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Volta a olhar o corpo, refletido
no espelho. Preciso fazer regime. Tou uma baleia mesmo. Roda o corpo, de
calcinha e sutiã, e apalpa a barriga. Tá demais mesmo. Olha que pneu.
Apanha um prato na geladeira e senta-se na cama. Olha a comida e acena
com a cabeça. Tem que fazer, faz. Levanta-se, entra no banheiro, joga a
comida no vaso e puxa a descarga. Ah, foda-se, dez quilos, no mínimo.
Liga a televisão, procura um programa de variedades e deita-se na cama.
Soam passos no corredor. Será que é Modelo? Os passos param, e uma
campainha toca em outro apartamento. Aquele cachorro é capaz de não vir
mesmo. Ou então é capaz de chegar só de madrugada. Levanta-se, corrige a
imagem da televisão e deita-se. Desgraçado, cachorro, filho da puta. Eu
aqui sozinha e o cachorro se esfregando em qualquer puta por aí. Filho
da puta. Levanta-se, aumenta o som e deita-se de novo. E o pior é que só
tá me atrapalhando. Quê que aquele cachorrão pode me dar? Nada. Nada de
nada. Nadinha.
Clementina tem trinta e cinco
anos. Saiu há sete de Porangatu, lá nos perdidos de Goiás, pousa aqui,
pousa ali, pousa acolá, biscatando o sul maravilha. Ancorou em Belo
Horizonte e há cinco trabalha como caixa na Padaria Pão Nosso. Nunca
voltou a Porangatu. Fazer o quê? A mãe morta antes de sair, o pai
largado no mundo, voltar pra quê? Pra fazer o de sempre? Chega de dar de
graça, Deus do céu.
Conhecidos em Belo Horizonte só D.
Ponciana e Seu Mundinho, porangatuenses como ela. Chegou na Rodoviária,
informa que informa, bateu o meio-dia na Rua Espírito Santo, porta da
casa de D. Ponciana. Depois eu vejo o quê que vou fazer. Agora quero é
arrumar onde ficar. Há mais de quinze anos em Belo Horizonte, D.
Ponciana, nascida e criada em Porangatu, gostou da visita. Melhor ter
com quem falar do que chorar desgraças de novela.
- Pode ficar, menina.
- Não quero incomodar, não, D.
Ponciana. Só quero...
- Incomoda nada, menina. Onde
comem dois comem três.
Clementina aceitou. Durante o
primeiro mês procurou emprego em todos os anúncios classificados dos
jornais. Centenas, mas todos pedindo experiência. E Clementina, a vida
inteira coçando balcão de botequim, não tinha experiência.
- Tá difícil, D. Ponciana. E o
pior é que tou incomodando, dando despesa...
- Sossegue, menina. Sossegue que,
com a ajuda de Deus, tudo se há de arrumar. Ou a menina não acredita em
Deus?
Acreditava. Sempre acreditou. Mas
o segundo mês chegou ainda sem emprego e, dobrada a quinzena, Seu
Mundinho cobrou a estadia. Três noites babadas no cangote de Clementina,
D. Ponciana no enterro do cunhado, a irmã casada em Catalão. Na volta,
Clementina fez a mala. Ia sair, não podia mais ficar, além do trabalho
era a despesa. Seu Mundinho foi o primeiro a dizer não e D. Ponciana
bateu o martelo no trabalho e na despesa. A menina só sai com a vida
arrumada, viu? À noite, Seu Mundinho, ainda com o gosto do pau na boca
de Clementina, resolveu a questão. Ponciana, lembra do Mandino? Ele tem
aquela padaria lá na rua da Bahia, pode ajudar. Só não lembro o
telefone. Manda uma carta, Mundinho, que Deus fará o resto. Clementina
amanheceu na Padaria Pão Nosso, mas Seu Mandino não estava. Estava a
esposa, D. Rosa, tomando conta do caixa. Clementina mostrou a carta e a
conversa pegou, D. Rosa nascida, criada e casada em Porangatu recordando
pessoas conhecidas, matando saudades, o desespero que era viver numa
cidade como Belo Horizonte, ela já sem saúde e Mandino sem uma pessoa de
confiança na padaria, Clementina venha à tarde, fale com Mandino que o
lugar é seu. Quatro horas, Clementina falou com Seu Mandino e mostrou a
carta. Seu Mandino só leu as primeiras linhas.
- Que idade você tem?
- Tenho trinta anos.
- Casada?
- Sou solteira.
- Solteira?
- Solteira, sim, senhor.
- Parentes aqui em Belo Horizonte?
- Não, senhor.
- E amigos?
- Só D. Ponciana e Seu Mundinho.
- Muito bem. Assino carteira, mas
o que eu pago é salário e sem folga aos domingos. Pode começar
segunda-feira. Serve?
Uma semana depois, com a promessa
de continuar visitando D. Ponciana, Clementina alugou uma vaga numa casa
de cômodos da rua Guaicurus. Preferível esmagar baratas na rua Guaicurus
do que chupar o pau de Seu Mundinho na rua Espírito Santo. No fim do
ano, já com alguns trocados na caderneta de poupança da Caixa Econômica,
Clementina mudou para aquele apartamento conjugado no Edifício JK, na
rua dos Timbiras. Seu Mandino serviu de fiador e Clementina dormiu com
ele. Eu vou te dar conforto mas você tem que me dar o que eu quero,
entendeu? Clementina até hoje tem raiva quando lembra. Desgraçado. Filho
da puta. Mas deu. Deu tudo o que Seu Mandino quis e não quis. Deu à
frente, deu atrás, deu por cima, deu por baixo, deu de todo jeito. Até
ter comprado móveis, televisão e geladeira, deu e deu. Mobiliado o
apartamento, não deu mais. Seu Mandino quis dispensá-la. D. Rosa não
deixou.
- Não, Mandino. É a nossa única
empregada de confiança. E, além do mais, eu não vou voltar prá caixa.
Seu Mandino não respondeu. A
padaria era de D. Rosa, comprada com a herança do pai. Isso vamos ver,
caralho, que empregada minha, ou dá ou rua. A partir do dia seguinte
começou a faltar dinheiro no caixa. Mil, dois mil, às vezes, até cinco
mil cruzeiros. Clementina falou com D. Rosa e disse que ia sair.
- Deixa, minha filha. Deixa, que
Mandino é assim mesmo. Pirracento como ele só. Mas, olha, vamos fazer o
seguinte, quando faltar dinheiro, você faz os vales, acerta tudo, que
eu, depois, devolvo pra você, entendeu? Não liga, não, Mandino é uma
criança grande. Sempre foi.
Clementina nem piscou. Criança
grande, filho da puta, isso sim. E continuou na padaria. A renovação do
contrato do aluguel do apartamento foi feita com depósito. Seu Mandino
não quis servir de fiador e D. Rosa emprestou o dinheiro.
- Quando puder, você me paga.
Mandino é assim mesmo. Parece um Herodes, mas no fundo, no fundo, é uma
criança grande. Sempre foi.
A partir daquele mês Clementina
passou a ganhar dois salários. Um, o oficial, pago pela Padaria Pão
Nosso, cheque assinado por Seu Mandino. O outro, caixa dois, pago por D.
Rosa.
Clementina trabalhava há pouco
mais de dois anos na Padaria Pão Nosso quando conheceu Modelo. Foi num
domingo à tarde, no cinema Acaiaca. No fim da sessão tomaram um sorvete
e, no dia seguinte, Modelo esperou-a na saída do trabalho. Dias depois,
dormiu com ela. Modelo dizia-se estagiário da TV Minas e Clementina
acreditou. Não havia como não acreditar. Modelo tinha pinta, vestia bem,
e também a tratava bem, fazia carinho, companhia, quem sabe um dia
Clementina podia deixar a caixa da Padaria Pão Nosso? Mas o estágio já
vai no quinto ano, há quatro Modelo mora com Clementina e Clementina não
acredita mais que Modelo trabalhe na TV Minas. Ou em qualquer outro
lugar. Mas fazer o quê? Clementina tem trinta e cinco anos, quase trinta
e seis, e aos trinta e seis anos, caixa de padaria, Clementina vai fazer
o quê? Será que aquele cachorro não vem mais? Vai ver encontrou alguma
vaca por aí, só pode ser. Desgraçado. Cachorrão. Clementina tira o sutiã
e a calcinha e deita-se por cima da colcha, o corpo luzindo de suor.
Imediatamente, a luz do apartamento em frente se apaga e a televisão é
desligada. Lá tá aquele desgraçado espiando outra vez, filho da puta.
Levanta-se, apaga a luz e deita-se de novo. É. Aquele cachorrão não vem
mais hoje, não. Pega uma revista na mesinha-de-cabeceira e abana-se.
Poxa, com este calor bem que eu precisava ter um ar-refrigerado. Mas,
cadê dinheiro? Levanta-se, muda o canal na televisão e deita-se de novo.
Modelo não presta mesmo, eu é que tou querendo me enganar, de burra que
sou. Mas, também, se ele for embora, vou ficar com quem? Quem vai me
querer, esta baleia? Chupar o pau de Seu Mundinho ou dar o cu pra Seu
Mandino? Soam passos no corredor. Clementina presta atenção. Será que é
aquele cachorrão? A porta do apartamento em frente abre-se e alguém
entra. Cachorro. Eu aqui sozinha e o cachorrão se esbaldando por aí. Mas
tu vai ver, filho da puta. Ah, vai. Qualquer dia ainda tranco essa porta
e tu vai ver o quê que é bom prá tosse. Ou tu pensa que eu sou o quê,
hem? Tá pensando que eu sou vagabunda? Eu não sou vagabunda, não, seu
desgraçado, seu cachorro. Sou é muito mulher pra te botar uma boa camada
de chifres, seu filho da puta, sem vergonha. É só continuar me
sacaneando, que tu vai ver. E depois não vem me dizer que eu não avisei,
seu desgraçado, cachorro sem-vergonha. Levanta-se, acende a luz e olha a
janela do apartamento em frente. Ah, quer ver, veja, foda-se. Toque
punheta, seu puto, que eu também já toquei muitas vezes. Desliga a
televisão e fica na frente do espelho, olhando a janela escurecida do
outro lado da área interna do edifício. Não vai tocar, não, seu merda? |