REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

 

Introdução

 

O que é espantoso tanto no “Caim” de Saramago quanto na curta polémica que se lhe se seguiu é que ninguém, pelo menos que se tenha notado, tenha invocado a genealogia em que o livro claramente se incorpora, a genealogia gnóstica Cainita. Se se tivesse assinalado este facto ter-se-iam daí tirado duas consequências: a primeira é que, pese embora o seu interesse literário, de que falaremos mais à frente, o tema gnóstico e cainita aí presente tem uma história e, portanto, nem de longe nem de perto é uma novidade escandalosa; segunda, que Saramago é profundamente religioso, ainda que num estado de adormecimento e negacionismo psicológico.

O tema do Cainismo gnóstico não começa, na literatura, com Saramago. Dois dos autores mais notáveis da literatura do século XX, Hermann Hesse e Jorge Luis Borges (para só citar dos mais importantes autores gnósticos contemporâneos), trataram, detidamente, o tema de Caim, em obras literárias que se apresentam como tematizações contemporâneas da gnose cristã primitiva, através de uma teologia esotérica e heteróclita que se recusa à unidimensionalidade interpretativa da teologia ortodoxa.

Editor | Triplov  
ISSN 2182-147X  
DIR. Maria Estela Guedes  
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FRANCISCO TEIXEIRA

 

Saramago, Cainitas e Outros Gnósticos – A Iconoclastia como Modalidade do Humano

IX Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas»
Centro Cultural Gonçalves Sapinho . Benedita, 29-30 de Maio de 2010

 
 
 
 
 
 
 

A ortodoxia cristã pensa o episódio de Caim como o momento genesíaco de um suposto totalitarismo egolátrico, incapaz, como diz um teólogo português, de suportar o “face-a-face” com o outro, ficado em silêncio perante ele, porque “a besta que há em Caim não fala, mas grita e trucida e come o outro” (Couto, 2005: 266). Ainda outro teólogo português, na mesma senda, não tem peias na mesma unidimensionalidade hermenêutica: Caim é o símbolo ou, mais exactamente, o rosto do mal, “entrando no solipsismo de si mesmo, senhor do bem e do mal, substituindo-se a Deus. É o “indivíduo e não a pessoa. Cortou com a relação” (Neves, 2006, I: 92), inaugurando uma mimesis de apropriação invejosa e violenta, glosando declaradamente René Girard. Mas tudo isto é óbvio e simples de mais para encerrar verdade suficiente!    

Pelo contrário do entendimento teologicamente correcto da criação da identidade própria e alheia como um simples e beatífico “face-a-face” relacional, o que a teologia esotérica e heteróclita do Cainismo e da gnose defende como intepretação do episódio é algo bem mais complexo, e um pouco mais estrutural, do que essa tese do assassínio primordial como mal moral absoluto e egolatria identitária, um segundo pecado original de que o “sinal” de Caim seria a “marca” e a represa contra a espiral de violência que tal acto inauguraria.

  Cainistas e Outros Gnósticos
 

As notícias que temos dos cainitas chegaram até nós por Ireneu de Leão (Adversus Haereses, 31,1 - 1995), Filástrio, Bispo de Bréscia (Liber de Haeresibus, 2), Hipólito de Roma (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9) e, principalmente, por Epifânio de Salamina (Panarion Haeresium, 38).  

Por sua vez, as referências explícitas a Caim, e a sua reformulação identitária, (relativamente à proto-ortodoxia cristã) enquanto topos teológico, fazendo-o descender directamente dos arcontes intermédios do Pleroma ou coadjuvantes de Samael/Yaltabaot/Jahvé (o primeiro arconte), são especialmente abundantes na Biblioteca gnóstica/hermética de Nag Hammadi. Encontram-se referências a Caim na “Hipóstase dos Arcontes” e em “Sobre a Origem do Mundo” (evangelhos afins de um judaísmo esotérico), no “O Evangelho de Filipe” e na “Exposição Valentiniana” (valentinianos) e no “Apocalipse de Adão” e no “Apócrifo de João” (marcadamente sethianos onde, mais amplamente, se incluirá o Cainismo).

Em todos estes textos, Caim assume uma clara ascendência divina, ainda que, sempre, por via de uma familiaridade com os arcontes e não, directamente, com o pré-Pai, o Deus gnóstico criador, anterior a Yaltabaot, mero demiurgo ou intermédio criador, cego face à sua natureza criada e invejoso da proximidade ontológica do Homem face ao criador verdadeiro. Ao contrário de Caim, Seth, por exemplo, é, pelos menos nos textos de Nag Hammadi, e particularmente no “Apocalipse de Adão” (65), apresentado como provindo de uma nova geração, mais pura e perfeita, aquela que, exactamente, veio substituir Abel (e Caim). Seth, ao contrário de Caim (e do próprio Abel), seria filho autêntico de Adão e Eva e não de Eva e de Yaltabaot, como Abel e Caim, filhos ilegítimos e impuros, resultado de uma relação entre seres de espécies diferentes.   

Sabemos bem, no entanto, como as escrituras gnósticas são, por um lado, múltiplas e, por outro, incongruentes, seja pela natureza multitudinária das próprias seitas gnósticas, seja pela natureza fragmentária do que chegou até nós. 

De qualquer modo, não nos chegaram textos directa e ostensivamente cainistas, no sentido em que fixam certa doutrina ou organização teológica.  

O que conhecemos dos cainitas provêm-nos dos heresiólogos, particularmente de Ireneu de Lião e de Epifânio de Salamina.      

Em particular, escreve Ireneu:  

“Outros dizem que Caim deriva da Potência Suprema e que Esaú, Coré, os sodomitas e semelhantes eram todos da mesma raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo criador, nenhum deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que lhe era próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exactamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas” (Adversus Haereses, 31,1).

Como sabemos, o “Evangelho de Judas” veio integralmente ao mundo contemporâneo em 1978, em Jebel Qarara, no Egipto Médio, tendo sido recuperado e divulgado em 2000, sob o fogo de grande divulgação mediática. Mas, como é manifesto, a sua existência era já bem conhecida no mundo antigo, pelo menos até ao adormecimento da gnose, aí algures pelo século V ou VI EC. 

É certo que o “Evangelho de Judas” nada nos diz, directamente, do Cainismo e, na verdade, a não ser pelo efeito de uma eventual lacuna, nem sequer é referenciado. Mas, como assinalam os estudiosos dos textos gnósticos, a lógica interna do “Evangelho de Judas” é em tudo congruente com aquilo que dos Cainitas nos diz Ireneu e, sobretudo, Epifânio (Panarion, 38) e Hipólito (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9). 

Desde logo, numa breve e curiosa referência (que muito nos será útil mais à frente), Hipólito atribui (lendo a heresia ofítica) o “sinal” de Caim “à serpente universal … o sábio oráculo de Eva. Este é o mistério do Éden; este é o rio que flui do Paraíso; este é o sinal com que foi marcado Caim. Caim é aquele cuja oferenda não foi aceite pelo Deus deste mundo, quem, em troca, recebeu o sangrento sacrifico de Abel; pois o dono deste mundo deleita-se com sangue. 

Esta serpente é a que, nos últimos dias, no tempo de Herodes, apareceu debaixo da forma de homem…” (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9)          

A aproximação de Caim à estirpe pneumática e gnóstica de origem ofítica, com origem na serpente instrutora, é aqui por demais evidente, realizando-se uma clara inversão daquilo que é a compreensão proto-ortodoxa da serpente, a desafiadora por antonomásia, e de Caim.  

Mas onde mais vastamente se tematiza o Cainismo é em Epifânio de Salamina (Panarion Haeresium, 38). Vale a pena sintetizar aqui o conjunto das referências de Epifânio, parafraseando, grosso modo, a síntese de Piñero e Torralas-Tovar (2006: 68-69) que, adverte-se já, nem por isso seguem aquilo que percebemos directamente dos Cainitas na Biblioteca da Nag Hammadi, como, aliás acontece com a referência já citada de Hipólito.  

Assim, escreve-se no Panarion, 38: 

Que a seita cainita toma o seu nome do Caim bíblico;

Que Caim e Abel são de descendência angélica, uma vez que também o são Adão e Eva, de que são originários, embora Caim de uma genealogia mais forte e Abel de uma mais fraca;

Que Caim, Esaú, Coré e os sodomitas têm ascendência angélica e que, portanto, devem ser valorados positivamente;

Que os Cainitas também se inspiram nestes personagens;

Que o Demiurgo tentou-lhes fazer mal mas que não conseguiu, pois eles refugiaram-se no Pleroma;

Que Judas recebeu uma revelação especial;

Que existe um Evangelho de Judas;

Que parte das suas doutrinas provém dos Apóstolo Paulo, de que se escreveu a “Ascenção”, contendo doutrinas esotéricas (texto que nunca foi descoberto);

Que os Cainitas se afastam, em tudo, do Criador (o demiurgo, Yhavé) e que ascenderão até às esferas superiores através do sacrifício de Cristo, acto que Judas de algum modo intervém;

Que Cristo sacrifica o corpo de que está revestido;

Que Judas entregou um Cristo mau para sacrifico;

Que Judas cumpriu um sacrifício divino, por desígnio divino;  

Que Judas é digno dos maiores louvores.

A síntese, imagino, é suficientemente clara quanto ao que os Cainitas pensam e quanto às chaves interpretativas com que se aproximam dos textos canónicos, particularmente do Génesis e das várias Paixões evangélicas. Assim, independentemente das interessantes questões hermenêuticas que a sua praxis interpretativa levanta, o que vale a pena assinalar é o lugar central que, na economia do seu pensamento, e da sua acção, ocupa o gesto da inversão textual, relevante não só, embora grandemente, pelo próprio gesto, mas, sobretudo, pelo que esse gesto traz consigo de uma antropologia, um soteriologia e ontologia novas, embora, como não podia deixar de ser, radicadas no pensamento circulante, mesmo que subterraneamente. 

Como para a maioria dos gnósticos, o que a descrição cainita de Ireneu, Hipifánio e Hipólito nos mostra é, antes de tudo o mais, uma recusa do javheismo, a partir de uma narrativa mitológica completamente diferente daquela que se dá no Génesis judaico mas, também, uma recusa da Paixão como acontecimento histórico, exactamente porque a história não é, para os gnósticos, nada mais nada menos que a própria condição de aprisionamento javheista, configurada pelo arconte demiúrgico. 

Em particular, a narrativa gnóstica do génesis intelectualiza-se, complexiza-se e aprofunda-se dramaticamente face à descrição linear que dos episódios é realizada pela ortodoxia. Os conflitos genesíacos são lidos não como simples conflitos familiares, mas como autênticos dramas políticos e cosmológicos, em que os papéis e estatutos dos contendores principais (Jahavé e a Serpente, Sophia/Sabedoria, a intercessora do pré-Pai) estão em instável posição e em que o prémio do vencedor é a própria alma do humano ou, se quisermos ir mais longe, a alma de cada um dos próprios contendores principais. Visando uma via de inscrição experiencial mais profunda que o simples reconhecimento histórico e cosmológico, a posição hermenêutica/gnóstica no Génesis exige ao intérprete uma relação com o texto que vise uma transformação interior mais que um simples reconhecimento nomológico, que, vindo do exterior, sempre será visto como uma ameaça à sua integridade, na verdade a ameaça por antonomasia à sua integridade pneumática.  

O mito gnóstico (numa apresentação genérica e passando por cima das imensas variantes e pormenores) coloca no início (na verdade antes de todo e qualquer início concebível, num topos sem tempo e lugar) um pré-Pai, unidade e fonte de toda a realidade. Por um processo misterioso, este pré-Pai assimetriza-se e dá à luz uma tríade que, por razões várias, se vai dividindo em sucessivas multiplicações de si mesma. Conforme os sistemas em presença, estas entidades, resultado das sucessivas divisões e subdivisões do pré-Pai (os eons), podem ser trinta e três ou de número virtualmente infinito. O conjunto destas entidades constitui o Pleroma, o universo do divino propriamente dito. Uma das questões mais misteriosas é, então, a de saber se o pré-Pai é verdadeiramente uno ou múltiplo ou se, até, é unitas multiplex, para utilizar a linguagem de Giordano Bruno, chave notavelmente anacrónica para a interpretação esotérica da gnose cristã primitiva de aqui falamos. A questão da Unidade ou da Multiplicidade do pré-Pai é central na compreensão da gnose cristã primitiva, já que ela irá mais facilmente autorizar uma compreensão do divino em termos de uma Unidade monológica ou, pelo contrário, em termos de uma divisão “originante” (nos termos da qual no princípio estaria não a Unidade - o Um - mas a diferença – o Dois -, ou a Unidade como Diferença – o Um como Dois), fonte de toda a divisão posterior, permitindo à gnose lidar com o problema do Mal em termos da natureza do próprio divino.  

Então, por outra razão misteriosa, algures no Pleroma o estado de Graça e de plenitude que aí se vivia vai ser interrompido desde um gesto de Sophia/Sabedoria, que quis criar sem ter em conta a sua natureza conexa com a totalidade do Pleroma, particularmente com o pré-Pai. A criação de Sophia foi a de algo disforme e assutador:  

“Logo que viu a obra desejada, esta transmutou-se na figura de um estranho dragão com rosto de leão, de olhos resplandecentes como relâmpagos. Lançou-o para longe dela e daquele lugar, a fim de que nenhum dos imortais o visse, porque o tinha criado em ignorância. Envolveu-o numa nuvem luminosa e colocou-o num trono no meio de uma nuvem para que ninguém o visse excepto o Espírito Santo, que é chamado a ‘mãe dos viventes’. E deu-lhe o nome de Yaltabaot” (Apócrifo de João, 10, 6-12).

Yaltabaot, está bom de ver, é Javhé, e tudo que dele resultou só poderá ser visto como impregnado da sua ignorância, arrogância e maldade, com excepção do Homem, resultado da acção do pré-Pai, via Yaltabaot, mantendo-o embora na ignorância da natureza da sua criação. Esta acção do pré-Pai visou responder positivamente ao arrependimento e pranto de Sophia/Sabedoria que, por sua vez, encarnou na espiritual/mensageira/serpente para insuflar o espírito no Homem, a quem, entretanto, arranjou uma auxiliar, Eva, ela própria uma emanação da sua intelecção e que se constituiu como sua companheira (nalgumas versões entretanto violada por Yaltabaot, dando origem a Abel e Caim). 

Uma das passagens mais impressionantes e belas deste mito é o poema em que o escritor do “Apócrifo de João” descreve o Jardim do Éden como uma prisão venenosa, em que  

“O seu alimento é amargo,

A sua beleza é perversa,

O seu alimento é enganoso,

As suas árvores são a impiedade,

O seu fruto é um veneno mortal,

A sua promessa é a morte” (21, 14-19).

A inversão, está, enfim, completa. O Paraíso é campo de morte e Javhé o seu jardineiro. A expulsão do paraíso constitui não um acto da vontade de Javhé mas o resultado de uma trama de Sophia/Sabedoria, visando salvar a geração Humana da prisão dourada de Yaltabaot. Na verdade, Adão e Eva não foram expulsos do paraíso. O que ocorreu foi uma fuga, planeada e executada por intersecção do pré-Pai e do arrependimento de Sophia/Sabedoria. 

Daqui até ao mais completo antinomianismo vai apenas um passo. 

A salvação só se alcançará, então, através da negação deste mundo e dos seus condicionamentos sociais, antropológicos e cosmológicos, resultado da lei mosaica e Javehista, até à completa reintegração pleromática, que não constitui mais, afinal, que um regresso do sopro divino a si mesmo, numa curiosa inversão salvífica, em que não é o criador que salva a criatura mas a criatura, o homem decaído, que salva o criador, ao mover-se no sentido da sua plena reintegração em si mesmo.  

Para os gnósticos, então, as leis deste mundo não se lhe aplicam a não ser por decaimento ou fraqueza e o pecado, a infracção dessas leis, não é coisa que se lhe pegue, uma vez que a sua natureza não é deste mundo, já que este mundo é o mundo do arconte Yaltabaot, o Javehista cego e arrogante que se diz o Deus único mas que não passa de um aborto da divindade. 

Não será difícil entender, agora, como faz sentido que os gnósticos elejam como seus heróis exactamente aqueles que são os vilões da ordem Javehista, já que são esses que representam, de modo especialmente conspícuo, o combate antinomianista e anti-Javehista. 

Ora, de todos estes vilões, Caim não é, com certeza, dos mais pequenos e, portanto, daí a sua relevância teológica.  

Mas a figura, ou o topos, da inversão, se assenta em si mesma como um gesto destrutivo e iconoclasta, nem por isso põe de lado a necessidade de subtis argumentações teólogicas, que exploram até ao limite interpretativo as margens, os não-ditos e as ambiguidades bíblicas mais subtis, numa reescrita infinita da Palavra de Deus. E essa reescrita infinita (que, sem dúvida, inspirou a Cabala judaica) configura, certamente uma das mais fortes relativizações e desconstruções do divino Javehista, desde logo a partir da assumpção de um certo tipo de experiência de si e do mundo só acessível a um conjunto especial de eleitos, os pneumáticos, ontologicamente e existencialmente preparados e predispostos para uma via esotérica e secreta da compreensão da Palavra, de que mesmo os textos bíblicos canónicos não deixam de dar testemunho.  

Ora, esta experiência do “estranhamento” - a fenomenologia existencial do próprio que autoriza e exige aquele giro hermenêutico tipicamente gnóstico - constitui uma “descoberta” e tematização exemplarmente novas, especificamente gnósticas, emergindo no início da EC como a experiência de que a nossa alma não é deste mundo e que nas maiores profundidades de nós mesmos existe um irredutível absoluto que quer retornar a si mesmo e que só não o faz por força do enclausuramento cosmológico.  

Por sua vez, a relevância desta experiência de estranhamento e de nihilização da existência é que ela é a condição de possibilidade da autêntica experiência religiosa de si, de re-conhecimento ou re-ligação ao seu si mesmo mais profundo, na verdade a única via necessária à autêntica experiência religiosa.     

Mais explicitamente, este processo experiencial de estranhamento percorre um caminho de terror, angústia, medo, crime, despertar e lucidez, que o notável Evangelho da Verdade descreve com impressionante beleza e fulgor:

“Uma vez que existia terror, perturbação, instabilidade, vacilação e discórdia, eram muitas as ilusões e as vácuas ficções que os ocupavam, como se estivessem submersos no sonho e convivessem com sonhos inquietantes. Fugiam para um qualquer lugar, ou davam a volta extenuados, depois de perseguir outros, ou agrediam, ou eram agredidos, ou caiam de grandes alturas, ou voavam pelo ar, ainda que não possuíssem asas. Por vezes, acontece-lhes como se alguém os fosse matar, ainda que ninguém os perseguisse, ou, então, como se eles próprios matassem os seus vizinhos, porque se encontravam manchados de sangue. Uma vez que os que passam por estas coisas acordam, nada vêem, ainda que estivessem no meio de todas estas confusões, uma vez que elas não existem. Semelhante é o motivo dos que rechaçaram a ignorância para longe de si, da mesma maneira que não têm em nenhuma consideração o sonho, como também não consideram as suas trinta acções como algo de sólido, mas abandonam-nas como um sonho tido durante a noite. Apreciam o conhecimento do Pai como o amanhecer. Cada um deles actuou desta maneira como quando estavam adormecidos enquanto eram ignorantes. E este é o modo como chegaram ao conhecimento, como se despertassem. Feliz será aquele que chegue a dar a volta e acorde! E bem-aventurado é o que abriu os olhos do cego. E o Espírito correu atrás dele apressando-se a acordá-lo. Tendo estendido a mão ao que jazia sobre a terra, firmou-o sobre os seus pés, porque ainda não se tinha levantado” (Ev.V, 29, 30). 

Entretanto, para quem pense que a experiência do estranhamento como via de acesso à experiência religiosa esotérica mais profunda e autêntica pode ter tido um lugar específico, temporalmente definido, mas entretanto ultrapassada, Peter Sloterdijk, num livro luminoso intitulado “O Estranhamento do Mundo”, dá voz a essa mesma experiência do estranhamento e da religiosidade através de palavras tão próximas do evangelho valentiniano que não deixa de nos surpreender, atribuindo-lhe, mesmo, o estatuto de caminho único de acesso à religiosidade no mundo contemporâneo: 

“Na medida em que ser homem na modernidade significa, primeiramente, automediação e autoconexão à rede, os bons velhos conceitos metafísicos Deus e Alma apenas podem ser pensados no modo de teorias das catástrofes; como desconexão à rede, interrupção da mediação, choque, pausa. Tilich, o teólogo fronteiriço, expôs isto inequivocamente através das suas metáforas divinas e expressionistas; segundo ele, Deus já só é possível no cosmos auto-centrado como um invasor furtivo; apenas como infractor e perturbador é que ele se pode manifestar como a diferença a respeito de tudo o que se comunica e conecta com a rede. […] Analogamente, certos psicólogos do século XX situaram o local ontológico da alma nas interrupções – nos sintomas neuróticos, nas convulsões, nas síncopes. Na era da conectibilidade, as chances da ‘alma’ residem nas catástrofes nervosas” (Sloterdijk, 2008: 69).     

Repare-se, mais uma vez, como a hipótese de Sloterdijk, levantada para os actuais tempos limite, se articula quase perfeitamente com a catástrofe nervosa do Evangelho gnóstico do século III EC, que progride notavelmente da catástrofe para o amanhecer, da experiência do estranhamento para a experiência mística do divino:

“Fugiam … extenuados … perseguir … agrediam … agredidos … caiam … voavam … matar … matassem … manchados de sangue … acordam … confusões … não existem … rechaçaram a ignorância … não têm em nenhuma consideração o sonho … não consideram as suas trinta acções como algo de sólido … abandonam-nas como um sonho tido durante … Apreciam o conhecimento do Pai como o amanhecer.”

Voltemos, então, ao Cainismo.  

É esta experiência de estranhamento que conduz à necessidade de tornar Caim um herói, de acordar do sonho através de um processo dissolução da “aliança” tornada aprisionamento nomotético.

Assim sendo, não será rigorosamente nada de estranhar que a experiência gnóstica de estranhamento tenha em vários autores e pensadores contemporâneos as mais variadas tematizações, de que Peter Sloterdijk, na Filosofia, é talvez, o caso mais impressionantes.  

Mas é na literatura que a Gnose mais se expressa e, assim, o “Caim”, de Saramago, é mais uma expressão dessa expressão da gnose eterna, que se revela, desde há milénios, na experiência mais ou menos subterrânea da Humanidade. 

  Herman Hesse e Jorge Luis Borges
 

Veja-se, então, e finalmente, alternativamente à unidimensionalidade da leitura ortodoxa do episódio bíblico de Caim, Hermann Hesse no seu dramático “Demian”.  

Acossado por Kromer, “colega” de escola, por meio de uma chantagem que envolve uma mentira inocente, Sinclair é salvo por Demian, um estranho jovem da sua turma, que lhe conta uma história alternativa de Caim.

Nesta especulação teológica, Demian defende a possibilidade de o “sinal” de Caim ter sido não o resultado de um crime mas o princípio do crime, já que o “sinal” não corresponderia senão a uma marca psicológica, ou espiritual, idiossincrática, que lhe acarretaria a desconfiança e o medo: 

“Havia um homem com alguma coisa de peculiar no rosto, que metia medo aos outros. Não ousavam tocar-lhe, porque ele e os seus filhos se lhe impunham. É bem provável (ou talvez seja o mais certo) que não se tratasse, de facto, de um sinal na fronte, à laia de um selo postal: na vida real, tais coisas não costumam suceder de maneira tão rude. É muito mais verosímil que tivesse algo de assustador, mas pouco perceptível. Talvez consistisse num pouco mais de argúcia e perspicácia no olhar, coisa a que os outros não estavam habituados. Um tal homem tinha poder, tornava-se temido, possuía um ‘sinal’” (Hesse, 2003: 30).   

O medo desta estirpe estranha teria imposto, finalmente, uma vingança alheia, através da invenção de uma lenda terrífica, na verdade uma maldição, que explicaria a sua distinção ontológica e que seria o preço histórico a pagar por essa diferença: “Tornava-se francamente desagradável o facto de haver por ali uma casta de gente intemerata e terrível. Apodaram, pois, aquela raça com uma alcunha e uma lenda, para se vingarem dela e justificarem um pouco os seus temores…” (Ibid.). 

Mas, e o assassínio? Demian/Hesse não foge à questão. Admite o assassínio mas relativiza-o, inserindo-o na lógica das lutas de dominação próprias de raças diferenciadas, admitindo, mesmo, a hipótese de o assassínio ter sido heróico e de ter constituído uma vitória distintiva de uma raça sobre a outra, de uma experiência sobre a outra, da religiosidade sobre a superstição, do esotérico sobre o exotérico, tendo-se o sinal transformado em símbolo de um mal apenas como instrumento de auto-justificação da cobardia dos derrotados.  

Esta relativização do assassínio, particularmente no TaNaKh, não nos deve chocar. Primeiro, Caim e Abel não tinham sido proibidos de matar. Como refere Jack Miles no seu perturbador “Deus, uma Biografia”,  

“Quando, após o homicídio, o Senhor diz a Caim ‘ouço o sangue do teu irmão, do solo, clamar para mim!’, é como, nesse preciso momento, Ele tivesse descoberto que o homicídio era algo que merece condenação. A relação entre ambos é tacteante e hesitante. É possível que a metáfora – ‘o sangue do teu irmão, do solo, clamar para mim!? – exprima agitação mais que uma condenação moral. Algo está errado, mas será que o Senhor já sabe exactamente o quê? O Senhor age e, depois, infere as Suas próprias intenções a partir daquilo que faz” (1997: 46-47). 

A interpretação do “assassínio” de Caim em termos de um dualismo meramente moral (como o faz a ortodoxia cristã) manifesta, claramente, um anacronismo hermenêutico, porquanto faz retroagir sobre o episódio de Caim a leitura do NT, particularmente de Lucas (11, 49-51), provavelmente o mais recente dos evangelhos sinópticos (80-130 EC). O anacronismo da leitura de Lucas (11, 49-51) do episódio de Caim é mais que evidente e serve os fins puramente revisionistas do TaNaKh, empreendidos pela nova ortodoxia proto-católica.  

Assim, tal como em Genésis, 3-1, é licito ler o “pecado” de Caim como pecado da desobediência e não do assassínio, ou do assassínio como desobediência, já que o que confronta e desagrada a Yahvé não é a infracção de normas morais, que ainda não tinham sido estabelecidas, mas o questionamento do seu poder e autoridade sobre a vida e sobre a morte, realidade que emerge, pelo gesto de Caim, como algo completamente novo, e que o próprio Yahvé ainda não saboreara.  

“Algo está errado, mas será que o Senhor já sabe exactamente o quê?”, pergunta Jack Miles. Ora, o que o Senhor não sabe é o fenómeno da morte e da liberdade ontológica, essas ameaças a todo o sentido e, portanto, à Sua própria identidade e, claro está, à identidade da sua criação e das suas criaturas. 

Não há que espantar com esta aludida insensibilidade moral do Yahvé. A ideia de que Yahvé é amor e que, portanto, olharia Abel com um olhar mais amoroso, como acontece com Jesus relativamente aos mais fracos, é um dos maiores feitos do revisionismo neotestamentário, ao ponto de levar Harold Bloom a considerar “que tem pouco sentido dizer ‘Yahvé é amor’, ou que devemos amar Yahvé. Ele não é, nem nunca foi, nem será amor” (2006:171), já que “O amor de Yahvé pelo povo que escolheu tem a ver com a Aliança: é, portanto, condicional e revogável” (ibid:169), o que aliás acontece ostensivamente com o Dilúvio, acto divino de destruição gratuita e irada de Yahvé (de acordo com Génesis 6, 5-8), na pior das hipóteses e, na melhor, acto de destruição calculista e interesseira, tendo em vista uma nova Aliança (de acordo com Génesis 6, 11-22) e que, claro, os gnósticos atribuem, como não podia deixar de ser, à personalidade perturbada e maléfica de Yahvé.   

Assim, utilizar como chave hermenêutica o amor à vida e ao próximo e a estigmatização da violência para entrar no/compreender o episódio de Caim e, particularmente, a acção de Yahvé sobre Caim, é fazer retroagir sobre um acontecimento literário do século IX AEC uma leitura do século II da EC! Tal anacronismo é o resultado do fortíssimo revisionismo neotestamentário, alcançado, aliás com notável sucesso, com a crença irreflexa da existência de uma suposta cultura judaico/cristã: “O que dá unidade ao Novo testamento - diz Harold Bloom – é a sua postura revisionista da Bíblia hebraica. E desse revisionismo surge um considerável esplendor, sintamo-nos ou não confortáveis com isso” (ibid:121).

Revisionismo à parte, a criação da identidade própria e a compreensão da identidade alheia como um simples e beato despojamento de si e colocação no lugar de outro (a acção a que Caim se teria recusado e, pior que isso, invertido), não resiste à análise histórica, religiosa, psicológica e, até, biológica. O desafio e a infracção, a corrupção dos limites e o pecado, sempre foram os principais instrumentos da auto-identificação, desde logo porque é através da subjectivação e internalização interpretativa que o mundo acontece (ainda que num horizonte comunitário, mas abstracto e virtual de sentido), mas também porque é a capacidade de dar sentido a partir do respectivo horizonte de vida, desejo e cultura aquilo que permite compreender o outro. Ora, desde sempre, e de modo biologicamente impregnado (Maturana e Varela, 1990), a capacidade e o desejo de aumentar os limites interpretativos e psicológicos se fez através do desafio das normas, cosmológicas, sociais e religiosas[1]. A ideia de que a construção identitária se faz através de um processo de circularidade eu-outro, pacífico e sem atrito, obnubila o facto de a construção psicológica e cultural necessitar da paralogia, do erro, da ficção, do lance e da gestalt argumentativa ou retórica, e, até, da mentira vital, para poder ocorrer, já que o “diálogo” cultural sempre assenta num inter-dito, num não-dito e num im-preciso que nenhumas boas intenções poderão superar. Pelo contrário, a ideia de que é possível construir a identidade própria, e alheia, através de uma auto-transparência cultural, semântica e, claro, moral, beatificamente circulatórias eu-outro, não pode senão conduzir ao logro, ao totalitarismo e, mais cedo ou mais tarde, à mais terrível violência.       

Mas voltemos, rapidamente, a Hess/Damian/Sinclair. O que aqui se joga é claramente a assumpção do episódio bíblico como paradigma de um conflito entre uma ordem cósmica e identitária definida por externalismos autoritários e condicionadores e uma ordem cósmica e identitária em que é o domínio de si e o desafio das suas margens e limites, com todas as consequências inevitáveis, aquilo que justifica a existência. Sim, em Caim há um gosto pelo desafio. Mais exactamente, talvez se devesse dizer que há em Caim uma obrigação do desafio do Pai, pela intuição de uma paternidade mais ampla que se joga na indeterminação de toda a identidade, de que a morte é o mais lúcido e conspícuo indicador. O Pai é, para Caim, tanto um configurador de ordens e limites como uma condição de possibilidade da sua superação e, assim, uma oportunidade do crime enquanto superação de toda a placidez e inocência, até à erupção do mais puro nada de si, que é o caminho mais directo e santo para a recuperação integral de si mesmo. E não terá sido isso, afinal, o que o mesmo Yahvé terá feito com o Dilúvio?

Compreende-se bem que, assim, sobre o efeito das palavras de Damian, reverbere em Sinclair a possibilidade de ser um escolhido, ele próprio transformado em Caim e, portanto, se tenha convencido que o seu “estigma não era vergonha alguma, mas sim uma distinção; a minha maldade e a desgraça elevavam-me acima do meu pai e dos bons e dos piedosos” (Hesse, 2003: 32), numa quase decalcada assumpção do sentido da passagem de Hipólito (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9) segundo a qual o “sinal” de Caim é o “sinal” da “serpente universal … o sábio oráculo de Eva. Este é o mistério do Éden; este é o rio que flui do Paraíso; este é o sinal com que foi marcado Caim”.  

De qualquer modo, a maldição lançada por Yahvé sobre Caim é ela mesma expressão e indício claro da natureza onto-antropológica do episódio (bem longe de qualquer referência moral), ao aludir à terra de Nod, aonde caberia a Caim morar, numa glosa de nad, a expressão hebraica para errante. A terra inexistente de Nad, a terra da errância, é o castigo ou a maldição principal de Caim. Mas, como acontece com a nuclear experiência gnóstica de estranhamento, o castigo de Caim é a sua salvação, porquanto a errância é aquilo que convém à indeterminação onto-antropo-cosmológica do seu ser, assim transformado em puro devir e, portanto, em pura liberdade de toda a determinação paterna (mais uma vez, aquilo que para certa teologia é castigo - a errância de Caim - para a leitura gnóstica e esotérica do episódio não é mais que o resultado agónico e, por isso, verdadeiramente, humano, do acontecimento dramático original). 

Isto mesmo decorre de modo transparente das seguintes palavras do narrador Sinclair, explicando a sua relação com o círculo de Demian/Caim e de D. Eva, a sua mãe:  

“Nós, os que tínhamos o sinal, com razão seríamos considerados, pelo mundo, como estranhos, sim, como loucos e perigosos. Estávamos acordados ou e vias de sair do torpor, e os nossos esforços orientavam-se para um ficar cada vez mais despertos, enquanto que os anseios e a procura de alegria dos demais eram conducentes a, sempre mais fortemente, ligar ao rebanho as suas opiniões, ideias e obrigações, as suas vidas e felicidade. Também ali havia esforço, bem como força e grandeza; contudo, enquanto que, segundo a nossa concepção, nós, os assinalados, representávamos a vontade da natureza em ordem ao novo, ao individual e ao provir, os outros viviam numa vontade de imobilismo. Para eles, a humanidade, a qual estremeciam tanto quanto nós, era algo de inacabado, necessitando de ser preservado e protegido. Ao contrário, pela nossa visão, ela encontrava-se num lugar longínquo, em direcção ao qual todos caminhávamos; a sua imagem não era conhecida de ninguém e as suas leis não haviam sido gravadas em lugar nenhum” (Hesse, 2003: 135).

O “sinal” de Caim, um dos mais controvertidos enigmas bíblicos, só muito simplisticamente pode ser pensado na perspectiva mágica de que constitui uma espécie de barragem à sucessão da violência mimética. No entanto, esta leitura, para além de unidimensional, não resiste à própria leitura bíblica, já que a violência não deixa de irromper na história continuamente, até à purificação/vingança diluviana, que constituiria, afinal, o fracasso de maldição Yahveista lançada sobre Caim[2].  

O sinal de Caim enquanto amuleto mágico não explica, então, a sua natureza e, finalmente, a explicação de Hesse/Demian parece ser a mais razoável porquanto dá sentido e assinala uma experiência única em Caim, a experiência da morte, com o seu cortejo de consequências, desde logo e primacialmente sobre a identidade do próprio Caim, dada pela ideia da errância, e que até então não tinha sido experimentada. O “sinal” de Caim é, então, o sinal de uma distinção experiencial, de uma experiência de si mesmo e do humano errante e em permanente devir, trágica e ou agónica, que se inaugura com o seu acto fratricida e que nem mesmo na desobediência do Éden tinha sido experimentada. 

Indo agora a Jorge Luis Borges, comecemos por apresentar aqueles que são alguns dos seus versos envolvendo directamente Caim, numa leitura que clama por um dimensão de análise mais ampla que a do dualismo moral e da magia protectora.

Escreve Borges, em “Génesis, IV: 8”:

“Foi no primeiro deserto.

Dois braços lançaram uma grande pedra.

Não houve um grito. Ouve sangue.

Houve pela primeira vez a morte.

Já não me lembro se fui Abel ou Caim.”

(Borges, 1998, III: 93).

O que choca a teologia ortodoxa e convencional nestes versos singelos de Borges é, desde logo, a indistinção entre “vítima” e “algoz”, através de uma espécie, uma vez mais, de relativismo moral que, numa primeira análise, bem poderá chocar as consciências bem formadas. A não ser, claro, que aquilo que aqui esteja em causa não seja um problema de teologia moral mas, mais profundamente, de teologia onto-antropológica, em que o que se joga e se trata é a força de erupção de uma primeira experiência, a experiência da morte e da identidade que aí se dissolve, e que une Abel e Caim: a nadificação da morte e a errância ou indeterminação de si.  

No entanto, em Borges a heterodoxia está sempre um passo à frente da realidade e, noutro poema, titulado “Ele”, ocorre já não só a mútua absorção de Abel e Caim numa única experiência de devir mas, também, a absorção de Caim e do próprio Yahvé numa única deidade ou experiência de totalidade. 

Escreve Borges: 

“Nos Olhos da tua carne é que reluz

O insuportável sol, e ela contacta

Com pó disperso ou com rocha compacta;

É o amarelo, o negro, ele é a luz.

Ele vê-os. Com os seus olhos inquietos

Contempla-te e são olhos que um reflexo

Indagam, como os olhos de um espelho,

As hidras negras e os tigres vermelhos.

Não lhe basta criar. É cada uma

Das criaturas do Seu estranho mundo:

As porfiadas raízes do profundo

Cedro e também as mutações da Lua.

Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno

Sabe o sabor do fogo do inferno”

(Borges, 1998, II: 276).               

A ideia de que Caim sofre e realiza uma experiência de morte e devir que transforma a sua identidade e que é, afinal, uma experiência do próprio Yahvé na sua construção auto-biográfica, que é “cada uma Das criaturas do Seu estranho mundo”, dá uma nova dimensão, já não simplesmente moralística, ao episódio e ao seu protagonista, e, claro, tão ou mais importante, obriga-nos a uma nova concepção de Deus e das suas qualidades, já que, pelos vistos, “o Eterno [lhe] Sabe o sabor do fogo do inferno”, numa estranha mistura de bem e mal que não suporíamos característica de Deus Pai.   

Também Borges, com estes e outros textos Cainitas, dá voz à experiência gnóstica e a uma concepção da experiência religiosa, e da própria identidade do divino, que supera e se distingue radicalmente do jahaveismo proto-cristão, caminhando para uma indistinção Humano-divino ou, alternativamente, para uma caracterização de certa experiência, especificamente humana e especificamente gnóstica, em que o humano se faz verdadeiramente Humano … ou verdadeiramente Divino.  

Ora, essa experiência é, claramente, aquela que está presente em Abraxas, a divindade gnóstica que Sinclair/Hesse descobre como chave hermenêutica de si mesmo:  

“Ele é Deus e Satanás: abarca em si próprio tanto o mundo límpido como obscuro. Abraxas não tem nada a objectar a qualquer dos seus pensamentos ou sonhos. Ele abandoná-lo-á, porém, se alguma vez se tornar irrepreensível e normal; repudiá-lo-á e procurará outra cadeira onde cozinhe os seus pensamentos” (Hesse, 200: 104).

  Saramago
 

Em Saramago, tal como nos dois autores anteriores, e ao longo de todo o seu “Caim”, a figura do desafio é sua figura mais marcante[3]. Saramago afadiga-se a desconstruir as figuras de autoridade bíblica e a elevar, como em quase todos os seus textos principais, as figuras femininas, no caso Eva.

É Eva que quer, logo no início do texto, pedir explicações ao Senhor pela sua expulsão do Éden. É Eva que se sente surpreendida com a sua própria coragem, pesando que “era como se dentro de si habitasse uma outra mulher, com nula dependência do senhor ou de um esposo por ele designado” (p.26), tal como ocorre na “Hipóstase dos Arcontes”, com a “espiritual” a “penetrar” na serpente, a instrutora, auxiliando Eva na emancipação face a Yahvé, exponenciando, desde o início do seu texto, uma dimensão de interioridade versus a dimensão de exterioridade, constituída esta última pela ordem e pelos mandamentos de Yahvé.  

A luta entre Caim e Yahvé, ou entre a interioridade e a exterioridade, bem como o elogio da rebelião e da heresia também são claramente marcadas, no diálogo que Yahvé se diz  

“soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade […] esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolhem a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será” (pp. 37-38).  

O elogio do sacrilégio, da heresia e da sedição são temas gnósticos e Cainitas por excelência, revelando o seu radical antinomianismo e, claro, estão na base do texto de Saramago, tenha ele ou não consciência desta proximidade topológica estrutural. 

Mas a marca mais forte do desafio como marca topológica de Saramago é a que se manifesta no diálogo entre Yahvé e Caim, em que este assume o seu rancor por Yahvé, dizendo-lhe que matou Abel por não o poder matar a Ele (p. 38), numa manifestação de notório anti-jahveismo, de raiz claramente gnóstica, como tivemos oportunidade de ver.  

Por outro lado, também em Saramago, na sua escrita singularmente lacónica e fugidia, o crime de Caim parece ser mais o pretexto para o castigo da errância que um mal em si mesmo, e desde logo porque Yahvé assume parte das responsabilidades da morte de Abel: “A minha porção de culpa não absorve a tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal” (p. 39).

De qualquer modo, do que o Senhor não protege Caim é da sua relação com Lilith, que, em certas interpretações cabalísticas e em certo folclore hebraico corresponde ora à primeira mulher de Adão, anterior a Eva (e ao demónio da concupiscência), e que se rebelou contra o seu poder masculino, ora à instrutora gnóstica que convenceu Eva a desobedecer a Yahvé. Saramago inventa-se a comerciar sexualmente com um demónio a quem não faz diferença que o protagonista se apresente com o seu próprio nome ou com o nome da sua vítima, numa outra similar a aproximação à indistinção operada por Jorge Luís Borges, visando assinalar muito mais a experiencia da morte (e da redenção?) de que o assassínio naquilo que liga Caim, Abel e Yahvé. 

Por outro lado, é Caim quem se faz instrumento de Yahvé na salvação de Isaac, substituindo o anjo do Senhor, que se “atrasou”. O episódio constitui, bem entendido, uma diatribe irónica de Saramago contra o Jahveismo, e corresponde, afinal, ao desejo de assinalar a suposta barbaridade, e “incompetência”, do Deus hebraico, mesmo perante a enormidade das suas exigências cosmológicas.    

O episódio da morte em Sodoma e Gomorra (pp.101-102) e a crítica de Saramago à morte dos inocentes também é, por sua vez, marcadamente gnóstica. Como vimos a propósito do Panarion, 38, os sodomitas são outros dos heróis gnósticos e o seu elogio, por parte de Saramago, vai directamente à defesa iconoclasta dos anti-heróis bíblicos realizada pelos Cainitas e pelos gnósticos em geral. 

Por último, Caim assassina Noé, o instrumento de deus para o seu revisionismo criador, exactamente por não poder matar deus. Não o podendo matar, pretende exterminar a sua obra e obrigá-lo a assumir a consequência dos seus actos terríficos e vingativos.  

Por fim, Caim fica só, condenado por deus à morte, exactamente como no início, mantendo o desafio e a altivez, fazendo lembrar Prometeu, de Ésquilo, caracterizado pelo Coro como o que  

“És ousado

E não cedes aos reveses amargos.

Tens a língua solta de mais”.       

E soltando a língua, no final do drama Cainista de Saramago, Caim diz a deus: “Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua morte natural na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito” (p. 181), num assinalável paralelismo com o castigo e o desafio prometeico, a quem as aves de rapina comiam, cada dia, o fígado, que de novo renascia, sem fim, sem que mesmo essa dor eterna tenha evitado a arrogância final de Prometeu, exclamando, numa das suas últimas falas, que “não é de modo nenhum indigno que um inimigo sofra por parte dos seus inimigos”.

Por último, a vinculação genealógica entre Saramago e os Cainistas assinala a profunda religiosidade de Saramago, ancorada, ainda que negativamente, na ostentação orgulhosa do desafio a Jahvé.  

O que pesa a Saramago é a determinação cosmológica e moral do Jahveismo (e isso independentemente de circunstancialismo políticos), espécie de incisão externa sobre si, exactamente como aos antigos gnósticos. Esta angústia profunda da influência bíblica e, já agora, trágica, esmaga Saramago e obriga-o a reagir com virulência e ostentação. Nada que não conheçamos já, embora algo invulgar, num tempo de placidez e suave circulação da existência reticular em que vivemos. Como assinala Sloterdijk, estes discursos algo anacrónicos que nos cortam da rede, que nos afastam da placidez frouxa e doentia em que vivemos, traz consigo essa virtualização, ou esse desejo, de religação, de religioso, e sem esse desejo, sem esse estranhamento de si e do mundo, não há salvação.        

Claro que Saramago diz que é ateu, que não tem angústias nenhumas, etc. Mas isso não tem importância nenhuma. A sua obra está para lá dos seus circunstancialismos psicológicos, morais e políticos, e a sua obra, e este Caim, é uma obra religiosa por antonomasia, a provar que não há religião mais verdadeira que aquela que duvida de Deus.  

  Notas
 

[1] O Daimon socrático, por exemplo, constitui, para o mundo Ocidental, a perigosa irredutibilidade de uma particular ligação a um divino particular que existirá em nós e que não responde perante as leis da cidade. Este desafio às leis da cidade, este antinomianismo socrático (insuficientemente tematizado pela investigação filosófica), foi, aliás, o que conduziu Sócrates à morte (ainda que no trágico, ou agónico, respeito pelas leis da cidade). O mesmo se poderia dizer, ou semelhante, da Antígona, de Sófocles,  

“‘condenada pelo destino’, ‘contrariada pelas estrelas’ no sentido shakespeareano de predestinada à desgraça. Ei-la ‘abandonada por deus’. Mas Sófocles articula o discurso de maneira a obrigar Antígona a perguntar a si própria, e a perguntar-nos a nós, se não foi a sua ‘autonomia’ que escolheu dispensar os deuses … […] Antígona encara-se a entrar numa extinção vazia e inconcebível – qualquer coisa como o ‘grand trou’ de Baudelaire, ‘Tout plein de vague horreur, menat on ne sait où’ – ou em busca de uma reunião incerta com o clã dos mortos fraticidas e que se autodestruíram. Não há Elísio à vista, nem bosque socrático” (Steiner, 1984: 335).  

Mas o campo da mitologia e da dramaturgia clássicas servem-nos, ainda, os mitos clássicos de Prometeu, que prefere o heroísmo e a desgraça à submissão a Zeus, de Sísifo, espécie de herói burlesco e burlão do poder divino, condenado ao absurdo a que, afinal, é capaz de dar sentido ou, ainda, de Jesus de Nazaré, que morre, ou simula morrer, como um ladrão e um miserável, para dar sentido à vida. Se há topos que aqui se articula, em todos estes heróis, ocidentais, é claramente o topos do desafio, da pressão sobre os limites da identidade própria e alheia, e não o “diálogo” e o “face-a-face”.

[2] A erupção permanente de violência no TaNaKh, mas também na morte de Jesus, tira todo o sentido à explicação do “sinal” de Caim como uma barreira contra a violência.  

[3] O mesmo acontece com o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, ele próprio uma chave hermenêutica importante para ler Caim.

  BIBLIOGRAFIA
 

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STEINER, George (1984), Antígonas, Ed. Relógio D’Água, Lisboa.

 

 

 

Francisco Teixeira (Portugal)
Francisco José Alves Teixeira é Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia da UCP, tendo concluído a componente curricular do Mestrado "Metafísica e Antropologia", pela mesma faculdade; é Mestre em Filosofia pela UM, com a tese "O Mundo sem Fundamentos, uma Aproximação ao Neopragmatismo e ao Construtivismo, através de Rorty, Maturana, Varela e Glasersfeld" e Doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia da UCP, com a tese “A Produção da Realidade.Construtivismo Radical e Autopoiesis”. É, ainda, professor efectivo de Filosofia, do Ensino Secundário, na escola Secundária Francisco de Holanda e formador de professores nos Centros de Formação de Professores de Francisco de Holanda e Martins Sarmento, bem como membro do Centro de Estudos Filosóficos (Facfil da UCP) e do Projecto de Investigação em Ciências Cognitivas (da mesma faculdade).
Francisco Teixeira é autor, entre outros, dos seguintes artigos conferências e livros: "Autopoiesis, Cognição e Linguagem" (XVI Encontro da Associação Portuguesa de Linguística - Coimbra); "Rorty e a Verdade na Galáxia da Pós-Modernidade" (II Colóquio do Outono - "A Cultura na Galáxia da Pós-Modernidade", Universidade do Minho); “A Propósito de "O Sentimento de si" (ou o Erro de Damásio)” , Revista Portuguesa de Filosofia; “A Escola, a Educação Sexual e a Identidade pessoal” (VI Congresso Galaico-Português de Psicopedagogia”, Universidades do Minho e da Corunha); “Biologia, Escola e Cidadania” (Revista Elo, CFFH); “Cultura Matrística e Currículo” (“V Colóquio sobre Questões Curriculares: Currículo e Produção de Identidades”, Universidade do Minho) e, entre muitos outros, “Identidade Pessoal-Caminhos e Perspectivas”, da editorial Quarteto, 2004, Coimbra.

 

 

© Maria Estela Guedes
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