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Casei com a Aninha, mas o Arnaldo
me ajudou a entender que a Aninha não era muito fiel.
Alguns amigos diziam que eu
deveria romper a amizade com o Arnaldo, mas eu vejo por outro ângulo.
Sem a ajuda dele, eu continuaria casado e infeliz com a Ana. Hoje ela
vive sua vida e eu a minha. Às vezes nos encontramos na casa do Arnaldo,
mas nos tratamos como bons amigos.
Então, o Arnaldo sofreu um
acidente. Algum infeliz derrubou um vaso de plantas de uma das janelas
do meu prédio, sobre o Arnaldo, que passeava tranqüilamente na calçada.
Bem a tempo, Arnaldo olhou para cima e colocou os braços para proteger o
rosto. Resultado: fraturou os dois braços, perdeu vários dentes da
frente e não está podendo falar. Faz sinais com a cabeça e por mímica,
acabamos entendendo o que ele quer.
Quando tomei conhecimento da
notícia, fui visitá-lo. Cheguei a dar um suspiro de alívio ao vê-lo tão
bem. Vários amigos estavam em seu apartamento, mas foi a mim que ele fez
o pedido, que ficasse para ajudá-lo. Então fiquei.
O coitado não conseguia comer,
beber, sentar, nem ir ao banheiro sozinho. Principalmente ir ao
banheiro. Você consegue se imaginar com os dois braços engessados até
quase os ombros, quase urinando nas calças e não conseguindo fazer nada?
Para ser sincero, dar comida na
boca, pegar um copo d’água e colocar um canudo dentro, é fácil. Chato é
ir com o cara no banheiro e segurar e balançar o Arnaldinho, como ele
chama.
Na primeira vez que me pediu que o
ajudasse a ir ao banheiro, procurei por todo o apartamento alguma coisa,
até que achei aquela luva de forno, para pegar travessas quentes, sei lá
o nome daquele diacho. Mas demorei até achar e, quando voltei ao
banheiro, ele já havia se urinado todo. Para ajudá-lo a se vestir,
também tinha minhas dificuldades. Na hora dele colocar as cuecas, eu a
prendia aberta entre duas cadeiras e ele se enfiava lá. Vou ficar
encostando o rosto em perna cabeluda, nada!
Certa feita, estava usando a luva
para pegar a travessa de feijão que acabara de aquecer no microondas,
quando vi que ele queria ir ao banheiro. Na hora em que peguei o
“Arnaldinho” com a luva, meu amigo deu um salto. A luva estava muito
quente...
Depois a coisa foi piorando. O
sujeito no banheiro, sentado no vaso, pedindo que o ajudasse com o papel
higiênico, indicando o rolo com o queixo e fazendo: “Ã... ã...”
Quando entendi o que ele queria,
fiquei enjoado. Mas, estava ali para ajudar. Desenrolei um bom pedaço de
papel e estiquei no chão. Expliquei a ele que deveria esfregar a bunda
no papel, que seria a mesma coisa.
Ele fez que não com a cabeça, mas
não pôde resistir aos meus argumentos e uma pernada. Caiu sentado, bem
em cima do papel. Aí, foi só arrastá-lo pelo chão do banheiro, puxando-o
pelas pernas. Bem, para ser sincero, como era a primeira vez e ainda não
tinha prática, o chão ficou meio lambuzado também. Quando peguei mais
prática, depois de esfregar a bunda dele no papel, sem que ele
percebesse, eu o esfregava naqueles borrões que ficam no chão e este
ficava limpinho. Só para continuar sendo sincero, devo confessar que o
apartamento estava com um fedor miserável, mas acho que ele não se
incomodava. Bem, eu me incomodo, por isso usava uma máscara de pintor.
Ele não podia usar a máscara sobre a boca, por causa dos pontos e da
inchação, por isso acho que ele não se incomodava com o fedor da casa.
Digo da casa, porque às vezes ele
estava tão sujo que, ao arrastá-lo sobre o papel higiênico no chão, dava
uma esticadinha até a varanda, passando pelo tapete da sala, pelo piso
de cimento da área. Tem uma parte da varanda, onde o sol bate pela
manhã, que ao meio-dia o piso está bem quente. Ele gostava tanto que eu
o arrastasse até lá, que seus olhos ficavam cheios d’água de gratidão.
Eu bem que tentei levá-lo até o
elevador, para dar uma voltinha lá no playground, mas ele sempre se
enroscava na porta da sala e não havia modo de fazê-lo passar para fora
do apartamento.
Claro que depois da sessão de
higiene no papel (e fora dele) ambos ficávamos muito cansados. O Arnaldo
pesa quase noventa quilos! Puxar pelas pernas um sujeito tão pesado,
arrastando suas nádegas cabeludas no chão, não é nada fácil. Cabeludas?
Bem, para falar a verdade, ele está com a retaguarda lisinha agora. Acho
que foi o atrito com o piso quente. Dia desses tentei arrastá-lo puxando
pelas orelhas, mas é bem mais difícil e eu me cansei logo.
Estava muito quente e achei melhor
depilar o meu amigo, para diminuir sua sensação de calor. Mesmo com os
braços engessados, resistiu tanto que tive que amarrá-lo a uma cadeira
para poder depilar seu peito. Aliás, bem lembrado! Assim que puder,
pretendo patentear a minha invenção: as Folhas de Depilação Arnaldinho.
É o seguinte, eu besunto folhas de papel laminado com superbonder, colo
nos cabelos do peito do cliente e depois é só puxar. É quase indolor...
Para que ele não ficasse sem
banho, eu também tive que bolar um aparelho. Comprei uma vara de bambu e
fiz diversos furos. Enchia a banheira, colocava o bambu lá dentro até
encher os furos. Depois era só bater com o bambu no Arnaldo. Colocava
sabão na água da banheira, mergulhava o bambu de novo, batia novamente
no meu amigo e ele estava ensaboado. Depois, era só enxaguar de novo.
Ele compreendia a minha questão de não tocar suas partes com as mãos,
porque ele é homem também. Então, durante o banho, Arnaldo chorava de
felicidade por ter um amigo tão prestativo.
A alimentação do meu amigo também
ficou por minha conta, claro. Eu faço um tutu de feijão maravilhoso.
Então, o Arnaldo comia feijão com farinha todos os dias. Ás vezes,
quando eu percebia que ele estava com prisão de ventre, dissolvia uma
lata de azeite no feijão e ele se soltava todo. Mas eu desconfiei que o
cara andava conseguindo comida em algum lugar. O feijão é um alimento
que passa compactado pelos intestinos, limpando tudo, empurrando os
gases para fora. Mas os flatos de Arnaldo tinham um fedor horroroso de
ovo de urubu estragado. Nossa! Que catinga terrível! Só para me
certificar de que não andava comendo nada diferente, fazia um quilo de
feijão por refeição e dava tudinho para o meu amigo.
Arnaldo é um camarada muito
brincalhão. Então, para que pudéssemos nos divertir, na hora da
refeição, eu enchia uma saladeira de feijão com farinha, descarregava
meia lata de azeite ou óleo de soja, ou óleo de fígado de bacalhau (aí
eu misturava uma garrafa), que é bom para os ossos e perguntava:
- Adivinha o que tem para o
almoço?
Ele arregalava seus olhos como se
estivesse sendo examinado por um proctologista, balançava vigorosamente
a cabeça de um lado para outro e meio que grunhia:
- Nã-nã-nã-nã...
Isso queria dizer:
- Não meu fiel amigo! Eu não faço
a menor idéia do que seja a maravilhosa refeição que estou prestes a
devorar com toda a minha gratidão...
Sei que ele estava pensando na
gratidão, pois associei suas lágrimas à essa palavra. Depois de comer um
quilo de feijão em cada refeição, o estômago de Arnaldo ficava dilatado.
Acho que o feijão fermentava, formava tantos gases que a barriga dele
ficava dura e inchada. Eu esperava cerca de uma hora ou duas, para ver
se ele soltava seus gases sozinho. Quando não conseguia, eu amarrava
suas pernas e sentava sobre a sua barriga, violentamente. Ele dava uma
gemida e soltava todos os gases de uma só vez. Às vezes, quase sempre,
saía mais alguma coisa também, mas eu não esperava para conferir, porque
a catinga era tão forte que chegava a arder os olhos dele. Normalmente,
eu saía do quarto, fechava bem a porta e esperava meia hora até que o
fedor dissipasse.
É verdade que outros amigos vinham
visitar o Arnaldo, mas sempre o escondia dentro da banheira e dizia aos
visitantes que ele fôra fazer algum exame no hospital, ou estava na
fisioterapia. Mês passado a mãe dele veio. Elogiou muito a minha atitude
solícita de estar ajudando de maneira tão desinteressada um amigo.
Quando precisava sair, para as
compras, por exemplo, ficava com medo que meu amigo se machucasse e
amarrava suas pernas no lustre da sala. Colocava um facão preso com
chiclete no lustre e avisava a ele que, se balançasse muito, o facão
pode cair e ZÁP! Decapitar o Arnaldinho. Meu amigo ficava lá, imóvel,
não importava quantas horas eu demorasse. Um dia desses, no mercado,
encontrei a noiva dele. Eu lhe disse que estava aproveitando a ida do
Arnaldo ao fisioterapeuta para fazer umas compras com o cartão dele.
Aliás, nem precisei perguntar a senha, porque é a sua data de
aniversário.
Conversa vai, conversa vem, ela
disse que precisava me agradecer de uma forma especial, toda a atenção
dedicada ao Arnaldo e acabamos em um motel. Passamos a noite juntos. Foi
maravilhoso! Ela é demais! Quando lembrei do Arnaldo, já haviam se
passado dezoito horas, mas ele estava lá, impávido e faminto!
Para compensá-lo, dei-lhe o dobro
de feijão, enquanto contava a maneira delicada que a Priscila encontrou
de me agradecer. E ele só:
- Nã-nã-nã...
Que tanto queria dizer:
- Não, meu amigo! Não tenho
palavras para agradecer o que está fazendo por mim e pela minha noiva,
que está tão solitária...
Mas também queria dizer:
- Não, meu amigo! Não demore a
colocar uma colher desse maravilhoso feijão na minha boca!
Os médicos prescreveram apenas
dois meses de gesso para Arnaldo. Por minha conta, prorroguei o prazo
para seis meses, de início, mas achei que ele precisava de um pouco mais
de repouso e continuei tratando dele. Mas no oitavo mês, algo aconteceu.
Arnaldo agora estava gordo, bem
barrigudo. Feijão engorda, sabiam? Eu estava voltando das compras,
quando vi um carro de polícia defronte ao prédio. Desconfiado, fui até
um telefone e liguei para o apartamento do Arnaldo. Uma voz estranha
atendeu e desliguei.
Entristecido, pensei:
- É! Ele não precisa mais da minha
ajuda.
Fui para a rodoviária e comprei
uma passagem para fora da cidade. Algum tempo depois, empregado em uma
fazenda, o Arnaldo me encontrou. Não sei como conseguiu.
Me amarrou em uma cama, deixando
apenas uma das mãos livres, colocou um laptop ao meu lado e mandou que
escrevesse porque o tratei daquele jeito. É o que estou fazendo,
enquanto sinto um cheiro de feijão vindo da cozinha...
J. Miguel
(16 Jan 2005) |