REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

 

 

Caminhava trôpego em minha direção, as calças arriadas, repetindo a menina tem de guardar segredo, não pode contar pra ninguém ninguém, nem pro noivo. O noivo, Rafael, na verdade colega de trabalho, já retornara ao Brasil e tinha o maior carinho pelo português, amigo inseparável do pai.

Caminhava trôpego em minha direção, e as malas tinham ficado embaixo da escada, estocada com os mantimentos, e meu voo sairia dentro de duas horas.

Avaliei a situação de forma rasteira e fui me afastando passo a passo e logo tive de parar, porque esbarrei num monte de caixas empilhadas. No espaço, exíguo, eu não via nenhuma chance de escapar e a porta estava trancada. Ele passou a chave assim que entramos, achei estranho, mas não suspeitei nada grave, pensei ser mania de velho.

O cozinheiro, vestido de impecável branco, não estava lá, como da primeira vez. Também a mesa não estava posta, apesar do prometido almoço.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Branca Maria de Paula

MENINA QUERIDA

 

 

                                                                Foto de Ana Valadares 

 

O filho da mãe preparou uma armadilha pra mim. E eu caí, feito uma ‘menina’ mesmo. Tudo bem arquitetado, percebo agora. Tão logo Rafael voltou pro Brasil, ele começou a me ligar, bem cedinho ou à noite. E me convidava para conhecer Azenhas do Mar, pra visitar Sintra e Cascais, para comer cozido, bacalhau e docinhos. Eu sempre agradecia de forma delicada: desta vez não vai ser possível, mas da próxima prometo me programar melhor, é que o congresso, o senhor sabe, absorve todo o meu tempo, coordeno algumas mesas, impossível sair, minha agenda está repleta de compromissos etc.

Mas o sujeito não desistiu e ligou a semana inteira, até eu dizer que já estava de partida.

Se calhar, vais ter que almoçar antes de embarcar, percebes?

            Sem dúvida, concordei.

            Pois. Almoças comigo. O meu motorista apanha-te, a menina traz tudo que precisar e pronto.

            Ai, que saco, pensei. Lá vou eu ser boazinha e me despedir do amigo do pai do Rafael! De que adiantou pagar terapia? Por outro lado, não vai ser tão ruim assim. Apesar de o lugar ser uma pocilga, fomos recebidos com honrarias. Comemos uma lagosta deliciosa, bebemos vinho da melhor qualidade e eu conheci outra face da cidade. Vou reclamar de quê? Tão gentil senhor, o que vai me custar?

            Um pouco de transtorno, é tudo. Fechei as malas com antecedência, acertei a conta do hotel e esperei o motorista me pegar. Simples assim. De lá eu iria direto para o aeroporto. Estava doida pra voltar pro Rio, porque Lisboa fora uma maratona exaustiva e eu não pude escapar nenhum dia para passear.

            Agora, ainda tinha de resolver a questão do português. Lá fui escada acima, pensando que teria de ainda pagar essa espécie de pedágio.

            Ele se desmanchou em mesuras, todo cortês.

            Porta devidamente trancada, me fez sentar no sofá maltrapilho. Na sala/escritório/ cozinha, ninguém além do velho. Nem mesmo o cozinheiro.

            Ele se desmancha em mesuras, e o tempo passa.

            E o teu noivo, o Rafael, acaso telefonou?

            Não, sim. Telefonou outro dia.

            E dissestes que vinhas cá...

            Não. Quer dizer, falei que talvez viesse. É que ele ligou no meio da semana.

            Estou a ver.

            Ele sacudiu a cabeça, visivelmente satisfeito.

            Farejei encrenca e percebi que mentir teria sido mais prudente. Devia ter dito que falei com Rafael pouco antes de sair, que lhe contei que almoçaria com o amigo do pai dele e que ele ficara feliz. Mas que merda! Ninguém sabe que estou aqui. Rigorosamente ninguém. O motorista enfiou minhas malas no porão e escafedeu-se. O sobrado fica em algum lugar do porto, nem sei bem onde estou, isso é certo. E o almoço? Se continuar nesse ritmo, vou perder o avião.

            Há quanto tempo mesmo o senhor fornece víveres para navios mercantes? – perguntei por que não atinava com o que dizer. Mas ele não responde, nem me escuta. Está ocupado em avaliar minhas pernas. Aliás, meu pedaço de perna que a sai comprida deixa entrever. Puxa vida, e agora?

            O volumoso senhor raspa a garganta e desabotoa o primeiro botão da camisa, suarento. Penso em um porco. Um porco albino, com muita banha a ser aproveitada.

            Sinto cheiro de peixe velho. Estou perdida, talvez morta, vou acabar num congelador de terceira, em postas mal acondicionadas.

            E o almoço que o senhor me prometeu? Meu avião não demora...

            Ora pois, sim, senhora. Um instantinho só, que não demora nada.

            Olho em volta. O ambiente beira ao sórdido. Como não tinha visto isso? Em companhia de Rafael, não prestara muita atenção nas coisas e achamos graça de tudo. Nas discrepâncias, por exemplo. Eu comendo com talheres reluzentes, no único prato de porcelana, e eles, em pratos descascados. Eles bebendo vinho em canecas e eu, em copo de cristal.

            Finalmente o homem se levanta e prepara, a contragosto, algumas postas de peixe. Enquanto se movimenta, fala do amigo ausente, o mano querido, pai do Rafael, ai que saudades!

            Eu tenho certeza que a situação não está sob controle. Pelo menos, não sob o meu controle. Minha boca está completamente seca. Como vou sair dessa?

            Obrigada, senhor, foi um prazer imenso, muito amável, coisa e tal, mas agora tenho de ir.

            Pensei em dizer isso e cheguei a me levantar, mas ele se virou e me encarou com inquestionável autoridade.

Eu ajeito a saia e me sento de novo, avaliando minhas reais possibilidades de sair viva daquele lugar. Qual poderia ser a barganha? Se eu tivesse de lutar, que armas usaria? A faca de cozinha que ele agora empunha para fatiar a cebola? A pedra que descansa sobre as notas fiscais, como se aqui pudesse ventar? Ou o troféu em mármore?

O almoço, enfim. Engulo o medo crescente e me esforço para comer. Bebo vinho e água a cada garfada, sem fazer a mínima ideia do gosto que teria o peixe. Preciso me livrar desse homem, tenho que sair desta.

Muito bom, o peixe! O senhor cozinha bem mesmo, quem diria, hein? Um homem de negócios...

Ele mostrou os dentes amarelos, tão amarelos como os dedos manchados de fumo.

            A menina é que é uma querida.

            Senti um arrepio de medo, pois percebi uma inflexão malévola quando ele disse ‘querida’.

            Terminei rapidamente e, olhando o relógio, me levantei. Tenho de manter a calma, não posso mostrar medo. Se ele perceber que estou fraquejando, ele ataca. Bicho e gente, nenhuma diferença.

            Está quase na hora. Quero muito lhe agradecer - eu disse, fazendo menção de pegar a bolsa.

            Ó menina, tira lá as cuequinhas!

            A ordem, porque era uma ordem, me deixou paralisada. Olhei o homem, perplexa. Então ele repetiu, agora mais alto e ríspido.

            Ó menina, mas o que é isto!? Levanta já a saia e tira as cuecas.

            O velho arranca o indefectível paletó xadrez, abre a braguilha e baixa as calças imensas. O espetáculo é deprimente. Ele lembra um gordo pescado, todo branco, transparente, e avança trôpego em minha direção.

            Eu olho de novo o relógio e a porta trancada. Dou-me conta de que se tivesse sorte sairia de lá viva.

            A menina tem de guardar segredo, não pode contar para o noivo, nem para a melhor amiga. Tudo há de ficar entre os dois, só entre os dois, ele repete enquanto arranca aquela coisa frouxa lá de dentro.

            Oh, sim, tenho chances, penso. E reavalio a situação.

            Abaixo a calcinha e me abandono. Não estou mais aqui. Em questão de segundos (não sei onde esconde a varinha mágica) o homem fica teso e tudo se passa de forma rápida.   

Cheia de susto e asco, pergunto onde é o banheiro.

            Ainda ofegante ele indica uma portinha, camuflada atrás dos fardos.

            Não tem água corrente, apenas um balde com água turva e uma privada empesteada. Quartinho imundo e malcheiroso. Como eu. Tenho nojo da porra do homem, tenho nojo da água do balde.

Vacilo um milésimo de segundo, se tanto. Não posso me dar ao luxo, senão perco meu voo de volta. Lavo-me na água de aspecto duvidoso, menos maléfica que as golfadas do gordo pescado. Apresso-me, pois não tenho tempo para frescuras. A contagem regressiva já começou e não faço ideia de como chegar ao aeroporto.

            Quando saio do quartinho, no entanto, o velho está vestido com seu indefectível paletó xadrez e a porta do escritório, escancarada.

            Abrindo um largo sorriso, ele volta a ser o cordial amigo do pai do Rafael.

            Depressa, menina! Depressa, que avião não espera!       

 

 

 

Do livro Segunda Pele - inédito

 

 

Branca Maria de Paula, escritora, fotógrafa e roteirista. Nasceu em Aimorés, Minas Gerais, Brasil. Tem 16 livros publicados. Entre eles, Fundo Infinito, contos eróticos, lançado na Itália em 2007. Participa da antologia Intimidades (Dez Contos Eróticos de Escritoras Portuguesas e Brasileiras). É autora do roteiro Amor Barroco, ficção longa-metragem. Recebeu vários prêmios literários.
Vive em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

www.paginadacultura.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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