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Face a uma tal
inquietude, a questão inicial desta reflexão será a seguinte: de que
modo podem as Ciências Sociais e Humanas pensar e escrever, redigir ou
inverter estes territórios de passagem, estas vias de vida e de viagem
metavérsicas? Por outras palavras, como de delimitam tais sobreterras
híbridas ou cíbridas que são os metaversos, na idade da Web 2.0, ou
noutros regimes vindouros de comunicação e informação?
Como se sabe, a Web 2.0
consiste numa era da Internet em que 3 grandes tendências se manifestam,
em termos de produção e recepção da informação, por parte dos agentes
sócio-culturais:
1. Os softwares são acedidos em linha, e não se encontram
residentes no disco de um computador pessoal.
2. Os utilizadores
participam activamente na produção de conteúdo.
3. Estes utilizadores
partilham, frequentemente, a informação entre si, em torno de
comunidades virtuais no seio de redes sociais, e em termos de
‘sociabilidade e solidariedade digitais’ (Andrade, 2001).
Uma destas formas de
comunidades virtuais utiliza extensivamente ambientes ou mundos digitais
de interacção social estruturados em três dimensões, ou metaversos,
segundo a denominação forjada por Nead Stephenson, na novela de ficção
científica Snow Crash, em 1992.
Algumas reflexões e
aplicações práticas ilustram esta postura. Por exemplo, Luís Petry
(2009) ensaia uma topofilosofia, tecendo a ontologia dos mundos virtuais
e dos Metaversos, a partir de experiências físicas de ambientes
virtuais em tempo real, que são articuladas, reflexivamente, com a
epistemologia genética e o construtivismo. Em particular, as interfaces
do metaverso reutilizam, de um modo original, os conceitos de mente,
corpo, projecção e cognição.
Para este desiderato, o
autor retoma ainda a fenomenologia hermenêutica, bem como a sua conexão
com a psicanálise lacaniana operada por Michel de Certeau, ou a
aplicação da semiótica de Peirce aos metaversos avançada por Lúcia
Santaella. Petry aplica tais reflexões e o conceito de topofilosofia à
elaboração de ambientes concretos em 3-D, visando em última análise a
heurística do seu significado profundo. Um ensaio nesta direcção é a
Opera Quântica AlletSator, produzida em parceria com Pedro Barbosa.
“A topofilosofia pensa o
tridimensional digital e suas possibilidades de significação, fundamento
e manifestações expressivas. Assim, na pesquisa topofilosófica, o
construir e o habitar são pensados a partir da fenomenologia
hermenêutica, isto em virtude de que toda construção de ambientes
tridimensionais na hipermídia são pensados como construções portadoras
de sentido.” (Petry; Barbosa, 2007).
Em diálogo com a
topofilosofia ou outros modos de exegese do metaverso, é possível
avançar na perspectiva de aplicação generalizada das Ciênicas Sociais
aos mundos virtuais. No nosso caso, desde 2003 que aplicámos filósofos e
sociólogos à interpretação das culturas urbanas e das artes, em aulas da
disciplina ‘Sociologia da Arte’, em no quadro de diversas Licenciaturas
da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Estas análises
foram simultaneamente articuladas aos mundos virtuais, em cadeiras como
‘Bibliotecas Digitais e e-learning’ e ‘Arte e Novas Tecnologias’, no
Mestrado de Educação Artística na mesma Faculdade. No seio de uma tal
hermenêutica, passámos, paulatinamente, dos conceitos verbais para
conceitos visuais, ao ligar, sistematicamente, ideias com imagens, e
traduzimos ambos os anteriores em conceitos digitais, ou seja, termos e
noções mais adequados à leitura e à escrita das realidades dos mundos
virtuais.
Entre outros autores,
associámos Simmel à leitura de Paula Rego; ou, para além disso,
avizinhámos Edmund Husserl (o fundador da fenomenologia), e Alfred
Schutz (autor que aplicou a Fenomenologia à Sociologia), a obras de René
Magritte. Por exemplo, Husserl nota que, no processo de relação do homem
com o mundo, o sujeito, no interior do lebenwelt de todos os dias, usa a
percepção e a consciência enquanto meios para chegar ao conhecimento.
Nesta demanda, a alteridade pode ser o mundo exterior ao sujeito, ou os
outros sujeitos (Bouckaert, 2003).Aplicando a fenomenologia ao Second
Life, que surge como o exemplo mais popular de metaverso, repara-se que,
nesse contexto, experimentamos hoje vidas quotidianas paralelas ou
concurrentes à chamada ‘vida diária real’. De facto, os avatars ou
agentes sociais que nos representam, comunicam entre si, num mundo da
vida quotidiana ou lebenwelt virtual distinto, mas sobreposto, ao
lebenwelt físico inerente ao quotidiano dos respectivos utilizadores. Em
tais mundos da vida virtuais, a captação sensorial do mundo pelo
utilizador sofre mudanças notáveis. É o caso da visão flyby, ou seja, a
perspectiva aérea ou ‘visão de deus’, desenvolvida durante a deslocação
do avatar.
A partir deste ou de
outros dispositivos discursivos do metaverso, a consequente consciência
do mundo, real e virtual, também se altera. Donde se pode inferir que o
conhecimento adquirido no interior do metaverso pode ser mais singular
daquilo que uma mera imersão temporária poderia fazer supôr. Por outras
palavras, a frequentação contínua e até diária do Second Life ou de
outros metaversos, engendraria modos de conhecimento (seja ele um saber
comum, artístico, científico ou outro) nunca dantes vislumbrados.
Mas como se passam estes
processos, numa óptica mais sociológica? Alfred Schutz (1971) adaptou a
fenomenologia à interpretação do social, em termos de uma ‘fenomenologia
sociológica’. O seu conceito ‘províncias finitas de significado’ traduz
o fenómeno de contextualização daquilo que é compreensível, no decorrer
da nossas relações societais. Ou seja, só entendemos bem aquilo que
experimentamos nas nossas rotinas quotidianas, no limite dos nossos
lebenwelt ou mundos da vida social. Mesmo um vizinho do nosso bairro
pode não entender nada do que dizemos ou fazemos, pela simples razão que
transitou por experiências e saberes diários diferentes.
Retomemos esta noção de
‘províncias finitas de significado’ na análise dos mundos virtuais, ou
metaversos. Neles, os ‘avatars’ ou actores virtuais
constituem-se enquanto agentes sociais de novo tipo.
Com efeito, no
metaverso, cada grupo de avatars possui os seus próprios conhecimento e
experiência, não necessariamente coincidentes com aquelas práticas e
saberes das personagens virtuais que percorreram outras vias de imersão
quotidiana no metaverso. Daí que o metaverso não apresente uma única
vida diária, mas múltiplas, cada uma delas correspondendo a um só actor,
a um grupo de actores ou a um avatar apenas num dado momento da sua
biografia digital. Por outras palavras, não existe somente um lebenwelt
virtual ou mundo de esperiência digital. Isto é, não ocorre apenas uma
‘Segunda Vida’, porque, no metaverso, não há apenas uma segunda via.
Assim sendo, o Second Life dever-se-ia nomear ‘Multiple Life’, mesmo no
que respeita uma única pessoa real e a sua personagem virtual, no
quadro da sua carreira metavérsica.
Mais concretamente, de
acordo com Schutz, os agentes sociais podem comunicar entre si através
das interacções entre indivíduos (ex: uma conversa) e a partir da
correspondente interpretação mútua, no seio de uma dada sociedade ou
cultura. Este processo sedimenta-se nas ‘tipificações’, isto é,
classificações criadas e operadas nas práticas da vida quotidiana,
apresentando significados comuns e socialmente compartilhados,
compreensíveis pelos membros ou, mais especificamente, pelo ‘senso comum
colectivo’, num determinado tecido social. No caso do Second Life,
podemos pensar em tipificações virtuais, próprias deste espaço,
sociedade ou cultura virtual, entendido na articulação dos seus diversos
lebenwelts ou mundos da vida mais circunscritos, cada um deles
encerrando uma distinta ‘província finita de significados’.
Desta feita, o metaverso
encerra traços sociais muito vincados, passíveis de serem estudados
pelas Ciências Sociais. Afinal, no Second Life, não se desenvolvem
apenas actividades económicas, como a formação de empresas (Mahar,
2009), e jogos de poder, mas também se passam eventos culturais e
artísticos, como a fotografia de outros agentes intervenientes nesse
contexto (Andrade, 2007).
Neste ensaio de 2007, questiona-se qual a natureza sócio-simbólica e o
estatuto da imagem fotográfica e do fotográfico nos últimos anos, no
seio da Web 2.0 e, em particular, no mundo virtual do Second Life (ou
SL)? Para responder a esta questão de fundo, o texto estrutura-se em
duas partes:
1) A crítica de algumas
ideias inseridas no campo semântico e sociológico da fotografia, da Web
2.0 e do SL. Em especial, assistimos hoje à emergência de um novo
paradigma na arte da fotografia, que o autor nomeou fotográfico virtual.
Este processo, mais do que se referir à fotografia em si, fala daquilo
que a fotografia deixa entrever no tecido social e nos espaços virtuais
actuais. Outros processos paralelos ao fotográfico virtual, e que em
parte o explicam, são o retorno do autor e a emergência do autor
planetário, o efeito Pessoa, o Segundo Corpo, etc.
2) A análise de conteúdo
e de discurso sobre um dos manuais de uso mais populares do SL, onde se
procura aplicar alguns dos conceitos enunciados supra.
Noutro texto, o
antropólogo Tom Boellstorff estudou empiricamente a vida que ocorre no
Second Life (2008). Escolhendo incarnar o avatar Tom Bukowski, observou,
durante dois anos, um conjunto de práticas aí realizadas. Para tal,
utilizou métodos e técnicas antropológicas semelhantes àquelas usadas
pelos cientistas sociais na 'primeira vida' real.
O objectivo consistiu em
analisar os comportamentos e atitudes relativos ao sexo, raça,
conflitos, a interacção entre sujeitos e mesmo as noções de tempo e
espaço construídas no metaverso. O autor demonstra que a nossa
identidade e a própria sociedade sofrem transformações profundas nos
mundos virtuais.
Em suma, o metaverso
esclarece que o homem foi sempre virtual, na medida em que os mundos
virtuais derivam da capacidade humana de criar, constantemente, cultura.
A relevância do
metaverso
A centralidade dos
mundos virtuais para a compreensão do mundo contemporâneo parece ser
testemunhada pela iniciativa de Orange Montagne, que elaborou um
‘Manifesto do Metaverso’ (2007).
O autor sublinha que
incontáveis pessoas entram em imersão voluntariamente, no seio de
contextos virtuais visuais em 3D. Estes contextos são partilhados, ou
seja, aí vemos os outros, mas também somos vistos. Há poucas décadas,
estes contextos virtuais reduziam-se à mera ficção científica.
Uma tal atitude provoca
consequências sociais notáveis. O autor, retomando o tom de Engels, nota
o seguinte:
hoje, existem pessoas que se inserem nos mundos virtuais
identificando-se com o proletariado. Outras assumem-se enquanto
vanguarda de classe social, criando conscientemente novas realidades.
Para além disso, numa
perspectiva híbrida entre dois saberes exegetas do metaverso, o filósofo
Peter Ludlow e o jornalista Mark Wallace (2009), empreendem uma
desmistificação daquilo que, à primeira vista, o Second Life parece
emitir ou omitir. Referindo-se à história dos ambientes multi-utilizador
e à sua própria experiência do metaverso, demonstram que, neste espaço
público no interior do ciberespaço, também emergem conflitos e jogos de
poder, censura e novas regras sociais. Trata-se de um verdadeira
realidade social paralela e amiúde transgressiva, onde o sexo e o crime
não são raros.
Em suma, os autores
realçam a dupla natureza, idílica e sombria, da nossa segunda vida
digital.
Afinal, que práticas e
comportamentos são possíveis, prováveis, ou permutáveis nos mundos
virtuais? Stefan Sonvilla-Weiss (2008) mostra que, após uma época onde
praticamente tudo se descobriu, o metaverso permite alargar, ainda mais,
as fronteiras do conhecido, até ao infinito. Neste novo medium e através
da sua interface, as discussões sobre os problemas das pessoas, a
aprendizagem e a participação, são distintas da vida real. De facto, no
seio do metaverso, emerge uma nova ‘dataculture’, que aponta novas vias
para além das dicotomias ‘indivíduo/comunidade’, ‘privado/público’,
‘visibilidade/invisibilidade’, ‘autonomia/controlo’, etc. Inéditos
empenhamentos, sociais, artísticos e científicos, são doravante
possíveis.
Conclusão
O metaverso, como
qualquer outro processo societário, pode ser interpretado pelas Ciências
Sociais e Humanas, ou por outras reflexões e linguagens sobre o social,
como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, o jornalismo, etc. Mas é
sobretudo através dos saberes híbridos que se entende a complexidade da
nossa vida quotidiana múltipla. Com efeito, os conhecimentos mixtos, nas
suas múltiplas variantes, articulam os saberes especializados e os
saberes comuns, ou fundam e fundem a experiência e o conhecimento
forjados nos lebenwelt reais e nos lebenwelt virtuais. |
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