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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 14
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O
Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago oferece imensas
possibilidade de estudo porque muito rico no nível literário, da
intertextualidade, da realidade social e política.
A
história parece simples à primeira leitura. Fernando Pessoa morto
aparece várias vezes a Ricardo Reis, vindo do Brasil, depois da sua
chegada a Portugal. Sem sabermos quem era Ricardo Reis ou, melhor dito,
que era (só) um produto da imaginação de Fernando Pessoa, uma personagem
que vem pintada segundo a imagem de uma pessoa verdadeira, que realmente
existiu, ele parece um homem normal e não apresenta dúvidas sobre a sua
veracidade. Quando olharmos para o que está por detrás da história, os
elementos dos quais Saramago se serviu para inventar ou reinventar à sua
maneira as personagens, percebemos que é tudo muito mais complexo do que
parece à primeira vista. |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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BARBARA JURSIC
As personagens femininas em
O Ano da Morte de
Ricardo Reis |
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Fernando Pessoa, que realmente existiu, aparece no
romance como um fantasma, um homem já morto que aparece a Ricardo Reis
que, por sua vez, tenta ser ou tornar-se personagem verdadeira e não
ficar só na qualidade de heterónimo de Fernando Pessoa. Os seus esforços
são bastante vãos e, em vez de o levarem para uma vida nova, para uma
existência só dele, para a individualidade, o protagonista acaba por
seguir Fernando Pessoa ao cemitério dos Prazeres, finaliza o seu
percurso na terra dos mortos, mortos fisicamente.
No
romance há duas personagens femininas diametralmente opostas que são
muito importantes na vida de Ricardo Reis e têm também um forte valor
simbólico.
Marcenda anuncia a morte, a impossibilidade de agir de Ricardo Reis, mas
é ao mesmo tempo uma personagem muito poética e excepcional, e a outra,
Lídia, é a única personagem inteiramente verdadeira, ela é vida e não
tem nada de fantástico, tem uma voz e um corpo e é o laço de Ricardo
Reis com o mundo (real). |
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Marcenda – ilusão ou espelho de Ricardo Reis? |
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Marcenda, já pelo nome, como lemos no romance, “este nome de Marcenda não
o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro lugar, femininos mas
de raça gerúndia”,
parece um fantasma também, como se tentasse existir sem inteiramente
conseguir. Esta personagem surge na vida de Ricardo Reis como uma
aparição, com a sua mão paralítica que atrai a atenção, porém, apesar de
morta, a mão parece a parte mais viva de todo o seu corpo. Marcenda
parece ausente deste mundo, menos presente do que um fantasma.
Essa musa etérea que
poderia à primeira vista alinhar-se com as de Cloe, Neera e Lídia
que o engenho pessoano criara, é uma espécie de traição romanesca
tragicamente instaurada desde o nome.
O nome da protagonista anuncia que ela deve murchar, ela é marcenda, não é
imarcescível. A protagonista é musa, mas não eterna e incorruptível,
porque “marcenda é aquela que deve murchar, aquela a quem falta a
eternidade e que está fadada a ser mortal”.
A personagem, durante a leitura, nem nos parece mortal, parece menos do
que um fantasma, quase inexistente. Ricardo Reis, que é de certo modo um
fantasma e, por isso, quase inexistente, envolve-se com ela
emocionalmente, porque se sente atraído pela sua rarefacção, em tudo
semelhante a ele.
Marcenda, estranho nome,
nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo,
les sanglots longs de l’automne, os alabastros, os balaústres, esta
poesia de sol-posto e doente irrita-o, as coisas de que um nome é
capaz, Marcenda.
O seu nome perturba Ricardo Reis como se de um velho segredo, um mistério,
quase de um esconjuro se tratasse; como se fosse irreal, só um murmúrio,
um eco, algo que toca levemente a nossa consciência e passa, que não é
mais do que fruto da nossa imaginação ou sensibilidade excessiva, alguma
coisa leve, mas ao mesmo tempo fria e petrificada, que passa, embora
permaneça qual pequena memória que irrita. Marcenda irrita Ricardo Reis,
porque estabelece com ele uma relação diferente de todas as suas
anteriores. Às vezes, temos a sensação de que não se trata de um ser
vivo, antes as vibrações de um nome, Marcenda.
Todavia, a personagem parecendo tão angelical, com a sua mão paralítica,
anuncia a morte, a impossibilidade de agir de Ricardo Reis. Marcenda
reforça o falhanço de Reis em se autonomizar. No horizonte deste romance
onde pululam os fantasmas, esta mulher é mais um ou apenas uma sombra
deles.
A somar a isto, Marcenda lembra também as musas antigas das Odes do
heterónimo Ricardo Reis. Reis, personagem, tenta construir a sua
história depois de voltar do Brasil como a jovem tenta construir a sua
própria, mas tanto um como o outro não conseguem fazê-lo. A personagem
não tem forças para agir, para fazer o que quer, é incapaz de resistir
às imposições externas, como se pode verificar na seguinte citação: “Meu
pai continua a dizer que devo ir a Fátima e eu vou, só para lhe dar
gosto”.
Marcenda vem a Lisboa para agradar ao pai, que vai ver a amante sob o
pretexto de levar a filha ao médico. “Obedece, não luta, cede, agrada,
mente até, se necessário, não assume”.
Marcenda parece-se muito com Ricardo Reis, personagem, sobretudo na
segunda parte da sua estadia em Portugal, quando já não luta mais e é
incapaz de conquistar a sua identidade. Ela não está no tempo, como
também Ricardo Reis não se encontra no tempo em que vive ou tenta viver
independentemente de Fernando Pessoa, escapando ao heterónimo. Não está
viva, porque nada lhe pertence, nem mesmo a mão inerte. Reis, ao deixar
no fim da narrativa o chapéu que o caracteriza, expressa a sua
desistência. “Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se
usa lá.”
Os dois estão presos no labirinto da sua própria incapacidade.
Não é Ricardo Reis quem
pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que dentro de si
moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas
pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um
fio que o leva por caminhos e corredores ignotos, ao fim dos quais
está uma rapariga vestida de branco que nem pode segurar o ramo das
flores, pois o braço direito dela estará no seu braço, quando do
altar tornarem, caminhando sobre a passadeira solene, ao som da
marcha nupcial.
Num tom bastante irónico o narrador expõe que Ricardo Reis não é capaz de
controlar nem dirigir os seus próprios pensamentos, assim como Marcenda
não consegue mexer a sua mão paralisada. Reis, sem querer, sente-se
próximo desta personagem feminina menina, vê-se casado com ela, o que
não é de estranhar, pois partilham a mesma incapacidade de se imporem ao
mundo.
Marcenda é a aventura do
livro que foi sem ter sido, da musa nova que relembra a musa antiga
e revela a sua própria falência, que é semelhante à falência do
heterónimo no tempo novo de 1936. Se, para continuar a viver 1936 na
Europa, o heterónimo teria que assumir-se personagem na História,
também a musa nova de molde antigo não pode sobreviver, é marcenda,
marcescível.
O destino deles é feito pelos outros, moldado pela incapacidade dos dois
agirem, da sua fragilidade.
Ricardo Reis fez uma
pausa, parecia reflectir, depois, debruçando-se, estendeu as mãos
para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco
para a frente e, continuando a segurar a mão esquerda com a mão
direita, colocou-a entre as mãos dele, como uma ave doente, asa
quebrada, chumbo cravado no peito. Devagar, aplicando uma pressão
suave mas firme, ele percorreu com os dedos toda a mão dela, até ao
pulso, sentindo pela primeira vez na vida o que é abandono total, a
ausência duma reacção voluntária ou instintiva, uma entrega sem
defesa, pior ainda, um corpo estranho que não pertencesse a este
mundo.
Marcenda é a mão inerte, a asa quebrada, o pássaro que não pode voar, a
pessoa que não consegue viver. Será que não pertence a este mundo? O que
provocou a paralisia foi, contudo, uma dor completamente humana, a perda
da mãe, facto que simboliza a possibilidade de doença física causada por
distúrbios emocionais. Ricardo Reis diz a Marcenda: “se está doente do
coração, também está doente de si mesma”.
Ela não consegue livrar-se daquela dor e Ricardo Reis não consegue
escapar à presença de Fernando Pessoa, realidades que os unem
simbolicamente. Quando programam um encontro, o narrador anuncia-o com
um dos seus famosos comentários.
Uma donzela de Coimbra
marca, em furtivo bilhete, encontro com o médico de meia-idade que
veio do Brasil, talvez fugido, pelo menos suspeito, que quinta das
lágrimas se estará preparando aqui.
Esta passagem lembra a conhecida narrativa histórica de Inês de Castro. O
comentário saramaguiano é irónico e anuncia os eventos seguintes. Claro
que a história não é tão cruel como a do século XIV, mas deixa perceber
uma impossibilidade, uma incapacidade parecida. Tal como Pedro e Inês,
Marcenda e Ricardo Reis não ficarão juntos, contudo, enquanto o primeiro
par foi afastado por forças externas, o segundo falhou por incapacidade
emocional de ambos. Apesar de Reis e Marcenda se beijarem, quando ela o
vem ver a casa e depois ao consultório dele, nada mais acontece, porque,
quer um quer o outro, não têm forças para mais. Marcenda recusa o pedido
de casamento de Ricardo Reis, “Marcenda, case comigo”.
Não pode, porque não é somente a sua mão que está morta, é toda ela.
Ricardo Reis escreve-lhe cartas, como se estivesse muito longe, num
outro mundo.
Ricardo Reis tem a
impressão de estar a escrever a alguém a quem nunca tivesse visto,
alguém que vivesse, se existe, em lugar desconhecido. (...) E se é
verdade que beijou essa pessoa que hoje não lhe parece ter alguma
vez visto, a memória que ainda conserva do beijo vai-se apagando por
trás da espessura dos dias.
Marcenda é pintada como um fantasma, como uma aparição e não como uma
pessoa de carne e osso. Como já foi dito, temos a impressão de que
Ricardo Reis nunca encontrou verdadeiramente a rapariga doente.
“Marcenda não é nada”.
A jovem não mora nem neste tempo nem neste espaço. Se mora em algum
lugar, isso não pode estar senão além e acaba por chegar uma carta do
“além”. Nela lemos: “a cidade, donde esta carta verdadeiramente vem,
chama-se Marcenda”.
Ela é um mundo à parte e a sua “cidade” é ligeiramente parecida com
Lisboa na obra estudada, onde “os pombos se recolhiam aos altos ramos
dos olmos, em silêncio, como fantasmas”.
Não somente as pessoas, melhor dito, as personagens do livro, mas também
o resto da natureza, tudo parece fantasmagórico. Para a criação desta
atmosfera etérea contribui a cor das cartas de Marcenda que é “a
conhecida cor de violeta exangue”.
Exangue quer dizer sem forças, débil, sem sangue, o que pode referir-se
a Marcenda, e violeta simbolicamente significa a passagem da vida para a
morte, a involução. Tudo isso ajuda a compor a sua imagem. Na viagem a
Fátima, Ricardo Reis, quando adormece, imagina Marcenda como sendo, não
uma mulher terrestre, mas com características semelhantes à Virgem,
embora seja ele, na sua imaginação, que consegue curá-la, que faz um
milagre.
(...) passou a imagem da
Virgem Nossa Senhora e não se deu o milagre, nem admira, mulher de
pouca fé, então Ricardo Reis aproxima-se, Marcenda levantara-se,
resignada, é então que ele lhe toca no seio com os dedos médio e
indicador, juntos, do lado do coração, não foi preciso mais,
Milagre, milagre (...), e Marcenda, (...), acena com os dois braços
levantados e desaparece (...)
Há aqui um paralelismo imaginário entre Reis e a Virgem, ambos seres de
índole transcendente.
Marcenda parece-se com as musas das Odes do heterónimo Ricardo Reis, das
Neera, Cloe e Lídia. Ricardo Reis personagem reflecte sobre elas desta
maneira: “não são mulheres verdadeiras, mas abstracções líricas”.
Marcenda também podia ser abstracção lírica de Ricardo Reis, a
personagem que é de igual modo sombra/fantasma de uma abstracção
literária de Fernando Pessoa.
Marcenda
encerra-se num livro
modelar de odes arcádicas sem que nunca dele tivesse feito parte, ao
lado das Cloe e das Neera, ocupando, talvez, o espaço de uma certa
Lídia que dessas teias escapou.
Nesta constatação Teresa Cristina Cerdeira afirma que Marcenda ocupou o
espaço da Lídia das odes, e, se continuarmos neste sentido, podemos
dizer que a Lídia deste romance escapou das Odes, dum contexto irreal,
para a vida real, banal talvez mas palpável e verdadeira. |
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Lídia –
ligação com o mundo e a vida |
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“Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor”,
foi assim o primeiro encontro de Lídia – criada e pessoa verdadeira, de
carne e osso, e Ricardo Reis, que se alojou no hotel Bragança em Lisboa.
“Ele poeta, ela por acaso Lídia (...)”.
Lídia, diz, e sorri.
Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas,
lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim, Lídia, à
lareira, como estando, Tal seja, Lídia, o quadro, Não desejemos,
Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te
comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte
(...)
O que acabamos de ler refere-se a Lídia, a musa etérea das odes. A Lídia
que Ricardo Reis encontra não se parece em nada com aquela que vem
cantada ao lado de Neera e Cloe. Lídia é uma mulher do povo que vive a
vida como pode e como sente. A criada de hotel está viva, mesmo que
pareça em momentos banal, o que a torna ainda mais autêntica, real e
verdadeira, diferenciando-se assim das restantes personagens do romance.
A personagem é a única que não tem nada de fantasma.
Reentraria no livro, não
fosse o desacordo evidente entre a musa das odes e a mulher do povo
que o olha e que em breve se deitaria com ele, fugindo por completo
ao arquetípo que ele próprio inventara.
Lídia foge da poesia, do etéreo, do irreal, e vai em direcção ao
quotidiano, ao palpável, ao real, à vida.
Fernando Pessoa, num dos seus encontros com Ricardo Reis, troça dele
comparando a Lídia real com a das odes.
Ah, ah, afinal a tão
falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto
você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões,
esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não
passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato,
você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que
exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio
sábio e puro espírito.
Fica-lhe somente o nome, Lídia, e esse nome, como no caso de Marcenda,
leva-o a um lugar ainda desconhecido. Lídia “frustra todas as suas
expectativas”,
a personagem não tem nada a ver com a homónima que Reis cantava e
imaginava nos seus poemas. A personagem é “só” uma arrumadeira de
quartos de hotel, de outra classe social, não “pode” ser amada por
alguém como ele, ele nem admite a possibilidade de poder apaixonar-se
por ela ou amá-la porque é só uma criada. Não é aquilo que ele esperava.
Não é passiva, não guarda o silêncio sábio, antes pergunta e quer
conversar sobre diferentes temas, sobretudo os da actualidade; é
conhecedora daquilo que se está a passar. Ao contrário da figura
poética, a criada de hotel não crê no amor platónico e vive o amor que
sente por Reis, oferecendo-se ao deleite corporal. Lídia é a vida, a
ligação de Reis à vida, é por ela e através dela que ele se vê unido ao
mundo, ela abre-lhe o caminho para a sua independência.
Com ela, tal como Teseu
pelas mãos de Ariadne, poderia passar da alienação à participação,
de heterónimo a personagem, de persona a pessoa, da ode ao romance,
da morte à vida.
Lídia é o fio que fixa Ricardo Reis à vida quotidiana. Esta personagem, ao
longo do romance, torna-se cada vez mais independente e substantiva.
Lídia, como muito bem sabe Ricardo Reis, tem uma voz e um corpo, ao
contrário de Marcenda.
(...) colocou uma das mãos
sobre a mão de Lídia, fechou os olhos, se não for mais que estas
duas lágrimas poderei retê-las assim, como retinha aquela mão
castigada de trabalhos, áspera, quase bruta, tão diferente das mãos
de Cloe, Neera e a outra Lídia, dos afuselados dedos, das cuidadas
unhas, das macias palmas de Marcenda (...)
Lídia tem de percorrer o caminho da musa de papel de Ricardo Reis para uma
pessoa real, quando o poeta quer o contrário, ou seja, trazê-la da
realidade para a poesia. Ela é vida.
Deita-se com Reis e
protege-o, é materna e submissa; no hotel e na casa nova serve,
criada que é, mas é servida também no gozo e na paixão, na liberdade
que se dá de amar, de ter ciúmes da musa Marcenda que entre os dois
se interpõe, mas sobretudo de ter um filho e de assumi-lo sozinha
como consequência de um acto só seu. Não sonha com igualdade,
casamento ou família porque são outros os seus valores. Contenta-se
com o prazer conquistado dia a dia, misturado ao serviço que
desempenha de criada/mulher.
Lídia é feliz com aquilo que tem, contenta-se com aquilo que exige da
vida. Não pretende conquistar o amor de Ricardo Reis, nem casar com ele,
e chega a dizer-lhe que não deve perfilhar o filho de ambos se não quer.
Lídia limita-se ao que pensa ter direito e é, ainda assim, uma mulher
muito corajosa dentro dos limites sociais de então.
Lídia sente-se feliz,
mulher que com tanto gosto se deita não tem ouvidos, que as vozes
maldigam sobre os saguões e quintais, a ela não lhe podem tocar, nem
os maus-olhados, quando na escada encontra as vizinhas virtuosas e
hipócritas.
Lídia despreza as más-línguas e aceita o que lhe é dado, não se deixando
tolher pelas opiniões dos outros. “São os acasos da vida, É o destino,
Acreditas no destino, Não há nada mais certo que o destino, A morte
ainda é mais certa, A morte também faz parte do destino”,
eis um dialogo bem intrigante entre Lídia e Ricardo Reis.
“Lídia tem essa lucidez benfazeja que diz sempre mais do que se espera
dela, que está sempre um passo além do limite comum da sua classe, da
sua instrução.”
A personagem, nas suas conversas com Ricardo Reis, passa de um tema
corriqueiro para um assunto profundo com facilidade.
(...) singular rapariga
esta Lídia, diz as coisas mais simples e parece que as diz como se
apenas mostrasse a pele doutras palavras profundas que não pode ou
não quer pronunciar (...)
É isto que pensa Ricardo Reis depois de uma das conversas com Lídia que o
surpreende, porque não presta muita atenção às suas palavras e actos. O
protagonista vive noutro mundo, um mundo, como já foi dito, que é mais
parecido com o mundo de Marcenda. Lídia é uma pessoa muito mais
equilibrada e humana do que os outros dois. Ela sabe enfrentar o mundo e
a vida e não tem medo disso. “Sem dúvida, Lídia tem a seu favor a voz do
narrador que se expõe sempre no intuito de favorecer – ao menos no nível
do desejo – os oprimidos.”
Isso também se nota ao ler o romance. Esta mulher é lutadora no seu
dia-a-dia, assume as responsabilidades e as consequências dos seus
actos. Lídia surpreende com a sua atitude quando conta a Ricardo Reis
que está grávida.
Vou deixar vir o menino.
(...) Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força,
por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras,
simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar
o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu.
Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha,
outras de piedade.
Ao filho ainda esperam tempos difíceis porque nascerá em 1937 e quando
crescer haverá uma guerra em que, em princípio, terá de participar. O
menino anuncia o futuro da nação portuguesa nos anos violentos dos
meados do século XX. A guerra colonial começa em 1961, quando o filho de
Lídia terá 24 anos, a idade apropriada para ser enviado a essa guerra.
Quem sabe qual será o seu destino. O filho de Lídia é como um futuro
mártir e a sua mãe “abençoada seja Lídia entre as mulheres”,
citação bíblica que eleva a criada de hotel à altura da mãe de Deus. De
repente, Lídia não é só uma criada qualquer, insignificante e sem
importância. Ela torna-se símbolo da mulher e da mãe portuguesas e o seu
filho, o símbolo dos filhos portugueses, dos jovens portugueses e, por
conseguinte, do futuro da nação. Como lemos no romance, a frase
provavelmente dita por um arcebispo de Mitilene, que é um dos
coadjutores do patriarca de Lisboa, “Portugal é Cristo e Cristo é
Portugal”,
é um exagero, pois, quando Ricardo Reis a disse a Fernando Pessoa, este
largou a rir, mas faz sentido se tivermos em conta o filho de Lídia e da
História que está por vir, porque ele é o menino, qual Cristo, que
representa Portugal, a juventude portuguesa e o seu futuro.
Lembra-se de que Lídia
está grávida, de um menino, (...), e esse menino crescerá e irá para
as guerras que se preparam, repito, há sempre um depois para a
guerra seguinte, façamos as contas, virá ao mundo lá para Março do
ano que vem, se lhe pusermos a idade aproximada em que à guerra se
vai, vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nós em
mil novecentos e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados
plainos, com os olhos da imaginação, mas não sua, vê-o Ricardo Reis,
de balas trespassado, moreno e pálido como é seu pai, menino
só de sua mãe porque o mesmo pai não o perfilhará.
Essas são as palavras do narrador que sabe do destino do filho da Lídia,
ao contrário dela que o ignora. Lídia é a única deste romance que vive o
e no presente. A personagem chora unicamente pelo destino actual do
irmão, pela Badajoz invadida por causa da situação política em que se
encontra Espanha nesse momento, contudo, o que ela chora na última parte
da obra estudada é o seu próprio destino – ela é uma mulher de outra
classe diferente da do “senhor doutor” e por isso menosprezada, a
sentir-se menos, a sentir-se nada! Por isso ainda não é tão amada ou nem
é amada, como devesse ser como mulher, sem ter em consideração a classe
social a que pertence.
Lídia já não chora, diz,
Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os lábios
tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. Ricardo Reis vai para
consolá-la, segurar-lhe o braço, foi esse o seu primeiro gesto,
lembram-se, mas ela furta-se, não o faz por rancor, apenas porque
hoje não poderia suportá-lo. Depois, na cozinha, enquanto lava a
louça suja aculumada, desatam-se-lhe lágrimas, pela primeira vez
pergunta a si mesma o que vem fazer a esta casa, ser a criada do
senhor doutor, a mulher-a-dias, nem sequer a amante porque há
igualdade nesta palavra, amante, amante, tanto faz macho como fêmea,
e eles não são iguais, e então já não sabe se chora pelos mortos de
Badajoz, se por esta morte sua que é sentir-se nada.
Lídia, finalmente, admite que sofre pela divisão das classes e que o seu
amor seria diferente se ela não pertencesse a uma classe social mais
baixa. “Reconhece-se dividida e sabe que deve optar. Entre a sua verdade
individual e a verdade do seu tempo, sente-se visceralmente unida e
feitora deste último.”
Lídia é uma mulher que vive o presente e que opta pela vida. Mesmo
reconhecendo que a sua situação é desfavorável, ela opta pela vida e, no
final, não segue Ricardo Reis ao cemitério, à morte.
Seguisse Ricardo Reis, que
optara pelos “Prazeres”, e ei-la, talvez, de volta ao livro, à
placidez dos campos, enfeitiçada, musa, a Lídia cantada. Segue, no
entanto, Daniel, despede-se de Reis e deixa branca a página de um
livro em que se não quis inscrever, para preencher um outro que lhe
abrira a possibilidade de fazer-se sem ser feita, de escolher como
sujeito e, não de ser escolhida como objecto. Sabe que o irmão, e
com ele o sonho da revolta, está acabado, mas fica porque “a terra
espera” e Daniel é a vítima fecunda de um espectáculo que tem que
continuar.
Se Lídia seguisse Ricardo Reis até à morte poderia voltar às odes, deixar
a vida e ganhar a forma de uma musa, de um objecto incorpóreo, de um
fantasma, cantada, mas insubstancial, impessoal, só um nome cantado por
um poeta, ele também um fantasma, já que não conseguiu existir como
pessoa humana. Ela opta pelo caminho mais difícil, mais exigente, que é
o da vida normal, quotidiana, com todas as suas amarguras e os seus
desafios, obstáculos e preocupações. Contudo, Lídia fá-lo-á sozinha,
será ela que escreverá as páginas do livro da sua vida e não outras
pessoas. Será ela a autora do seu próprio destino. O seu irmão é vítima
daquela situação histórica, mas está entre aqueles que se revoltaram.
Não fica sozinho nessa luta. A sua morte é fecunda, a terra espera por
outros que continuarão o seu percurso e que assegurarão um futuro melhor
às gerações por vir.
É nesse impasse entre o
mar e a terra, entre o passado e o presente, entre a utopia ou o sonho
ou a irrealidade ou o mito e a História, que o romance se finda.
Fernando Pessoa tem o seu tempo encerrado e já não vagueia pelo mundo.
Será para sempre uma voz lida pelos outros e que se não pode mais
transformar. Ricardo Reis percebe também a sua própria encruzilhada: com
Lídia mergulharia no mundo, no tempo e na História, mas sofre a sua
própria incapacidade de segui-la.
“O mar se acabou”,
Ricardo Reis já não regressa ao Brasil, nem à vida. Ricardo Reis perdeu
a oportunidade de ser alguém no presente e entre nós. Lídia era a sua
ligação com o mundo, com a vida real, mas Reis não soube aproveitar essa
oportunidade, não teve bastante força para ficar e ser uma pessoa
independente, esse sonho continuou um sonho, uma utopia. A irrealidade e
o ambiente tão fantasmagórico são mais fortes e mais presentes nesta
obra do que aquilo que existe. Todos, à excepção de Lídia, são mais
parecidos com os fantasmas do que com pessoas de carne e osso. É
precisamente Lídia que, ao parecer sozinha naquela sua dura vida
quotidiana, carrega as esperanças de vida melhor no país. É ela que, ao
estar grávida, leva em si a esperança de um futuro melhor, é ela a
fecundidade e o futuro. A criada de hotel lembra as duas mulheres
grávidas que desencadeiam uma verdadeira “epidemia” da gravidez no
romance de José Saramago Jangada de pedra e que têm o mesmo
significado, a mesma simbologia. A História é só o narrador que a
conhece, as personagens do livro não. O narrador está do lado dela e tem
confiança nas pessoas lutadoras e simples, porque são elas, não os
fantasmas, que constroem o país, a humanidade. Os mortos não podem
construir o mundo de hoje, o país actual. Saramago aposta nos “vivos”
que, como Lídia, levam o futuro em si.
Barbara Juršič, Eslovénia |
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BIBLIOGRAFIA |
|
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morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11ª
edição, 1995.
«O mundo de Saramago»,
entrevista por José Carlos de Vasconcelos, Visão, no. 515,
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«O labirinto de Ricardo Reis»,
entrevista com José Saramago por ocasião do relançamento de O Ano
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Odes,
Publicações Europa-América, 4a
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Barbara Jursic 20 de Junho de 1971,
Liubliana, Eslovénia)
É mestre em Literatura portuguesa pela Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, tradutora literária (traduziu Saramago, Lobo
Antunes, Pessoa, Sá-Carneiro, Couto, M. Tavares, Sophia, Nuno Júdice, e
outros), escreve artigos para revistas e jornais eslovenos e portugueses
sobre autores lusófonos e eslovenos, cultura eslovena e portuguesa,
temas actuais, faz programas para a Rádio e TV nacional, escreve textos
críticos e prefácios para obras literárias, é intérprete (esloveno,
português, francês e espanhol) e vice-presidente e responsável pelas
relações internacionais da Associação eslovena de tradutores literários,
membro do Comité organizativo para Liubliana, capital do livro mundial
(2010-11), em 2005 foi condecorada com o
Prémio Nacional de Melhor Tradutor Jovem.
E-mail: ajsi.disi@gmail.com,
barbara.jursic@gov.si |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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