REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

Em 1967 eu tinha vinte e três anos e fazia as matérias didáticas do curso de Letras. Estávamos na nascente primavera de setembro: certa manhã, muito cedo – acabava de amanhecer – eu me encontrava estudando em meu quarto. Morávamos num quinto andar do único edifício daquela quadra da Rrua Costa Rica.

Sentia um pouco de preguiça: volta e meia deixava minha vista vagar através da janela. Dali eu via a rua e, na calçada em frente, o trabalhado jardim do velho Dom Cesáreo, cuja casa ocupava o terreno de esquina, na diagonal, e que, por isso, formava um pentágono irregular.

Junto à de Dom Cesáreo estava a antiga e enorme casa dos Bernasconi, bela gente que fazia coisas lindas e boas. Tinham três filhas e eu estava apaixonado pela mais velha, Adriana. Por isso, de vez em quando eu dava uma olhada para a calçada em frente, mais por hábito do coração do que porque esperasse vê-la numa hora tão cedo.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
REVISTA TRIPLOV  
Série anterior  
Nova Série | Página Principal  
Índice de Autores  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploG  
Arditura  
Jornal de Poesia  
Agulha Hispânica  
TriploV  
O Contrário do Tempo  
   

FERNANDO SORRENTINO

 

O regresso

De El remedio para el rey ciego, Buenos Aires, Editorial Plus Ultra, 1984.
Tradução de Ana Flores
                                                       

   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

 

 

Como de costume, o velho Dom Cesáreo cuidava e regava seu adorado jardim, separado da calçada por uma cerca baixa e três grandes degraus de pedra.

A rua estava deserta, de maneira que forçosamente me chamou a atenção um homem que surgiu na quadra anterior e que se dirigia em direção à nossa pela mesma calçada onde tinham suas casas Dom Cesáreo e os Bernasconi. Como aquele homem não ia me chamar a atenção, se era um mendigo ou vagabundo, uma mistura de andrajos escuros?

Barbado e magro, um chapéu torto de palha amarelada cobria-lhe a cabeça. Apesar do calor, envolvia-se num sobretudo cinza meio rasgado. Levava ainda uma sacola, onde guardaria as esmolas ou os restos de comida que obtivesse.

Continuei observando.

O vagabundo se deteve diante da casa de Dom Cesáreo e pelas grades pediu-lhe algo. O velho era de temperamento difícil: sem responder nada, fez com a mão um gesto como para enxotá-lo. Mas o mendigo pareceu insistir, em voz muito baixa, e aí, sim, ouvi claramente o velho gritar:

-  Vai embora de uma vez, seu, e não me aborreça!

O vagabundo, porém, voltou a pedir e agora já subia os três degraus de pedra e forçou um pouco a porta de ferro. E então Dom Cesáreo, perdendo de uma vez sua pouca paciência, afastou-o com um repelão. O mendigo escorregou na pedra molhada, tentou sem êxito agarrar-se a uma grade e caiu violentamente no chão. No mesmo rápido instante, vi suas pernas viradas para cima e ouvi o nítido ruído de seu crânio batendo no primeiro degrau.

O velho Dom Cesáreo foi até a rua, inclinou-se sobre ele e apalpou-lhe o peito. Em seguida pegou-o pelos pés e o arrastou até o meio-fio. Entrou em casa e fechou a porta, na certeza de que não havia testemunhas de seu involuntário crime.

A única testemunha era eu.

Depois de muito tempo, passou um homem e se deteve junto ao mendigo morto. Outras pessoas se foram se juntando e chegou a polícia. Puseram o corpo numa ambulância e o levaram. Isso foi tudo e nunca mais se falou no assunto..

De minha parte, tratei de nunca abrir a boca. Provavelmente procedi mal, mas por que ia acusar aquele velho que nunca me havia feito nenhum mal? Por outro lado, já que não havia sido sua intenção matar o mendigo, não me pareceu justo que um processo judicial lhe amargasse os últimos anos de sua vida. Pensei que o melhor seria deixá-lo sozinho com sua consciência.

Pouco a pouco fui esquecendo o episódio; entretanto, cada vez que via Dom Cesáreo, experimentava uma estranha sensação. Pensava: “O velho ignora que sou eu, no mundo inteiro, a única pessoa que conhece seu segredo.” Desde então, não sei por quê, evitava sua presença e jamais me atrevi a voltar a falar com ele. 

*** 

Em 1969 eu tinha vinte e sete anos e o título de professor de castelhano e literatura. Adriana Bernasconi não tinha se casado comigo, mas com um certo indivíduo que não sei se a amava e a merecia tanto quanto eu.

Naquele época, Adriana, cada vez mais bonita, estava grávida e muito perto de ter seu bebê. Continuava morando na mesma enorme casa antiga de sempre, já que seu marido – eu imaginava - fora incapaz de comprar casa própria. Naquela sufocante manhã de dezembro, antes das oito, eu me encontrava em casa, dando aulas particulares de gramática a uns meninos do nível médio que iam fazer exame; como de costume, de vez em quando dava uma olhada na calçada da frente.

Subitamente meu coração deu – literalmente – um salto e achei que estava tendo uma alucinação. Pelo mesmo exato caminho de antes, aproximava-se o mendigo que Dom Cesáreo havia matado quatro anos antes: as mesmas roupas esfarrapadas, o sobretudo cinza, o chapéu torto de palha, a sacola infame.

Esquecendo meus alunos, precipitei-me para a janela. O mendigo ia diminuindo o passo, como se já se encontrasse próximo de seu destino.

“Ressuscitou”, pensei “e vem se vingar de Dom Cesáreo”.

O mendigo, porém, pisou na calçada do velho, passou na frente da grade e continuou seu caminho. Logo se deteve diante da porta de Adriana Bernasconi, pressionou a maçaneta e entrou.

- Volto já – disse aos meus alunos.

Enlouquecido de ansiedade, não quis esperar o elevador; desci pela escada, fui para a rua, atravessei correndo e, como um tufão, entrei na casa de Adriana (naquela época e naquele bairro não era costume trancar as portas durante o dia).

-  Olá! – me disse a mãe, que estava atrás da porta do saguão, como se fosse sair. – Que milagre, você por aqui.

Nunca havia me olhado com maus olhos. Me abraçou e me beijou, e eu não entendia bem o que estava acontecendo. Logo compreendi que Adriana acabava de ser mãe, e que todos estavam muito felizes e emocionados. Só me restou apertar a mão de meu vitorioso rival, que sorria com sua cara de bobo.

Não sabia como lhe perguntar e pensava se seria melhor ficar calado ou não. Depois cheguei a uma solução intermediária. Com fingida indiferença, disse:

-  Na verdade, eu entrei sem tocar a campainha porque tive a impressão de ver um mendigo entrar por aqui, com uma sacola suja, grande, e tive medo que entrasse para roubar.

Olharam-me com surpresa: mendigo? Sacola? Roubar? Bom, eles haviam estado o tempo todo na sala e não sabiam a que eu me referia.

-  Com certeza eu devo ter-me enganado – eu disse.

Convidaram-me, então para entrar no quarto onde estavam Adriana e seu bebê. Nessas ocasiões nunca sei o que dizer. Cumprimentei-a, beijei-a, olhei o bebezinho e perguntei que nome iriam lhe dar. Responderam-me que era Gustavo, como o pai. Eu teria gostado mais do nome Fernando, mas não disse nada.

Já em casa, pensei: “Aquele era o mendigo que Dom Cesáreo matou, não tenho dúvida. Mas não regressou para se vingar, apenas para se reencarnar no filho de Adriana”.

Dois ou três dias, porém, me pareceu que a hipóteses era ridícula e fui esquecendo-a. 

*** 

Já a teria esquecido completamente, se não fosse um episódio, em 1979, que me fez recordá-la.

Com mais anos nas costas e sentindo-me a cada dia capaz para menos coisas, tinha que redigir, para certo suplemento literário, a resenha de um romance muito sem graça. Por isso, naquela manhã minha atenção só se concentrava por momentos no livro que estava lendo perto da janela: volta e meia, distraído e preguiçoso, deixava vagar o olhar por aqui e ali.

Gustavo, o filho de Adriana, brincava no quintal de sua casa. Naturalmente, aquele era uma brincadeira bem elementar para sua idade; pensei que a criança tinha herdado a pouca inteligência do pai e que, se fosse meu filho, sem dúvida teria encontrado uma maneira menos grosseira de se divertir.

Sobre o muro medianeiro havia colocado uma fileira de latas vazias e tentava agora derrubá-las com pedras que jogava de uma distância de três ou quatro metros. Como não poderia ser diferente, quase todos os cascalhos caíam no jardim de Dom Cesáreo. Pensei que o velho, ausente àquela hora, ia ter um ataque de fúria quando encontrasse muitas de suas flores despedaçadas.

E, justamente neste momento, Dom Cesáreo saiu da casa para o jardim. Na verdade era muito velho e caminhava sem muito equilíbrio, apoiando cautelosamente um e outro pé. Dirigiu-se com extrema lentidão até o portão do jardim e começou a descer os três degraus que davam na calçada.

Ao mesmo tempo, Gustavo – que não podia ver o velho - acertou uma das latas que, ao bater em duas ou três partes das paredes, caiu com grande barulho no jardim de Dom Cesáreo. Este, que estava na metade da pequena escada, sobressaltou-se ao ouvir o ruído, fez um movimento brusco, escorregou violentamente e, com as pernas para cima, deu sonoramente com o crânio contra o primeiro degrau.

Tudo isso eu via, nem o menino havia visto o velho, nem o velho vira o menino. Por alguma razão, Gustavo abandonou o quintal. Em poucos segundos, muita gente já havia rodeado o cadáver de Dom Cesáreo e era óbvio que uma queda acidental tinha sido a causa de sua morte.

No dia seguinte, com a decisão de concluir a leitura do romance que devia resenhar, levantei-me muito cedo e de imediato me instalei com o livro junto à janela. Na casa pentagonal acontecia o velório de Dom Cesáreo: na calçada havia algumas pessoas que fumavam e conversavam.

Essas pessoas se afastaram com asco e apreensão quando, pouco depois, da casa de Adriana Bernasconi saiu o mendigo com seus andrajos, seu sobretudo, seu chapéu de palha e sua sacola de sempre. Atravessou o grupo de homens e mulheres e foi-se perdendo lentamente a distância, na mesma direção da qual havia vindo duas vezes.

Ao meio-dia, soube com pena, mas sem surpresa, que Gustavo não havia amanhecido em sua cama. Seus pais iniciaram uma desolada busca que, com obstinada esperança, continua até hoje. Eu nunca tive forças para dizer-lhes que desistissem dela. 

 

 

Fernando Sorrentino (Argentina)
Fernando Sorrentino nació en Buenos Aires el 8 de noviembre de 1942. Es profesor de Lengua y Literatura. Sus cuentos se caracterizan por entrelazar de manera muy sutil, y casi subrepticia, la realidad con la fantasía, de manera que el lector no siempre logra determinar dónde termina la primera y empieza la segunda. Suele partir de situaciones muy “normales” y “cotidianas” que, paulatinamente, se van enrareciendo y convirtiéndose en insólitas o turbadoras, pero siempre recorridas por un arroyo sinuoso de espléndido y sorprendente sentido del humor.
Algunos de sus libros de relatos son Imperios y servidumbres (1972), El mejor de los mundos posibles (1976), Sanitarios centenarios (1979), En defensa propia (1982), El rigor de las desdichas (1994), Existe un hombre que tiene la costumbre de pegarme con un paraguas en la cabeza (2005), El regreso (2005), Costumbres del alcaucil (2008), El crimen de san Alberto (2008), El centro de la telaraña (2008). Numerosos cuentos suyos han sido traducidos a diversas lenguas europeas y asiáticas. Su página web es la siguiente: http://www.fernandosorrentino.com.ar

 

Fernando Sorrentino (Argentina)
Nasci em Buenos Aires em 8 de novembro de 1942. A maior parte de minha infância e de minha adolescência transcorreu no cinzento quadrilátero formado pelas avenidas Santa Fe, Juan B. Justo, Córdoba e Dorrego. Em épocas muito juvenis, fui um simples funcionário de escritório. Em épocas não tão juvenis, e durante muito tempo, fui professor de língua e literatura em diversos colégios secundários; em geral, recebi o afeto de meus alunos e de meus colegas, o que me diz que sou um cara legal. Nos interstícios laborais, tento ler e tento escrever. Tenho sensibilidade para gostar da beleza poética, mas me falta um mínimo de talento para escrever um poema com algum mérito. Destruí sem culpa minhas poesias juvenis, pois não achei sensato acrescentar mais fealdade ao mundo. Por outro lado, estou bastante satisfeito com minhas invencionices narrativas. Como dizem os homens dignos de fé, em minha literatura de ficção há uma curiosa mistura de fantasia e humor que conduz a um estilo às vezes grotesco e razoavelmente verossímil. Em geral, sinto-me muito à vontade comigo mesmo. Não tenho nenhuma vocação para fazer parte de nenhum grupo literário, de nenhum comitê de inabilidades afins, de nenhum clube de elogios recíprocos. Mas confesso, isto sim, que milito nas perseverantes hostes do Racing Club de Avellaneda. Gosto mais de ler do que de escrever, e na verdade escrevo muito pouco. Ao longo de quase quarenta anos, não tenho muita bibliografia para exibir. Como todo o mundo, em maior ou menor medida, ganhei alguns prêmios literários. Em resumo, sou relativamente feliz. F. S. (Tradução de Ana Flores)
http://www.fernandosorrentino.com.ar

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL