançadas à rainha
das águas. Rosas brancas solitárias ou com as pernas cruzadas umas às
outras são cuspidas de volta para a areia. Passa por duas crianças
pequenas, acompanhadas da irmã mais velha, de seus oito anos. As meninas
brincam de plantar as flores.
Oferendas
Em Tambaú, um rapaz de calça jeans e camisa de malha escura
jaz tombado próximo a um quiosque. É conhecido por ali como um tremendo
caixa d’água. Ao lado de outro quiosque, um homem dorme sobre o balcão.
O corpo o forçou a ficar por ali ao invés de pegar a condução às cinco
da manhã até Cabedelo. Dentro de pouco tempo abrirá o bar para os
clientes do dia.
Próximo ao hotel em forma de disco-voador, os barcos
repousam sobre as ondas. Como cães adestrados, aguardam a hora da
próxima partida. Sob as bênçãos de Iemanjá, alguns seguirão em breve
para alto mar. Outros, dentro de mais um par de dias, deslizarão rumo
aos bancos de areia de Picãozinho. A maré ainda está alta. Um grupo de
pescadores, com água acima da cintura, limpa o casco da Flor de Lucena.
Descalços, com os sapatos nos dedos, dois jovens casais, turistas ainda
vestidos de noite, caminham em direção ao mar.
- O que é aquilo?
- Deve ser o preparativo de algum evento.
- Acho que é de uma festa religiosa, olha a santa lá em
cima!
- Que santa deve ser?
- Não tenho ideia.
- Podemos fazer um pedido pra ela.
- Você não sabe nem o nome da santa...
- Mas santa é tudo igual, a gente só precisa é de ter fé.
Nossa Senhora das Águas encontra-se no altar improvisado no
palácio montado em Cabo Branco, cercado de bandeiras azuis. A estrutura
recebe os retoques finais para a festa noturna. Mas uma família inteira
já se reúne à beira d’água. Duas senhoras, três mulheres, um rapaz,
quatro moças e cinco crianças formam uma meia lua na areia. À frente, um
homem beija a mulher no rosto e se agacha para carregar um cesto.
- Odô iyá, Iemanjá... – diz a mulher. É boa esposa,
tolerante, carinhosa, vaidosa e apegada à família. Um dos seus grandes
medos é a solidão. E sua maior angústia é carregar um buraco infértil no
ventre. Não sabe onde errou. Os olhos úmidos retesam o choro. Mais
tarde, vó Maria vai lançar os búzios para ver a ciência dela para o
próximo ano. O marido acompanha outros dois homens, um pouco mais
adiante. Entram no mar com as oferendas nos braços. As pernas avançam
sob a água, que chega a atingir quase a altura do pescoço.
A menos de cem metros dali, três crianças, na faixa dos dez
anos, disfarçam uma brincadeira, ao mesmo tempo em que acompanham o
ritual à distância. Mais atentas ao balançar das cestas, os meninos
esperam pacientes. Assim que o grupo deixa a areia e a primeira cesta é
lançada de volta, correm para o mar.
- Iemanjá não quis! – expressa com espontaneidade uma das
crianças.
- Oche, não tem tesouro! – diz a outra, a quem o colega
encheu a cabeça de imaginação.
- Panha logo! – ordena a terceira.
Ligeiros, retiram as oferendas – espumante, vela, alfazema e
sabonete – e saem correndo. Um pedaço de papel ficou para trás. Caiu
para fora da cesta. O homem de tênis vê a cena, estaciona as pernas,
reclina os joelhos e pega o bilhete, dobrado em dois. Fica entre
bisbilhotar o pedido a Iemanjá e deixá-lo oculto. Olha discretamente
para os lados e vê, a uns cinqüenta metros, um preto velho agachado a
tragar um cigarro de palha na mata rasteira. O homem tem a impressão de
estar sendo observado em flagrante delito. Levanta-se, rasga o papel e o
lança sobre as ondas. Mais por medo dos orixás do que pela falta de
interesse ou pela censura do preto velho. Faz o caminho de volta, em
direção à praia do Bessa.
- Eu sei que você tá cansado de ouvir as mesmas coisas – diz
a mulher de maiô preto e cabelos grisalhos.
- Não tô cansado, mas sinto que você não é mais você.
- Sou o que sobrou de mim.
- Você deixou de fazer as coisas que mais gosta.
- Tô aqui, não estou?
- É, tá... pensei que não fosse conseguir.
- É engraçado, quando a onda vem, tenho a sensação de que o
mar vai me devolver o Túlio... e o peito dói porque ele não aparece...
Mas quando a água volta, parece que o mar tá me puxando pra dentro, como
se quisesse me levar até ele.
- Isso é bom, você vai conseguir superar.
A mulher olha para o marido e o acaricia no rosto. O olho se
enche d’água. O marido a envolve nos braços na expectativa involuntária
de não deixar os sentimentos da mulher à deriva.
- Vamos embora?
- Vou dar apenas um mergulho.
- Tá bem, mas não demora. Vou comprar uma água de coco.
O homem sai da água e repara, pela primeira vez, nos
preparativos do palácio montado para Iemanjá. Não sabe que o mar é
salgado porque Nossa Senhora das Águas verte ali suas lágrimas pelos
filhos que partiram. Quando olha para o mar, a fisionomia fica tensa. Vê
a mulher se distanciar e nadar rumo ao horizonte. |