O filho da mãe preparou uma
armadilha pra mim. E eu caí, feito uma ‘menina’ mesmo. Tudo bem
arquitetado, percebo agora. Tão logo Rafael voltou pro Brasil, ele
começou a me ligar, bem cedinho ou à noite. E me convidava para conhecer
Azenhas do Mar, pra visitar Sintra e Cascais, para comer cozido,
bacalhau e docinhos. Eu sempre agradecia de forma delicada: desta vez
não vai ser possível, mas da próxima prometo me programar melhor, é que
o congresso, o senhor sabe, absorve todo o meu tempo, coordeno algumas
mesas, impossível sair, minha agenda está repleta de compromissos etc.
Mas o sujeito não desistiu e ligou
a semana inteira, até eu dizer que já estava de partida.
Se calhar, vais ter que almoçar
antes de embarcar, percebes?
Sem dúvida, concordei.
Pois. Almoças comigo.
O meu motorista apanha-te, a menina traz tudo que precisar e pronto.
Ai, que saco, pensei.
Lá vou eu ser boazinha e me despedir do amigo do pai do Rafael! De que
adiantou pagar terapia? Por outro lado, não vai ser tão ruim assim.
Apesar de o lugar ser uma pocilga, fomos recebidos com honrarias.
Comemos uma lagosta deliciosa, bebemos vinho da melhor qualidade e eu
conheci outra face da cidade. Vou reclamar de quê? Tão gentil senhor, o
que vai me custar?
Um pouco de
transtorno, é tudo. Fechei as malas com antecedência, acertei a conta do
hotel e esperei o motorista me pegar. Simples assim. De lá eu iria
direto para o aeroporto. Estava doida pra voltar pro Rio, porque Lisboa
fora uma maratona exaustiva e eu não pude escapar nenhum dia para
passear.
Agora, ainda tinha de
resolver a questão do português. Lá fui escada acima, pensando que teria
de ainda pagar essa espécie de pedágio.
Ele se desmanchou em
mesuras, todo cortês.
Porta devidamente
trancada, me fez sentar no sofá maltrapilho. Na sala/escritório/
cozinha, ninguém além do velho. Nem mesmo o cozinheiro.
Ele se desmancha em
mesuras, e o tempo passa.
E o teu noivo, o
Rafael, acaso telefonou?
Não, sim. Telefonou
outro dia.
E dissestes que vinhas
cá...
Não. Quer dizer, falei
que talvez viesse. É que ele ligou no meio da semana.
Estou a ver.
Ele sacudiu a cabeça,
visivelmente satisfeito.
Farejei encrenca e
percebi que mentir teria sido mais prudente. Devia ter dito que falei
com Rafael pouco antes de sair, que lhe contei que almoçaria com o amigo
do pai dele e que ele ficara feliz. Mas que merda! Ninguém sabe que
estou aqui. Rigorosamente ninguém. O motorista enfiou minhas malas no
porão e escafedeu-se. O sobrado fica em algum lugar do porto, nem sei
bem onde estou, isso é certo. E o almoço? Se continuar nesse ritmo, vou
perder o avião.
Há quanto tempo mesmo
o senhor fornece víveres para navios mercantes? – perguntei por que não
atinava com o que dizer. Mas ele não responde, nem me escuta. Está
ocupado em avaliar minhas pernas. Aliás, meu pedaço de perna que a sai
comprida deixa entrever. Puxa vida, e agora?
O volumoso senhor
raspa a garganta e desabotoa o primeiro botão da camisa, suarento. Penso
em um porco. Um porco albino, com muita banha a ser aproveitada.
Sinto cheiro de peixe
velho. Estou perdida, talvez morta, vou acabar num congelador de
terceira, em postas mal acondicionadas.
E o almoço que o
senhor me prometeu? Meu avião não demora...
Ora pois, sim,
senhora. Um instantinho só, que não demora nada.
Olho em volta. O
ambiente beira ao sórdido. Como não tinha visto isso? Em companhia de
Rafael, não prestara muita atenção nas coisas e achamos graça de tudo.
Nas discrepâncias, por exemplo. Eu comendo com talheres reluzentes, no
único prato de porcelana, e eles, em pratos descascados. Eles bebendo
vinho em canecas e eu, em copo de cristal.
Finalmente o homem se
levanta e prepara, a contragosto, algumas postas de peixe. Enquanto se
movimenta, fala do amigo ausente, o mano querido, pai do Rafael, ai que
saudades!
Eu tenho certeza que a
situação não está sob controle. Pelo menos, não sob o meu controle.
Minha boca está completamente seca. Como vou sair dessa?
Obrigada, senhor, foi
um prazer imenso, muito amável, coisa e tal, mas agora tenho de ir.
Pensei em dizer isso e
cheguei a me levantar, mas ele se virou e me encarou com inquestionável
autoridade.
Eu ajeito a saia e me sento de
novo, avaliando minhas reais possibilidades de sair viva daquele lugar.
Qual poderia ser a barganha? Se eu tivesse de lutar, que armas usaria? A
faca de cozinha que ele agora empunha para fatiar a cebola? A pedra que
descansa sobre as notas fiscais, como se aqui pudesse ventar? Ou o
troféu em mármore?
O almoço, enfim. Engulo o medo
crescente e me esforço para comer. Bebo vinho e água a cada garfada, sem
fazer a mínima ideia do gosto que teria o peixe. Preciso me livrar desse
homem, tenho que sair desta.
Muito bom, o peixe! O senhor
cozinha bem mesmo, quem diria, hein? Um homem de negócios...
Ele mostrou os dentes amarelos,
tão amarelos como os dedos manchados de fumo.
A menina é que é uma
querida.
Senti um arrepio de
medo, pois percebi uma inflexão malévola quando ele disse ‘querida’.
Terminei rapidamente
e, olhando o relógio, me levantei. Tenho de manter a calma, não posso
mostrar medo. Se ele perceber que estou fraquejando, ele ataca. Bicho e
gente, nenhuma diferença.
Está quase na hora.
Quero muito lhe agradecer - eu disse, fazendo menção de pegar a bolsa.
Ó menina, tira lá as
cuequinhas!
A ordem, porque era
uma ordem, me deixou paralisada. Olhei o homem, perplexa. Então ele
repetiu, agora mais alto e ríspido.
Ó menina, mas o que é
isto!? Levanta já a saia e tira as cuecas.
O velho arranca o
indefectível paletó xadrez, abre a braguilha e baixa as calças imensas.
O espetáculo é deprimente. Ele lembra um gordo pescado, todo branco,
transparente, e avança trôpego em minha direção.
Eu olho de novo o
relógio e a porta trancada. Dou-me conta de que se tivesse sorte sairia
de lá viva.
A menina tem de
guardar segredo, não pode contar para o noivo, nem para a melhor amiga.
Tudo há de ficar entre os dois, só entre os dois, ele repete enquanto
arranca aquela coisa frouxa lá de dentro.
Oh, sim, tenho
chances, penso. E reavalio a situação.
Abaixo a calcinha e me
abandono. Não estou mais aqui. Em questão de segundos (não sei onde
esconde a varinha mágica) o homem fica teso e tudo se passa de forma
rápida.
Cheia de susto e asco, pergunto
onde é o banheiro.
Ainda ofegante ele
indica uma portinha, camuflada atrás dos fardos.
Não tem água corrente,
apenas um balde com água turva e uma privada empesteada. Quartinho
imundo e malcheiroso. Como eu. Tenho nojo da porra do homem, tenho nojo
da água do balde.
Vacilo um milésimo de segundo, se
tanto. Não posso me dar ao luxo, senão perco meu voo de volta. Lavo-me
na água de aspecto duvidoso, menos maléfica que as golfadas do gordo
pescado. Apresso-me, pois não tenho tempo para frescuras. A contagem
regressiva já começou e não faço ideia de como chegar ao aeroporto.
Quando saio do
quartinho, no entanto, o velho está vestido com seu indefectível paletó
xadrez e a porta do escritório, escancarada.
Abrindo um largo
sorriso, ele volta a ser o cordial amigo do pai do Rafael.
Depressa, menina!
Depressa, que avião não espera!
Do livro Segunda Pele -
inédito |