REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

 

À geração dos meus netos,

que deverá fazer e exigir muito mais que a nossa

para reduzir as crescentes diferenças sociais.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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PEDRO
SEVYLLA DE JUANA

 

A vagarosa evolução

do pensamento

                                                                               Pedro Sevylla de Juana

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
     
 

 Na minha opinião, somos filhos de um pretérito que é o da humanidade inteira e o do Universo completo, produto de certas regras naturais nas quais o acaso joga um papel essencial. Os parágrafos seguintes, extraídos dos meus cadernos juvenis,  abordam o assunto. São textos enchidos de referências à complexa identidade do homem, aos inumeráveis laços que unem pessoas entre si e a sua vinculação com o resto do Cosmos.

“Se criou o Universo em seis dias, e se concebeu imperfeito com plena consciência e livre vontade. Uma Providência solícita –nada diferente das leis iniciais da Natureza- complexa estrutura de ordens inexoráveis -as mesmas para todos mas adaptadas a cada espécie e a cada indivíduo- ficou encarregada de terminar a criação, melhorando o conseguido. Disso há milhares de milhões de anos; muito comparado com a duração de uma pessoa, nossa referência mais imediata. Ou partia o progresso de uma situação caótica ou levou um passo moroso, com desvios que não acrescentam nada e retrocessos que diminuem. Custou demasiado esfriar a Terra; sopra e sopra o vento, pondo os lábios em forma de zero pequeno, produzindo um assobio apavorante. Custou muitíssimo condensar os vapores em gotas que fluíssem juntas por arroios, riachos e rios caudalosos até o mar. Custou iniciar a vida nas inquietas águas dos oceanos. Mas quando a seiva vital nadou desorientada, já foi fácil tirá-la a terra firme para que se espalhasse -qualquer clima, qualquer atmosfera oxigenada, qualquer geografia- caminhando disposta a povoar o ar.

“No planeta Terra, onde aconteceu tal fenómeno, se provocaram cataclismos que puderam acabar com o transcendental achado atrasando o processo. A evolução derivou desordenada abrangendo muitas frentes, com a intenção clara de levar pelo menos um deles adiante. Alcançou essa peça: o homem, tal como hoje o conhecemos, é esse instrumento. Nasceu, o envaidecido, com vocação de centro do cosmos e o equilíbrio reinante até então, destinado a desenvolver-se melhorando sine die, quebrou-se. Ocorre que o homem, desdenhando o resto dos animais, excluindo-os da configuração do futuro, sustenta que a luta seletiva se organizou para facilitar-lhe a chegada e corresponde só à sua própria espécie.

“Observando de perto os integrantes da família humana, entre eles observam-se diferenças, mínimas se se quer, mas diferenças enfim. O descobrimento deu pé aos mal-intencionados para afundar-se nas desigualdades, divulgando o achado. Nasceram, em consequência, comunidades de indivíduos afins, dedicadas a preservar e acentuar esses magros matizes da identidade comum: linhas traçadas nas palmas das mãos, impressões digitais, fator Rhesus, desenho do íris; e algum outro análogo, mesmo que de maior transcendência, como a cor da pele”.

“A coisa não ficou aí, foi mais longe. Os acidentes do terreno e as condições atmosféricas, uniformes em espaços reduzidos, abriram gretas entre os homens. Isso mesmo sucedeu com a memória de cada tribo desde seu nascimento; história que perfila castas bem diferenciadas, distanciadas ao máximo quando o jargão da linguagem resultou ininteligível para quem não pertencesse ao núcleo ou ao seu em torno. Ainda mais: os diferentes deuses –entes de razão desenhados pelos adoradores para suprir as próprias carências- terminaram tomando partido e entraram em aberta oposição, elevando o tom e a causa da pendência”.

Este pensamento da minha juventude  aceita-o o idoso que sou. É parte de uma herança que faço minha não só como autor, também, e em maior medida, porque pertenço à raça humana. Somos destinatários das doutrinas dos pensadores; suas reflexões, as conclusões que alcançam, a porção de verdade que arrancam, correspondem por igual aos atuais habitantes do mundo e aos vindouros. O futuro constrói-se com os materiais que o presente soma aos trazidos do passado; e não esqueçamos que o hoje é tão só a magra linha que separa o ontem extinto do amanhã esperado. O jovem que fui pretendia no seu julgamento mostrar grosso modo a árvore da história, cujas raízes, para assegurar o abastecimento de humidade e a resistência ao vento, se afundam nas profundidades do tempo e de espaço. Nada se perdeu, nada de quanto caiu em desuso pode considerar-se inútil; tanto os acertos como os erros serviram ao avanço, ao progresso. Eu mesmo complementei com outras reflexões minha reflexão primeira, escrita em cadernos quadriculados, ao dizer, anos depois, o seguinte:

“Pedra, madeira, argila, osso, ferro, bronze: a necessidade aguça o engenho. Mesopotâmia, o Egito, a China, Pérsia, Caucásia, Fenícia, a Palestina e a Etiópia. Situando-nos no continente europeu, a Grécia ergue-se e caminha; seus passos deixam uma marca indelével. A afeição ao comércio traz os Fenícios; ainda fumegam suas fogueiras chamando compradores para as mercadorias oferecidas. Depois dos Cartagineses chega o momento de Roma, e suas legiões hostilizam, invadem, arrasam, saqueiam, submetem e preparam o terreno à cultura comum. Do Norte descem os bárbaros como uma maré desbordante que desbarata vidas e projetos. Os Visigodos substituem os Romanos, e são relevados pelos Árabes na ocupação do terreno e na formação de impedimenta efetiva. Cristãos, muçulmanos e hebreus coexistem e convivem. Castela, barco movido pelo acaso e a necessidade, chocou com a América, nau ancorada no meio do oceano. Da ponte de comando surge com sanha um grito milhares de vezes escutado: “À abordagem!“ Dá-se e toma-se com palpável desequilíbrio; mas o tempo prossegue seu vaguear imparável, e a paupérrima atualidade –construído e desmoronado o império- facilita-nos a ocasião de corrigir erros e despojos,  ressarcindo aos herdeiros.”

“A teoria e a prática, uma emendando a outra, marcham em ziguezague de mãos dadas. A filosofia grega procede, em parte, de Oriente: Egito,  Babilónia; mas Pitágoras e Demócrito são já cientistas originais. Um escultor e uma parteira engendraram  Sócrates: `Conhece-te a ti mesmo'. Sócrates engendrou Platão. Platão foi vendido como escravo por um tirano temeroso de que as ideias do filósofo se concretizassem. Se Aristóteles não foi gerado por Platão, tal sucedeu porque o filho não aceitou um progenitor único. Aristóteles educou o jovem Alexandre,  mas Alexandre pôs em prática as doutrinas do berço. Teoria e ação, confrontadas e inseparáveis.

“Séneca, um romano de Córdoba, impassível, eclético e prático, foi professor e conselheiro de Nero; e Nero ordenou matá-lo. É indubitável que aconteceu um erro na progressão do ensino: 'amarás a teu professor' devia ser sua primeira sentença ou o ponto em que coincidissem todas. Filosofia é estudo, análise, busca; e exige liberdade para buscar, analisar e estudar. De outro modo deriva em lecionação e atadura. A palavra de Cristo representa um perigo para a história sagrada na qual se apoia, por isso se abrem contra ele tantas frentes simultâneas. O caminho que conduz a Deus, para Santo Agostinho, parte do homem. O caminho que leva ao homem, para Santo Agostinho, parte de si mesmo, de sua palpável e apalpada realidade. João Escoto passa a través das obras de Santo Agostinho como as águas de uma torrente sobre a terra nua: arrasta consigo um húmus muito rico que, posto ao serviço da lógica e distribuído ao redor, proporciona uma copiosa colheita. Abelardo possui o brilho do ouro e a firmeza da rocha na qual fundamenta sua dialética: O Deus antropomórfico não dá ponto sem nó; do melhor ponto e do perfeito nó nasce a eterna ligação. As culturas árabe e hebreia se aproximam também na filosofia; ambas formam parte da Escolástica latina, ambas interessam-se pela relação existente entre lógica e fé, Deus e sua obra, a inteligência e o espírito. Tomás de Aquino faz-se leito para que as águas do rio aristotélico -filtradas por depuradoras muçulmanas e hebraicas- possam ser bebidas com proveito e deleite.

“Sobre o profundo despenhadeiro que foi a Idade Média, sobre sua escarpada depressão, o Renascimento eleva uma ponte que conduz ao almejado mundo de Gregos e Latinos. O Renascimento sai o campo e encontra-se, junto das ovelhas que pastam e ao vigilante lobo, ao homem traçador de caminhos que lhe fazem um com a Natureza mãe e criadora: o Humanismo já tem raiz, a hera já pode elevar-se sobre o tronco erguido da árvore morta, verdejando. Se Dante 'renasce' do fundamento medieval, e Petrarca não deseja outro senhor que o Humanismo, Lourenço Valla chega ao extremo de considerar o prazer como motor único do homem. Maquiavel, Erasmo, Lutero, Telesio, Giordano Bruno; Renascimento e Humanismo propiciam a modernidade; nasce a Ciência filha do naturalismo renascentista: Leonardo, Galileu, Bacon; e a modernidade, sucedendo-se a si mesma, desentende-se com ambos. A Economia sobe aos altares e ocupa os tronos, dita os códigos e impulsiona as ações. E em tal momento nos encontramos, após Descartes, Hobbes, Spinoza, Leibniz, Kant, Schopenhauer e muitos outros que contribuíram para o triunfo do materialismo ou não foram suficiente muralha, Kierkegaard, Marx, Proudhon, Nietzsche, Bergson, Unamuno, Ortega, Jaspers ou Sartre.

O idoso em que me fui convertendo -pessimista como os anciãos de qualquer época no que toca ao vindouro- vê com desassossego a realidade que nos circunda, o inexorável crescimento das diferenças sociais, provado com dados indubitáveis por organismos afastados de qualquer suspeita. Vê com inquietude o futuro, e teme que o economicismo atual culmine o longo processo da evolução filosófica, fechando o círculo do pensamento humano ao situar-nos de novo nos duros princípios da humanidade, quando a luta pela sobrevivência ocupava grande parte do tempo a generalidade das pessoas.

Interessado pela evolução das ideias desde a adiantada juventude, o idoso que sou conhece a luta constante que a inteligência entabula para restabelecer os equilíbrios quebrados. Contudo, algo deve fazer-se enquanto isso, porque a lentidão do processo, considerado em termos humanos, não impedirá o sofrimento a milhões de pessoas antes de alcançar o ponto de inflexão para uma solução durável.

 

PSdeJ (Tradução feita pelo autor)

 

 

 Pedro Sevylla de Juana (Valdepero, Palencia, España, 1946).
Filho e neto de agricultores, Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), Espanha, no mês de março de 1946. Estudou o bacharelato, interno, no Colégio LaSalle de Palencia; e se fez publicitário na Escola Oficial de Publicidade de Madrid. Diplomando-se ao tempo em marketing, psicologia, fotografia e design gráfico. Viveu em Palencia, Valhadolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tânger, Paris e Ámsterdam. Publicitário, conferencista, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou dezoito livros e é colaborador de diversas revistas da Europa e a América, tanto em língua espanhola como portuguesa. Reside em El Escorial, Madrid, dedicado por inteiro às suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever.
Página pessoal: www.sevylla.com
Direção eletrônica:
valdepero@hotmail.com

 

 

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