REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

“As palavras nos atam ao já vivido. Só quando amadurecem em silêncio restituem-nos a plenitude prometida”, diz o narrador ainda nas primeiras páginas de Hotéis à beira da noite (Tessitura Editora – Belo Horizonte, 2010), o mais recente livro de Per Johns. A afirmação, grosso modo, não deixa de reiterar a literatura do autor brasileiro, que se desenrola também quase em silêncio, distante do burburinho, ou mesmo do ruído, espetáculo a que foi transformado todo tipo de arte. A obra de Johns, certeira, sem outros objetivos que não o próprio fazer artístico e a discussão da condição humana, temáticas sempre presentes nos grandes escritores, marcha sólida, sem precisar dos amparos da cultura de massa, incluído aí o cinema, modelo intelectual que alguns “pensadores” introduziram como imprescindível para discutir o mundo a partir do século 20. Grande parte deles chegou a se interrogar se a literatura ainda valia a pena, se, solitária, ainda teria capacidade de estabelecer e discutir questões. Vão espalhafato. A arte das palavras só perdeu terreno na mente incauta daqueles que se afiguravam positivistas e tecnocêntricos. Hoje, submersos na assepsia dos chipes e na velocidade dos circuitos, eles se perguntam: a serviço de que está a razão? Da reflexão ou do incremento cada vez mais inclemente de uma sociedade de massa voraz e lucrativa, em que o humano tornou-se apenas um detalhe?  Ri-se, enquanto isso, a literatura, na sua sólida e ao mesmo tempo movediça morada, no seu silêncio reverberador. Mesmo que não passem os ruídos, mesmo que perdure o festeiro e sedutor carnaval das imagens, cada vez mais presente e possível de ser manipulado pelo simples deslizar de dedos sobre o teclado, sempre pesará mais o lado daqueles que resistiram contra o irrefletido abandono da primazia das palavras.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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HARON GAMAL

 

Silêncio e plenitude, a trama narrativa de Per Johns 

                                                                  
 

Lembrando seus livros anteriores, sobretudo Aves de Cassandra e Cemitérios marinhos às vezes são festivos, não nos surpreende o personagem principal de Hotéis à beira da noite, alguém que se move continuamente, alguém sempre a mudar de hotel, hospedando-se primeiro no antigo Glória para, logo a seguir, embarcar para Zurique, e remar na canoa de Joyce – que ali viveu e deixou marcas –, chegando até mesmo a estabelecer diálogo com o autor de Ulisses. O mais famoso de todos os irlandeses lhe segreda: “Não diga nada. Fale comigo sem falar, essa gente gosta de mim, mas não gosta de minha verdade. Gosta de quem não sou.” E toda a narrativa de Hotéis vai jogar com esse duplo em relação ao personagem principal, alguém que é e não é, alguém que tem uma verdade que não é a verdade dos outros. Um homem que foge da pele de quem foi, tendo decretado a própria morte, e que tem no seu encalço personagens verdadeiros, digamos assim, gente de carne e osso, mas, ao mesmo tempo, seus fantasmas também estão a persegui-lo.

A viagem pode ser vista como uma experiência metafórica. O trajeto a ser percorrido apresenta, ao mesmo tempo, a inviabilidade. Tudo acontece como se o personagem constatasse ser impossível a existência. Então, é preciso fazer o caminho inverso: procurar referências no mundo afetivo e, sobretudo, no universo da literatura, estabelecendo diálogos com as grandes obras e autores. A arte se apresenta como único lugar em que a viagem é possível, “navegar é preciso, viver não é preciso” e navega-se nessas águas, às vezes turvas, como um meio de tentar encontrar o seu próprio eu. A literatura torna-se a trilha não só da busca a si mesmo, mas também sua razão de vida.

Coriolano Warming, o narrador protagonista, vai de hotel em hotel, até chegar à terra de seus antepassados, na antiga Dinamarca. Viaja já no limiar da existência, e está o tempo todo em busca de um sentido, embora tenha consciência de que, para a vida, não há sentido algum. A moradia sempre provisória revela a precariedade da condição humana, a solidão, enfim. Vez ou outra, procurado até mesmo por policiais, vive uma espécie de paranóia. O passaporte falso jamais é descoberto, mas as autoridades insistem em estar nos seus calcanhares constantemente à procura de uma pessoa que, na verdade, não é ele. Na lista de nomes, é confundido até mesmo com um suicida, e, numa tirada kafkiana, retruca: “O senhor diz que tenho que provar que estou vivo.”

O não lugar, problemática de seus outros livros, surge de novo de forma ainda mais contundente. Onde quer que Coriolano esteja, é estrangeiro. Os funcionários dos hotéis onde se hospeda olham-no com suspeição a ponto de confessar-lhe: “seu olhar é o de quem procura um pouso e não o encontra neste mundo de Deus, que nunca olha de frente, só de esguelha, um tanto temeroso, assustadiço.”

Se em Aves de Cassandra o autor nos oferece um romance de formação, e em Cemitérios uma narrativa da maturidade, neste Hotéis ele nos apresenta a inviabilidade, o beco sem saída. Não só em relação a Coriolano Warming, mas a todo ser humano que se põe a pensar com seriedade a questão existencial. O autor encontra apenas na arte o único lugar possível para questionar e esquadrinhar essa condição, em toda plenitude. Talvez Per Johns, na literatura brasileira, seja o único autor que levou mais a fundo a discussão de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer.

De intensa densidade poética é a última parte do livro, denominada: “Pequenas prosas de um breviário”. A pretexto de procurar a paz, longe da civilização, o personagem se atira à sua ultima aventura: compra uma palhoça num recanto rústico do litoral paulista e vai viver entre os caiçaras locais. Na pequena casa, recebe de um morador, “uma espécie de pai de santo”, um breviário de um artista que morou na mesma casa e que desapareceu, deixando como vestígio apenas o caderno de notas. Já que a literatura permite vários artifícios, neste, Johns vai discorrer, com liberdade maior, sua veia poética e filosófica: “Desmobilize-se a casa herdada [...]. Mas deixem de fora as ruínas para que possam rebrotar como ervas de ninguém, levadas pelo oceano largo da vida...”

E, para terminar, fazendo um contraponto com o que afirmei no começo deste texto, quando situei a literatura de Per Johns como irmã do silêncio, demarcadora do duplo e, por paradoxal que possa parecer, mapeadora do não lugar, poderíamos ainda perguntar: mas, onde a literatura, em meio ao ruidoso mundo de hoje? Responderíamos com as palavras do próprio autor, no pequeno capítulo denominado “Terra Prometida”: “Ela está onde sempre esteve. Em todos os lugares e em lugar nenhum.”

 

 

Haron Gamal (Brasil):
Doutor em literatura brasileira pela UFRJ, autor do volume Magalhães de Azeredo – Série essencial da Academina Brasileira de Letras, professor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé – Fafima, autor do blog Contos e outras histórias. Contato: hjgamal@ig.com.br.

 

 

© Maria Estela Guedes
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