REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

 

 

 

Mecânica, fria, totalmente impessoal, entra pela janela, vinda do outro lado da área interna do edifício, a voz antisséptica do locutor do Jornal Nacional.

- Washington. O secretário da Defesa declarou hoje pela manhã aos jornalistas acreditados na Casa Branca...

Clementina não escuta nem olha a janela iluminada do outro apartamento. Devagar, olhando o corpo, procurando os defeitos, começa se despindo na frente do espelho. Escorrendo da quitinete e do banheiro, cheiros de comida requentada e detergente enchem o apartamento conjugado. Merda de fedor. Parece até privada. Encolhe os ombros e abana a cabeça. E o pior é que eu já não tou nem me importando.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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CUNHA DE

LEIRADELLA

Abril não é o mais cruel dos meses

 

   
   
   
   
   
   
   
   

Volta a olhar o corpo, refletido no espelho. Preciso fazer regime. Tou uma baleia mesmo. Roda o corpo, de calcinha e sutiã, e apalpa a barriga. Tá demais mesmo. Olha que pneu. Apanha um prato na geladeira e senta-se na cama. Olha a comida e acena com a cabeça. Tem que fazer, faz. Levanta-se, entra no banheiro, joga a comida no vaso e puxa a descarga. Ah, foda-se, dez quilos, no mínimo. Liga a televisão, procura um programa de variedades e deita-se na cama. Soam passos no corredor. Será que é Modelo? Os passos param, e uma campainha toca em outro apartamento. Aquele cachorro é capaz de não vir mesmo. Ou então é capaz de chegar só de madrugada. Levanta-se, corrige a imagem da televisão e deita-se. Desgraçado, cachorro, filho da puta. Eu aqui sozinha e o cachorro se esfregando em qualquer puta por aí. Filho da puta. Levanta-se, aumenta o som e deita-se de novo. E o pior é que só tá me atrapalhando. Quê que aquele cachorrão pode me dar? Nada. Nada de nada. Nadinha.

Clementina tem trinta e cinco anos. Saiu há sete de Porangatu, lá nos perdidos de Goiás, pousa aqui, pousa ali, pousa acolá, biscatando o sul maravilha. Ancorou em Belo Horizonte e há cinco trabalha como caixa na Padaria Pão Nosso. Nunca voltou a Porangatu. Fazer o quê? A mãe morta antes de sair, o pai largado no mundo, voltar pra quê? Pra fazer o de sempre? Chega de dar de graça, Deus do céu.

Conhecidos em Belo Horizonte só D. Ponciana e Seu Mundinho, porangatuenses como ela. Chegou na Rodoviária, informa que informa, bateu o meio-dia na Rua Espírito Santo, porta da casa de D. Ponciana. Depois eu vejo o quê que vou fazer. Agora quero é arrumar onde ficar. Há mais de quinze anos em Belo Horizonte, D. Ponciana, nascida e criada em Porangatu, gostou da visita. Melhor ter com quem falar do que chorar desgraças de novela.

- Pode ficar, menina.

- Não quero incomodar, não, D. Ponciana. Só quero...

- Incomoda nada, menina. Onde comem dois comem três.

Clementina aceitou. Durante o primeiro mês procurou emprego em todos os anúncios classificados dos jornais. Centenas, mas todos pedindo experiência. E Clementina, a vida inteira coçando balcão de botequim, não tinha experiência.

- Tá difícil, D. Ponciana. E o pior é que tou incomodando, dando despesa...

- Sossegue, menina. Sossegue que, com a ajuda de Deus, tudo se há de arrumar. Ou a menina não acredita em Deus?

Acreditava. Sempre acreditou. Mas o segundo mês chegou ainda sem emprego e, dobrada a quinzena, Seu Mundinho cobrou a estadia. Três noites babadas no cangote de Clementina, D. Ponciana no enterro do cunhado, a irmã casada em Catalão. Na volta, Clementina fez a mala. Ia sair, não podia mais ficar, além do trabalho era a despesa. Seu Mundinho foi o primeiro a dizer não e D. Ponciana bateu o martelo no trabalho e na despesa. A menina só sai com a vida arrumada, viu? À noite, Seu Mundinho, ainda com o gosto do pau na boca de Clementina, resolveu a questão. Ponciana, lembra do Mandino? Ele tem aquela padaria lá na rua da Bahia, pode ajudar. Só não lembro o telefone. Manda uma carta, Mundinho, que Deus fará o resto. Clementina amanheceu na Padaria Pão Nosso, mas Seu Mandino não estava. Estava a esposa, D. Rosa, tomando conta do caixa. Clementina mostrou a carta e a conversa pegou, D. Rosa nascida, criada e casada em Porangatu recordando pessoas conhecidas, matando saudades, o desespero que era viver numa cidade como Belo Horizonte, ela já sem saúde e Mandino sem uma pessoa de confiança na padaria, Clementina venha à tarde, fale com Mandino que o lugar é seu. Quatro horas, Clementina falou com Seu Mandino e mostrou a carta. Seu Mandino só leu as primeiras linhas.

- Que idade você tem?

- Tenho trinta anos.

- Casada?

- Sou solteira.

- Solteira?

- Solteira, sim, senhor.

- Parentes aqui em Belo Horizonte?

- Não, senhor.

- E amigos?

- Só D. Ponciana e Seu Mundinho.

- Muito bem. Assino carteira, mas o que eu pago é salário e sem folga aos domingos. Pode começar segunda-feira. Serve?

Uma semana depois, com a promessa de continuar visitando D. Ponciana, Clementina alugou uma vaga numa casa de cômodos da rua Guaicurus. Preferível esmagar baratas na rua Guaicurus do que chupar o pau de Seu Mundinho na rua Espírito Santo. No fim do ano, já com alguns trocados na caderneta de poupança da Caixa Econômica, Clementina mudou para aquele apartamento conjugado no Edifício JK, na rua dos Timbiras. Seu Mandino serviu de fiador e Clementina dormiu com ele. Eu vou te dar conforto mas você tem que me dar o que eu quero, entendeu? Clementina até hoje tem raiva quando lembra. Desgraçado. Filho da puta. Mas deu. Deu tudo o que Seu Mandino quis e não quis. Deu à frente, deu atrás, deu por cima, deu por baixo, deu de todo jeito. Até ter comprado móveis, televisão e geladeira, deu e deu. Mobiliado o apartamento, não deu mais. Seu Mandino quis dispensá-la. D. Rosa não deixou.

- Não, Mandino. É a nossa única empregada de confiança. E, além do mais, eu não vou voltar prá caixa.

Seu Mandino não respondeu. A padaria era de D. Rosa, comprada com a herança do pai. Isso vamos ver, caralho, que empregada minha, ou dá ou rua. A partir do dia seguinte começou a faltar dinheiro no caixa. Mil, dois mil, às vezes, até cinco mil cruzeiros. Clementina falou com D. Rosa e disse que ia sair.

- Deixa, minha filha. Deixa, que Mandino é assim mesmo. Pirracento como ele só. Mas, olha, vamos fazer o seguinte, quando faltar dinheiro, você faz os vales, acerta tudo, que eu, depois, devolvo pra você, entendeu? Não liga, não, Mandino é uma criança grande. Sempre foi.

Clementina nem piscou. Criança grande, filho da puta, isso sim. E continuou na padaria. A renovação do contrato do aluguel do apartamento foi feita com depósito. Seu Mandino não quis servir de fiador e D. Rosa emprestou o dinheiro.

- Quando puder, você me paga. Mandino é assim mesmo. Parece um Herodes, mas no fundo, no fundo, é uma criança grande. Sempre foi.

A partir daquele mês Clementina passou a ganhar dois salários. Um, o oficial, pago pela Padaria Pão Nosso, cheque assinado por Seu Mandino. O outro, caixa dois, pago por D. Rosa.

Clementina trabalhava há pouco mais de dois anos na Padaria Pão Nosso quando conheceu Modelo. Foi num domingo à tarde, no cinema Acaiaca. No fim da sessão tomaram um sorvete e, no dia seguinte, Modelo esperou-a na saída do trabalho. Dias depois, dormiu com ela. Modelo dizia-se estagiário da TV Minas e Clementina acreditou. Não havia como não acreditar. Modelo tinha pinta, vestia bem, e também a tratava bem, fazia carinho, companhia, quem sabe um dia Clementina podia deixar a caixa da Padaria Pão Nosso? Mas o estágio já vai no quinto ano, há quatro Modelo mora com Clementina e Clementina não acredita mais que Modelo trabalhe na TV Minas. Ou em qualquer outro lugar. Mas fazer o quê? Clementina tem trinta e cinco anos, quase trinta e seis, e aos trinta e seis anos, caixa de padaria, Clementina vai fazer o quê? Será que aquele cachorro não vem mais? Vai ver encontrou alguma vaca por aí, só pode ser. Desgraçado. Cachorrão. Clementina tira o sutiã e a calcinha e deita-se por cima da colcha, o corpo luzindo de suor. Imediatamente, a luz do apartamento em frente se apaga e a televisão é desligada. Lá tá aquele desgraçado espiando outra vez, filho da puta. Levanta-se, apaga a luz e deita-se de novo. É. Aquele cachorrão não vem mais hoje, não. Pega uma revista na mesinha-de-cabeceira e abana-se. Poxa, com este calor bem que eu precisava ter um ar-refrigerado. Mas, cadê dinheiro? Levanta-se, muda o canal na televisão e deita-se de novo. Modelo não presta mesmo, eu é que tou querendo me enganar, de burra que sou. Mas, também, se ele for embora, vou ficar com quem? Quem vai me querer, esta baleia? Chupar o pau de Seu Mundinho ou dar o cu pra Seu Mandino? Soam passos no corredor. Clementina presta atenção. Será que é aquele cachorrão? A porta do apartamento em frente abre-se e alguém entra. Cachorro. Eu aqui sozinha e o cachorrão se esbaldando por aí. Mas tu vai ver, filho da puta. Ah, vai. Qualquer dia ainda tranco essa porta e tu vai ver o quê que é bom prá tosse. Ou tu pensa que eu sou o quê, hem? Tá pensando que eu sou vagabunda? Eu não sou vagabunda, não, seu desgraçado, seu cachorro. Sou é muito mulher pra te botar uma boa camada de chifres, seu filho da puta, sem vergonha. É só continuar me sacaneando, que tu vai ver. E depois não vem me dizer que eu não avisei, seu desgraçado, cachorro sem-vergonha. Levanta-se, acende a luz e olha a janela do apartamento em frente. Ah, quer ver, veja, foda-se. Toque punheta, seu puto, que eu também já toquei muitas vezes. Desliga a televisão e fica na frente do espelho, olhando a janela escurecida do outro lado da área interna do edifício. Não vai tocar, não, seu merda?

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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