Como de costume, o velho Dom
Cesáreo cuidava e regava seu adorado jardim, separado da calçada por uma
cerca baixa e três grandes degraus de pedra.
A rua estava deserta, de maneira
que forçosamente me chamou a atenção um homem que surgiu na quadra
anterior e que se dirigia em direção à nossa pela mesma calçada onde
tinham suas casas Dom Cesáreo e os Bernasconi. Como aquele homem não ia
me chamar a atenção, se era um mendigo ou vagabundo, uma mistura de
andrajos escuros?
Barbado e magro, um chapéu torto
de palha amarelada cobria-lhe a cabeça. Apesar do calor, envolvia-se num
sobretudo cinza meio rasgado. Levava ainda uma sacola, onde guardaria as
esmolas ou os restos de comida que obtivesse.
Continuei observando.
O vagabundo se deteve diante da
casa de Dom Cesáreo e pelas grades pediu-lhe algo. O velho era de
temperamento difícil: sem responder nada, fez com a mão um gesto como
para enxotá-lo. Mas o mendigo pareceu insistir, em voz muito baixa, e
aí, sim, ouvi claramente o velho gritar:
- Vai embora de uma vez, seu, e
não me aborreça!
O vagabundo, porém, voltou a pedir
e agora já subia os três degraus de pedra e forçou um pouco a porta de
ferro. E então Dom Cesáreo, perdendo de uma vez sua pouca paciência,
afastou-o com um repelão. O mendigo escorregou na pedra molhada, tentou
sem êxito agarrar-se a uma grade e caiu violentamente no chão. No mesmo
rápido instante, vi suas pernas viradas para cima e ouvi o nítido ruído
de seu crânio batendo no primeiro degrau.
O velho Dom Cesáreo foi até a rua,
inclinou-se sobre ele e apalpou-lhe o peito. Em seguida pegou-o pelos
pés e o arrastou até o meio-fio. Entrou em casa e fechou a porta, na
certeza de que não havia testemunhas de seu involuntário crime.
A única testemunha era eu.
Depois de muito tempo, passou um
homem e se deteve junto ao mendigo morto. Outras pessoas se foram se
juntando e chegou a polícia. Puseram o corpo numa ambulância e o
levaram. Isso foi tudo e nunca mais se falou no assunto..
De minha parte, tratei de nunca
abrir a boca. Provavelmente procedi mal, mas por que ia acusar aquele
velho que nunca me havia feito nenhum mal? Por outro lado, já que não
havia sido sua intenção matar o mendigo, não me pareceu justo que um
processo judicial lhe amargasse os últimos anos de sua vida. Pensei que
o melhor seria deixá-lo sozinho com sua consciência.
Pouco a pouco fui esquecendo o
episódio; entretanto, cada vez que via Dom Cesáreo, experimentava uma
estranha sensação. Pensava: “O velho ignora que sou eu, no mundo
inteiro, a única pessoa que conhece seu segredo.” Desde então, não sei
por quê, evitava sua presença e jamais me atrevi a voltar a falar com
ele.
***
Em 1969 eu tinha vinte e sete anos
e o título de professor de castelhano e literatura. Adriana Bernasconi
não tinha se casado comigo, mas com um certo indivíduo que não sei se a
amava e a merecia tanto quanto eu.
Naquele época, Adriana, cada vez
mais bonita, estava grávida e muito perto de ter seu bebê. Continuava
morando na mesma enorme casa antiga de sempre, já que seu marido – eu
imaginava - fora incapaz de comprar casa própria. Naquela sufocante
manhã de dezembro, antes das oito, eu me encontrava em casa, dando aulas
particulares de gramática a uns meninos do nível médio que iam fazer
exame; como de costume, de vez em quando dava uma olhada na calçada da
frente.
Subitamente meu coração deu –
literalmente – um salto e achei que estava tendo uma alucinação. Pelo
mesmo exato caminho de antes, aproximava-se o mendigo que Dom Cesáreo
havia matado quatro anos antes: as mesmas roupas esfarrapadas, o
sobretudo cinza, o chapéu torto de palha, a sacola infame.
Esquecendo meus alunos,
precipitei-me para a janela. O mendigo ia diminuindo o passo, como se já
se encontrasse próximo de seu destino.
“Ressuscitou”, pensei “e vem se
vingar de Dom Cesáreo”.
O mendigo, porém, pisou na calçada
do velho, passou na frente da grade e continuou seu caminho. Logo se
deteve diante da porta de Adriana Bernasconi, pressionou a maçaneta e
entrou.
- Volto já – disse aos meus
alunos.
Enlouquecido de ansiedade, não
quis esperar o elevador; desci pela escada, fui para a rua, atravessei
correndo e, como um tufão, entrei na casa de Adriana (naquela época e
naquele bairro não era costume trancar as portas durante o dia).
- Olá! – me disse a mãe, que
estava atrás da porta do saguão, como se fosse sair. – Que milagre, você
por aqui.
Nunca havia me olhado com maus
olhos. Me abraçou e me beijou, e eu não entendia bem o que estava
acontecendo. Logo compreendi que Adriana acabava de ser mãe, e que todos
estavam muito felizes e emocionados. Só me restou apertar a mão de meu
vitorioso rival, que sorria com sua cara de bobo.
Não sabia como lhe perguntar e
pensava se seria melhor ficar calado ou não. Depois cheguei a uma
solução intermediária. Com fingida indiferença, disse:
- Na verdade, eu entrei sem tocar
a campainha porque tive a impressão de ver um mendigo entrar por aqui,
com uma sacola suja, grande, e tive medo que entrasse para roubar.
Olharam-me com surpresa: mendigo?
Sacola? Roubar? Bom, eles haviam estado o tempo todo na sala e não
sabiam a que eu me referia.
- Com certeza eu devo ter-me
enganado – eu disse.
Convidaram-me, então para entrar
no quarto onde estavam Adriana e seu bebê. Nessas ocasiões nunca sei o
que dizer. Cumprimentei-a, beijei-a, olhei o bebezinho e perguntei que
nome iriam lhe dar. Responderam-me que era Gustavo, como o pai. Eu teria
gostado mais do nome Fernando, mas não disse nada.
Já em casa, pensei: “Aquele era o
mendigo que Dom Cesáreo matou, não tenho dúvida. Mas não regressou para
se vingar, apenas para se reencarnar no filho de Adriana”.
Dois ou três dias, porém, me
pareceu que a hipóteses era ridícula e fui esquecendo-a.
***
Já a teria esquecido
completamente, se não fosse um episódio, em 1979, que me fez recordá-la.
Com mais anos nas costas e
sentindo-me a cada dia capaz para menos coisas, tinha que redigir, para
certo suplemento literário, a resenha de um romance muito sem graça. Por
isso, naquela manhã minha atenção só se concentrava por momentos no
livro que estava lendo perto da janela: volta e meia, distraído e
preguiçoso, deixava vagar o olhar por aqui e ali.
Gustavo, o filho de Adriana,
brincava no quintal de sua casa. Naturalmente, aquele era uma
brincadeira bem elementar para sua idade; pensei que a criança tinha
herdado a pouca inteligência do pai e que, se fosse meu filho, sem
dúvida teria encontrado uma maneira menos grosseira de se divertir.
Sobre o muro medianeiro havia
colocado uma fileira de latas vazias e tentava agora derrubá-las com
pedras que jogava de uma distância de três ou quatro metros. Como não
poderia ser diferente, quase todos os cascalhos caíam no jardim de Dom
Cesáreo. Pensei que o velho, ausente àquela hora, ia ter um ataque de
fúria quando encontrasse muitas de suas flores despedaçadas.
E, justamente neste momento, Dom
Cesáreo saiu da casa para o jardim. Na verdade era muito velho e
caminhava sem muito equilíbrio, apoiando cautelosamente um e outro pé.
Dirigiu-se com extrema lentidão até o portão do jardim e começou a
descer os três degraus que davam na calçada.
Ao mesmo tempo, Gustavo – que não
podia ver o velho - acertou uma das latas que, ao bater em duas ou três
partes das paredes, caiu com grande barulho no jardim de Dom Cesáreo.
Este, que estava na metade da pequena escada, sobressaltou-se ao ouvir o
ruído, fez um movimento brusco, escorregou violentamente e, com as
pernas para cima, deu sonoramente com o crânio contra o primeiro degrau.
Tudo isso eu via, nem o menino
havia visto o velho, nem o velho vira o menino. Por alguma razão,
Gustavo abandonou o quintal. Em poucos segundos, muita gente já havia
rodeado o cadáver de Dom Cesáreo e era óbvio que uma queda acidental
tinha sido a causa de sua morte.
No dia seguinte, com a decisão de
concluir a leitura do romance que devia resenhar, levantei-me muito cedo
e de imediato me instalei com o livro junto à janela. Na casa pentagonal
acontecia o velório de Dom Cesáreo: na calçada havia algumas pessoas que
fumavam e conversavam.
Essas pessoas se afastaram com
asco e apreensão quando, pouco depois, da casa de Adriana Bernasconi
saiu o mendigo com seus andrajos, seu sobretudo, seu chapéu de palha e
sua sacola de sempre. Atravessou o grupo de homens e mulheres e foi-se
perdendo lentamente a distância, na mesma direção da qual havia vindo
duas vezes.
Ao meio-dia, soube com pena, mas
sem surpresa, que Gustavo não havia amanhecido em sua cama. Seus pais
iniciaram uma desolada busca que, com obstinada esperança, continua até
hoje. Eu nunca tive forças para dizer-lhes que desistissem dela. |