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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 14
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Introdução
O que é espantoso tanto no “Caim” de Saramago quanto na
curta polémica que se lhe se seguiu é que ninguém, pelo menos que se tenha
notado, tenha invocado a genealogia em que o livro claramente se incorpora,
a genealogia gnóstica Cainita. Se se tivesse assinalado este facto
ter-se-iam daí tirado duas consequências: a primeira é que, pese embora o
seu interesse literário, de que falaremos mais à frente, o tema gnóstico e
cainita aí presente tem uma história e, portanto, nem de longe nem de perto
é uma novidade escandalosa; segunda, que Saramago é profundamente religioso,
ainda que num estado de adormecimento e negacionismo psicológico.
O tema do Cainismo gnóstico não começa, na literatura,
com Saramago. Dois dos autores mais notáveis da literatura do século XX,
Hermann Hesse e Jorge Luis Borges (para só citar dos mais importantes
autores gnósticos contemporâneos), trataram, detidamente, o tema de Caim, em
obras literárias que se apresentam como tematizações contemporâneas da gnose
cristã primitiva, através de uma teologia esotérica e heteróclita que se
recusa à unidimensionalidade interpretativa da teologia ortodoxa. |
Editor | Triplov |
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ISSN 2182-147X |
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DIR.
Maria Estela Guedes |
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REVISTA TRIPLOV |
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FRANCISCO TEIXEIRA
Saramago, Cainitas e Outros
Gnósticos – A Iconoclastia como Modalidade do Humano |
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IX Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas»
Centro Cultural Gonçalves Sapinho .
Benedita, 29-30 de Maio de 2010 |
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A ortodoxia cristã pensa o episódio de Caim como o
momento genesíaco de um suposto totalitarismo egolátrico, incapaz, como
diz um teólogo português, de suportar o “face-a-face” com o outro,
ficado em silêncio perante ele, porque “a besta que há em Caim não fala,
mas grita e trucida e come o outro” (Couto, 2005: 266). Ainda outro
teólogo português, na mesma senda, não tem peias na mesma
unidimensionalidade hermenêutica: Caim é o símbolo ou, mais exactamente,
o rosto do mal, “entrando no solipsismo de si mesmo, senhor do bem e do
mal, substituindo-se a Deus. É o “indivíduo e não a pessoa. Cortou com a
relação” (Neves, 2006, I: 92), inaugurando uma mimesis de apropriação
invejosa e violenta, glosando declaradamente René Girard. Mas tudo isto
é óbvio e simples de mais para encerrar verdade suficiente!
Pelo contrário do entendimento teologicamente
correcto da criação da identidade própria e alheia como um simples e
beatífico “face-a-face” relacional, o que a teologia esotérica e
heteróclita do Cainismo e da gnose defende como intepretação do episódio
é algo bem mais complexo, e um pouco mais estrutural, do que essa tese
do assassínio primordial como mal moral absoluto e egolatria identitária,
um segundo pecado original de que o “sinal” de Caim seria a “marca” e a
represa contra a espiral de violência que tal acto inauguraria. |
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Cainistas e Outros Gnósticos |
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As notícias que temos dos cainitas chegaram até nós
por Ireneu de Leão (Adversus Haereses, 31,1 - 1995), Filástrio, Bispo de
Bréscia (Liber de Haeresibus, 2), Hipólito de Roma (Refutatio Omnium
Haeresium V, 16-9) e, principalmente, por Epifânio de Salamina (Panarion
Haeresium, 38).
Por sua vez, as referências explícitas a Caim, e a
sua reformulação identitária, (relativamente à proto-ortodoxia cristã)
enquanto topos teológico, fazendo-o descender directamente dos arcontes
intermédios do Pleroma ou coadjuvantes de Samael/Yaltabaot/Jahvé (o
primeiro arconte), são especialmente abundantes na Biblioteca
gnóstica/hermética de Nag Hammadi. Encontram-se referências a Caim na
“Hipóstase dos Arcontes” e em “Sobre a Origem do Mundo” (evangelhos
afins de um judaísmo esotérico), no “O Evangelho de Filipe” e na
“Exposição Valentiniana” (valentinianos) e no “Apocalipse de Adão” e no
“Apócrifo de João” (marcadamente sethianos onde, mais amplamente, se
incluirá o Cainismo).
Em todos estes textos, Caim assume uma clara
ascendência divina, ainda que, sempre, por via de uma familiaridade com
os arcontes e não, directamente, com o pré-Pai, o Deus gnóstico criador,
anterior a Yaltabaot, mero demiurgo ou intermédio criador, cego face à
sua natureza criada e invejoso da proximidade ontológica do Homem face
ao criador verdadeiro. Ao contrário de Caim, Seth, por exemplo, é, pelos
menos nos textos de Nag Hammadi, e particularmente no “Apocalipse de
Adão” (65), apresentado como provindo de uma nova geração, mais pura e
perfeita, aquela que, exactamente, veio substituir Abel (e Caim). Seth,
ao contrário de Caim (e do próprio Abel), seria filho autêntico de Adão
e Eva e não de Eva e de Yaltabaot, como Abel e Caim, filhos ilegítimos e
impuros, resultado de uma relação entre seres de espécies diferentes.
Sabemos bem, no entanto, como as escrituras gnósticas
são, por um lado, múltiplas e, por outro, incongruentes, seja pela
natureza multitudinária das próprias seitas gnósticas, seja pela
natureza fragmentária do que chegou até nós.
De qualquer modo, não nos chegaram textos directa e
ostensivamente cainistas, no sentido em que fixam certa doutrina ou
organização teológica.
O que conhecemos dos cainitas provêm-nos dos
heresiólogos, particularmente de Ireneu de Lião e de Epifânio de
Salamina.
Em particular, escreve Ireneu:
“Outros dizem que Caim deriva da Potência Suprema
e que Esaú, Coré, os sodomitas e semelhantes eram todos da mesma
raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo criador, nenhum
deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que lhe era
próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exactamente todas estas
coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade,
cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas
todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação,
um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas” (Adversus
Haereses, 31,1).
Como sabemos, o “Evangelho de Judas” veio
integralmente ao mundo contemporâneo em 1978, em Jebel Qarara, no Egipto
Médio, tendo sido recuperado e divulgado em 2000, sob o fogo de grande
divulgação mediática. Mas, como é manifesto, a sua existência era já bem
conhecida no mundo antigo, pelo menos até ao adormecimento da gnose, aí
algures pelo século V ou VI EC.
É certo que o “Evangelho de Judas” nada nos diz,
directamente, do Cainismo e, na verdade, a não ser pelo efeito de uma
eventual lacuna, nem sequer é referenciado. Mas, como assinalam os
estudiosos dos textos gnósticos, a lógica interna do “Evangelho de
Judas” é em tudo congruente com aquilo que dos Cainitas nos diz Ireneu
e, sobretudo, Epifânio (Panarion, 38) e Hipólito (Refutatio Omnium
Haeresium V, 16-9).
Desde logo, numa breve e curiosa referência (que
muito nos será útil mais à frente), Hipólito atribui (lendo a heresia
ofítica) o “sinal” de Caim “à serpente universal … o sábio oráculo de
Eva. Este é o mistério do Éden; este é o rio que flui do Paraíso; este é
o sinal com que foi marcado Caim. Caim é aquele cuja oferenda não foi
aceite pelo Deus deste mundo, quem, em troca, recebeu o sangrento
sacrifico de Abel; pois o dono deste mundo deleita-se com sangue.
Esta serpente é a que, nos últimos dias, no tempo de
Herodes, apareceu debaixo da forma de homem…” (Refutatio Omnium
Haeresium V, 16-9)
A aproximação de Caim à estirpe pneumática e gnóstica
de origem ofítica, com origem na serpente instrutora, é aqui por demais
evidente, realizando-se uma clara inversão daquilo que é a compreensão
proto-ortodoxa da serpente, a desafiadora por antonomásia, e de Caim.
Mas onde mais vastamente se tematiza o Cainismo é em
Epifânio de Salamina (Panarion Haeresium, 38). Vale a pena sintetizar
aqui o conjunto das referências de Epifânio, parafraseando, grosso modo,
a síntese de Piñero e Torralas-Tovar (2006: 68-69) que, adverte-se já,
nem por isso seguem aquilo que percebemos directamente dos Cainitas na
Biblioteca da Nag Hammadi, como, aliás acontece com a referência já
citada de Hipólito.
Assim, escreve-se no Panarion, 38:
Que a seita cainita toma o seu nome do Caim
bíblico;
Que Caim e Abel são de descendência angélica, uma
vez que também o são Adão e Eva, de que são originários, embora Caim
de uma genealogia mais forte e Abel de uma mais fraca;
Que Caim, Esaú, Coré e os sodomitas têm
ascendência angélica e que, portanto, devem ser valorados
positivamente;
Que os Cainitas também se inspiram nestes
personagens;
Que o Demiurgo tentou-lhes fazer mal mas que não
conseguiu, pois eles refugiaram-se no Pleroma;
Que Judas recebeu uma revelação especial;
Que existe um Evangelho de Judas;
Que parte das suas doutrinas provém dos Apóstolo
Paulo, de que se escreveu a “Ascenção”, contendo doutrinas
esotéricas (texto que nunca foi descoberto);
Que os Cainitas se afastam, em tudo, do Criador
(o demiurgo, Yhavé) e que ascenderão até às esferas superiores
através do sacrifício de Cristo, acto que Judas de algum modo
intervém;
Que Cristo sacrifica o corpo de que está
revestido;
Que Judas entregou um Cristo mau para sacrifico;
Que Judas cumpriu um sacrifício divino, por
desígnio divino;
Que Judas é digno dos maiores louvores.
A síntese, imagino, é suficientemente clara quanto ao
que os Cainitas pensam e quanto às chaves interpretativas com que se
aproximam dos textos canónicos, particularmente do Génesis e das várias
Paixões evangélicas. Assim, independentemente das interessantes questões
hermenêuticas que a sua praxis interpretativa levanta, o que vale a pena
assinalar é o lugar central que, na economia do seu pensamento, e da sua
acção, ocupa o gesto da inversão textual, relevante não só, embora
grandemente, pelo próprio gesto, mas, sobretudo, pelo que esse gesto
traz consigo de uma antropologia, um soteriologia e ontologia novas,
embora, como não podia deixar de ser, radicadas no pensamento
circulante, mesmo que subterraneamente.
Como para a maioria dos gnósticos, o que a descrição
cainita de Ireneu, Hipifánio e Hipólito nos mostra é, antes de tudo o
mais, uma recusa do javheismo, a partir de uma narrativa mitológica
completamente diferente daquela que se dá no Génesis judaico mas,
também, uma recusa da Paixão como acontecimento histórico, exactamente
porque a história não é, para os gnósticos, nada mais nada menos que a
própria condição de aprisionamento javheista, configurada pelo arconte
demiúrgico.
Em particular, a narrativa gnóstica do génesis
intelectualiza-se, complexiza-se e aprofunda-se dramaticamente face à
descrição linear que dos episódios é realizada pela ortodoxia. Os
conflitos genesíacos são lidos não como simples conflitos familiares,
mas como autênticos dramas políticos e cosmológicos, em que os papéis e
estatutos dos contendores principais (Jahavé e a Serpente, Sophia/Sabedoria,
a intercessora do pré-Pai) estão em instável posição e em que o prémio
do vencedor é a própria alma do humano ou, se quisermos ir mais longe, a
alma de cada um dos próprios contendores principais. Visando uma via de
inscrição experiencial mais profunda que o simples reconhecimento
histórico e cosmológico, a posição hermenêutica/gnóstica no Génesis
exige ao intérprete uma relação com o texto que vise uma transformação
interior mais que um simples reconhecimento nomológico, que, vindo do
exterior, sempre será visto como uma ameaça à sua integridade, na
verdade a ameaça por antonomasia à sua integridade pneumática.
O mito gnóstico (numa apresentação genérica e
passando por cima das imensas variantes e pormenores) coloca no início
(na verdade antes de todo e qualquer início concebível, num topos sem
tempo e lugar) um pré-Pai, unidade e fonte de toda a realidade. Por um
processo misterioso, este pré-Pai assimetriza-se e dá à luz uma tríade
que, por razões várias, se vai dividindo em sucessivas multiplicações de
si mesma. Conforme os sistemas em presença, estas entidades, resultado
das sucessivas divisões e subdivisões do pré-Pai (os eons), podem ser
trinta e três ou de número virtualmente infinito. O conjunto destas
entidades constitui o Pleroma, o universo do divino propriamente dito.
Uma das questões mais misteriosas é, então, a de saber se o pré-Pai é
verdadeiramente uno ou múltiplo ou se, até, é unitas multiplex, para
utilizar a linguagem de Giordano Bruno, chave notavelmente anacrónica
para a interpretação esotérica da gnose cristã primitiva de aqui
falamos. A questão da Unidade ou da Multiplicidade do pré-Pai é central
na compreensão da gnose cristã primitiva, já que ela irá mais facilmente
autorizar uma compreensão do divino em termos de uma Unidade monológica
ou, pelo contrário, em termos de uma divisão “originante” (nos termos da
qual no princípio estaria não a Unidade - o Um - mas a diferença – o
Dois -, ou a Unidade como Diferença – o Um como Dois), fonte de toda a
divisão posterior, permitindo à gnose lidar com o problema do Mal em
termos da natureza do próprio divino.
Então, por outra razão misteriosa, algures no Pleroma
o estado de Graça e de plenitude que aí se vivia vai ser interrompido
desde um gesto de Sophia/Sabedoria, que quis criar sem ter em conta a
sua natureza conexa com a totalidade do Pleroma, particularmente com o
pré-Pai. A criação de Sophia foi a de algo disforme e assutador:
“Logo que viu a obra desejada, esta transmutou-se
na figura de um estranho dragão com rosto de leão, de olhos
resplandecentes como relâmpagos. Lançou-o para longe dela e daquele
lugar, a fim de que nenhum dos imortais o visse, porque o tinha
criado em ignorância. Envolveu-o numa nuvem luminosa e colocou-o num
trono no meio de uma nuvem para que ninguém o visse excepto o
Espírito Santo, que é chamado a ‘mãe dos viventes’. E deu-lhe o nome
de Yaltabaot” (Apócrifo de João, 10, 6-12).
Yaltabaot, está bom de ver, é Javhé, e tudo que dele
resultou só poderá ser visto como impregnado da sua ignorância,
arrogância e maldade, com excepção do Homem, resultado da acção do
pré-Pai, via Yaltabaot, mantendo-o embora na ignorância da natureza da
sua criação. Esta acção do pré-Pai visou responder positivamente ao
arrependimento e pranto de Sophia/Sabedoria que, por sua vez, encarnou
na espiritual/mensageira/serpente para insuflar o espírito no Homem, a
quem, entretanto, arranjou uma auxiliar, Eva, ela própria uma emanação
da sua intelecção e que se constituiu como sua companheira (nalgumas
versões entretanto violada por Yaltabaot, dando origem a Abel e Caim).
Uma das passagens mais impressionantes e belas deste
mito é o poema em que o escritor do “Apócrifo de João” descreve o Jardim
do Éden como uma prisão venenosa, em que
“O seu alimento é amargo,
A sua beleza é perversa,
O seu alimento é enganoso,
As suas árvores são a impiedade,
O seu fruto é um veneno mortal,
A sua promessa é a morte” (21, 14-19).
A inversão, está, enfim, completa. O Paraíso é campo
de morte e Javhé o seu jardineiro. A expulsão do paraíso constitui não
um acto da vontade de Javhé mas o resultado de uma trama de Sophia/Sabedoria,
visando salvar a geração Humana da prisão dourada de Yaltabaot. Na
verdade, Adão e Eva não foram expulsos do paraíso. O que ocorreu foi uma
fuga, planeada e executada por intersecção do pré-Pai e do
arrependimento de Sophia/Sabedoria.
Daqui até ao mais completo antinomianismo vai apenas
um passo.
A salvação só se alcançará, então, através da negação
deste mundo e dos seus condicionamentos sociais, antropológicos e
cosmológicos, resultado da lei mosaica e Javehista, até à completa
reintegração pleromática, que não constitui mais, afinal, que um
regresso do sopro divino a si mesmo, numa curiosa inversão salvífica, em
que não é o criador que salva a criatura mas a criatura, o homem
decaído, que salva o criador, ao mover-se no sentido da sua plena
reintegração em si mesmo.
Para os gnósticos, então, as leis deste mundo não se
lhe aplicam a não ser por decaimento ou fraqueza e o pecado, a infracção
dessas leis, não é coisa que se lhe pegue, uma vez que a sua natureza
não é deste mundo, já que este mundo é o mundo do arconte Yaltabaot, o
Javehista cego e arrogante que se diz o Deus único mas que não passa de
um aborto da divindade.
Não será difícil entender, agora, como faz sentido
que os gnósticos elejam como seus heróis exactamente aqueles que são os
vilões da ordem Javehista, já que são esses que representam, de modo
especialmente conspícuo, o combate antinomianista e anti-Javehista.
Ora, de todos estes vilões, Caim não é, com certeza,
dos mais pequenos e, portanto, daí a sua relevância teológica.
Mas a figura, ou o topos, da inversão, se assenta em
si mesma como um gesto destrutivo e iconoclasta, nem por isso põe de
lado a necessidade de subtis argumentações teólogicas, que exploram até
ao limite interpretativo as margens, os não-ditos e as ambiguidades
bíblicas mais subtis, numa reescrita infinita da Palavra de Deus. E essa
reescrita infinita (que, sem dúvida, inspirou a Cabala judaica)
configura, certamente uma das mais fortes relativizações e
desconstruções do divino Javehista, desde logo a partir da assumpção de
um certo tipo de experiência de si e do mundo só acessível a um conjunto
especial de eleitos, os pneumáticos, ontologicamente e existencialmente
preparados e predispostos para uma via esotérica e secreta da
compreensão da Palavra, de que mesmo os textos bíblicos canónicos não
deixam de dar testemunho.
Ora, esta experiência do “estranhamento” - a
fenomenologia existencial do próprio que autoriza e exige aquele giro
hermenêutico tipicamente gnóstico - constitui uma “descoberta” e
tematização exemplarmente novas, especificamente gnósticas, emergindo no
início da EC como a experiência de que a nossa alma não é deste mundo e
que nas maiores profundidades de nós mesmos existe um irredutível
absoluto que quer retornar a si mesmo e que só não o faz por força do
enclausuramento cosmológico.
Por sua vez, a relevância desta experiência de
estranhamento e de nihilização da existência é que ela é a condição de
possibilidade da autêntica experiência religiosa de si, de
re-conhecimento ou re-ligação ao seu si mesmo mais profundo, na verdade
a única via necessária à autêntica experiência religiosa.
Mais explicitamente, este processo experiencial de
estranhamento percorre um caminho de terror, angústia, medo, crime,
despertar e lucidez, que o notável Evangelho da Verdade descreve com
impressionante beleza e fulgor:
“Uma vez que existia terror, perturbação,
instabilidade, vacilação e discórdia, eram muitas as ilusões e as
vácuas ficções que os ocupavam, como se estivessem submersos no
sonho e convivessem com sonhos inquietantes. Fugiam para um qualquer
lugar, ou davam a volta extenuados, depois de perseguir outros, ou
agrediam, ou eram agredidos, ou caiam de grandes alturas, ou voavam
pelo ar, ainda que não possuíssem asas. Por vezes, acontece-lhes
como se alguém os fosse matar, ainda que ninguém os perseguisse, ou,
então, como se eles próprios matassem os seus vizinhos, porque se
encontravam manchados de sangue. Uma vez que os que passam por estas
coisas acordam, nada vêem, ainda que estivessem no meio de todas
estas confusões, uma vez que elas não existem. Semelhante é o motivo
dos que rechaçaram a ignorância para longe de si, da mesma maneira
que não têm em nenhuma consideração o sonho, como também não
consideram as suas trinta acções como algo de sólido, mas
abandonam-nas como um sonho tido durante a noite. Apreciam o
conhecimento do Pai como o amanhecer. Cada um deles actuou desta
maneira como quando estavam adormecidos enquanto eram ignorantes. E
este é o modo como chegaram ao conhecimento, como se despertassem.
Feliz será aquele que chegue a dar a volta e acorde! E
bem-aventurado é o que abriu os olhos do cego. E o Espírito correu
atrás dele apressando-se a acordá-lo. Tendo estendido a mão ao que
jazia sobre a terra, firmou-o sobre os seus pés, porque ainda não se
tinha levantado” (Ev.V, 29, 30).
Entretanto, para quem pense que a experiência do
estranhamento como via de acesso à experiência religiosa esotérica mais
profunda e autêntica pode ter tido um lugar específico, temporalmente
definido, mas entretanto ultrapassada, Peter Sloterdijk, num livro
luminoso intitulado “O Estranhamento do Mundo”, dá voz a essa mesma
experiência do estranhamento e da religiosidade através de palavras tão
próximas do evangelho valentiniano que não deixa de nos surpreender,
atribuindo-lhe, mesmo, o estatuto de caminho único de acesso à
religiosidade no mundo contemporâneo:
“Na medida em que ser homem na modernidade
significa, primeiramente, automediação e autoconexão à rede, os bons
velhos conceitos metafísicos Deus e Alma apenas podem ser pensados
no modo de teorias das catástrofes; como desconexão à rede,
interrupção da mediação, choque, pausa. Tilich, o teólogo
fronteiriço, expôs isto inequivocamente através das suas metáforas
divinas e expressionistas; segundo ele, Deus já só é possível no
cosmos auto-centrado como um invasor furtivo; apenas como infractor
e perturbador é que ele se pode manifestar como a diferença a
respeito de tudo o que se comunica e conecta com a rede. […]
Analogamente, certos psicólogos do século XX situaram o local
ontológico da alma nas interrupções – nos sintomas neuróticos, nas
convulsões, nas síncopes. Na era da conectibilidade, as chances da
‘alma’ residem nas catástrofes nervosas” (Sloterdijk, 2008:
69).
Repare-se, mais uma vez, como a hipótese de
Sloterdijk, levantada para os actuais tempos limite, se articula quase
perfeitamente com a catástrofe nervosa do Evangelho gnóstico do século
III EC, que progride notavelmente da catástrofe para o amanhecer, da
experiência do estranhamento para a experiência mística do divino:
“Fugiam … extenuados … perseguir … agrediam …
agredidos … caiam … voavam … matar … matassem … manchados de sangue
… acordam … confusões … não existem … rechaçaram a ignorância … não
têm em nenhuma consideração o sonho … não consideram as suas trinta
acções como algo de sólido … abandonam-nas como um sonho tido
durante … Apreciam o conhecimento do Pai como o amanhecer.”
Voltemos, então, ao Cainismo.
É esta experiência de estranhamento que conduz à
necessidade de tornar Caim um herói, de acordar do sonho através de um
processo dissolução da “aliança” tornada aprisionamento nomotético.
Assim sendo, não será rigorosamente nada de estranhar
que a experiência gnóstica de estranhamento tenha em vários autores e
pensadores contemporâneos as mais variadas tematizações, de que Peter
Sloterdijk, na Filosofia, é talvez, o caso mais impressionantes.
Mas é na literatura que a Gnose mais se expressa e,
assim, o “Caim”, de Saramago, é mais uma expressão dessa expressão da
gnose eterna, que se revela, desde há milénios, na experiência mais ou
menos subterrânea da Humanidade. |
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Herman Hesse e Jorge Luis Borges |
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Veja-se, então, e finalmente, alternativamente à
unidimensionalidade da leitura ortodoxa do episódio bíblico de Caim,
Hermann Hesse no seu dramático “Demian”.
Acossado por Kromer, “colega” de escola, por meio de
uma chantagem que envolve uma mentira inocente, Sinclair é salvo por
Demian, um estranho jovem da sua turma, que lhe conta uma história
alternativa de Caim.
Nesta especulação teológica, Demian defende a
possibilidade de o “sinal” de Caim ter sido não o resultado de um crime
mas o princípio do crime, já que o “sinal” não corresponderia senão a
uma marca psicológica, ou espiritual, idiossincrática, que lhe
acarretaria a desconfiança e o medo:
“Havia um homem com alguma coisa de peculiar no
rosto, que metia medo aos outros. Não ousavam tocar-lhe, porque ele
e os seus filhos se lhe impunham. É bem provável (ou talvez seja o
mais certo) que não se tratasse, de facto, de um sinal na fronte, à
laia de um selo postal: na vida real, tais coisas não costumam
suceder de maneira tão rude. É muito mais verosímil que tivesse algo
de assustador, mas pouco perceptível. Talvez consistisse num pouco
mais de argúcia e perspicácia no olhar, coisa a que os outros não
estavam habituados. Um tal homem tinha poder, tornava-se temido,
possuía um ‘sinal’” (Hesse, 2003: 30).
O medo desta estirpe estranha teria imposto,
finalmente, uma vingança alheia, através da invenção de uma lenda
terrífica, na verdade uma maldição, que explicaria a sua distinção
ontológica e que seria o preço histórico a pagar por essa diferença:
“Tornava-se francamente desagradável o facto de haver por ali uma casta
de gente intemerata e terrível. Apodaram, pois, aquela raça com uma
alcunha e uma lenda, para se vingarem dela e justificarem um pouco os
seus temores…” (Ibid.).
Mas, e o assassínio? Demian/Hesse não foge à questão.
Admite o assassínio mas relativiza-o, inserindo-o na lógica das lutas de
dominação próprias de raças diferenciadas, admitindo, mesmo, a hipótese
de o assassínio ter sido heróico e de ter constituído uma vitória
distintiva de uma raça sobre a outra, de uma experiência sobre a outra,
da religiosidade sobre a superstição, do esotérico sobre o exotérico,
tendo-se o sinal transformado em símbolo de um mal apenas como
instrumento de auto-justificação da cobardia dos derrotados.
Esta relativização do assassínio, particularmente no
TaNaKh, não nos deve chocar. Primeiro, Caim e Abel não tinham sido
proibidos de matar. Como refere Jack Miles no seu perturbador “Deus, uma
Biografia”,
“Quando, após o homicídio, o Senhor diz a Caim
‘ouço o sangue do teu irmão, do solo, clamar para mim!’, é como,
nesse preciso momento, Ele tivesse descoberto que o homicídio era
algo que merece condenação. A relação entre ambos é tacteante e
hesitante. É possível que a metáfora – ‘o sangue do teu irmão, do
solo, clamar para mim!? – exprima agitação mais que uma condenação
moral. Algo está errado, mas será que o Senhor já sabe exactamente o
quê? O Senhor age e, depois, infere as Suas próprias intenções a
partir daquilo que faz” (1997: 46-47).
A interpretação do “assassínio” de Caim em termos de
um dualismo meramente moral (como o faz a ortodoxia cristã) manifesta,
claramente, um anacronismo hermenêutico, porquanto faz retroagir sobre o
episódio de Caim a leitura do NT, particularmente de Lucas (11, 49-51),
provavelmente o mais recente dos evangelhos sinópticos (80-130 EC). O
anacronismo da leitura de Lucas (11, 49-51) do episódio de Caim é mais
que evidente e serve os fins puramente revisionistas do TaNaKh,
empreendidos pela nova ortodoxia proto-católica.
Assim, tal como em Genésis, 3-1, é licito ler o
“pecado” de Caim como pecado da desobediência e não do assassínio, ou do
assassínio como desobediência, já que o que confronta e desagrada a
Yahvé não é a infracção de normas morais, que ainda não tinham sido
estabelecidas, mas o questionamento do seu poder e autoridade sobre a
vida e sobre a morte, realidade que emerge, pelo gesto de Caim, como
algo completamente novo, e que o próprio Yahvé ainda não saboreara.
“Algo está errado, mas será que o Senhor já sabe
exactamente o quê?”, pergunta Jack Miles. Ora, o que o Senhor não sabe é
o fenómeno da morte e da liberdade ontológica, essas ameaças a todo o
sentido e, portanto, à Sua própria identidade e, claro está, à
identidade da sua criação e das suas criaturas.
Não há que espantar com esta aludida insensibilidade
moral do Yahvé. A ideia de que Yahvé é amor e que, portanto, olharia
Abel com um olhar mais amoroso, como acontece com Jesus relativamente
aos mais fracos, é um dos maiores feitos do revisionismo
neotestamentário, ao ponto de levar Harold Bloom a considerar “que tem
pouco sentido dizer ‘Yahvé é amor’, ou que devemos amar Yahvé. Ele não
é, nem nunca foi, nem será amor” (2006:171), já que “O amor de Yahvé
pelo povo que escolheu tem a ver com a Aliança: é, portanto, condicional
e revogável” (ibid:169), o que aliás acontece ostensivamente com o
Dilúvio, acto divino de destruição gratuita e irada de Yahvé (de acordo
com Génesis 6, 5-8), na pior das hipóteses e, na melhor, acto de
destruição calculista e interesseira, tendo em vista uma nova Aliança
(de acordo com Génesis 6, 11-22) e que, claro, os gnósticos atribuem,
como não podia deixar de ser, à personalidade perturbada e maléfica de
Yahvé.
Assim, utilizar como chave hermenêutica o amor à vida
e ao próximo e a estigmatização da violência para entrar no/compreender
o episódio de Caim e, particularmente, a acção de Yahvé sobre Caim, é
fazer retroagir sobre um acontecimento literário do século IX AEC uma
leitura do século II da EC! Tal anacronismo é o resultado do fortíssimo
revisionismo neotestamentário, alcançado, aliás com notável sucesso, com
a crença irreflexa da existência de uma suposta cultura judaico/cristã:
“O que dá unidade ao Novo testamento - diz Harold Bloom – é a sua
postura revisionista da Bíblia hebraica. E desse revisionismo surge um
considerável esplendor, sintamo-nos ou não confortáveis com isso”
(ibid:121).
Revisionismo à parte, a criação da identidade própria
e a compreensão da identidade alheia como um simples e beato
despojamento de si e colocação no lugar de outro (a acção a que Caim se
teria recusado e, pior que isso, invertido), não resiste à análise
histórica, religiosa, psicológica e, até, biológica. O desafio e a
infracção, a corrupção dos limites e o pecado, sempre foram os
principais instrumentos da auto-identificação, desde logo porque é
através da subjectivação e internalização interpretativa que o mundo
acontece (ainda que num horizonte comunitário, mas abstracto e virtual
de sentido), mas também porque é a capacidade de dar sentido a partir do
respectivo horizonte de vida, desejo e cultura aquilo que permite
compreender o outro. Ora, desde sempre, e de modo biologicamente
impregnado (Maturana e Varela, 1990), a capacidade e o desejo de
aumentar os limites interpretativos e psicológicos se fez através do
desafio das normas, cosmológicas, sociais e religiosas[1].
A ideia de que a construção identitária se faz através de um processo de
circularidade eu-outro, pacífico e sem atrito, obnubila o facto de a
construção psicológica e cultural necessitar da paralogia, do erro, da
ficção, do lance e da gestalt argumentativa ou retórica, e, até, da
mentira vital, para poder ocorrer, já que o “diálogo” cultural sempre
assenta num inter-dito, num não-dito e num im-preciso que nenhumas boas
intenções poderão superar. Pelo contrário, a ideia de que é possível
construir a identidade própria, e alheia, através de uma
auto-transparência cultural, semântica e, claro, moral, beatificamente
circulatórias eu-outro, não pode senão conduzir ao logro, ao
totalitarismo e, mais cedo ou mais tarde, à mais terrível
violência.
Mas voltemos, rapidamente, a Hess/Damian/Sinclair. O
que aqui se joga é claramente a assumpção do episódio bíblico como
paradigma de um conflito entre uma ordem cósmica e identitária definida
por externalismos autoritários e condicionadores e uma ordem cósmica e
identitária em que é o domínio de si e o desafio das suas margens e
limites, com todas as consequências inevitáveis, aquilo que justifica a
existência. Sim, em Caim há um gosto pelo desafio. Mais exactamente,
talvez se devesse dizer que há em Caim uma obrigação do desafio do Pai,
pela intuição de uma paternidade mais ampla que se joga na
indeterminação de toda a identidade, de que a morte é o mais lúcido e
conspícuo indicador. O Pai é, para Caim, tanto um configurador de ordens
e limites como uma condição de possibilidade da sua superação e, assim,
uma oportunidade do crime enquanto superação de toda a placidez e
inocência, até à erupção do mais puro nada de si, que é o caminho mais
directo e santo para a recuperação integral de si mesmo. E não terá sido
isso, afinal, o que o mesmo Yahvé terá feito com o Dilúvio?
Compreende-se bem que, assim, sobre o efeito das
palavras de Damian, reverbere em Sinclair a possibilidade de ser um
escolhido, ele próprio transformado em Caim e, portanto, se tenha
convencido que o seu “estigma não era vergonha alguma, mas sim uma
distinção; a minha maldade e a desgraça elevavam-me acima do meu pai e
dos bons e dos piedosos” (Hesse, 2003: 32), numa quase decalcada
assumpção do sentido da passagem de Hipólito (Refutatio Omnium Haeresium
V, 16-9) segundo a qual o “sinal” de Caim é o “sinal” da “serpente
universal … o sábio oráculo de Eva. Este é o mistério do Éden; este é o
rio que flui do Paraíso; este é o sinal com que foi marcado Caim”.
De qualquer modo, a maldição lançada por Yahvé sobre
Caim é ela mesma expressão e indício claro da natureza
onto-antropológica do episódio (bem longe de qualquer referência moral),
ao aludir à terra de Nod, aonde caberia a Caim morar, numa glosa de nad,
a expressão hebraica para errante. A terra inexistente de Nad, a terra
da errância, é o castigo ou a maldição principal de Caim. Mas, como
acontece com a nuclear experiência gnóstica de estranhamento, o castigo
de Caim é a sua salvação, porquanto a errância é aquilo que convém à
indeterminação onto-antropo-cosmológica do seu ser, assim transformado
em puro devir e, portanto, em pura liberdade de toda a determinação
paterna (mais uma vez, aquilo que para certa teologia é castigo - a
errância de Caim - para a leitura gnóstica e esotérica do episódio não é
mais que o resultado agónico e, por isso, verdadeiramente, humano, do
acontecimento dramático original).
Isto mesmo decorre de modo transparente das seguintes
palavras do narrador Sinclair, explicando a sua relação com o círculo de
Demian/Caim e de D. Eva, a sua mãe:
“Nós, os que tínhamos o sinal, com razão seríamos
considerados, pelo mundo, como estranhos, sim, como loucos e
perigosos. Estávamos acordados ou e vias de sair do torpor, e os
nossos esforços orientavam-se para um ficar cada vez mais despertos,
enquanto que os anseios e a procura de alegria dos demais eram
conducentes a, sempre mais fortemente, ligar ao rebanho as suas
opiniões, ideias e obrigações, as suas vidas e felicidade. Também
ali havia esforço, bem como força e grandeza; contudo, enquanto que,
segundo a nossa concepção, nós, os assinalados, representávamos a
vontade da natureza em ordem ao novo, ao individual e ao provir, os
outros viviam numa vontade de imobilismo. Para eles, a humanidade, a
qual estremeciam tanto quanto nós, era algo de inacabado,
necessitando de ser preservado e protegido. Ao contrário, pela nossa
visão, ela encontrava-se num lugar longínquo, em direcção ao qual
todos caminhávamos; a sua imagem não era conhecida de ninguém e as
suas leis não haviam sido gravadas em lugar nenhum” (Hesse, 2003:
135).
O “sinal” de Caim, um dos mais controvertidos enigmas
bíblicos, só muito simplisticamente pode ser pensado na perspectiva
mágica de que constitui uma espécie de barragem à sucessão da violência
mimética. No entanto, esta leitura, para além de unidimensional, não
resiste à própria leitura bíblica, já que a violência não deixa de
irromper na história continuamente, até à purificação/vingança
diluviana, que constituiria, afinal, o fracasso de maldição Yahveista
lançada sobre Caim[2].
O sinal de Caim enquanto amuleto mágico não explica,
então, a sua natureza e, finalmente, a explicação de Hesse/Demian parece
ser a mais razoável porquanto dá sentido e assinala uma experiência
única em Caim, a experiência da morte, com o seu cortejo de
consequências, desde logo e primacialmente sobre a identidade do próprio
Caim, dada pela ideia da errância, e que até então não tinha sido
experimentada. O “sinal” de Caim é, então, o sinal de uma distinção
experiencial, de uma experiência de si mesmo e do humano errante e em
permanente devir, trágica e ou agónica, que se inaugura com o seu acto
fratricida e que nem mesmo na desobediência do Éden tinha sido
experimentada.
Indo agora a Jorge Luis Borges, comecemos por
apresentar aqueles que são alguns dos seus versos envolvendo
directamente Caim, numa leitura que clama por um dimensão de análise
mais ampla que a do dualismo moral e da magia protectora.
Escreve Borges, em “Génesis, IV: 8”:
“Foi no primeiro deserto.
Dois braços lançaram uma grande pedra.
Não houve um grito. Ouve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se fui Abel ou Caim.”
(Borges, 1998, III: 93).
O que choca a teologia ortodoxa e convencional nestes
versos singelos de Borges é, desde logo, a indistinção entre “vítima” e
“algoz”, através de uma espécie, uma vez mais, de relativismo moral que,
numa primeira análise, bem poderá chocar as consciências bem formadas. A
não ser, claro, que aquilo que aqui esteja em causa não seja um problema
de teologia moral mas, mais profundamente, de teologia
onto-antropológica, em que o que se joga e se trata é a força de erupção
de uma primeira experiência, a experiência da morte e da identidade que
aí se dissolve, e que une Abel e Caim: a nadificação da morte e a
errância ou indeterminação de si.
No entanto, em Borges a heterodoxia está sempre um
passo à frente da realidade e, noutro poema, titulado “Ele”, ocorre já
não só a mútua absorção de Abel e Caim numa única experiência de devir
mas, também, a absorção de Caim e do próprio Yahvé numa única deidade ou
experiência de totalidade.
Escreve Borges:
“Nos Olhos da tua carne é que reluz
O insuportável sol, e ela contacta
Com pó disperso ou com rocha compacta;
É o amarelo, o negro, ele é a luz.
Ele vê-os. Com os seus olhos inquietos
Contempla-te e são olhos que um reflexo
Indagam, como os olhos de um espelho,
As hidras negras e os tigres vermelhos.
Não lhe basta criar. É cada uma
Das criaturas do Seu estranho mundo:
As porfiadas raízes do profundo
Cedro e também as mutações da Lua.
Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno
Sabe o sabor do fogo do inferno”
(Borges, 1998, II: 276).
A ideia de que Caim sofre e realiza uma experiência
de morte e devir que transforma a sua identidade e que é, afinal, uma
experiência do próprio Yahvé na sua construção auto-biográfica, que é
“cada uma Das criaturas do Seu estranho mundo”, dá uma nova dimensão, já
não simplesmente moralística, ao episódio e ao seu protagonista, e,
claro, tão ou mais importante, obriga-nos a uma nova concepção de Deus e
das suas qualidades, já que, pelos vistos, “o Eterno [lhe] Sabe o sabor
do fogo do inferno”, numa estranha mistura de bem e mal que não
suporíamos característica de Deus Pai.
Também Borges, com estes e outros textos Cainitas, dá
voz à experiência gnóstica e a uma concepção da experiência religiosa, e
da própria identidade do divino, que supera e se distingue radicalmente
do jahaveismo proto-cristão, caminhando para uma indistinção
Humano-divino ou, alternativamente, para uma caracterização de certa
experiência, especificamente humana e especificamente gnóstica, em que o
humano se faz verdadeiramente Humano … ou verdadeiramente Divino.
Ora, essa experiência é, claramente, aquela que está
presente em Abraxas, a divindade gnóstica que Sinclair/Hesse descobre
como chave hermenêutica de si mesmo:
“Ele é Deus e Satanás: abarca em si próprio tanto
o mundo límpido como obscuro. Abraxas não tem nada a objectar a
qualquer dos seus pensamentos ou sonhos. Ele abandoná-lo-á, porém,
se alguma vez se tornar irrepreensível e normal; repudiá-lo-á e
procurará outra cadeira onde cozinhe os seus pensamentos” (Hesse,
200: 104).
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Saramago |
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Em Saramago, tal como nos dois autores anteriores, e
ao longo de todo o seu “Caim”, a figura do desafio é sua figura mais
marcante[3]. Saramago
afadiga-se a desconstruir as figuras de autoridade bíblica e a elevar,
como em quase todos os seus textos principais, as figuras femininas, no
caso Eva.
É Eva que quer, logo no início do texto, pedir
explicações ao Senhor pela sua expulsão do Éden. É Eva que se sente
surpreendida com a sua própria coragem, pesando que “era como se dentro
de si habitasse uma outra mulher, com nula dependência do senhor ou de
um esposo por ele designado” (p.26), tal como ocorre na “Hipóstase dos
Arcontes”, com a “espiritual” a “penetrar” na serpente, a instrutora,
auxiliando Eva na emancipação face a Yahvé, exponenciando, desde o
início do seu texto, uma dimensão de interioridade versus a dimensão de
exterioridade, constituída esta última pela ordem e pelos mandamentos de
Yahvé.
A luta entre Caim e Yahvé, ou entre a interioridade e
a exterioridade, bem como o elogio da rebelião e da heresia também são
claramente marcadas, no diálogo que Yahvé se diz
“soberano de todas as coisas, E de todos os seres,
dirás, mas não de mim nem da minha liberdade […] esse discurso é
sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus,
todos os dias diria Abençoados sejam os que escolhem a sedição porque
deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será” (pp. 37-38).
O elogio do sacrilégio, da heresia e da sedição são
temas gnósticos e Cainitas por excelência, revelando o seu radical
antinomianismo e, claro, estão na base do texto de Saramago, tenha ele
ou não consciência desta proximidade topológica estrutural.
Mas a marca mais forte do desafio como marca
topológica de Saramago é a que se manifesta no diálogo entre Yahvé e
Caim, em que este assume o seu rancor por Yahvé, dizendo-lhe que matou
Abel por não o poder matar a Ele (p. 38), numa manifestação de notório
anti-jahveismo, de raiz claramente gnóstica, como tivemos oportunidade
de ver.
Por outro lado, também em Saramago, na sua escrita
singularmente lacónica e fugidia, o crime de Caim parece ser mais o
pretexto para o castigo da errância que um mal em si mesmo, e desde logo
porque Yahvé assume parte das responsabilidades da morte de Abel: “A
minha porção de culpa não absorve a tua, terás o teu castigo, Qual,
Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim qualquer pessoa me
poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará
mal” (p. 39).
De qualquer modo, do que o Senhor não protege Caim é
da sua relação com Lilith, que, em certas interpretações cabalísticas e
em certo folclore hebraico corresponde ora à primeira mulher de Adão,
anterior a Eva (e ao demónio da concupiscência), e que se rebelou contra
o seu poder masculino, ora à instrutora gnóstica que convenceu Eva a
desobedecer a Yahvé. Saramago inventa-se a comerciar sexualmente com um
demónio a quem não faz diferença que o protagonista se apresente com o
seu próprio nome ou com o nome da sua vítima, numa outra similar a
aproximação à indistinção operada por Jorge Luís Borges, visando
assinalar muito mais a experiencia da morte (e da redenção?) de que o
assassínio naquilo que liga Caim, Abel e Yahvé.
Por outro lado, é Caim quem se faz instrumento de
Yahvé na salvação de Isaac, substituindo o anjo do Senhor, que se
“atrasou”. O episódio constitui, bem entendido, uma diatribe irónica de
Saramago contra o Jahveismo, e corresponde, afinal, ao desejo de
assinalar a suposta barbaridade, e “incompetência”, do Deus hebraico,
mesmo perante a enormidade das suas exigências cosmológicas.
O episódio da morte em Sodoma e Gomorra (pp.101-102)
e a crítica de Saramago à morte dos inocentes também é, por sua vez,
marcadamente gnóstica. Como vimos a propósito do Panarion, 38, os
sodomitas são outros dos heróis gnósticos e o seu elogio, por parte de
Saramago, vai directamente à defesa iconoclasta dos anti-heróis bíblicos
realizada pelos Cainitas e pelos gnósticos em geral.
Por último, Caim assassina Noé, o instrumento de deus
para o seu revisionismo criador, exactamente por não poder matar deus.
Não o podendo matar, pretende exterminar a sua obra e obrigá-lo a
assumir a consequência dos seus actos terríficos e vingativos.
Por fim, Caim fica só, condenado por deus à morte,
exactamente como no início, mantendo o desafio e a altivez, fazendo
lembrar Prometeu, de Ésquilo, caracterizado pelo Coro como o que
“És ousado
E não cedes aos reveses amargos.
Tens a língua solta de mais”.
E soltando a língua, no final do drama Cainista de
Saramago, Caim diz a deus: “Agora já podes matar-me, Não posso, palavra
de deus não volta atrás, morrerás da tua morte natural na terra
abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de
tu primeiro me haveres devorado o espírito” (p. 181), num assinalável
paralelismo com o castigo e o desafio prometeico, a quem as aves de
rapina comiam, cada dia, o fígado, que de novo renascia, sem fim, sem
que mesmo essa dor eterna tenha evitado a arrogância final de Prometeu,
exclamando, numa das suas últimas falas, que “não é de modo nenhum
indigno que um inimigo sofra por parte dos seus inimigos”.
Por último, a vinculação genealógica entre Saramago e
os Cainistas assinala a profunda religiosidade de Saramago, ancorada,
ainda que negativamente, na ostentação orgulhosa do desafio a Jahvé.
O que pesa a Saramago é a determinação cosmológica e
moral do Jahveismo (e isso independentemente de circunstancialismo
políticos), espécie de incisão externa sobre si, exactamente como aos
antigos gnósticos. Esta angústia profunda da influência bíblica e, já
agora, trágica, esmaga Saramago e obriga-o a reagir com virulência e
ostentação. Nada que não conheçamos já, embora algo invulgar, num tempo
de placidez e suave circulação da existência reticular em que vivemos.
Como assinala Sloterdijk, estes discursos algo anacrónicos que nos
cortam da rede, que nos afastam da placidez frouxa e doentia em que
vivemos, traz consigo essa virtualização, ou esse desejo, de religação,
de religioso, e sem esse desejo, sem esse estranhamento de si e do
mundo, não há salvação.
Claro que Saramago diz que é ateu, que não tem
angústias nenhumas, etc. Mas isso não tem importância nenhuma. A sua
obra está para lá dos seus circunstancialismos psicológicos, morais e
políticos, e a sua obra, e este Caim, é uma obra religiosa por
antonomasia, a provar que não há religião mais verdadeira que aquela que
duvida de Deus. |
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Notas |
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[1] O Daimon socrático, por
exemplo, constitui, para o mundo Ocidental, a perigosa
irredutibilidade de uma particular ligação a um divino particular
que existirá em nós e que não responde perante as leis da cidade.
Este desafio às leis da cidade, este antinomianismo socrático
(insuficientemente tematizado pela investigação filosófica), foi,
aliás, o que conduziu Sócrates à morte (ainda que no trágico, ou
agónico, respeito pelas leis da cidade). O mesmo se poderia dizer,
ou semelhante, da Antígona, de Sófocles,
“‘condenada pelo destino’,
‘contrariada pelas estrelas’ no sentido shakespeareano de
predestinada à desgraça. Ei-la ‘abandonada por deus’. Mas Sófocles
articula o discurso de maneira a obrigar Antígona a perguntar a si
própria, e a perguntar-nos a nós, se não foi a sua ‘autonomia’ que
escolheu dispensar os deuses … […] Antígona encara-se a entrar numa
extinção vazia e inconcebível – qualquer coisa como o ‘grand trou’
de Baudelaire, ‘Tout plein de vague horreur, menat on ne sait où’ –
ou em busca de uma reunião incerta com o clã dos mortos fraticidas e
que se autodestruíram. Não há Elísio à vista, nem bosque socrático”
(Steiner, 1984: 335).
Mas o campo da mitologia e da
dramaturgia clássicas servem-nos, ainda, os mitos clássicos de
Prometeu, que prefere o heroísmo e a desgraça à submissão a Zeus, de
Sísifo, espécie de herói burlesco e burlão do poder divino,
condenado ao absurdo a que, afinal, é capaz de dar sentido ou,
ainda, de Jesus de Nazaré, que morre, ou simula morrer, como um
ladrão e um miserável, para dar sentido à vida. Se há topos que aqui
se articula, em todos estes heróis, ocidentais, é claramente o topos
do desafio, da pressão sobre os limites da identidade própria e
alheia, e não o “diálogo” e o “face-a-face”.
[2] A erupção permanente de
violência no TaNaKh, mas também na morte de Jesus, tira todo o
sentido à explicação do “sinal” de Caim como uma barreira contra a
violência.
[3] O mesmo acontece com o
“Evangelho Segundo Jesus Cristo”, ele próprio uma chave hermenêutica
importante para ler Caim.
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STEINER, George (1984), Antígonas, Ed. Relógio D’Água, Lisboa. |
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Francisco Teixeira (Portugal)
Francisco José Alves Teixeira é Licenciado em Filosofia
pela Faculdade de Filosofia da UCP, tendo concluído a componente
curricular do Mestrado "Metafísica e Antropologia", pela mesma
faculdade; é Mestre em Filosofia pela UM, com a tese "O Mundo sem
Fundamentos, uma Aproximação ao Neopragmatismo e ao Construtivismo,
através de Rorty, Maturana, Varela e Glasersfeld" e Doutor em Filosofia
pela Faculdade de Filosofia da UCP, com a tese “A Produção da
Realidade.Construtivismo Radical e Autopoiesis”. É, ainda, professor
efectivo de Filosofia, do Ensino Secundário, na escola Secundária
Francisco de Holanda e formador de professores nos Centros de Formação
de Professores de Francisco de Holanda e Martins Sarmento, bem como
membro do Centro de Estudos Filosóficos (Facfil da UCP) e do Projecto de
Investigação em Ciências Cognitivas (da mesma faculdade).
Francisco Teixeira é autor, entre outros, dos seguintes artigos
conferências e livros: "Autopoiesis, Cognição e Linguagem" (XVI Encontro
da Associação Portuguesa de Linguística - Coimbra); "Rorty e a Verdade
na Galáxia da Pós-Modernidade" (II Colóquio do Outono - "A Cultura na
Galáxia da Pós-Modernidade", Universidade do Minho); “A Propósito de "O
Sentimento de si" (ou o Erro de Damásio)” , Revista Portuguesa de
Filosofia; “A Escola, a Educação Sexual e a Identidade pessoal” (VI
Congresso Galaico-Português de Psicopedagogia”, Universidades do Minho e
da Corunha); “Biologia, Escola e Cidadania” (Revista Elo, CFFH);
“Cultura Matrística e Currículo” (“V Colóquio sobre Questões
Curriculares: Currículo e Produção de Identidades”, Universidade do
Minho) e, entre muitos outros, “Identidade Pessoal-Caminhos e
Perspectivas”, da editorial Quarteto, 2004, Coimbra. |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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