Morto. A noite reverbera no vazio.
Seu
corpo na rua, monstruoso hálito.
A dor
é o contato com o segredo, carnoso mistério da perversão.
A dor
lhe é quase a última gota de luz.
Escorre pelo revés, estremecimentos ulteriores de sua prosternação.
Sangue germinado por toda a língua, não lhe faltam tremores de visões.
A dor
é uma queda permanente.
O
homem oprimido com seu espelho.
Horror inaudito de nomes, formas.
A
dor, uma possessão mascarada – ondulações e cascos do abismo –, não
passa de uma criatura humana.
Porém
a morte não é sempre a dor.
De
que morre afinal um homem?
Sofre
com seus animais espantosos, escrituras encrespadas, viscosas.
Pobre
mímico da própria memória.
Apregoa o desfolhamento de tudo, ainda que morra de sacrossanta rigidez.
Então
o que faz sobre o mundo entre sílabas em chamas, carnívoras?
O
homem não sustenta a linguagem em seu gorjeio contra o tempo.
Devir
transfigurado, onde seu nome?
Imaginário perfeitamente castrado.
Sua
imensidão começa no açoite, alarde de métodos, perfeição de chagas.
Um
sorriso da morte cada vez mais humana.
Tudo
é transfiguração. O homem é a condenação do ser.
Não
pode haver equilíbrio em sua queda.
Na
rua o morto, por que lhe ronda a morte até a exalação de seu sentido?
Desprende o corpo matéria destroçada, lembranças de Sebastian em
Suddenly last summer, mimo do fracasso da psicanálise em Tennessee
Williams.
A
morte uma expansão da nostalgia.
O
morto começa a caminhar, anjo sem as chaves secretas, cavalo no deserto.
Crânio desfeito em leitos de sangue.
Sombra azarenta de germes.
O morto e seu batismo por desfiguração.
Onde é possível tanta
indigência?
Corpo enlouquecido sem sentido.
Limite transubstanciado da palavra.
Cofre
de memoráveis ruínas, o morto anônimo no ardil de sua evidência.
Vida
enfeitiçada por violento fulgor.
Ferocidade do cadáver sem palavras.
Noite sem água. Noite sem
sombras.
Noite em seus farrapos implacáveis.
Não
há carne lúcida na gotejante deformidade.
O
ventre do enigma torna-se um vaivém de farpas pegajosas, latejo
implacável da ausência.
Por
quem chora o morto?
Que
lufada vê passar o corpo desfeito no vazio da noite?
Quase
um enigma do êxtase, rosa encanecida em vertigens sublimes.
Póstuma escuridão, queda óssea do canto.
Sobre
a mesa o amor visível, larvas de estalidos no mármore quebradiço.
Sombra escorrida do morto, como preservá-la?
Uma
rua em sigilosas fendas.
Dentro de cada um sobrevive igual sigilo, desfigurado em pânico
semblante.
Aparição de fulgores, pranto, suor, a morte, o que nos traz, apregoada
em vertigens?
O
morto é o mesmo, a mesma a morte, as reverberações do dia, o sorridente
caos.
Verso
fulminante de sua pele, latejo abissal das cicatrizes, sempre despidas
em trêmulas raízes, sonâmbulo espelho.
Fulminante o assombro musgoso da aflição.
Esvaziada dentro da morte, a rua agônica.
Nos
olhos em sangue – pretéritos sempre – três macacos assediados por
víboras.
Vultos em progressão delirante sobre o corpo daquele Sebastian, sempre
outro.
Dentes cravados em seus pés, canto descarnado e cifrado, o verbo em
óleos, frenesi dentro de um círculo, o morto feroz de abismos que se
põem em vôo.
–
Adeus, seres monstruosos, adeus!
A
morte sucede por causa de forças dissolventes, suores imperfeitos,
estados letárgicos do sonho.
A
morte sucede por nudez evidente, resgate de ossos, gotejo do vazio.
Três
macacos mutilam o cérebro de um corpo inundado de morte.
Memória exaurida no centro fosfórico da rua, limites da retidão
sibilante.
Ali
meditaram as três insólitas figuras.
Esvaziada a rua em sua fruição, luto.
Grotesco o silêncio demarcado.
O
morto arrasta consigo um espólio de papiros.
O que
se passa com a rua?
Estreita-se a condição humana, disfarçada sempre.
Silêncio das cicatrizes traçadas nos pulmões do kyrie eleison.
Paradoxos impetuosos: morte, obsessão sangrenta do cotidiano e uns olhos
desaparecidos no vazio.
O que
nos toca por fazer com a vida?
Mistério súbito à procura de sentido, três macacos impostores, sangue
perdido.
Sebastian em sua plenitude: intocável na ternura, acossado nas maneiras,
como Paolo em sua rosa promulgada.
O
homem é o assombro que se abre dentro de si.
O
homem é o homem e seu conjuro.
A morte é uma porta incessante.
A vida, uma sombra aterradora.
Os
três monos, a intimidade do caos.
O
corpo destroçado, uma quebradeira do possível.
Tudo
é misterioso na claridade.
O
morto – quem? – em seu desespero da língua, açoites do
entendimento.
A
carne rota, velha trilha fatigada.
A
morte acaso cumprira sua morada?
O
poeta estendido, um ninho de arbítrios.
Agora
lhe toca ser o próprio fantasma, The last rose of summer: palavra
assombrosa, livro agitado, fratura profética dos desígnios do homem na
terra.
Arpão
de metáforas, estrondo da memória, o homem docemente exausto, rocio de
dores, marcas pegajosas, rosto apagado ante o espelho, atroamento do
imaginário, corpos dessangrados.
Eis o
trabalho monstruoso: cuidar de si mesmo.
O
homem saiu de si, de seu caos de súplica, cólera de larvas, sua tocha
bebedora de tudo.
O
homem saiu do súbito fundo das coisas, de seus corpos sonoros, das
tendas corrosivas do sentido, de suas raízes humanas.
O
homem é o verme do homem.
Seu
espelho é o espelho do próximo, jamais o dele próprio.
Tem
morrido de cicatrizes alheias.
O
homem é tudo. Não morre o homem.
O
homem está pronto. Sempre estará.
O
homem não é ninguém. Deo gratias.
Igualmente selvagem foi a morte do outro, o poeta e sua intenção comum.
A
poesia é sacrílega. Vazia: a rua. Conjuro: a memória.
Tempestuosa solenidade: três macacos embriagados pela frivolidade
voluptuosa.
Ardente, o corpo em seu derrame de sentidos.
Seus
lábios não dão conta da boca, sopa de salivas, o raio da língua,
acumulação da palavra em suas vertigens.
É a
morte um luminoso mandato?
O
homem o provedor do inferno.
Sua
vida um desenlace de trevas.
Olhos
lascivos da lentidão, vontade de ser, pranto, ossos do relâmpago, o
morto em meio ao nada.
Quem
teria sido tão precioso em seu devir?
O
morto sou eu. Dilatação do ser, meus olhos vão sumindo, pobre
cego. Também o corpo, milenária dor.
A
morte é uma agulha soberba, uma solidão vantajosa ante a perfeição da
agonia, suas visões de macacos devorando os livros, seus inchaços da
metáfora.
Graças a Sebastian, uma página apaixonada por sua queda: – a rosa
dissecada é o velho livro destroçado pelas serpentes da falação.
A
solidão aligeira o peso da morte.
Com
quem dialoga o corpo restado em suas raízes exterminadas?
Adagas do silêncio, seu ardoroso vagido, ninguém dissipa os monturos de
sombras, selo tão próximo de nós, tantos inconclusos.
Escuto as cicatrizes refletidas, passos por todo o corpo, peso das
feridas.
O
morto é um espaço tenebroso, abismo da semelhança, terríveis fungos doem
na memória de todos.
O que
se passou com a carne, tábuas imensas, o jorro de palavras, páginas do
desejo, a tragédia do espanto, marcas em desamparo, branquíssima agonia
cativa do ser?
O que
se desprendeu do homem a cada morte?
Passa
o morto ante nós sem que ressuscite.
Trilha de macacos em suas flautas ossudas, escultura sonora degolada.
Amontoarão noites em débil cortejo.
Adormecida rua na indigência branca da memória, come algumas sombras e
bebe o vento nas sementes oníricas, caindo de carne em carne, no
calabouço esculpido sem alento.
A
música de três troços vãos dilatados, delito de ossos, tumba de gemidos.
O
olhar do morto quer sair à rua sem fundamento, o irreconhecível acaso,
pó de tudo, formas açoitadas pelo vento.
Três
macacos com seus despojos de carne e sonho, dor madeirada em ícone.
Humanos céus, vigas dos lamentos, três macacos comunicam – lodo nas
flautas – que a morte não é sua ganância, que a rua sofre de aparências,
vésperas armadas.
O dia
claro queima suas dessemelhanças, respira aos borbotões as esplêndidas
palavras repetidas.
Corpo
de Sebastian, espantoso reflexo da desfiguração.
A
morte não passa de uma nostalgia de mitos?
Vermes visíveis, cansaços de sombra, quem foi Sebastian, o de todos,
salpicos do desterro, vapores do ser?
Vozes
encarniçadas, corpo de escombros, aterradoras figuras que perderam o
duelo, sua jornada inumerável, jade solitário, formas tesouradas do
vazio, imagens desvalidas, telhados do nada.
Saboreia a noite o rastro do morto.
Repete sua caveira a abundância da dor.
O
poeta acaso seria um homem caído?
Pelas
ruas sorria Sebastian, em seu aroma forte de incrível apaixonado pela
vida.
Flui
o rosto da morte como uma larga tempestade.
Morte. Há morte para os deuses, morte para os santos.
Morte e suas agulhas cegas que nos rasgam as
entranhas. Morte para tudo. Em todas as partes da
terra.
Ramos
da riqueza dos infernos, mármore da oferenda dos céus, trâmite da
miséria do ser.
O
homem é a múmia do homem.
Árvore de duendes, o poema, única sombra não vencida.
Lavoura de instintos, os mortos tão distintos, bestas que não buscam se
ver.
Sobre
a cidade, a rua comum, bem próximo à solidão o ventríloquo das sombras,
véspera de tudo, petrificada origem, sobre a cidade e seu derrame de
fanáticos, cargos e destituições, tablado insustentável de perdas e
disfarces.
O
homem não passa de um pavor da distância?
O
morto deseja sua romaria, a sociedade de lágrimas e a saciedade de seus
musgos.
O
morto deseja a própria morte.
É a
Parca, a soberba de suas imagens, leito de misérias feitas em pedaços.
Nada
mantém sobre a terra.
Tudo
foi instrumento da carne.
Rua
de tempestades, fogo de macacos.
Caminhos de reminiscências, chave de seus limites, iluminação mortal.
É
certo que não há urgência estética, que a noite morre sem dor alguma.
A
queda é nada, opróbrio do acaso.
Mesa
brilhante, metáforas ensimesmadas, a eternidade não resultou tão
selvagem.
O
homem é o cardápio do homem.
Sonha
com sua metade profunda a la carte.
Hölderlin, Hölderlin, mais do que Sebastian, mais do que Paolo, abrasado
pela carga desmedida de sua profecia. Hölderlin e sua vigília
da loucura. Trakl e sua vigília da solidão. Cage e sua
vigília da dissipação do homem – transfigurações dos grãos da humanidade
em nós.
O que
apazigua a morte? E a vida?
A dor
atravessa o tempo, eis como se mostra: pergaminhos arrogantes, troços do
acossado, semblantes de moinhos deslidos, rostos fechados, língua
perdurável, olhos em círculos, majestosa aparência de macacos, provas,
descarnadas provas, o homem cruzado por suas provas, quanta morte morte
morte!
Esvaziada a rua, o morto é o pranto do sentido. Verbo de uma túnica
insondável.
Amorosa a morte, seus frutos sob o teto das testemunhas, corpos
esfriados pela idade convertida em mito.
Fala
por si mesma a morte, Sebastian, ao afirmar o corpo, radiante ruína.
De
que morre o sudário?
De
que morrem as provas do renascido e seu desígnio?
O
homem é tudo no homem.
Quem
fala na rua com o morto?
Suplico tua piedade oh insubstituível, fome de meus miolos, escrevo
poemas encarregados da dor, bênção de quedas, o horror é bastante
mortal, mãe, sinto a realidade dos tremores, o clarão
–
quem fala com seu coração elegíaco, com seu pensamento escuro ardente
renascido? –, não quero defender-me, repito meus versos, apenas o que
tenho, até a morte, irremediável, escravidão do desejo, suplico, a morte
é minha humanidade, a humanidade inutilmente perseguida, peregrina, é
mais do que vício rejeitado a miséria florida, peregrina minha, não há
indignação na semelhança, diversidade profanada, mística perdida, a
humanidade é uma arma monstruosa – Sebastian e sua ração de trevas,
por que não me falas de tua doçura fustigada? –, fósforo, fósforo,
tudo é fósforo na exceção desenfreada, grito intemporal, falação de
vermes, condenados reduzidos violentos, os macacos e sua farsa pueril,
te suplico, peregrina insubstituível, até o último verso, até as sílabas
triunfantes de teu catre, deixa-me só, jamais entre os três, que seja
fúnebre minha glória, seja trágica, longe porém da falácia dos macacos,
não há piedade para minha doçura, sim, nem lógica na morte, macacos
afastam ainda mais a eternidade do homem, ninguém mais importa a quem
seja, a morte é sem fim, o homem uma situação violenta, torpe tragédia,
peregrina, a tua uma sombra sem remissão.
Ilusão de luzes na rua, lua sobrada de outras noites, velha deusa aflita
em seus troços míticos e o relincho da nostalgia.
Rua
da lua. Rua da morte.
O
morto sem nome. Busca o sentido extraviado de seu
pêndulo. Grave e branco.
Corpo
e mundo, um sem o outro.
Colheita corrente da vida, por que não tê-la a cada instante?
Rua desfeita.
Acaso
não vai além da morte a verdade?
Carnificina de sombras, amantes famélicos da queda, tudo brilha na pedra
de seus olhos – gotas de pedra na rua, zumbidos da escuridão, noite
soerguida no enxame de contradições, Sebastian morrendo em carne viva.
Vida
ou morte compartilhada?
Não
lhe encontra mais que o som da lira, a mesma de Hermes que Apolo
desafinou.
Consome o morto sua própria imagem, ardente a onda sobre seu rosto,
alarmada a alma pelo fulgor, despojos cintilantes impiedosos na tragédia
de seus dias.
O
morto é ninguém. O cérebro apodrecido.
Livro
irreconhecível, exceto pelos macacos.
O
homem mata: é onde termina seu canto.
Morte
por asfixia, matança de sentidos, filantropias pentecostais, encargos,
estalido de corpos, arrombamento de sombras, o esmaecimento do
barqueiro, faíscas do inferno líquido das ruas, teatro efêmero: o homem
mata, o macaco devasta.
Paolo
é ninguém, o mesmo que Sebastian.
Rostos atravessados pela tragédia. Nada, ninguém. A
pele possui uma vida breve. Por que a dúvida? O homem
mata. Sua caçada é humana.
Não
arrancou a vida do vento ou do ventre, mas sim do encargo de semear
morte em si mesmo. Arrebatado pela soberba, o homem e o milagre de suas
cinzas: soluços na platéia, gargalhadas no ar, misterioso vôo de tantas
obras, gritos sem respiro, mortos de tudo, do desequilíbrio do fogo
entranhável nas páginas dos artifícios, serpentes destroçadas,
convulsiva agonia, ira golpeada, farrapos do desejo, barbárie,
sacrifícios, corpo confuso do morto, linguagem de estigmas, Sebastian,
Paolo, mendigos zumbis diante da sabedoria do homem.
Desde
a dor até a porta imensa de sua solitária ausência.
Desde
a morte até o assobio da memória.
O
homem mata. O morto está mais adentro.
A
morte não tem inimigo ou verdugo.
Não
há enigma ou igreja ou outras facas na terra ou mesmo outros selos de
metáforas.
Agonia do verbo, o nariz do homem aspira ao terror – mercado de carícias
errantes, o firmamento extraviado –, o homem descarnado pelo homem, lobo
dragão serpente, também a pedra é seu firmamento.
Resta
o mundo sem Sebastian. Quem haverá de sofrer? A quem
causa dano sua perda? Quem olha para trás?
Seu
corpo é a barbárie, devir delirante, charco de chagas, olhos da
divindade castrada, textos hostis, catacumbas veneradas em seus uivos, a
dor vomita sombras carnívoras, memória andrajosa caótica demente em suas
crepitações.
É
contra tudo olhar para trás.
Espelho de asfixias, concha carnosa dos estremecimentos do espírito.
Tudo
é transparência, uma vez mais circundada pela miséria, latejo da
solidão, depuração da violência.
Seguir adiante, sem voltar o olhar.
Sebastian é a metade inaudita de Paolo.
Seu
verdadeiro abismo e o enigma.
Em
farrapos, um. Desfeito em sonhos, outro.
Pálido o coração obstinado, a transfiguração da pedra, imersão de
máscaras no batismo do caos, triunfo do nada, palidez profunda.
Ambos
prontamente homens sem fim.
De
carne, de nuvem, de gozo, de acaso.
Um
regressa às escrituras de seu duplo, cartas à mãe: garras revoltas,
miolos de merda, urinas do abismo dessangrado do ser, ovos melancólicos,
não há espanto, é a besta humana, a concha de seus peidos e suspiros,
enigmas viscosos do cu e sua anteface falaciosa, com mais vigor a besta
amanhece, rejuvenescida pela merda, por seu caldo de entranhas, discurso
coberto de misericórdia e bostas de ratos, o sacrossanto pavor da
indecência gera seus mitos, suas galinhas aturdidas, ossamentas
líquidas, ninhos em trapos do eterno retorno, iras funerárias, gorjeio
de rochas, provisões de pus, fome desvelada, o caos sustenta o mundo,
mãe, o desejo é carnívoro, tudo é armadilha para que se morra,
equilíbrio inesperado, perfeição magnânima de Deus, cada vez mais macaco
em seu disfarce obsceno de homem, pletora retórica da divindade
absoluta, seu vagido trágico, teatro da queda, escuridão venerada no
fustigo do verbo, encarnado, inocente como a escuridão espantosa do
instante, bailado da ferocidade, escombros da própria inocência, tudo é
inocência, bosque de merda inocente nas chaves secretas de seu pântano,
espelhos musgosos, mãe, toda aparição é fulminante, não se pode olhar
com o pranto, com o tremor da evidência, proscrito o verdor do musgo, a
alquimia do desejo, sobre a mesa os mortos, o ímpeto de Deus, os espaços
de sua mutação, caos mutilado, pedra enferrujada da memória, desnuda
reverberação, por que veio?, morte, merda, Deus, minha alma derramada
sobre os charcos, eu porque estou estás está estamos estais estão, o
mesmo que nada ninguém nunca, desenfreada mortalha de cada vértebra do
relâmpago.
Regresso de Paolo ante a aniquilação do espírito de Sebastian.
Que
verdade busca o leitor?
A
verdade está sumida dentro do poema.
Porém
a verdade não é ninguém.
Fortuita, mostra-se como o último dos seres.
Archote assediado por mil sombras.
A
verdade não tem raízes.
É uma
víbora espantosa, trágica espada do homem, seu olhar, a verdade está
sumida dentro bem dentro.
Também o leitor é ninguém, plenitude cifrada, progressão do caos de toda
escritura humana, idade de látegos lamúrias latejos luzes lacônicas
livros leviatãs lesmas, serrim de alucinações, círculo da baba, cloaca
do grotesco, o pássaro de um, a bigorna do outro, signos do sangue
imundo do homem, de Deus, de suas maçãs desfiguradas, esmeralda dos
fundamentos apodrecidos, tudo em tudo, o poema, Deus, Sebastian, Paolo,
o leitor: língua dissolvente, apaixonada por seus filhos.
Ventre dissecado em seus livros, pranto de sombras – velhas sufocadas
rígidas –, quase humanas, à semelhança da dor, plenas da agonia
terrestre, homem reatado por sua obsessão de ser possível, ímã da última
solidão, flores de vertigem, sonâmbulas, e a conseqüência de sua ferida,
nunca a mesma, busco entre elas prolongar a queda, roída pelos sentidos
tomados de serpentes, impenetrável eu, emaranhado eu eu eu, o verbo em
sua profundidade de centelhas, onde o corpo do anjo?
Quem
recolhe sua imagem putrefata, seu encanto pela queda imensa da alma?
Os
três macacos e seus risos sulfúreos, nenhum faz sangrar o morto mais do
que a própria pronúncia de trevas: a dor é a mãe desmembrada, cartas de
extravios.
Nenhum é semelhante à visão de Sebastian.
Esplendor demasiado, três macacos brincam com as provisões da
misericórdia, engessam seus medos, pernas e miolos, zombam da noite
submersa na cloaca da poesia, mãe transfigurada, ovos com suas asas de
improviso.
A
noite masca Sebastian em sua ramalhada.
O
fulgor e sua grande velocidade, fungos da linguagem exposta a seu
abismo.
O
homem não tem dado conta de suas palavras, dos motivos de sua vida entre
elas.
Onde
a revelação do humano em nós?
Há um
largo silêncio entre o morto e sua morte: súbito a cena torna-se vulgar,
anônima, anjo sacrílego, e Sebastian não passa de seu desamparo,
crepitar dos versos dissimulados na conjuração.
A
morte seguirá cantando, a poesia.
Deusa
austera, bela. Paolo rompendo a noite esvaziada na matança do outro, seu
revés, seu cumprimento da solidão, Paolo que sabe que a morte nada diz.
Mãe
dos despojos, petrificada mordaça, condenação de látegos o verbo, os
espelhos da calamidade humana, borrões ilegíveis da dissipação.
A
linguagem a encalhar nas cicatrizes do movimento.
O
olhar é a impiedade do olho.
Um
gesto é a impiedade do corpo.
O
homem é a impiedade da humanidade.
Três
macacos cegos à margem do homem efêmero, cobertos de cinzas, memória
carbonizada pelo flagelo do mito.
No
entanto, tudo é homem.
Não
há como deter o homem.
É homem a vergonha do homem.
É homem a miséria do homem.
É homem o genocídio.
É
homem quem sofre a humanidade do homem.
O
homem e seus restos ao sol, linguagem, sonho, poesia.
Não é
um animal a quem agrade padecer nas sombras.
A
nostalgia é penitencial.
Os
três macacos sonham com o vazio.
Sebastian é um homem cortado por sua mãe.
Telhados ressonantes, precipícios, longidões.
Terra
de gritos, brotos do inferno, caos de Deus, onde o homem?
Eis o
que consta de sua carta carcomida, de sua peça desvalida inteiramente de
humanidade, triunfo trivial dos três macacos, letras que são deuses e
sua dissimulação, filha obscura, a noite despojada na sede de seus
náufragos, morte morrendo, imagens arrancadas pela dor, Sebastian em
farrapos, Paolo com sua morte invisível, lá dentro do ser os vivos,
desgraçados, os vivos, com seus espelhos suas máscaras seus mortos, os
vivos e sua tempestade de gritos, rosto traído, espuma dos pés,
plenitude do lodo, língua ao revés, memória estraçalhada, os homens
imensos do espelho humano, suas glórias, torrente feudal, suas colônias
do animus, traços plenos de lágrimas e perguntas sem respostas,
vírgulas, pontos.
A
morte não é ninguém.
A
morte é uma ciência, uma poética, uma religião.
Ninguém morre.
Sebastian é os três macacos, Paolo uma folhagem da memória.
Segue
a rua em seus apontamentos proverbiais, em seu vício de “tudo é Deus”.
Cai o
homem em poema em esplendor em ciência em vazio.
A
noite é uma reverberação da própria criatura.
A
outra ponta do homem.
Morto, constitui agora um devir de soçobras, bagulhos.
Vigília de indigências, rostos que buscam novas formas, leis do próprio
delírio e sombras menos mortais, adentro sempre.
O
homem é a metade de seu canto, a metade de seu mundo devorado pela
criação, linhas e raízes do desejo, pedras negras do sonho, o homem e
sua metade dissolvida dentro das visões dessangradas, seus ecos.
A
outra, blasfema entranha, é a aparição de si mesmo, o mito destruído, o
horror predileto do ser, vida ornada de miséria, sonhos macerados, o
homem em seu canteiro de imagens, secreta morada de cinzas.
Para
quem crias, besta esplêndida?
Esta
é a taça de tua redenção?
Vês a
pele imutável da extensão humana?
Ópio
soberbo, tudo é perfeito em teu mundo?
Ídolos em seu mercado de cebolas, deuses defendendo enigmas.
Quem
foi o homem antes de morrer?
Estratagemas do êxtase, obras saqueadas, psicanalistas usurários, golpes
do engano remunerável.
O
homem foi o próprio confim do homem.
A
tudo manejou.
Em
suas mãos a vida é nada.
Não é
a dor da conquista, mas sim um arrebatamento de falsários.
O
homem e sua alegria destruída, outono na árvore de sonhos, livros
mofados, sorrisos reduzidos à zombaria.
Quem
se esconde nele?
Não
há provérbios, musgo bíblico, estremecimentos da folhagem, lua
falsificada.
O
homem parece vivo, sempre.
A
morte é nada em suas mãos, mãe imensa desgraçada adormecida, túnica
contra a pele, vozes do tablado, obscuro extravio transfigurado,
semelhança com os poços e o átrio da torrente humana, morto, morte,
morto, caminha por último o homem pela passarela de seu presumido
desígnio, a peça escura e sua insuportável lição, o que parece o morto
dentro do morto?
Que
importa o nome? Paolo, Sebastian.
A
morte vai passando em sua plenitude.
Não
obstante, que pode fazer o barqueiro sem o rosto?
Lance
de sombras, condução dos mortos secretos, Caronte, tudo é visível na
queda, tudo é sempre sentir.
A
morte é uma disputa de sombras, conjuro sinistro de seus vultos, noite
de espumas, despojos do olhar.
O
revés da escritura é ninguém. Ninguém é o homem.
Juntemos as páginas. Todos os mortos estão cobertos de seu
revés: a outra ponta. |