REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

 

 

Afonso Cautela nasceu no Baixo Alentejo, em 1933. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Espaço Mortal, em 1960. Nessa estreia, logo se percebeu que o autor entendia a sua actividade como de alto risco. A poesia não era para ele um adorno inofensivo, nem uma questão de erudição, nem mesmo de talento ou de virtuosismo, mas um lugar inequívoco onde o poeta jogava a sua sorte. Nesse espaço, que suspendia o mundo, se decidia a vida ou a morte do poeta. Talvez nenhum outro escritor da sua geração tenha tido um entendimento tão crítico, tão extremo, tão decisivo da sua actividade poética.

Logo de seguida, em 1961, Afonso Cautela deu à estampa um segundo livro de poemas, O Nariz, que confirmou, com incidências desta vez menos líricas que satíricas, a direcção do livro anterior. A poesia, apesar do chiste, ou agora por causa dele, continuava a ser o sítio sitiado onde o poeta corria o risco de perder a vida. Ou, querendo, o nariz. Mas também, por intenção desse risco, por via desse desafio extremo, o lugar onde o poeta reabilitava consciência e dignidade, podendo assim em solidão assumir a plenitude substantiva.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Agulha Hispânica  
Filo-cafés  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Agulha Hispânica  
O Contrário do Tempo  
Domador de Sonhos  
   
 

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

 

Afonso Cautela:

poesia mortal e viva

                                                                  
 

A linguagem verbal desta poesia apresenta-se sem surpresas como um curto-circuito da razão, daquela razão estreita, que é o curso dum quotidiano dessacralizado, em que o espaço-tempo não apresenta nenhuma singularidade mortal ou imortal. Uma tal linguagem não podia alinhar pelo lado da economia lexical, que chegara à poesia portuguesa com alguns segmentos do versilibrismo modernista, sobretudo os mais clássicos e eruditos; ao invés, a linguagem poética de Afonso Cautela chamava a si um automatismo linguístico, muito mais caudaloso e libertário, quase selvagem, que, não hesitando diante da ánafora e de outros processos de enumeração ou de inventário, o aparentava ao surrealismo que então se praticava entre nós.

Disto se terá apercebido Mário Cesariny de Vasconcelos (1922-2006), que logo em 1963 fez questão em integrar Afonso Cautela numa das antologias representativas do movimento, SURREAL-ABJECCION(ismo), citando-o depois, entre Virgílio Martinho e Manuel de Lima, no texto historiográfico, de canonização e graça, que escreveu em 1973, “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, e reviu em 1985, para a segunda edição de As mãos na água e a cabeça no mar.

Cinquenta anos depois Afonso Cautela acaba de publicar novo livro de poesia, Campa Rasa e outros poemas (Edições Sempre-em-Pé, 2011). Meio-século duro e largo durou o silêncio poético deste autor, sem que nenhumas razões se lhe possam encontrar, além daquelas que decorrem do desinteresse do autor em dar à luz da publicidade as suas criações, pois não é crível que um poeta que escreveu uma sequência de quinze poemas, num total de trezentos e catorze versos, entre 23 de Julho de 2006 e 8 de Setembro do mesmo ano, se tenha calado durante meio-século.

Duas razões assistem, que isto confirmam: primeiro, os outros poemas do livro agora surgido contemplam inéditos em livro (um) e de todo inéditos (dezasseis) escritos entre 1952 e 1990, o que mostra um poeta que nunca sucumbiu a desânimo relativo à escrita de poesia, o que se podia temer de tão longo e apagado silêncio; segundo, o volume que aqui tratamos apenas tomou forma por insistência pessoal do editor, José Carlos Costa Marques, como este nos dá a entender na curta e esclarecedora nota de abertura do livro e a mim me confirmou por palavra sua.

Em cinquenta anos de silêncio público, mudou ou não a poesia de Afonso Cautela? Ao invés do que se podia esperar de tão longo hiato, não mudou. Logo no letreiro que o livro traz, Campa Rasa, se percebe o mesmo espaço mortal da sua estreia há mais de meio século. De novo aqui, neste derradeiro palmo de terra, rural e raso, aquilo que se compromete é a própria vida. A actividade poética de Afonso Cautela mantém assim neste livro uma seriedade máxima, uma preocupação visceral, já que aquilo que nele se joga continua a ser uma questão decisiva, tão decisiva como a morte o pode ser para a vida.

Na nota de abertura do livro, chamou o editor a atenção para o processo de interlocução da sequência de 2006 com um conjunto inesperado de poetas – ou nem tanto assim, se pensarmos que Cesariny se deu como mentor um Francisco Manuel de Melo – Frei Agostinho da Cruz, Bocage, António Correia d’Oliveira e Teixeira de Pascoaes, o mais convocado, o mais presente, com duas epígrafes e uma longa paráfrase, no poema décimo, seis estrofes, “Vem tristeza, eu te conheço…”.

Conhecemos hoje a importância crucial que Teixeira de Pascoaes teve na formação final do surrealismo em português, com arranque na década de setenta, quando Mário Cesariny lhe reconheceu uma importância superior à de Fernando Pessoa. Isto, que no momento passou por capcioso, ou por despiciendo, ou por sumamente marginal, sublinhou-se depois, na teorização anti-pessoana da década seguinte, com o Virgem Negra, como constitutivo, mostrando-se hoje um dos núcleos mais substantivos e genuínos, se não o mais, a destacar no futuro, do surrealismo em português.

Neste sentido, a poesia de Afonso Cautela interpreta a seu modo, que é distintivo de qualquer outro, antes de mais pela fuga a qualquer repetição epigonal de escola, que nunca nela existiu, pois ciosa de individualidade sempre se afastou de repetições, interpreta a seu modo, dizíamos, uma tendência geral da sua família poética mais próxima.

Dir-se-á até que agora, no livro de 2011, partindo dum caldeamento novo, por via dum poeta como Correia d’Oliveira, que nunca interessou Cesariny, mas cuja familiaridade com Pascoaes era imensa, e o mesmo se apontará para Frei Agostinho da Cruz, a tendência geral anterior se reforça num sentido ainda mais largo e singularizante, anunciado de resto no parentesco que se detectava no primeiro versilibrismo de Afonso Cautela, solto e livre, sem ser sumptuoso, com um criador tão fino e tão furtivo a escolas como Raul de Carvalho.

Não será de mais reforçar este caso: um poeta, Afonso Cautela, nascido e criado em época heróica da poesia portuguesa, as décadas de cinquenta e sessenta do século XX, tomando do surrealismo a sua linguagem libertária e calando-se de seguida durante meio-século, reabrirá depois no momento do reaparecimento, com seu modo heterodoxo, para o alargar e vivificar, o rego pelo qual o surrealismo em Portugal, pela magna e mágica mão de Mário Cesariny, se fechou.

De resto, se o surrealismo é, mais do que uma questão de literatura, um problema de Vida maiúscula, como as várias mensagens do movimento fizeram questão em crescendo de reforçar, então este livro aí se perfila como de suma importância, antes de mais para o seu criador, que nele teve um momento epifânico de amor e luz pelas coisas vivas e mortas, numa síntese que só ele sabe quão feliz, e em que faz pleno sentido o convite endereçado aos místicos panteístas da Arrábida e do Marão, e depois para nós, seus leitores, que vislumbramos através dos raios destas palavras, no palmo final de terra, ou no berço inicial, a unidade maior da vida.

Afonso Cautela, além do poeta que aqui celebramos, fundou no Baixo Alentejo, Moura, com Miguel Serrano, director do jornal A Planície, o suplemento cultural Ângulo das Artes e das Letras, que teve um importante papel na divulgação e na circulação de ideias no Portugal apertado da ditadura e da Guerra Fria, fez jornalismo em Lisboa e foi pioneiro do activismo anti-nuclear em Portugal, fundando em 1974 o Movimento Ecológico Português. Aos 78 anos era tempo de lhe agradecer tudo isto com uma homenagem que fosse mais do que uma simples recensão a um livro seu.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

António Cândido Franco
26 de Março de 2011

 

 

António Cândido Franco (Lisboa, 1956)
Fez estudos de Filologia Românica na Falculdade de Letras de Lisboa e doutorou-se, em 1997, em Literatura Portuguesa na Universidade de Évora com uma dissertação sobre a poesia de Teixeira de Pascoaes, publicada, três anos depois, com o título
"A Literatura de Teixeira de Pascoaes" (IN-CM). Tem dedicado muito do seu
tempo a ler e a comentar o Zaratustra do Marão. O último estudo que lhe
dedicou foi em 2010, "Teixeira de Pascoaes nas Palavras do Surrealismo em
Português" (Licorne). Tirando isso, tem escrito versos, que reuniu num
volume chamado "Estâncias" (2002), e algumas narrativas dedicadas às
figuras trágicas da História de Portugal, Pedro e Inês, Fernando e Leonor,
Isabel e Dinis, Carlos e Amélia, todos publicados na editora Ésquilo.
Contactos:
acvcf@uevora.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL