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Também John Gray, na
obra Sobre Humanos e Outros Animais
critica o humanismo liberal como um substituto (ou sucedâneo) da
religião e denuncia o papel central conferido ao progresso como uma
perigosa e persistente «superstição». Afirma que o projecto de
emancipação humana universal através da razão, da autonomia e do
livre-arbítrio não é senão uma versão secularizada da perfectibilidade
humana e da crença do seu lugar privilegiado no mundo. A noção de
progresso funda-se ainda na esperança de que o conhecimento traga
consigo uma significativa melhoria da condição humana, uma libertação
das contingências e das catástrofes a que estão sujeitos os seres da
natureza.
Defendo que a ideia de progresso e,
concomitantemente, a de superioridade de uma espécie ou indivíduo sobre
outros deve ser esclarecida à luz do paradigma que Darwin iniciou e que
a síntese evolutiva moderna reforçou. Entenda-se como um paradigma, no
domínio científico, um modelo explicativo do mundo, uma perspectiva
devidamente fundamentada, testável, replicável e falsificável, aberta à
crítica e à revisão pelos pares. Sobretudo, uma boa teoria científica
deve ser capaz de fazer previsões. Ora, a teoria da evolução tem sido
criticada precisamente por não permitir previsões nem postular leis
naturais que se pretendem universais e abstractas.
A previsão é uma
consequência do método hipotético-dedutivo, mas o objecto de estudo (os
organismos) é demasiado sensível às condições iniciais e às
contingências do meio ambiente no decurso do processo evolutivo. Não é
possível prever dentro de limites razoáveis que mutações irão ocorrer,
que genótipos irão recombinar-se, que alterações ocorrerão num
ecossistema, ou que outros eventos irão afectar o modo como as espécies
se desenvolverão ao longo do tempo. E tal é tanto mais difícil quanto
maior a escala temporal. E contudo, em contexto laboratorial, provou-se
que, na ausência de outras influências, é possível determinar as
propriedades dos processos e sistemas biológicos, de modo a prever a sua
evolução. Portanto, sob condições controladas, os organismos podem
revelar as suas características e podem ser estabelecidas leis. Mas não
sendo possível calcular e controlar, em contexto natural, o tipo de
alterações a que as espécies estão sujeitas (sobretudo a médio e longo
prazo), restam propensões e a busca retrospectiva das variáveis
envolvidas nessa mudança.
Assim, à luz do
conhecimento científico actual, a perspectiva dominante é a de que a
diversidade de formas de vida na Terra (existentes ou extintas) mostra a
existência de alterações, mas nada permite afirmar a existência de um
sentido único e linear ou de um plano intencional para que estas
ocorram.
Contudo, apesar de não se vislumbrar progresso, não é certo que
algumas espécies ou indivíduos são superiores a outros? O macho alfa de
uma matilha não é superior aos outros indivíduos da sua espécie? Na
“corrida ao armamento” não existe uma superioridade competitiva de um
pavão com uma bela plumagem sobre outros menos vistosos? A problemática
da superioridade de algumas formas de vida sobre outras poderá ser
igualmente perspectivada sob o ângulo da complexidade: não é óbvio que o
homem é mais complexo do que uma bactéria? Mas, segundo Darwin, «quem
decidirá se um choco é superior a uma abelha?». Os critérios poderão
passar pela complexidade estrutural ou, em alternativa, pela
versatilidade bioquímica ou genética. Contudo, tal como afirmou Teresa
Avelar (2010, p. 66): «Não há dúvida que o valor máximo de
complexidade aumentou durante a longa história da vida, mas o valor
médio não aumentou significativamente, visto que a grande maioria
dos seres vivos continua simples (…)» e conclui, secundando Darwin, que
«a selecção natural permite mas não garante
inevitavelmente o aumento da complexidade».
Voltando à questão do progresso, o conceito implica: mudanças ao
longo dos tempos; uma direcção ou sentido pré-determinado para o qual
essas alterações contribuem; e uma inequívoca melhoria dos estados mais
recentes em relação aos anteriores. A mudança é suportada por inúmeras
evidências empíricas, desde fósseis ao ADN, mas quanto aos outros dois
aspectos, a controvérsia mantém-se. Tenha-se em atenção que para os
evolucionistas, os processos evolutivos, naturais e cegos, são
suficientes para explicar as características dos organismos vivos, a sua
diversidade e adaptabilidade. A diversidade dos organismos é fruto da
mera combinação de factores como a variação, hereditariedade, selecção e
tempo. O mundo é feito de mudança - e da sorte de possuir as condições
certas no momento certo para vencer na terrível luta pela sobrevivência.
O mais “apto” não é o “melhor”: nenhuma ilação moral ou tendência
permanente decorre da constatação do facto de que aqueles indivíduos
que, num dado momento, estão em posição mais vantajosa sobre os outros
(da sua espécie ou de outra) têm maiores possibilidades de sobreviverem,
de se reproduzirem e de se tornarem mais numerosos. A vantagem
competitiva do belo pavão que agora se exibe e é preferido pelas fêmeas
para a reprodução pode vir a desaparecer se surgirem novos predadores em
que a velocidade de fuga seja mais importante do que a plumagem. Assim,
a vida é melhor entendida como «oportunista» e o resultado de
«engenhocas»: uma espécie bem adaptada num determinado momento pode
deixar de o estar, o que pode levar à sua extinção se as novas condições
se mantiverem; assiste-se a alterações de determinados órgãos
preexistentes para outras funções distintas daquelas que realizavam
primordialmente (a função das penas está ligada ao voo). Assim sendo,
não se vislumbra um plano predeterminado e unívoco: só variações
aleatórias (lotaria genética), combinadas com a actuação da “peneira” da
selecção natural (não aleatória, mas genericamente indeterminada, uma
vez que a adaptação resulta de uma multiplicidade de variáveis ajustadas
a cada caso concreto), multiplicadas ao longo de vastos períodos
temporais. O resultado deste longo processo é, portanto, indeterminado à
partida. O homem actual é um ser “improvável” que poderia nunca ter
existido.
Do anteriormente exposto, infere-se que as bases do
antropocentrismo foram abaladas com a perspectiva darwinista sobre o
mundo e a vida. Não é de estranhar que os ataques dos criacionistas mais
fundamentalistas sejam dirigidos sobretudo a este aspecto em particular:
a retirada da centralidade e do estatuto especial ao ser humano. Mas
existe uma versão secularizada do dogma da superioridade do humano: não
seremos nós os únicos que, aqui e agora, somos capazes de reflectir
sobre nós mesmos e o mundo? A ciência, criada por nós, não nos trouxe a
capacidade de sabermos mais, manipularmos (ainda que apenas em parte) a
vida e transformarmos o mundo? O mundo teria sentido se não estivéssemos
cá para o pensar? Esta última versão da centralidade do fenómeno humano
é a mais difícil de erradicar, dado apontar para a complexidade do
organismo humano e para as suas realizações culturais – especialmente os
avanços nos domínios tecnológico e científico. Mas existe realmente
progresso? Em certo sentido, temos algo que não existia antes, um
cérebro/mente que confere inteligibilidade e permite o domínio de certos
fenómenos. Temos a linguagem, os artefactos e a arte… e inventámos a
moral, a filosofia e a tecnologia. Contudo, julgo que se a ciência
aumenta o poder humano, concomitantemente exibe e amplifica as suas
falhas. Não me parece haver progresso na natureza humana, sobretudo nos
domínios ético e político e, se olharmos em volta, o “verniz
civilizacional” estala com demasiada frequência em conflitos,
atrocidades, subjugações. Sob certas condições, o homem comporta-se como
um organismo patogénico, cujo poder destruidor põe em causa a sua
própria sobrevivência e a do planeta que habita. Por que não encarar
estes aspectos como reveladores da condição humana, resquícios do seu
passado?
Afinal o Homo Sapiens é um ser especial e o auge do processo
evolutivo? Pelo facto de, aqui e agora, nos podermos deleitar com o
nosso lugar no mundo e na vida, julgamo-nos narcisistamente o propósito
e o fim do processo evolutivo. Contudo, tal pode resultar apenas das
limitações do entendimento humano e duma perspectiva egocêntrica
radicada em crenças não fundamentadas. Se o processo evolutivo culminou
no ser humano, então deixou o trabalho inacabado, pois este não é
“perfeito”: defeca, tem varizes, vê pior do que um polvo… Também o saber
humano, como um todo, não é cumulativo nem caminha inexoravelmente em
direcção ao progresso. Assim, o que uma civilização conquistou pode
rapidamente desaparecer (veja-se a destruição da Biblioteca de
Alexandria). Algumas civilizações nascem, desenvolvem-se e entram em
decadência. Outras, talvez melhores e menos beligerantes, não chegam a
impor-se. O azar, a contingência e a extinção fazem parte da história
dos hominídeos e da vida na Terra.
Desçamos do pedestal em que nós mesmos nos colocámos e,
humildemente, compreendamo-nos como parte de um processo em que os
“animais como nós” estão envolvidos. A questão O que é o homem?,
reequacionada à luz da teoria da evolução, mostra-nos como peões no jogo
da vida, elementos efémeros num mundo que continuará sem nós - mesmo
que o encaremos como um absurdo e uma afronta! A luz trazida pela teoria
da evolução para a compreensão do nosso lugar no mundo e na vida não lhe
retira o mistério, a beleza ou o sentido. Julgo que, bem pelo contrário,
nos permite experienciar um sentimento de “re-ligação” ao universo dos
seres vivos e abre novas e profícuas respostas à questão
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