REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

 

 

 

 

 

Por que te esquivas

                                                de contemplar o mesmo no diverso

                                                e saltas o decisivo verso

                                                que nos une? 

                                               Dora Ferreira da Silva, A um poeta

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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VICTOR OLIVEIRA MATEUS

 Devir e mesmidade

na poesia de

Dora Ferreira da Silva

                                                                  
 

Instalada num território de exuberantes metáforas, num lirismo intimamente articulado com uma assumida visão do Ser e numa abrangente posição relativamente ao sagrado, a poesia de Dora Ferreira da Silva escapa aos tradicionais, e espartilhadores, processos de rotulagem: multipolar e policêntrica esta obra assemelha-se antes a um enorme retábulo cuja inteligibilidade dinâmica nos envia incessantemente do Todo para as Partes e destas para aquele. Assim, não é de estranhar que este primeiro tópico seja logo detectável na recorrência com que a poeta utiliza todo um léxico bastante específico: fiandeira (PR 45 e 269), tecelã, tear, tecer, novelo, urdidura (PR 51-59), tranças (PR 68), cordame (PR 87), tranças desnastradas (Hd 35), Liames atando e desatando (Hd 57), nó (CI 50), renda (CI 28) … Este é apenas um dos possíveis pontos de partida para o universo sincrético e mágico a partir do qual Dora Ferreira da Silva insiste a sua Voz Poética. Intimamente ligado a este devir formal e conceptual encontramos igualmente o modo como a autora se relaciona com toda uma Lógica da Identidade - ora a infringe ostensivamente: “(…) É a palavra meu açoite/ minha dor minha alegria/ com ordem sem ordem se alinha/ pouco sóbria algo ébria” (CI 9); ora clarifica com expressões e adjectivos opositivos: “próximas-distantes,” (CI 37), “fala da alma que me desabita” (PR 41); ora ainda introduzindo disjunções de tipo hipotético: “Sei que me escutas/ (ou és tu quem me falas?) (CI 88).

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Mas o movimento, dentro deste universo poemático, possui igualmente feições bem mais ortodoxas: a brandura: “Esse tempo que passa como um vento brando” (PR 41); a nostalgia: “O que passou, passou. Fiquei testemunhando/ esse caminho sem ti…”  (PR 79); o fascínio: “Espio as garças minuciosamente:/ sua escrita me fascina “ (PR 279), etc. Este devir que atravessa de um lado ao outro a poesia de Dora Ferreira da Silva, não é o gratuito movimento pelo movimento, uma fibrilação arbitrária que a si se basta, é antes a expressão de uma visão animista do cosmos onde a reflexão e a emoção se conjugam para dizer o que à palavra vem: “(…) As estátuas e as fontes/ te acenam. Em vão/ chamam-te as flores…” (PR 70), “sermos dois e isolados/ flutuando na alma do mundo” (CI 16). A todas estas características do Devir, outras se poderiam ainda acrescentar - transfigurações, metamorfoses: “As formas primeiras por belas e dementes/ esperam seu resgate (…)/ essas duras crisálidas do sono” (PR 61), contudo, o que nos importa por fim assinalar é que toda esta actividade se encontra subsumida numa figuração englobante – a do ciclo, tantas vezes identificado como círculo: “Tudo que foi luz/ e hoje desmaia em treva// renasce deste silêncio de orfandade” (PR 40), “deslocam-se os ponteiros/ cerrando o cerco do tempo.” (PR 82), “dançam pétalas/ dança a vida (…)/ não termina a partitura/ que se repete/ sempre.” (PR 270).

Simultaneamente Estrangeira e integrada no mundo sensível (vários são os seus poemas versando aspectos do quotidiano, alguns até com minuciosas descrições) Dora Ferreira da Silva atende ao que ocorre, não só naquilo que a cerca, mas também no si-própria, e assim, sob os auspícios da Beleza e do Amor para sempre insiste nesse seu Jardim que vai construindo e de que nunca desarma, ou melhor, nessa realidade estruturalmente hierofânica onde o sagrado irrompe a cada passo do seu olhar e da sua escrita, aliás, ao falarmos de sincretismo, de uma certa transgressão para com a Lógica da Identidade, de devir cíclico e de hierofânias estávamos de facto já a apontar para a circunstância de nos encontrarmos ante uma poesia alicerçada num solo eminentemente mítico. Se o Mito se actualiza sempre através de Ritos que trazem para o presente os seus deuses e/ou os seus heróis, também na poesia de Dora o ciclo se perfaz, quer entrando na própria estrutura da estória sagrada: “(…) Bebia Narciso sobre a onda/ quando uma face viu de tal beleza” (Hd 39), quer falando do quotidiano à lupa do Mito: “Osíris – Menino brincando na calçada/ e Osíris se chamava. Amei o nome” (CI 42), quer ainda cismando nas suas inquietações e desejos através de imagens míticas: “Partiram-se as finas cascas dos ovos/ e o Sol resplandeceu.” (PR 63), estes dois últimos versos fazem-nos mesmo pensar que a poeta conhecia alguns Mitos do norte da Europa, nomeadamente da Mitologia ugro-finlandesa. Assim como as vivências de carácter anismistico-mágico e todo o tipo de ritualismo, nas sociedades ditas primitivas, jamais punham em causa nem a História Sagrada Originária ou os Mitos secundários, nem tão pouco a normatividade decorrente de todos eles, também em Dora Ferreira da Silva a Mesmidade dos planetas e da natureza (cf. Hd 48), bem como do real enquanto Todo, jamais vacila apesar do constante Devir a que está sujeita: “A Vida, sem marcos divisórios./ Um território geral além do provisório aqui ali,/ o mais e o menos, o entornado Amor brindando o espaço, taça cheia.” (PR 106), “Já não sou eu quem diz, nem ouve e escreve,/ nem nossa é a dança alada/ subindo o teto da manhã:/ no alto vértice/ o Único a colhe/ e dá sentido à ação” (PR 106); “Quando a plenitude do/ UNO?/ simples inefável resumo.” (CI 16). Pela ideia (ou conceito?) de Uno, que em Dora aparece por vezes com outras formulações, e que se lhe apresenta – apesar da sua Mesmidade – ao olhar e à escrita sob as formas mais diversas, a poeta escapa definitivamente a um ecletismo heteróclito, onde também assomam as marcas do cristianismo e de autores como Plotino, e instala-se definitivamente no território consagrado da Grécia Antiga, na quietude desse seu Jardim pejado de hierofânias onde “O muito transforma-se em unidade “ (CI 121).

O apelo da Hélade fez-se também sentir na poesia portuguesa do século XX. Tomemos como exemplo apenas duas das grandes mulheres-poetas desse século. Na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen se o ponto de partida aparece como semelhante ao de Dora: “Mas dar a minha voz à veemência das coisas/ E fazer do mundo exterior substância da minha mente “ (BC 8), se no poeta nada deve separar “o homem do vivido” (BC 14) e se aparecem mesmo, nalguns casos, temas comuns (Os pássaros, Penélope, os deuses, Delphos, etc.), o que é um facto é que o límpido solo grego de que Sophia nos fala não é um solo visto através de um qualquer paradigma sincrético-mítico, estamos ante uma observadora envolvida com o objecto da observação mas jamais integrada, ou fundida, no mesmo: os deuses de Sophia não estão ali à beira-mão, eles “Nasceram como um fruto da paisagem” (A 46) e “Extasiados estão na sua imagem” (Idem), “A respiração dos deuses é visível” (G 66), pode ser vista no Golfo de Corinto ou em qualquer outro local da Grécia, mas há sempre um hiato entre eles e a poeta, quando muito poder-se-á falar de uma união (e batalha) entre sangues, o divino e o humano (cf. G 66), mas isso não passa de uma alegoria de uma viajante “Em redor das montanhas e das ilhas” (Idem). Há até momentos em que a poeta é mesmo mais peremptória: “Exilámos os deuses e fomos/ Exilados da nossa inteireza “ (OP 220), dito por outras palavras, a filiação desta poesia à Grécia enquadra-se no seio de um pensamento estritamente racional, embora nalguns poemas, por exemplo em “O Búzio de Cós”, se utilize mais o verbo cismar. Atinge-se, por conseguinte, uma consequência paradoxal: a Beleza que Dora Ferreira da Silva alcança com o seu entrançado poético consegue-a igualmente Sophia de Mello Breyner pelo caminho inverso: o seu deslizar brando pelas águas, as suas praias fulvas e solares, o seu olhar minucioso e sereno, (olhar esse que faz dela uma das maiores poetas portuguesas), ou seja, mais uma vez o Mesmo a dizer-se nas suas múltiplas formas.

Ao deslizar brando e luminoso das poéticas anteriores opõe-se o entusiasmo - por vezes mesmo: o arrebatamento -, a amplidão e o cheio da poesia de Natália Correia. Não tendo feito da Grécia Antiga um dos seus temas dominantes a ela recorreu inúmeras vezes na sua escrita, e com Dora Ferreira da Silva partilha mesmo alguns títulos: a alusão à cidade de Patmos, as Estátuas, etc. Mas o que nos parece aqui fundamental é a contraposição existente entre Dora e Natália quanto ao postulado de que partem as suas escritas: a primeira instala-se no paradigma mítico, para, através dele elevar (e consagrar) esses aspectos do real circundante que do Uno foram emanando; a segunda, que com Sophia partilha o olhar da ocidental assumidamente instalada nas concepções epistemológicas e ônticas do seu século, parte para a Hélade para a colocar ao serviço das vivências e inquietações da contemporaneidade: “ Para que no alarme dos sinos/ um pouco de Grécia repique/ no poço mais europeu do meu crânio/ procuro Atenas e sai Munique” (SN 33) “ Ó Pítia adrede nascida/ nessa Ilha que é tripeça,/ porque sendo Margarida/ teu nome no mar começa.” (SN 134). Alguns poemas de Natália Correia parecem, contudo, inseridos em plena Antiguidade nomeadamente: “Afrodite Ressurrecta” e “Invocação”, mas tal se deve apenas ao saber poético – e até a uma certa ironia – da autora, veja-se, por exemplo, alguns versos do primeiro texto: “A de leite colmada. De amor, a mama cheia./ (…)/ troca luas malignas por honestos lavores.” (SN 172).

A originalidade da poesia de Dora Ferreira da Silva se, por um lado, apresenta acidentais similitudes com outras poetas, por outro não lhe outorgou epígonos nem um generalizado reconhecimento no espaço lusófono. No entanto, convém estar atento a algumas convergências em vários poetas brasileiros, como é o caso de Mariana Ianelli no seu último livro: Treva Alvorada. Observe-se o carácter antitético do título, descubra-se igualmente na obra a constante inquietude ( e maravilha ) com o sagrado e com o mítico, sobretudo nas figuras de Narciso e Hércules. Mariana Ianelli, para nós uma das mais significativas vozes poéticas da sua geração, compartilha também com Dora Ferreira da Silva o desinteresse em afinar a sua Voz poética pela batuta de circunstancialismos modais – a autenticidade da Palavra que se abre à escuta do poeta não faz cedências aos turvos resplendores das épocas. Acrescente-se que o ciclo doriano não está só presente no título da obra de Mariana, ele percorre todo este seu livro sob a forma de vida/ morte/ renascimento: “ E se te chamam,/ Se te chamam ainda,/ Que seja maior o teu longe,/ Mais largo o teu giro.// (…) No parto do teu espírito.” (TA 82).  Talvez Dora Ferreira da Silva não tenha deixado seguidores directos – no sentido escolástico do termo -, para que, na inapreensível estratégia do Devir, o essencial do seu dizer encontrasse outros veios, outras portas, outros modos de ressurgir.

 

 

Nota – às citações seguem-se, em maiúsculas, as iniciais dos títulos das obras com o número da respectiva página.

  BIBLIOGRAFIA
 

Andresen, Sophia de Mello Breyner, O Búzio de Cós e outros poemas, Editorial Caminho, Lisboa, 1977.

Andresen, Sophia de Mello Breyner, Antologia, Moraes Editores, Lisboa, 1975.

Andresen, Sophia de Mello Breyner, Geografia, Edições Ática, Lisboa, 2ª Edição.

Andresen, Sophia de Mello Breyner, Obra Poética – Vol. III, Editorial Caminho, s/c, 1999.

Correia, Natália, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II, Projornal, s/c, 1993.

Ianelli, Mariana, Treva Alvorada, Editora Iluminuras, São Paulo, 2010.

Silva, Dora Ferreira da, Cartografia do Imaginário, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 2003.

Silva, Dora Ferreira da, Hídrias, Odysseus Editora Lda., São Paulo, 2004.

Silva, Dora Ferreira da, Poesia Reunida, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 1999. 

 

 

Victor Oliveira Mateus (Lisboa, Portugal) 
 Publicou até hoje: Nas Águas a Luz suspensa, 1998; Movimento de ninguém 1999;
 A Noite e a Voz (Universitária) 2001; Quando Voltares (Coisas de Ler) 2002;
 Pelo Deserto as minhas mãos (Coisas de Ler) 2004; A Iressistível Voz de Ionatos
 (Labirinto) 2009; Regresso (Labirinto) 2010. Traduziu para português: Safo,
 S. João de Cruz e Voltaire, e para francês Do Intangível de Pompeu Miguel Martins.
 Co-organizou a Antologia Luso-brasileira de contos: Um rio de contos (Tágide) 2009
 e organizou a Antologia de Poesia Luso-brasileira: O Prisma das Muitas cores (Labirinto)
 2010. Tem poemas, contos e artigos de cariz ensaístico publicados em Portugal,
 Brasil, Espanha e Itália.
 
www.adispersapalavra.blogspot.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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