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“As palavras nos atam ao já
vivido. Só quando amadurecem em silêncio restituem-nos a plenitude
prometida”, diz o narrador ainda nas primeiras páginas de Hotéis à beira
da noite (Tessitura Editora – Belo Horizonte, 2010), o mais recente
livro de Per Johns. A afirmação, grosso modo, não deixa de reiterar a
literatura do autor brasileiro, que se desenrola também quase em
silêncio, distante do burburinho, ou mesmo do ruído, espetáculo a que
foi transformado todo tipo de arte. A obra de Johns, certeira, sem
outros objetivos que não o próprio fazer artístico e a discussão da
condição humana, temáticas sempre presentes nos grandes escritores,
marcha sólida, sem precisar dos amparos da cultura de massa, incluído aí
o cinema, modelo intelectual que alguns “pensadores” introduziram como
imprescindível para discutir o mundo a partir do século 20. Grande parte
deles chegou a se interrogar se a literatura ainda valia a pena, se,
solitária, ainda teria capacidade de estabelecer e discutir questões.
Vão espalhafato. A arte das palavras só perdeu terreno na mente incauta
daqueles que se afiguravam positivistas e tecnocêntricos. Hoje,
submersos na assepsia dos chipes e na velocidade dos circuitos, eles se
perguntam: a serviço de que está a razão? Da reflexão ou do incremento
cada vez mais inclemente de uma sociedade de massa voraz e lucrativa, em
que o humano tornou-se apenas um detalhe? Ri-se, enquanto isso, a
literatura, na sua sólida e ao mesmo tempo movediça morada, no seu
silêncio reverberador. Mesmo que não passem os ruídos, mesmo que perdure
o festeiro e sedutor carnaval das imagens, cada vez mais presente e
possível de ser manipulado pelo simples deslizar de dedos sobre o
teclado, sempre pesará mais o lado daqueles que resistiram contra o
irrefletido abandono da primazia das palavras. |
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Lembrando seus livros anteriores, sobretudo Aves de Cassandra e
Cemitérios marinhos às vezes são festivos, não nos surpreende o
personagem principal de Hotéis à beira da noite, alguém que se move
continuamente, alguém sempre a mudar de hotel, hospedando-se primeiro no
antigo Glória para, logo a seguir, embarcar para Zurique, e remar na
canoa de Joyce – que ali viveu e deixou marcas –, chegando até mesmo a
estabelecer diálogo com o autor de Ulisses. O mais famoso de todos os
irlandeses lhe segreda: “Não diga nada. Fale comigo sem falar, essa
gente gosta de mim, mas não gosta de minha verdade. Gosta de quem não
sou.” E toda a narrativa de Hotéis vai jogar com esse duplo em relação
ao personagem principal, alguém que é e não é, alguém que tem uma
verdade que não é a verdade dos outros. Um homem que foge da pele de
quem foi, tendo decretado a própria morte, e que tem no seu encalço
personagens verdadeiros, digamos assim, gente de carne e osso, mas, ao
mesmo tempo, seus fantasmas também estão a persegui-lo.
A viagem pode ser vista como uma
experiência metafórica. O trajeto a ser percorrido apresenta, ao mesmo
tempo, a inviabilidade. Tudo acontece como se o personagem constatasse
ser impossível a existência. Então, é preciso fazer o caminho inverso:
procurar referências no mundo afetivo e, sobretudo, no universo da
literatura, estabelecendo diálogos com as grandes obras e autores. A
arte se apresenta como único lugar em que a viagem é possível, “navegar
é preciso, viver não é preciso” e navega-se nessas águas, às vezes
turvas, como um meio de tentar encontrar o seu próprio eu. A literatura
torna-se a trilha não só da busca a si mesmo, mas também sua razão de
vida.
Coriolano Warming, o narrador
protagonista, vai de hotel em hotel, até chegar à terra de seus
antepassados, na antiga Dinamarca. Viaja já no limiar da existência, e
está o tempo todo em busca de um sentido, embora tenha consciência de
que, para a vida, não há sentido algum. A moradia sempre provisória
revela a precariedade da condição humana, a solidão, enfim. Vez ou
outra, procurado até mesmo por policiais, vive uma espécie de paranóia.
O passaporte falso jamais é descoberto, mas as autoridades insistem em
estar nos seus calcanhares constantemente à procura de uma pessoa que,
na verdade, não é ele. Na lista de nomes, é confundido até mesmo com um
suicida, e, numa tirada kafkiana, retruca: “O senhor diz que tenho que
provar que estou vivo.”
O não lugar, problemática de seus
outros livros, surge de novo de forma ainda mais contundente. Onde quer
que Coriolano esteja, é estrangeiro. Os funcionários dos hotéis onde se
hospeda olham-no com suspeição a ponto de confessar-lhe: “seu olhar é o
de quem procura um pouso e não o encontra neste mundo de Deus, que nunca
olha de frente, só de esguelha, um tanto temeroso, assustadiço.”
Se em Aves de Cassandra o autor
nos oferece um romance de formação, e em Cemitérios uma narrativa da
maturidade, neste Hotéis ele nos apresenta a inviabilidade, o beco sem
saída. Não só em relação a Coriolano Warming, mas a todo ser humano que
se põe a pensar com seriedade a questão existencial. O autor encontra
apenas na arte o único lugar possível para questionar e esquadrinhar
essa condição, em toda plenitude. Talvez Per Johns, na literatura
brasileira, seja o único autor que levou mais a fundo a discussão de O
mundo como vontade e representação, de Schopenhauer.
De intensa densidade poética é a
última parte do livro, denominada: “Pequenas prosas de um breviário”. A
pretexto de procurar a paz, longe da civilização, o personagem se atira
à sua ultima aventura: compra uma palhoça num recanto rústico do litoral
paulista e vai viver entre os caiçaras locais. Na pequena casa, recebe
de um morador, “uma espécie de pai de santo”, um breviário de um artista
que morou na mesma casa e que desapareceu, deixando como vestígio apenas
o caderno de notas. Já que a literatura permite vários artifícios,
neste, Johns vai discorrer, com liberdade maior, sua veia poética e
filosófica: “Desmobilize-se a casa herdada [...]. Mas deixem de fora as
ruínas para que possam rebrotar como ervas de ninguém, levadas pelo
oceano largo da vida...”
E, para terminar, fazendo um
contraponto com o que afirmei no começo deste texto, quando situei a
literatura de Per Johns como irmã do silêncio, demarcadora do duplo e,
por paradoxal que possa parecer, mapeadora do não lugar, poderíamos
ainda perguntar: mas, onde a literatura, em meio ao ruidoso mundo de
hoje? Responderíamos com as palavras do próprio autor, no pequeno
capítulo denominado “Terra Prometida”: “Ela está onde sempre esteve. Em
todos os lugares e em lugar nenhum.” |