REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

 

Nicolau Saião

 

Um olhar sobre o passado

 Surrealismo-abjeccionismo,

configuração do futuro

                                                                 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Em 1916

na velha Europa das pátrias repleta de bandeiras sangrentas

alguns homens em desespero num café de Zurique

o “Cabaret Voltaire”

declaravam pela boca de Hugo Ball

que vinham lembrar aos surdos aos negociantes de casacas

que existiam para além da guerra e dos marechais

homens independentes vivendo outros ideais.

 

Eram os dadaístas

seres de cimento e vento

- que entre o luar e os miosótis sabiam distinguir um dedo apodrecido

riscando obscenidades num livro de horas

ou numa página de memórias –

que através  da sua revista nascente e sobretudo

através dos seus corpos convulsos dos seus ombros todavia serenos

como o mar à noite nas praias dos continentes desconhecidos

iniciavam uma agitação original e enraivecida

que iria propagar-se ao resto das nações

gastas, enregeladas, derrocadas pela metralha.

 

Foi no ano

em que um português de gravata e colete sóbrio

Mário de Sá-Carneiro, esfinge gorda e evanescente todavia

se suicidou em Paris usando veneno para ratos

lírico luso exilado num quarto solitário, demasiado grande

para caber como devia ser no caixão de mesquinhez

e miséria frente às tílias dos boulevards e ao rio silente do mundo.

Foi no ano

em que as piscinas romanas se encheram de peixe estragado

na Via Veneto, no Quirinal, no Palácio dos Doges

e mais ao norte na Floresta Negra os noitibós romperam a cantar

entusiasmados com o fragor dos canhões e dos sinos das capelas

- a grande tempestade ia assolando pouco a pouco

as habituais cabeças ainda compenetradas

ainda confiadas em valores já invadidos pelo bolor

como o que cobre os bolos de aniversário se passados três meses

ninguém aparece na fotografia para que as lembranças subsistam.

 

Era o ano terrível

em que velhos mulheres crianças gatos cunhados sogros

noivos de calças às riscas e um ar entontecido

padres de mão de repente suspensa no ar sem se atreverem a abençoar

e algumas mulas velhas e muitos cães vadios

rebentavam de medo de fome de angústia caso não fosse

devido a um pontapé em cheio no plexo solar.

Era o ano em que se bailava o grande baile

dedicado a São Clausewitz

o baile da morte picuinhas e do desaparecimento a posteriori

quando não eram as esposas era sei lá o merceeiro

quem se encarregava do trabalho

da amargura e da peste – dizem os relatos configurando

os campos enlameados da mocidade decapitada.

 

A Europa

era um destroço fumegante donde gotejava ranho e pus.

 

O Movimento Dadaísta punha em causa    tudo

tivesse não tivesse razão   - quem os mandara ser artolas? –

os belos relógios hereditários de pai para filho

as rendas da avozinha rija apesar de toda escangalhada

o xixi do menino renhaunhau com dentes de oitenta centímetros

o baú mexicano que o tio trouxera das terras do Maximiliano

quando lá estivera como conselheiro das tropas

tudo

começando pelos bons sentimentos que serviam para fritar gente

pondo em causa inclusive a sua própria existência: DADA

palavra encontrada ao acaso num dicionário  a canivete

e se não fosse aquela era outra por exemplo Cirenaica

que ficava noutra folha mas já alguém imaginou coisa tal?

E punha em causa o doce casulo das feras o colarinho engomado

o báculo e a mitra, a sobrecasaca e o chapéu alto

o chapéu de coco do anjo da guarda, o papillon do janota

o luzir dos uniformes enfeitados com medalhas era um fartote de riso

as comendas remendadas com crostas de porcaria

e um que outro traque dissimulado no decorrer dum festim

- as míseras heroicidades duma sociedade agachada

nas dobras das trincheiras, no tapume dos assaltos à carga.

 

E Dada garantia que naquele verão os elefantes

iriam usar bigode

declarava que não era ideia por aí além

a perneta gorducha da senhora de combinação roxa na coroínha do

esposo

e os risos da prima gaga muito prendada e recitando sonetos bem rimados

preparando-se subrepticiamente pois então

para ser mais um esqueleto bem composto no álbum canibal

no banquete violento do calculismo e da astúcia convincentes.

 

Dada

com os dentes luzindo debaixo do nevoeiro

aparecia em Barcelona, cidade negra e vermelha

na revista “391”, uma revista-piloto

por obra e graça de Francis Picabia

Dada

depois de fazer a risca ao lado punha bigodes à Gioconda e mandava

um urinol à Exposição de Nova Iorque

intitulando-o “Fontanário”

contestando dest’arte a grande aldrabice

duma estética comendo toucinho tirado do lombo dos adolescentes

e Van Doesburg escrevia onomatopeias e tudo era ruído bem alto e bem claro

e Huelsenbeck dava o tom e proclamava

meus senhores, nesta época

os professores de zoologia reúnem-se nos prados

com as costas das mãos viram os arco-íris ao contrário

o grande Mágico equilibra tomates na testa

tu embruxaste de novo o castelo e o parque

e o parque como que por encanto sem saber de nada

cobria-se de sebes entretecidas de violetas velas amarelas e papoilas.

Pierre-Albert Birot, Tristan Tzara, Soupault

Breton, Baader, Marcel Janko

nomes luminosos no espaço atulhado

negros e azuis no púbis do silencio.

 

Foi o choque inevitável e necessário e puro

porque o mundo civilizado urinava nos seus próprios pulmões

e morria sufocado por gases numa reles trincheira

sob a chuva de Março sob o nevão de Janeiro

e a tristeza de Dezembro sem lenha a estalar no lume

das choupanas do bosque onde se acoitavam lebrões

sob os valores centenários destroçados pelo cinismo bem escovado

da sociedade por eles erguida com arames e lata

Só o divertimento artistico subsistia

Importava mostrar às gentes o seu verdadeiro rosto

rosto empalidecido na neblina e no suor gelado

na pobreza, na crueldade, no terror

na ausência e no opróbio.

 

Dada em Paris não dançava o french-cancan

Dada em Berlim não se empanturrava de cerveja e salsichas

Dada em Lisboa junto ao mar das caravelas

ao longe num passado de ossadas e pimenta azeda

não ia orgulhosa ouvir o fado e a concertina

não podia fazer nada porque no país já se fazia tudo

as grandes avenidas onde era tão belo viver

que estivemos nisto uns quarenta e tal anos

graças a deus

Dada não cortava os calos porque só usava os pés para voar

não coçava disfarçadamente o sovaco com o pistolão mosquete

nem com a bengala estoque

só dizia lá de vez em quando com a voz bem colocada:

as borboletas têm óculos de artista

e Beethoven nunca ri e os seus filhos

mal amados

são como a tainha nadando

num lago onde os nenúfares parecem luas cheias”.

Cheirava mal se calhava porque o tempo não ia de rosas, cheirava

a carne mal prensada, como aquela meio estragada que, descobriu-se depois

serviam aos taratas no Chemin des Dames antes da grande refrega

cheirava a bordel e era uma sorte cheirava a sacristia e era um descanso

procurava ajeitar-se no pátio das prisões para pitar uma beata antes de chegar

o comparsa dos mecos da toga

nos hospitais, nas fábricas, nos enterros e baptizados

nas ruas onde sempre há infelizes que procuram sorrir

com a boca inteiramente cariada

e lá de quando em vez num quarto esconso

onde alguém se ama sem saber porquê

trocando amargura por amargura

Sim   os tempos não eram de vinho e crisântemos

nem de luzes sobre um rosto infinitamente querido.

 

Dada estava perto de nós todos

os homens e as mulheres de um mundo a caminho de Hiroxima

Dada estava dentro do nosso ventre, na nossa respiração

no pó das veias, no gelo das artérias, no granito

da nossa pele devastada. Dada era o aviso, Dada era o prenuncio

de que a grande maldição estava lançada

e que mais tarde passada a terra de ninguém

iria fazer sentido o sonho o maravilhoso a poesia

a verdade dos corpos a verdade dos espíritos

o fresco sentir de mãos unidas erguidas perto da Lua

a revolta sensível contra os vampiros de teatro e os lobisomens das estalagens

todos esses que destroem a estrutura de vidro puro e sonoro da Terra

esse corpo de Homem todo feito

de bronze e de alegria.

 

Dada cantava, Dada chorava, Dada

atravessava os palcos dentro dum saco de serapilheira

e dizia entredentes mas suficientemente audível

o berro dum trovão fatigado

pousou levemente no mais altivo cume”

Dada provocava cóleras ridículas

aos homens de bem imersos em trampa da melhor qualidade

e cultivava assobios nas casas em ruínas

ao lusco-fusco

espelhando cócegas nas almas treinadas dos bem pensantes

 

até de vez em quando, para manter a vivacidade

deixava-se embarcar em divertidas cenas de pancadaria

como aquela havida no Teatro de Munique

na qual um dos protagonistas ficou sem metade do bigode

para grande festejo da assistência enfurecida

olha se não fosse postiço.

 

E Dada iria morrer

anos depois, em 1923

lançado ao Sena simbolicamente num caixão de pinho

ao Reno das valquírias e das putas bem aviadas de chucrute

ao Danúbio cinzento para não ser como na toada habitual

como já o fora o Simbolismo, o Futurismo e outros ismos de barba curta

Dada tinha no peito uma flor aberta donde escorria lava e mel.

 

No horizonte acumulavam-se as sombras de sempre

mas também de lá surgia uma luz indecisa

caminho automático magnético para as cabeças lúcidas

de madrugada, depois de uma sopinha quente para acalentar

Dada contemplava melancólico o oceano e os bares, as praças e as cozinhas

os próprios carros do rancho as ambulâncias onde Hemingway andou

e o montes e as árvores e os locais de voragem

e os sótãos e os armários e as caves subterrâneas

onde ora se encontrava um alfarrábio perdido

ora se tratava do pelo a um que se negava a dar à taramela

com um certo amargo sorriso de sabedoria.

Não havia drama Dada acumulava a tristeza

e a certeza

de que a velha mascarada de um mundo estava em vias de liquidação

que tudo era já era e nada de desculpas tontas

uma outra idade

uma outra fábula

e algo lhe dava mansamente as mãos.

 

Algures

na porta do fantástico

na hora absurda

nos degraus do sono

a oeste do castelo estrelado

na iluminação dos campos

na chuva oblíqua onde se tinham acumulado indícios de oiro

 

o Surrealismo ia surgir.

 

                                                                    Casa do Atalaião, Janeiro de 2011

                                                                                           ns

 
 
 
 
 
 
 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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