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Mas o movimento, dentro deste
universo poemático, possui igualmente feições bem mais ortodoxas: a
brandura: “Esse tempo que passa como um vento brando” (PR 41); a
nostalgia: “O que passou, passou. Fiquei testemunhando/ esse caminho sem
ti…” (PR 79); o fascínio: “Espio as garças minuciosamente:/ sua escrita
me fascina “ (PR 279), etc. Este devir que atravessa de um lado ao outro
a poesia de Dora Ferreira da Silva, não é o gratuito movimento pelo
movimento, uma fibrilação arbitrária que a si se basta, é antes a
expressão de uma visão animista do cosmos onde a reflexão e a emoção se
conjugam para dizer o que à palavra vem: “(…) As estátuas e as fontes/
te acenam. Em vão/ chamam-te as flores…” (PR 70), “sermos dois e
isolados/ flutuando na alma do mundo” (CI 16). A todas estas
características do Devir, outras se poderiam ainda acrescentar -
transfigurações, metamorfoses: “As formas primeiras por belas e
dementes/ esperam seu resgate (…)/ essas duras crisálidas do sono” (PR
61), contudo, o que nos importa por fim assinalar é que toda esta
actividade se encontra subsumida numa figuração englobante – a do ciclo,
tantas vezes identificado como círculo: “Tudo que foi luz/ e hoje
desmaia em treva// renasce deste silêncio de orfandade” (PR 40),
“deslocam-se os ponteiros/ cerrando o cerco do tempo.” (PR 82), “dançam
pétalas/ dança a vida (…)/ não termina a partitura/ que se repete/
sempre.” (PR 270).
Simultaneamente Estrangeira e integrada no mundo
sensível (vários são os seus poemas versando aspectos do quotidiano,
alguns até com minuciosas descrições) Dora Ferreira da Silva atende ao
que ocorre, não só naquilo que a cerca, mas também no si-própria, e
assim, sob os auspícios da Beleza e do Amor para sempre insiste nesse
seu Jardim que vai construindo e de que nunca desarma, ou melhor, nessa
realidade estruturalmente hierofânica onde o sagrado irrompe a cada
passo do seu olhar e da sua escrita, aliás, ao falarmos de sincretismo,
de uma certa transgressão para com a Lógica da Identidade, de devir
cíclico e de hierofânias estávamos de facto já a apontar para a
circunstância de nos encontrarmos ante uma poesia alicerçada num solo
eminentemente mítico. Se o Mito se actualiza sempre através de Ritos que
trazem para o presente os seus deuses e/ou os seus heróis, também na
poesia de Dora o ciclo se perfaz, quer entrando na própria estrutura da
estória sagrada: “(…) Bebia Narciso sobre a onda/ quando uma face viu de
tal beleza” (Hd 39), quer falando do quotidiano à lupa do Mito: “Osíris
– Menino brincando na calçada/ e Osíris se chamava. Amei o nome” (CI
42), quer ainda cismando nas suas inquietações e desejos através de
imagens míticas: “Partiram-se as finas cascas dos ovos/ e o Sol
resplandeceu.” (PR 63), estes dois últimos versos fazem-nos mesmo pensar
que a poeta conhecia alguns Mitos do norte da Europa, nomeadamente da
Mitologia ugro-finlandesa. Assim como as vivências de carácter
anismistico-mágico e todo o tipo de ritualismo, nas sociedades ditas
primitivas, jamais punham em causa nem a História Sagrada Originária ou
os Mitos secundários, nem tão pouco a normatividade decorrente de todos
eles, também em Dora Ferreira da Silva a Mesmidade dos planetas e da
natureza (cf. Hd 48), bem como do real enquanto Todo, jamais vacila
apesar do constante Devir a que está sujeita: “A Vida, sem marcos
divisórios./ Um território geral além do provisório aqui ali,/ o mais e
o menos, o entornado Amor brindando o espaço, taça cheia.” (PR 106), “Já
não sou eu quem diz, nem ouve e escreve,/ nem nossa é a dança alada/
subindo o teto da manhã:/ no alto vértice/ o Único a colhe/ e dá sentido
à ação” (PR 106); “Quando a plenitude do/ UNO?/ simples inefável
resumo.” (CI 16). Pela ideia (ou conceito?) de Uno, que em Dora aparece
por vezes com outras formulações, e que se lhe apresenta – apesar da sua
Mesmidade – ao olhar e à escrita sob as formas mais diversas, a poeta
escapa definitivamente a um ecletismo heteróclito, onde também assomam
as marcas do cristianismo e de autores como Plotino, e instala-se
definitivamente no território consagrado da Grécia Antiga, na quietude
desse seu Jardim pejado de hierofânias onde “O muito transforma-se em
unidade “ (CI 121).
O apelo da Hélade fez-se também sentir na poesia
portuguesa do século XX. Tomemos como exemplo apenas duas das grandes
mulheres-poetas desse século. Na poesia de Sophia de Mello Breyner
Andresen se o ponto de partida aparece como semelhante ao de Dora: “Mas
dar a minha voz à veemência das coisas/ E fazer do mundo exterior
substância da minha mente “ (BC 8), se no poeta nada deve separar “o
homem do vivido” (BC 14) e se aparecem mesmo, nalguns casos, temas
comuns (Os pássaros, Penélope, os deuses, Delphos, etc.), o que é um
facto é que o límpido solo grego de que Sophia nos fala não é um solo
visto através de um qualquer paradigma sincrético-mítico, estamos ante
uma observadora envolvida com o objecto da observação mas jamais
integrada, ou fundida, no mesmo: os deuses de Sophia não estão ali à
beira-mão, eles “Nasceram como um fruto da paisagem” (A 46) e
“Extasiados estão na sua imagem” (Idem), “A respiração dos deuses é
visível” (G 66), pode ser vista no Golfo de Corinto ou em qualquer outro
local da Grécia, mas há sempre um hiato entre eles e a poeta, quando
muito poder-se-á falar de uma união (e batalha) entre sangues, o divino
e o humano (cf. G 66), mas isso não passa de uma alegoria de uma
viajante “Em redor das montanhas e das ilhas” (Idem). Há até momentos em
que a poeta é mesmo mais peremptória: “Exilámos os deuses e fomos/
Exilados da nossa inteireza “ (OP 220), dito por outras palavras, a
filiação desta poesia à Grécia enquadra-se no seio de um pensamento
estritamente racional, embora nalguns poemas, por exemplo em “O Búzio de
Cós”, se utilize mais o verbo cismar. Atinge-se, por conseguinte, uma
consequência paradoxal: a Beleza que Dora Ferreira da Silva alcança com
o seu entrançado poético consegue-a igualmente Sophia de Mello Breyner
pelo caminho inverso: o seu deslizar brando pelas águas, as suas praias
fulvas e solares, o seu olhar minucioso e sereno, (olhar esse que faz
dela uma das maiores poetas portuguesas), ou seja, mais uma vez o Mesmo
a dizer-se nas suas múltiplas formas.
Ao deslizar brando e luminoso das poéticas anteriores
opõe-se o entusiasmo - por vezes mesmo: o arrebatamento -, a amplidão e
o cheio da poesia de Natália Correia. Não tendo feito da Grécia Antiga
um dos seus temas dominantes a ela recorreu inúmeras vezes na sua
escrita, e com Dora Ferreira da Silva partilha mesmo alguns títulos: a
alusão à cidade de Patmos, as Estátuas, etc. Mas o que nos parece aqui
fundamental é a contraposição existente entre Dora e Natália quanto ao
postulado de que partem as suas escritas: a primeira instala-se no
paradigma mítico, para, através dele elevar (e consagrar) esses aspectos
do real circundante que do Uno foram emanando; a segunda, que com Sophia
partilha o olhar da ocidental assumidamente instalada nas concepções
epistemológicas e ônticas do seu século, parte para a Hélade para a
colocar ao serviço das vivências e inquietações da contemporaneidade: “
Para que no alarme dos sinos/ um pouco de Grécia repique/ no poço mais
europeu do meu crânio/ procuro Atenas e sai Munique” (SN 33) “ Ó Pítia
adrede nascida/ nessa Ilha que é tripeça,/ porque sendo Margarida/ teu
nome no mar começa.” (SN 134). Alguns poemas de Natália Correia parecem,
contudo, inseridos em plena Antiguidade nomeadamente: “Afrodite
Ressurrecta” e “Invocação”, mas tal se deve apenas ao saber poético – e
até a uma certa ironia – da autora, veja-se, por exemplo, alguns versos
do primeiro texto: “A de leite colmada. De amor, a mama cheia./ (…)/
troca luas malignas por honestos lavores.” (SN 172).
A originalidade da poesia de Dora Ferreira da Silva
se, por um lado, apresenta acidentais similitudes com outras poetas, por
outro não lhe outorgou epígonos nem um generalizado reconhecimento no
espaço lusófono. No entanto, convém estar atento a algumas convergências
em vários poetas brasileiros, como é o caso de Mariana Ianelli no seu
último livro: Treva Alvorada. Observe-se o carácter antitético do
título, descubra-se igualmente na obra a constante inquietude ( e
maravilha ) com o sagrado e com o mítico, sobretudo nas figuras de
Narciso e Hércules. Mariana Ianelli, para nós uma das mais
significativas vozes poéticas da sua geração, compartilha também com
Dora Ferreira da Silva o desinteresse em afinar a sua Voz poética pela
batuta de circunstancialismos modais – a autenticidade da Palavra que se
abre à escuta do poeta não faz cedências aos turvos resplendores das
épocas. Acrescente-se que o ciclo doriano não está só presente no título
da obra de Mariana, ele percorre todo este seu livro sob a forma de
vida/ morte/ renascimento: “ E se te chamam,/ Se te chamam ainda,/ Que
seja maior o teu longe,/ Mais largo o teu giro.// (…) No parto do teu
espírito.” (TA 82). Talvez Dora Ferreira da Silva não tenha deixado
seguidores directos – no sentido escolástico do termo -, para que, na
inapreensível estratégia do Devir, o essencial do seu dizer encontrasse
outros veios, outras portas, outros modos de ressurgir. |
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Andresen, Sophia de Mello Breyner, O
Búzio de Cós e outros poemas, Editorial Caminho, Lisboa, 1977.
Andresen, Sophia de Mello Breyner,
Antologia, Moraes Editores, Lisboa, 1975.
Andresen, Sophia de Mello Breyner,
Geografia, Edições Ática, Lisboa, 2ª Edição.
Andresen, Sophia de Mello Breyner,
Obra Poética – Vol. III, Editorial Caminho, s/c, 1999.
Correia, Natália, O Sol nas Noites e o
Luar nos Dias II, Projornal, s/c, 1993.
Ianelli, Mariana, Treva Alvorada,
Editora Iluminuras, São Paulo, 2010.
Silva, Dora Ferreira da, Cartografia
do Imaginário, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 2003.
Silva, Dora Ferreira da, Hídrias,
Odysseus Editora Lda., São Paulo, 2004.
Silva, Dora Ferreira da, Poesia
Reunida, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 1999. |