REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

Os mundos virtuais em 3D ou ‘metaversos’, como o Second Life, constituem terras ainda virgens e inexploradas. E, aparentemente, não têm céus, já que não existe um único, mas múltiplos horizontes que funcionam como linhas de passagens entre o alto e baixo, entre os mundos virtuais e os mundos materiais. 

Sendo eu sociólogo por gosto ou por vício, perturba-me esta detecção de uma espécie de sobreterras que não se confundem nem com a terra nem com os céus. As sobreterras podem definir-se enquanto espaços-tempo que se circunscrevem em no-man’s lands, em espaços in-between, ou em hibridações dos espaços e dos tempos mais corriqueiros.

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Maria Estela Guedes  
   
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PEDRO ANDRADE

Terras e Sobreterras:

Redacções e Inversões

Reflexões sobre as sobreterras
dos mundos virtuais

IX Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas»
Centro Cultural Gonçalves Sapinho . Benedita, 29-30 de Maio de 2010

 
 
 
 
 
 
   
 

Face a uma tal inquietude, a questão inicial desta reflexão será a seguinte: de que modo podem as Ciências Sociais e Humanas pensar e escrever, redigir ou inverter estes territórios de passagem, estas vias de vida e de viagem metavérsicas? Por outras palavras, como de delimitam tais sobreterras híbridas ou cíbridas que são os metaversos, na idade da Web 2.0, ou noutros regimes vindouros de comunicação e informação? 

Como se sabe, a Web 2.0 consiste numa era da Internet em que 3 grandes tendências se manifestam, em termos de produção e recepção da informação, por parte dos agentes sócio-culturais:  

1. Os softwares são acedidos em linha, e não se encontram residentes no disco de um computador pessoal.  

2. Os utilizadores participam activamente na produção de conteúdo.  

3. Estes utilizadores partilham, frequentemente, a informação entre si, em torno de comunidades virtuais no seio de redes sociais, e em termos de ‘sociabilidade e solidariedade digitais’ (Andrade, 2001). 

Uma destas formas de comunidades virtuais utiliza extensivamente ambientes ou mundos digitais de interacção social estruturados em três dimensões, ou metaversos, segundo a denominação forjada por Nead Stephenson, na novela de ficção científica Snow Crash, em 1992. 

Algumas reflexões e aplicações práticas ilustram esta postura. Por exemplo, Luís Petry (2009) ensaia uma topofilosofia, tecendo a ontologia dos mundos virtuais e dos Metaversos, a partir de experiências físicas  de ambientes virtuais em tempo real, que são articuladas, reflexivamente, com a epistemologia genética e o construtivismo. Em particular, as interfaces do metaverso reutilizam, de um modo original, os conceitos de mente, corpo, projecção e cognição. 

Para este desiderato, o autor retoma ainda a fenomenologia hermenêutica, bem como a sua conexão com a psicanálise lacaniana operada por Michel de Certeau, ou a aplicação da semiótica de Peirce aos metaversos avançada por Lúcia Santaella. Petry aplica tais reflexões e o conceito de topofilosofia à elaboração de ambientes concretos em 3-D, visando em última análise a heurística do seu significado profundo. Um ensaio nesta direcção é a Opera Quântica AlletSator, produzida em parceria com Pedro Barbosa.  

“A topofilosofia pensa o tridimensional digital e suas possibilidades de significação, fundamento e manifestações expressivas. Assim, na pesquisa topofilosófica, o construir e o habitar são pensados a partir da fenomenologia hermenêutica, isto em virtude de que toda construção de ambientes tridimensionais na hipermídia são pensados como construções portadoras de sentido.” (Petry; Barbosa, 2007). 

Em diálogo com a topofilosofia ou outros modos de exegese do metaverso, é possível avançar na perspectiva de aplicação generalizada das Ciênicas Sociais aos mundos virtuais. No nosso caso, desde 2003 que aplicámos filósofos e sociólogos à interpretação das culturas urbanas e das artes, em aulas da disciplina ‘Sociologia da Arte’, em no quadro de diversas Licenciaturas da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Estas análises foram simultaneamente articuladas aos mundos virtuais, em cadeiras como ‘Bibliotecas Digitais e e-learning’ e ‘Arte e Novas Tecnologias’, no Mestrado de Educação Artística na mesma Faculdade. No seio de uma tal hermenêutica, passámos, paulatinamente, dos conceitos verbais para conceitos visuais, ao ligar, sistematicamente, ideias com imagens, e traduzimos ambos os anteriores em conceitos digitais, ou seja, termos e noções mais adequados à leitura e à escrita das realidades dos mundos virtuais.  

Entre outros autores, associámos Simmel à leitura de Paula Rego; ou, para além disso, avizinhámos Edmund Husserl (o fundador da fenomenologia), e Alfred Schutz (autor que aplicou a Fenomenologia à Sociologia), a obras de René Magritte. Por exemplo, Husserl nota que, no processo de relação do homem com o mundo, o sujeito, no interior do lebenwelt de todos os dias, usa a percepção e a consciência enquanto meios para chegar ao conhecimento. Nesta demanda, a alteridade pode ser o mundo exterior ao sujeito, ou os outros sujeitos (Bouckaert, 2003).Aplicando a fenomenologia ao Second Life, que surge como o exemplo mais popular de metaverso, repara-se que, nesse contexto, experimentamos hoje vidas quotidianas paralelas ou concurrentes à chamada ‘vida diária real’. De facto, os avatars ou agentes sociais que nos representam,  comunicam entre si, num mundo da vida quotidiana ou lebenwelt virtual distinto, mas sobreposto, ao lebenwelt físico inerente ao quotidiano dos respectivos utilizadores. Em tais mundos da vida virtuais, a captação sensorial do mundo pelo utilizador sofre mudanças notáveis. É o caso da visão flyby, ou seja, a perspectiva aérea ou ‘visão de deus’, desenvolvida durante a deslocação do avatar.  

A partir deste ou de outros dispositivos discursivos do metaverso, a consequente consciência do mundo, real e virtual, também se altera. Donde se pode inferir que o conhecimento adquirido no interior do metaverso pode ser mais singular daquilo que uma mera imersão temporária poderia fazer supôr. Por outras palavras, a frequentação contínua e até diária do Second Life ou de outros metaversos, engendraria modos de conhecimento  (seja ele um saber comum, artístico, científico ou outro) nunca dantes vislumbrados.

Mas como se passam estes processos, numa óptica mais sociológica? Alfred Schutz (1971) adaptou a fenomenologia à interpretação do social, em termos de uma ‘fenomenologia sociológica’. O seu conceito ‘províncias finitas de significado’ traduz o fenómeno de contextualização daquilo que é compreensível, no decorrer da nossas relações societais. Ou seja, só entendemos bem aquilo que experimentamos nas nossas rotinas quotidianas, no limite dos nossos lebenwelt ou mundos da vida social. Mesmo um vizinho do nosso bairro pode não entender nada do que dizemos ou fazemos, pela simples razão que transitou por experiências e saberes diários diferentes. 

Retomemos esta noção de ‘províncias finitas de significado’ na análise dos mundos virtuais, ou metaversos. Neles, os ‘avatars’ ou actores virtuais constituem-se enquanto agentes sociais de novo tipo.  

Com efeito, no metaverso, cada grupo de avatars possui os seus próprios conhecimento e experiência, não necessariamente coincidentes com aquelas práticas e saberes das personagens virtuais que percorreram outras vias de imersão quotidiana no metaverso. Daí que o metaverso não apresente uma única vida diária, mas múltiplas, cada uma delas correspondendo a um só actor, a um grupo  de actores ou a um avatar apenas num dado momento da sua biografia digital. Por outras palavras, não existe somente um lebenwelt virtual ou mundo de esperiência digital. Isto é, não ocorre apenas uma ‘Segunda Vida’, porque, no metaverso, não há apenas uma segunda via. Assim sendo, o Second Life dever-se-ia nomear ‘Multiple Life’, mesmo no que respeita uma única pessoa real e a sua  personagem virtual, no quadro da sua carreira metavérsica.  

Mais concretamente, de acordo com Schutz, os agentes sociais podem comunicar entre si através das interacções entre indivíduos (ex: uma conversa) e a partir da correspondente interpretação mútua, no seio de uma dada sociedade ou cultura. Este processo sedimenta-se nas ‘tipificações’,  isto é, classificações criadas e operadas nas práticas da vida quotidiana, apresentando significados comuns e socialmente compartilhados, compreensíveis pelos membros ou, mais especificamente, pelo ‘senso comum colectivo’, num determinado tecido social. No caso do Second Life, podemos pensar em tipificações virtuais, próprias deste espaço, sociedade ou cultura virtual, entendido na articulação dos seus diversos lebenwelts ou mundos da vida mais circunscritos, cada um deles encerrando uma distinta ‘província finita de significados’. 

Desta feita, o metaverso encerra traços sociais muito vincados, passíveis de serem estudados pelas Ciências Sociais. Afinal, no Second Life, não se desenvolvem apenas actividades económicas, como a formação de empresas (Mahar, 2009), e jogos de poder, mas também se passam eventos culturais e artísticos, como a fotografia de outros agentes intervenientes nesse contexto (Andrade, 2007). Neste ensaio de 2007, questiona-se qual a natureza sócio-simbólica e o estatuto da imagem fotográfica e do fotográfico nos últimos anos, no seio da Web 2.0 e, em particular, no mundo virtual do Second Life (ou SL)?  Para responder a esta questão de fundo, o texto estrutura-se em duas partes:  

1) A crítica de algumas ideias inseridas no campo semântico e sociológico da fotografia, da Web 2.0 e do SL. Em especial, assistimos hoje à emergência de um novo paradigma na arte da fotografia, que o autor nomeou fotográfico virtual. Este processo, mais do que se referir à fotografia em si, fala daquilo que a fotografia deixa entrever no tecido social e nos espaços virtuais actuais.  Outros processos paralelos ao fotográfico virtual, e que em parte o explicam, são o retorno do autor e a emergência do autor planetário, o efeito Pessoa, o Segundo Corpo, etc.  

2) A análise de conteúdo e de discurso sobre um dos manuais de uso mais populares do SL, onde se procura aplicar alguns dos conceitos enunciados supra.  

Noutro texto, o antropólogo Tom Boellstorff  estudou empiricamente a vida que ocorre no Second Life (2008). Escolhendo incarnar o avatar Tom Bukowski, observou, durante dois anos, um conjunto de práticas aí realizadas. Para tal, utilizou métodos e técnicas antropológicas semelhantes àquelas usadas pelos cientistas sociais na 'primeira vida' real.  

O objectivo consistiu em analisar os comportamentos e atitudes relativos ao sexo, raça, conflitos, a interacção entre sujeitos e mesmo as noções de tempo e espaço construídas no metaverso. O autor demonstra que a nossa identidade e a própria sociedade sofrem transformações profundas nos mundos virtuais.

Em suma, o metaverso esclarece que o homem foi sempre virtual, na medida em que os mundos virtuais derivam da capacidade humana de criar, constantemente, cultura. 

A  relevância do metaverso

A centralidade dos mundos virtuais para a compreensão do mundo contemporâneo parece ser testemunhada pela iniciativa de Orange Montagne, que elaborou um ‘Manifesto do Metaverso’ (2007). 

O autor sublinha que incontáveis pessoas entram em imersão voluntariamente, no seio de contextos virtuais visuais em 3D. Estes contextos são partilhados, ou seja, aí vemos os outros, mas também somos vistos. Há poucas décadas, estes contextos virtuais reduziam-se à mera ficção científica.  

Uma tal atitude provoca consequências sociais notáveis. O autor, retomando o tom de Engels, nota o seguinte: hoje, existem pessoas que se inserem nos mundos virtuais identificando-se com o proletariado. Outras assumem-se enquanto vanguarda de classe social, criando conscientemente novas realidades. 

Para além disso, numa perspectiva híbrida entre dois saberes exegetas do metaverso, o filósofo Peter Ludlow e o jornalista Mark Wallace (2009), empreendem uma desmistificação daquilo que, à primeira vista, o Second Life parece emitir ou omitir. Referindo-se à história dos ambientes multi-utilizador e à sua própria experiência do metaverso, demonstram que, neste espaço público no interior do ciberespaço, também emergem conflitos e jogos de poder, censura e novas regras sociais. Trata-se de um verdadeira realidade social paralela e amiúde transgressiva, onde o sexo e o crime não são raros. 

Em suma, os autores realçam a dupla natureza, idílica e sombria, da nossa segunda vida digital. 

Afinal, que práticas e comportamentos são possíveis, prováveis, ou permutáveis nos mundos virtuais? Stefan Sonvilla-Weiss (2008) mostra que, após uma época onde praticamente tudo se descobriu, o metaverso permite alargar, ainda mais, as fronteiras do conhecido, até ao infinito. Neste novo medium e através da sua interface, as discussões sobre os problemas das pessoas, a aprendizagem e a participação, são distintas da vida real. De facto, no seio do metaverso, emerge uma nova ‘dataculture’, que aponta novas vias para além das dicotomias ‘indivíduo/comunidade’, ‘privado/público’, ‘visibilidade/invisibilidade’, ‘autonomia/controlo’, etc. Inéditos empenhamentos, sociais, artísticos e científicos, são doravante possíveis.  

Conclusão

O metaverso, como qualquer outro processo societário, pode ser interpretado pelas Ciências Sociais e Humanas, ou por outras reflexões e linguagens sobre o social, como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, o jornalismo, etc. Mas é sobretudo através dos saberes híbridos que se entende a complexidade da nossa vida quotidiana múltipla. Com efeito, os conhecimentos mixtos, nas suas múltiplas variantes, articulam os saberes especializados e os saberes comuns, ou fundam e fundem a experiência e o conhecimento forjados nos lebenwelt reais e nos lebenwelt virtuais.

   
  Bibliografia
 

ANDRADE, Pedro, 2007, “O Fotográfico virtual no Second Life: apontamentos para uma Sociologia da Web 2.0”, Revista de Comunicação e Linguagens, (39), Lisboa: CECL, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Idem, 2001, “Sociabilidade e solidariedade digitais: estudo de caso de uma comunidade virtual”, In III Colóquio Internacional ‘Discursos e práticas alquímicas’, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Bento de Rocha Cabral, 29-30 de Junho de 2001, Lisboa.

BOELLSTORFF, Tom, 2008, Coming of Age in Second Life: An Anthropologist Explores the Virtually Human, Princeton University Press.

BOUCKAERT, Bertrand, 2003,  L'idée de l'autre: La question de l'idéalité et de l'altérité chez Husserl des Logische Untersuchungen aux Ideen I , Kluwer Academic  Publishers.

LUDLOW, Peter; WALLACE, Mark, 2009, The Second Life Herald: The Virtual Tabloid that Witnessed the Dawn of the Metaverse, The MIT Press.

MAHAR, Jay; MAHAR, Sue, 2009, The Unofficial Guide to Building Your Business in the Second Life Virtual World: Marketing and Selling Your Product, Services, and Brand In-World, AMACOM.

MONTAGNE, Orange, 2007, Metaverse Manifesto, Studio SFO.

PETRY, Luís Carlos, 2009, “Estruturas cognitivo-ontológicas dos Metaversos”, In Morgado, Leonel; Zagalo, Nelson, Boa-Ventura, Ana (orgs), SLACTIONS 2009 International Conference: Life, imagination, and work using metaverse platforms, 24 e 25 de Setembro de 2009, Vila Real: UTAD.

Idem; BARBOSA, Pedro, 2007, “AlletSator: aspectos fenomenológicos da produção de mundos e objetos tridimensionais na Ciberópera, 1”,  In Rocha, Cleomar (org.), Encontro Nacional da ANPAP - Arte limites e contaminações, Anais do 15º Encontro Nacional da ANPAP, Salvador.

SCHUTZ, Alfred et al, 1971, The Structures of the Life-World, Northwestern University Press.

SONVILLA-WEISS, Stefan, 2008, (IN)VISIBLE: Learning to Act in the Metaverse, Springer.

 

 

PEDRO ANDRADE (PORTUGAL)
Doutor em Sociologia, na especialização de Sociologia da Cultura, Arte e Comunicação. Professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa.

 

 

© Maria Estela Guedes
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