REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

   

 

 

Ao se falar do gaúcho Raul Bopp (1898-1984) a referência comum é de que tenha sido autor de um único livro, neste caso o largamente conhecido Cobra Norato (1931). A razão central disto é o profundo desconhecimento de sua obra por parte de todos nós, brasileiros. A própria discussão estética a seu respeito é bastante resumida, ressalvando três casos de maior latitude e mais ampla visão crítica: estudos assinados por Américo Facó, Othon Moacyr Garcia e Lígia Morrone Averbuck. Outro lugar-comum é considerar idênticos em importância os livros Cobra Norato e Macunaíma (1928), este último de Mário de Andrade. Se há uma consonância temática, vista tanto a partir de uma paixão amazônica quanto de uma obsessão nômade, há no mínimo que se reconhecer que Raul Bopp resolveu estruturalmente melhor o diálogo proposto com o enigma voraz das terras do sem-fim. Basta lembrar uma observação de Murilo Mendes, ao dizer que Bopp jamais caiu “nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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FLORIANO MARTINS

 

Raul Bopp

                                                                  
 

Já nos disse Wilson Martins que “o Modernismo foi uma escola ambulante e perambulante, fascinado pela descoberta geográfica e medusado pela descoberta cronológica”. Contudo, diversas são as razões desse fascínio. Vão do exibicionismo de um Oswald de Andrade à aventura anímica de um Raul Bopp. O fato é que, desse entrecorte de viagens, seguramente a poesia de Bopp nos dá uma dimensão poética mais ampla do que aquela encontrada nos versos de Mário e Oswald. A dificuldade maior em colocar tais assuntos à mesa é que os mesmos estão sempre assistidos por uma série de prerrogativas acerca de um supostamente inquestionável valor dos capitães de nosso Modernismo.

Quando em 1998 tivemos uma edição da Poesia Completa de Raul Bopp, organizada e comentada por Augusto Massi, este precioso objeto finalmente permite uma boa compreensão dos aspectos a seguir mencionados. O livro reúne, além da poesia, breve cronologia, fortuna crítica e estudo introdutório e boa iconografia. Logo na introdução, Massi indaga sobre os obstáculos na recepção e conhecimento “mais amplo” da obra de Raul Bopp, logo situando que tal obra “nos transmite uma experiência da viagem e do diálogo à qual não temos mais acesso, anestesiados pelo excesso de turismo e comunicação”. Creio que há aí um deslocamento de pertinências. E basta observar alguns dados fornecidos pelo próprio Massi, no decorrer de seu estudo, em especial nos momentos em que toca em temas como profusão imagética (“Está mais próximo da linhagem onírica dos surrealistas do que das técnicas de montagem e corte cubo-construtivistas, praticadas por Oswald e Cabral”) e acento estilístico (“A contrapelo da lírica moderna brasileira, em Bopp praticamente inexiste veio confessional ou discurso autobiográfico”).

No âmbito do Surrealismo, o próprio Bopp referiu-se, em conferência datada em 1944, à “frescura primitiva” do que ele chamava de “surrealismo brasileiro”. Ao comentar o assunto, observou muito bem Lígia Averbuck: “Como em todos os processos surrealistas, ao proscrever a retórica usual, sua escritura mostra as coisas na sua nudez perturbadora e no impacto subversivo de sua verdade”. Quanto ao confessionalismo, Bopp é primoroso ao salientar o “lirismo bojudo do poeta [Augusto Frederico] Schmidt”, em carta a Jorge Amado e Carlos Echenique, que funciona como prólogo à única edição de Urucungo (1932).

Creio então que estes aspectos todos que constituem a identidade da obra de Raul Bopp, na verdade a identidade incontestável de seu próprio autor, são algo suficiente para um mínimo de deslocamento ou folclorização da importância de sua dimensão poética. Além disto, temos algumas leituras discutíveis, tanto no tocante ao vínculo com uma saga indianista quanto à influência exacerbada do Futurismo. Na fortuna crítica recolhida por Augusto Massi há referências a uma identificação de sua poética com a de Gonçalves Dias, em menções vindas de Oswald e Carlos Drummond de Andrade. Por sua vez, no livro A escrituração da escrita (1996), Gilberto Mendonça Teles observa que “mesmo num poema de cunho nacional como Cobra Norato […] encontramos a locomotiva futurista metamorfoseada no mito indígena da ‘cobra grande’, na região amazônica”.

Temos aí dois exemplos de uma leitura distorcida que sofreu a obra poética de Raul Bopp. Wilson Martins chegou a dizer que Cobra Norato “tem o valor exemplar de fechar o ciclo da poesia indianista no interior do Modernismo”. Bopp disse haver procurado um “verso novo que captasse uma linguagem nova, que rompesse com o procedimento formal do verso”. Isto quer dizer que buscou a invenção a partir de uma identificação. Seu nomandismo não era de gabinete, assim como, ao contrário de Gonçalves Dias, não emprestou voz à agonia alheia. Não lhe interessou jamais uma mitificação da própria voz. Sequer há traços indianistas em sua poética, exceto se compreendermos o diálogo com um determinado imaginário como submissão ao mesmo.

Idêntica impertinência registra-se na acima citada afirmação de Mendonça Teles. Primeiro porque Cobra Norato não se trata de um poema de cunho nacional e sim poético. Além disto, a retórica trocadilhesca do crítico goiano habitualmente tolda sua leitura estética em torno de inúmeros assuntos. Não bastasse o fato da cobra (animal) ser anterior ao trem (objeto), há toda uma mitologia em torno do erotismo que ultrapassa os domínios de um malabarismo de signos proposto pelo Futurismo. A propósito, vale lembrar que o trem jamais dividiu o Brasil em dois meridianos, como anunciava Oswald. Há, portanto, uma dupla ingenuidade, de ordem indianista e futurista, no tocante à poesia de Raul Bopp.

O que parece haver perseguido Raul Bopp foi uma realocação do eu poético. Por sua natureza nômade, buscou fundir ao verso uma amplitude de deslocamento, um movimento cortante. Basta ler o estudo de Othon Moacyr Garcia, que se preocupa antes com a poesia e não com os artifícios literários. O acento estilístico de Bopp radica na ampla utilização de perífrases e na presença constante de gerúndios e diminutivos inusuais. Além disto, não deixou nunca de apontar as fontes. Vinham inicialmente do Simbolismo da adolescência, consubstanciando-se na descoberta de textos como os recolhidos por Antonio Brandão de Amorim, em 1916, para uma edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acerca dos mitos e lendas do Amazonas. Ele próprio disse, ao referir-se a uma leitura do “espírito da selva”, haver percebido ali “as profundas vibrações num clima surrealista”.

É curioso observar, após a leitura combinada de todos os poemas de Bopp, incluindo suas incansáveis versões, que aquela referência inicial, ou seja, de que se trata de um autor de um único livro, no caso Cobra Norato, possui algo de verídico. Não digo isto em um sentido redutor, mas antes atento ao fato de que sua poética já estava constituída desde as anotações primárias. Toda a grandeza de seu erotismo, da corporificação do mito, ambição anímica, a preciosidade dos jogos de associação de linguagem, a originalidade imagética, tudo, já havia antes e pouco se desdobrou após a escritura de Cobra Norato. No entanto, há que lembrar outro aspecto: Bopp esteve incansavelmente a reescrever seus poemas. Tudo isto fundamenta a idéia de um mundo em perene formação. Claro, coincidia com alguns padrões de movimento propostos pelas vanguardas na segunda década do século XX, porém sem a intenção burocrática das mesmas. Não quis fundar nenhum novo indianismo e mesmo seu vínculo com a antropofagia buscava justamente uma discussão em torno da priorização de uma sintaxe sobre as demais.

Digno de elogio, conclua-se, é o empenho de Augusto Massi pela recolha da obra poética de Raul Bopp. Seu trabalho de recuperação dos poemas é notável. Anota as diversas versões que tiveram a maior parte dos poemas de Bopp, por vezes reproduzindo, em notas ao final de cada capítulo, a versão original de alguns desses poemas, como são exemplos todos aqueles que constituem o livro Urucungo. Ao mesmo tempo, o livro deixa a desejar no tocante à montagem da fortuna crítica, assim como não propõe nenhuma discussão mais aprofundada em torno deste importante escritor brasileiro. Acrescente-se, como ilustração final, que a obra de Raul Bopp é constituída pela poesia – na verdade Cobra Norato, Urucungo e poemas esparsos reunidos pelo autor em Putirum (1969) – e uma seqüência mais extensa de prosa crítica (ensaios, entrevistas, anotações memorialistas). Neste segundo segmento encontramos as razões necessárias à compreensão de sua estética e de seus vínculos com o Modernismo.

 

 

Floriano Martins (Fortaleza, 1957)
Poeta, ensaísta, tradutor, editor e artista plástico. Participou das seguintes mostras coletivas:
“O surrealismo” (Escritório de Arte Renato Magalhães Gouvêa, São Paulo, 1992), “Lateinamerika und der Surrealismus” (Museo Bochum, Köln, 1993), “Collage - A revelação da imagem” (Espaço expositivo Maria Antônia/USP, São Paulo, 1996), e “I Muestra Internacional de Poesía Visual y Experimental” (Escuela de Artes Plásticas Armando Reverón, Caracas, 2009). Em 2005, participou como “artista convidado” da edição # 17 da Agulha – Revista de Cultura, com uma mostra de 50 colagens. Assina diversas capas de livros seus e de outros autores. Em maio de 2000 realizou o espetáculo Altares do Caos (leitura dramática acompanhada de música e dança), no Museu de Arte Contemporânea do Panamá. Um ano antes também havia realizado uma leitura dramática de William Burroughs: a montagem (colagem de textos com música incidental), na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Em 2006, a mostra Teatro Impossível, reuniu leitura de poemas, canções, colagens e fotografias (Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza). Espetáculo similar realizou em 2009, durante o Festival Internacional da Cultura (Colombia). Esteve presente em festivais de poesia em países como Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Coordena a coleção “Ponte Velha”, de autores portugueses, da Escrituras Editora. Em 2009, publicou os seguintes livros: A alma desfeita em corpo (poemas, Lisboa), Fuego en las cartas (antologia poética, Espanha), A inocência de Pensar (ensaios, Brasil) e Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos (entrevistas, Venezuela).
CONTATO: floriano.agulha@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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