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Afonso Cautela nasceu no Baixo
Alentejo, em 1933. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Espaço
Mortal, em 1960. Nessa estreia, logo se percebeu que o autor entendia a
sua actividade como de alto risco. A poesia não era para ele um adorno
inofensivo, nem uma questão de erudição, nem mesmo de talento ou de
virtuosismo, mas um lugar inequívoco onde o poeta jogava a sua sorte.
Nesse espaço, que suspendia o mundo, se decidia a vida ou a morte do
poeta. Talvez nenhum outro escritor da sua geração tenha tido um
entendimento tão crítico, tão extremo, tão decisivo da sua actividade
poética.
Logo de seguida, em 1961, Afonso
Cautela deu à estampa um segundo livro de poemas, O Nariz, que confirmou,
com incidências desta vez menos líricas que satíricas, a direcção do
livro anterior. A poesia, apesar do chiste, ou agora por causa dele,
continuava a ser o sítio sitiado onde o poeta corria o risco de perder a
vida. Ou, querendo, o nariz. Mas também, por intenção desse risco, por
via desse desafio extremo, o lugar onde o poeta reabilitava consciência
e dignidade, podendo assim em solidão assumir a plenitude substantiva. |
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A linguagem verbal desta poesia
apresenta-se sem surpresas como um curto-circuito da razão, daquela
razão estreita, que é o curso dum quotidiano dessacralizado, em que o
espaço-tempo não apresenta nenhuma singularidade mortal ou imortal. Uma
tal linguagem não podia alinhar pelo lado da economia lexical, que
chegara à poesia portuguesa com alguns segmentos do versilibrismo
modernista, sobretudo os mais clássicos e eruditos; ao invés, a
linguagem poética de Afonso Cautela chamava a si um automatismo
linguístico, muito mais caudaloso e libertário, quase selvagem, que, não
hesitando diante da ánafora e de outros processos de enumeração ou de
inventário, o aparentava ao surrealismo que então se praticava entre
nós.
Disto se terá apercebido Mário
Cesariny de Vasconcelos (1922-2006), que logo em 1963 fez questão em
integrar Afonso Cautela numa das antologias representativas do movimento,
SURREAL-ABJECCION(ismo), citando-o depois, entre Virgílio Martinho e
Manuel de Lima, no texto historiográfico, de canonização e graça, que
escreveu em 1973, “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, e
reviu em 1985, para a segunda edição de As mãos na água e a cabeça no
mar.
Cinquenta anos depois Afonso
Cautela acaba de publicar novo livro de poesia, Campa Rasa e outros
poemas (Edições Sempre-em-Pé, 2011). Meio-século duro e largo durou o
silêncio poético deste autor, sem que nenhumas razões se lhe possam
encontrar, além daquelas que decorrem do desinteresse do autor em dar à
luz da publicidade as suas criações, pois não é crível que um poeta que
escreveu uma sequência de quinze poemas, num total de trezentos e
catorze versos, entre 23 de Julho de 2006 e 8 de Setembro do mesmo ano,
se tenha calado durante meio-século.
Duas razões assistem, que isto
confirmam: primeiro, os outros poemas do livro agora surgido contemplam
inéditos em livro (um) e de todo inéditos (dezasseis) escritos entre
1952 e 1990, o que mostra um poeta que nunca sucumbiu a desânimo
relativo à escrita de poesia, o que se podia temer de tão longo e
apagado silêncio; segundo, o volume que aqui tratamos apenas tomou forma
por insistência pessoal do editor, José Carlos Costa Marques, como este
nos dá a entender na curta e esclarecedora nota de abertura do livro e a
mim me confirmou por palavra sua.
Em cinquenta anos de silêncio
público, mudou ou não a poesia de Afonso Cautela? Ao invés do que se
podia esperar de tão longo hiato, não mudou. Logo no letreiro que o
livro traz, Campa Rasa, se percebe o mesmo espaço mortal da sua estreia
há mais de meio século. De novo aqui, neste derradeiro palmo de terra,
rural e raso, aquilo que se compromete é a própria vida. A actividade
poética de Afonso Cautela mantém assim neste livro uma seriedade máxima,
uma preocupação visceral, já que aquilo que nele se joga continua a ser
uma questão decisiva, tão decisiva como a morte o pode ser para a vida.
Na nota de abertura do livro,
chamou o editor a atenção para o processo de interlocução da sequência
de 2006 com um conjunto inesperado de poetas – ou nem tanto assim, se
pensarmos que Cesariny se deu como mentor um Francisco Manuel de Melo –
Frei Agostinho da Cruz, Bocage, António Correia d’Oliveira e Teixeira de
Pascoaes, o mais convocado, o mais presente, com duas epígrafes e uma
longa paráfrase, no poema décimo, seis estrofes, “Vem tristeza, eu te
conheço…”.
Conhecemos hoje a importância
crucial que Teixeira de Pascoaes teve na formação final do surrealismo
em português, com arranque na década de setenta, quando Mário Cesariny
lhe reconheceu uma importância superior à de Fernando Pessoa. Isto, que
no momento passou por capcioso, ou por despiciendo, ou por sumamente
marginal, sublinhou-se depois, na teorização anti-pessoana da década
seguinte, com o Virgem Negra, como constitutivo, mostrando-se hoje um
dos núcleos mais substantivos e genuínos, se não o mais, a destacar no
futuro, do surrealismo em português.
Neste sentido, a poesia de Afonso
Cautela interpreta a seu modo, que é distintivo de qualquer outro, antes
de mais pela fuga a qualquer repetição epigonal de escola, que nunca
nela existiu, pois ciosa de individualidade sempre se afastou de
repetições, interpreta a seu modo, dizíamos, uma tendência geral da sua
família poética mais próxima.
Dir-se-á até que agora, no livro
de 2011, partindo dum caldeamento novo, por via dum poeta como Correia
d’Oliveira, que nunca interessou Cesariny, mas cuja familiaridade com
Pascoaes era imensa, e o mesmo se apontará para Frei Agostinho da Cruz,
a tendência geral anterior se reforça num sentido ainda mais largo e
singularizante, anunciado de resto no parentesco que se detectava no
primeiro versilibrismo de Afonso Cautela, solto e livre, sem ser
sumptuoso, com um criador tão fino e tão furtivo a escolas como Raul de
Carvalho.
Não será de mais reforçar este
caso: um poeta, Afonso Cautela, nascido e criado em época heróica da
poesia portuguesa, as décadas de cinquenta e sessenta do século XX,
tomando do surrealismo a sua linguagem libertária e calando-se de
seguida durante meio-século, reabrirá depois no momento do
reaparecimento, com seu modo heterodoxo, para o alargar e vivificar, o
rego pelo qual o surrealismo em Portugal, pela magna e mágica mão de
Mário Cesariny, se fechou.
De resto, se o surrealismo é, mais
do que uma questão de literatura, um problema de Vida maiúscula, como as
várias mensagens do movimento fizeram questão em crescendo de reforçar,
então este livro aí se perfila como de suma importância, antes de mais
para o seu criador, que nele teve um momento epifânico de amor e luz
pelas coisas vivas e mortas, numa síntese que só ele sabe quão feliz, e
em que faz pleno sentido o convite endereçado aos místicos panteístas da
Arrábida e do Marão, e depois para nós, seus leitores, que vislumbramos
através dos raios destas palavras, no palmo final de terra, ou no berço
inicial, a unidade maior da vida.
Afonso Cautela, além do poeta que
aqui celebramos, fundou no Baixo Alentejo, Moura, com Miguel Serrano,
director do jornal A Planície, o suplemento cultural Ângulo das Artes e
das Letras, que teve um importante papel na divulgação e na circulação
de ideias no Portugal apertado da ditadura e da Guerra Fria, fez
jornalismo em Lisboa e foi pioneiro do activismo anti-nuclear em
Portugal, fundando em 1974 o Movimento Ecológico Português. Aos 78 anos
era tempo de lhe agradecer tudo isto com uma homenagem que fosse mais do
que uma simples recensão a um livro seu. |