Em 1916
na velha Europa das
pátrias repleta de bandeiras sangrentas
alguns homens em
desespero num café de Zurique
o “Cabaret
Voltaire”
declaravam pela
boca de Hugo Ball
que vinham lembrar
aos surdos aos negociantes de casacas
que existiam para
além da guerra e dos marechais
homens
independentes vivendo outros ideais.
Eram os dadaístas
seres de cimento e
vento
- que entre o luar
e os miosótis sabiam distinguir um dedo apodrecido
riscando
obscenidades num livro de horas
ou numa página de
memórias –
que através da sua
revista nascente e sobretudo
através dos seus
corpos convulsos dos seus ombros todavia serenos
como o mar à noite
nas praias dos continentes desconhecidos
iniciavam uma
agitação original e enraivecida
que iria
propagar-se ao resto das nações
gastas,
enregeladas, derrocadas pela metralha.
Foi no ano
em que um português
de gravata e colete sóbrio
Mário de
Sá-Carneiro, esfinge gorda e evanescente todavia
se suicidou em
Paris usando veneno para ratos
lírico luso exilado
num quarto solitário, demasiado grande
para caber como
devia ser no caixão de mesquinhez
e miséria frente às
tílias dos boulevards e ao rio silente do mundo.
Foi no ano
em que as piscinas
romanas se encheram de peixe estragado
na Via Veneto, no
Quirinal, no Palácio dos Doges
e mais ao norte na
Floresta Negra os noitibós romperam a cantar
entusiasmados com o
fragor dos canhões e dos sinos das capelas
- a grande
tempestade ia assolando pouco a pouco
as habituais
cabeças ainda compenetradas
ainda confiadas em
valores já invadidos pelo bolor
como o que cobre os
bolos de aniversário se passados três meses
ninguém aparece na
fotografia para que as lembranças subsistam.
Era o ano terrível
em que velhos
mulheres crianças gatos cunhados sogros
noivos de calças às
riscas e um ar entontecido
padres de mão de
repente suspensa no ar sem se atreverem a abençoar
e algumas mulas
velhas e muitos cães vadios
rebentavam de medo
de fome de angústia caso não fosse
devido a um pontapé
em cheio no plexo solar.
Era o ano em que se
bailava o grande baile
dedicado a São
Clausewitz
o baile da morte
picuinhas e do desaparecimento a posteriori
quando não eram as
esposas era sei lá o merceeiro
quem se encarregava
do trabalho
da amargura e da
peste – dizem os relatos configurando
os campos
enlameados da mocidade decapitada.
A Europa
era um destroço
fumegante donde gotejava ranho e pus.
O Movimento
Dadaísta punha em causa tudo
tivesse não tivesse
razão - quem os mandara ser artolas? –
os belos relógios
hereditários de pai para filho
as rendas da
avozinha rija apesar de toda escangalhada
o xixi do menino
renhaunhau com dentes de oitenta centímetros
o baú mexicano que
o tio trouxera das terras do Maximiliano
quando lá estivera
como conselheiro das tropas
tudo
começando pelos
bons sentimentos que serviam para fritar gente
pondo em causa
inclusive a sua própria existência: DADA
palavra encontrada
ao acaso num dicionário a canivete
e se não fosse
aquela era outra por exemplo Cirenaica
que ficava noutra
folha mas já alguém imaginou coisa tal?
E punha em causa o
doce casulo das feras o colarinho engomado
o báculo e a mitra,
a sobrecasaca e o chapéu alto
o chapéu de coco do
anjo da guarda, o papillon do janota
o luzir dos
uniformes enfeitados com medalhas era um fartote de riso
as comendas
remendadas com crostas de porcaria
e um que outro
traque dissimulado no decorrer dum festim
- as míseras
heroicidades duma sociedade agachada
nas dobras das
trincheiras, no tapume dos assaltos à carga.
E Dada garantia que
naquele verão os elefantes
iriam usar bigode
declarava que não
era ideia por aí além
a perneta gorducha
da senhora de combinação roxa na coroínha do
esposo
e os risos da prima
gaga muito prendada e recitando sonetos bem rimados
preparando-se
subrepticiamente pois então
para ser mais um
esqueleto bem composto no álbum canibal
no banquete
violento do calculismo e da astúcia convincentes.
Dada
com os dentes
luzindo debaixo do nevoeiro
aparecia em
Barcelona, cidade negra e vermelha
na revista “391”,
uma revista-piloto
por obra e graça de
Francis Picabia
Dada
depois de fazer a
risca ao lado punha bigodes à Gioconda e mandava
um urinol à
Exposição de Nova Iorque
intitulando-o
“Fontanário”
contestando
dest’arte a grande aldrabice
duma estética
comendo toucinho tirado do lombo dos adolescentes
e Van Doesburg
escrevia onomatopeias e tudo era ruído bem alto e bem claro
e Huelsenbeck dava
o tom e proclamava
meus senhores,
nesta época
“os professores
de zoologia reúnem-se nos prados
com as costas das
mãos viram os arco-íris ao contrário
o grande Mágico
equilibra tomates na testa
tu embruxaste de
novo o castelo e o parque”
e o parque como que
por encanto sem saber de nada
cobria-se de sebes
entretecidas de violetas velas amarelas e papoilas.
Pierre-Albert
Birot, Tristan Tzara, Soupault
Breton, Baader,
Marcel Janko
nomes luminosos no
espaço atulhado
negros e azuis no
púbis do silencio.
Foi o choque
inevitável e necessário e puro
porque o mundo
civilizado urinava nos seus próprios pulmões
e morria sufocado
por gases numa reles trincheira
sob a chuva de
Março sob o nevão de Janeiro
e a tristeza de
Dezembro sem lenha a estalar no lume
das choupanas do
bosque onde se acoitavam lebrões
sob os valores
centenários destroçados pelo cinismo bem escovado
da sociedade por
eles erguida com arames e lata
Só o divertimento
artistico subsistia
Importava mostrar
às gentes o seu verdadeiro rosto
rosto empalidecido
na neblina e no suor gelado
na pobreza, na
crueldade, no terror
na ausência e no
opróbio.
Dada em Paris não
dançava o french-cancan
Dada em Berlim não
se empanturrava de cerveja e salsichas
Dada em Lisboa
junto ao mar das caravelas
ao longe num
passado de ossadas e pimenta azeda
não ia orgulhosa
ouvir o fado e a concertina
não podia fazer
nada porque no país já se fazia tudo
as grandes avenidas
onde era tão belo viver
que estivemos nisto
uns quarenta e tal anos
graças a deus
Dada não cortava os
calos porque só usava os pés para voar
não coçava
disfarçadamente o sovaco com o pistolão mosquete
nem com a bengala
estoque
só dizia lá de vez
em quando com a voz bem colocada:
“as borboletas
têm óculos de artista
e Beethoven nunca
ri e os seus filhos
mal amados
são como a tainha
nadando
num lago onde os
nenúfares parecem luas cheias”.
Cheirava mal se
calhava porque o tempo não ia de rosas, cheirava
a carne mal
prensada, como aquela meio estragada que, descobriu-se depois
serviam aos taratas
no Chemin des Dames antes da grande refrega
cheirava a bordel e
era uma sorte cheirava a sacristia e era um descanso
procurava
ajeitar-se no pátio das prisões para pitar uma beata antes de chegar
o comparsa dos
mecos da toga
nos hospitais, nas
fábricas, nos enterros e baptizados
nas ruas onde
sempre há infelizes que procuram sorrir
com a boca
inteiramente cariada
e lá de quando em
vez num quarto esconso
onde alguém se ama
sem saber porquê
trocando amargura
por amargura
Sim os tempos não
eram de vinho e crisântemos
nem de luzes sobre
um rosto infinitamente querido.
Dada estava perto
de nós todos
os homens e as
mulheres de um mundo a caminho de Hiroxima
Dada estava dentro
do nosso ventre, na nossa respiração
no pó das veias, no
gelo das artérias, no granito
da nossa pele
devastada. Dada era o aviso, Dada era o prenuncio
de que a grande
maldição estava lançada
e que mais tarde
passada a terra de ninguém
iria fazer sentido
o sonho o maravilhoso a poesia
a verdade dos
corpos a verdade dos espíritos
o fresco sentir de
mãos unidas erguidas perto da Lua
a revolta sensível
contra os vampiros de teatro e os lobisomens das estalagens
todos esses que
destroem a estrutura de vidro puro e sonoro da Terra
esse corpo de Homem
todo feito
de bronze e de
alegria.
Dada cantava, Dada
chorava, Dada
atravessava os
palcos dentro dum saco de serapilheira
e dizia entredentes
mas suficientemente audível
“o berro dum
trovão fatigado
pousou levemente no
mais altivo cume”
Dada provocava
cóleras ridículas
aos homens de bem
imersos em trampa da melhor qualidade
e cultivava
assobios nas casas em ruínas
ao lusco-fusco
espelhando cócegas
nas almas treinadas dos bem pensantes
até de vez em
quando, para manter a vivacidade
deixava-se embarcar
em divertidas cenas de pancadaria
como aquela havida
no Teatro de Munique
na qual um dos
protagonistas ficou sem metade do bigode
para grande festejo
da assistência enfurecida
olha se não fosse
postiço.
E Dada iria morrer
anos depois, em
1923
lançado ao Sena
simbolicamente num caixão de pinho
ao Reno das
valquírias e das putas bem aviadas de chucrute
ao Danúbio cinzento
para não ser como na toada habitual
como já o fora o
Simbolismo, o Futurismo e outros ismos de barba curta
Dada tinha no peito
uma flor aberta donde escorria lava e mel.
No horizonte
acumulavam-se as sombras de sempre
mas também de lá
surgia uma luz indecisa
caminho automático
magnético para as cabeças lúcidas
de madrugada,
depois de uma sopinha quente para acalentar
Dada contemplava
melancólico o oceano e os bares, as praças e as cozinhas
os próprios carros
do rancho as ambulâncias onde Hemingway andou
e o montes e as
árvores e os locais de voragem
e os sótãos e os
armários e as caves subterrâneas
onde ora se
encontrava um alfarrábio perdido
ora se tratava do
pelo a um que se negava a dar à taramela
com um certo amargo
sorriso de sabedoria.
Não havia drama
Dada acumulava a tristeza
e a certeza
de que a velha
mascarada de um mundo estava em vias de liquidação
que tudo era já era
e nada de desculpas tontas
uma outra idade
uma outra fábula
e algo lhe dava
mansamente as mãos.
Algures
na porta do
fantástico
na hora absurda
nos degraus do sono
a oeste do castelo
estrelado
na iluminação dos
campos
na chuva oblíqua
onde se tinham acumulado indícios de oiro
o Surrealismo ia
surgir.
Casa do
Atalaião, Janeiro de 2011
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