REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 11

 

“erades agrauados do meu strabeiro e dos strabeiros dos jffantes e dos outros boons da mjnha casa porquos tomauam as bestas pera suas cargas que uos tragiam ho  mantijmento pera essa cidade nom auija mantijmento senom de carreto de cada dia specialmente has que lhe leuam as moendas pêra has acenhas as quaaes sempre fforom coutadas posto que outras nom pudessem auer em toste e se hiam a duas legoas fora da uijlla e as bestas que tragiam ho pam e o vinho e hi o que tragiam que aujam de trager pera essa cidade e leuauam as dictas bestas per a qual razam os desse logo eram em grande mjngoa”. (Cortes de D. Pedro I. Capítulos Especiais do Porto)

João Silva de Sousa

 

Os Transportes

na Idade Média

 

 

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Introdução

   
 

Quando Artur Teodoro de Matos apresentou, na Universidade dos Açores, a sua tese para a obtenção do grau de Doutor, teve a gentileza de me agradecer publicamente a revisão de todo o trabalho, tendo-o avisado que a parte mais pobre do mesmo era a que se reportava à Idade Média, pela falta de documentação. O estudo intitula-se Transportes e Comunicações em Portugal, Açores e Madeira (1750-1850) (1). Quando João Paulo Costa, seu dilecto seguidor, apresentou recentemente o seu livro D. Henrique, o Infante (2), fez um reparo muito positivo, na Academia Portuguesa da História, ao trabalho de José Manuel Garcia que publicou pouco antes os Itinerários do Infante D. Henrique (3), não tendo este último autor acrescentado nada ao meu estudo A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, no que respeita ao que eu já havia gizado em 1991, no Cap. II, pp. 17-75 (4), excepto um ou outro dado que peca por falta de base sustentada pela documentação.

Ora, vêm estes nossos reparos a propósito de os transportes medievais terem forçosamente de basear-se, no caso do Rei e sua comitiva, nos locais por onde passam e, de ordinário ele exara diplomas. E quanto à Nobreza e ao Clero, de que contamos com um exíguo número de estudos, é natural que nos vejamos tão-só sujeitos à pouca documentação despachada pelo próprio, nos centros urbanos, pelos caminhos que percorria. Ainda as cartas de privilégios a Estalajadeiros, a Almocreves e a Barqueiros.

Muito pouco podemos, de facto, acrescentar aos itinerários régios e senhoriais existentes do que aquilo que se acha já feito, alterado, aqui e ali, por indicações novas fornecidas pelas Chancelarias a Actas de Cortes.

Tenhamos em conta os itinerários já estudados, quais e por quem, caracterizadores da personalidade de um rei, quando comparado com outro, de um elemento laico ou eclesiástico da alta nobreza. Todos se fazem acompanhar dos seus milites e cavaleiros vilãos, gozando, de ordinário da prerrogativa do jantar, da aposentadoria e da visitação. Os ditos itinerários estão arrolados no final do presente estudo e alguns apresentados em anexo.

Aceite pela generalidade dos historiadores actuais, as comunicações levadas a cabo na Idade Média, foram bem mais numerosas e frequentes do que poderíamos supor. No caso português, com o seu território coberto por florestas, com todas as dificuldades que isso implicaria às comunicações, com uma rede viária certamente rudimentar, com uma população escassa e disseminada em que os núcleos populacionais de maior vulto se encontravam concentrados a Sul, onde se destacava Lisboa que, no final do século XIV, era já o maior centro urbano do País, as ligações deveriam ser autênticas “aventuras”.

A morosidade e os perigos existentes seriam uma constante, de que este excerto é demonstrativo: “os nossos leigos leixam d hir segujr o seu directo perant elles por o temor do camjnho e por as grandes despesas que alô fazem” (5), para todos quantos desses percursos dependiam. Todavia, nos poucos diplomas existentes que deitam alguma luz sobre a questão, são, contudo, claros sobre as deslocações, se bem que se refiram a instituições, ou às classes dominantes e a falta de informação omissa. Podem, no entanto, fazer-se extrapolações nas envolvências, quer de infra-estruturas (estalagens, por exemplo), quer de profissões existentes, como os almocreves (marceiros, merceeiros, recoveiros…), os mercadores (assim designados desde o Foral de Viseu, outorgado por D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques), barqueiros, entre outros, na época, que poderão fornecer pistas, sobre modos, destinos e frequências das deslocações dos vários elementos constitutivos da nossa sociedade medieva. Relembramos ainda a importância dos coutos de caça, dos troços dos rios marcados para a pesca, das pesqueiras régias e senhoriais…

Com este tipo de informes, poder-se-á conseguir, se bem que de um modo assaz pálido, porque reduzido, saber como, quem e o quê circulava nesses tempos.

Os mercadores ocupam neste universo um papel predominante, pois o seu ofício a isso os obrigava, tornando-se dos principais impulsionadores económicos, desde sempre.

Encontravam-se nas cidades (Viseu, Lamego, Braga, Guarda, Lisboa, e Porto), os principais núcleos urbanos do Reino, os mais prósperos e opulentos burgueses que exerciam este ofício de comprar e vender mercadorias agrícolas, artesanais e exóticas. Somemos a estas, vilas como Tarouca, Tomar, Santarém e Lagos e ainda a cidade de Silves, sem esquecer os grandes mosteiros e abadias.

   
 

Deslocações

 

                                    

 

  “Motor da expansão geográfica,
o grande comércio desempenhou,  igualmente,
papel de capital  importância
                                                     num fenómeno cujo centro estava
também nas cidades;
                                                     a expansão da economia monetária”.
                                                     (Jacques Le Goff)

 

O sistema de transportes, assentando num nível tecnológico baixo e estreitamente ligado aos outros sectores de produção, principalmente da agricultura, era fortemente condicionado. Além daqueles, havia ainda restrições à saída de certos produtos agrícolas ou minerais de algumas regiões, em situações de maior penúria, bem como obstáculos à compra de artigos estrangeiros. Muitas localidades tinham as suas torres por onde passavam comerciantes e mercadorias que aí deviam pagar as suas respectivas costumagens (saídas e entradas… portagens).

 

A tecnologia dos transportes terrestres, em Portugal pouco progrediu, tanto em meios como em infra-estruturas, estando a sua evolução ligada estreitamente ao crescimento da produção, e da produtividade dos outros sectores da economia. Uma comitiva apressada e com montadas, poderia percorrer, diariamente, cerca de 40 Km, isto se os animais de tracção não fossem bovídeos, já que, neste caso, as distâncias percorridas seriam bem mais reduzidas (6).

 

As estradas ou, mais correctamente, caminhos, principalmente os que ligavam as cidades mais importantes, eram bastante circulados por gente de todas as condições sociais, donde pode concluir-se que também a Idade Média foi um período em que, e apesar de tudo, existiu grande mobilidade, quer de pequenas quer de grandes viagens. Estas estruturas de comunicação eram de tal modo já importantes que as administrações municipais não as descuraram nunca, procurando evitar que os moradores cortassem carreiros ou os obstruíssem de qualquer modo, estabelecendo sanções para os autores destas práticas, como o ilustram o foral de Tomar de 1174: “Defendemos que nenhum ouse terçar com vallo carreiras ou estradas publicas do concelho nem meta marcos. Quem aquesto fezer correja-o por o foro da terra” (7), enquanto, no foral de Torres Novas, do tempo de D. Sancho I, a multa seria de cinco soldos sobre quem atentasse sobre estas vias (8).

Na presente cronologia, as deslocações de pessoas e bens efectuavam-se com recurso a variados meios e condições: a pé, em animais de tiro, em carros de tracção animal, puxados por equídeos ou bovinos, e barcos. O homem ia sozinho ou acompanhado de maiores ou menores comitivas.

Também distintos eram os motivos das viagens: deslocações definitivas para outros locais, na procura de melhores condições de vida, peregrinações a lugares de culto religioso, movimentações com fins comerciais, em que os mercadores nas suas idas à feira e caminhadas de feira em feira eram, neste quadro, os principais andarilhos, os senhores nos percursos pelos seus domínios a fim de procederem a inspecções, à cobrança de rendas e para caçar (Mapa 1), os membros do clero nas suas visitas às igrejas das dioceses a que pertenciam, os funcionários régios no cumprimento do seu dever, e a corte, com o rei no topo hierárquico, todos percorriam o País, com maior ou menor frequência, estabelecendo-se provisoriamente em cidades que poderiam ser, na visão do monarca, importantes para aí permanecer, por períodos de tempo mais ou menos alargados (Mapa 2 e Mapa 3); e, na base desta pirâmide social, os pedintes que iam de terra para terra na procura de esmolas.

 
 

 Os itinerários régios que, como acima já o dissemos, poderão fornecer pistas sobre o sistema viário da época, tornam-se, no entanto, difíceis de reconstituir, com todo o pormenor que almejamos, porque, se os livros de chancelaria régia permitem comprovar a permanência do monarca neste ou naquele local, faltam, no entanto, informações sobre os pontos intermédios do percurso, essenciais para uma determinação perfeita dos caminhos percorridos, obrigando a quem sobre eles se debruça a

 

fazer extrapolações, sempre falíveis pela falta de informação mais concreta, recorrendo-se de mapas de cronologias muito posteriores, daí tirando conclusões que poderão não ser fiáveis.

Apesar disto, é com certeza seguro podermos afirmar que as vias romanas (Mapa 4) existentes, na época, seriam naturalmente aproveitadas, sempre que necessário, pelas citadas comitivas e não só, podendo afirmar-se que, em certos troços dessas deslocações, os percursos seriam efectuados por essas vias. De tudo isto conclui-se e pode afirmar-se que o rei e a sua corte não eram estáticos, em termos geográficos, contribuindo, em grande parte, para a mobilidade que, nesses tempos, era um facto.

   
 

Estalagens

 

 A implementação “das estalagens na Idade Média encontra-se
intimamente relacionada com o problema do direito de aposen
tadoria que beneficiava as classes privilegiadas e era causador
de uma série de perturbações que afectavam os grupos sociais
menos favorecidos, vítimas de abusos e atropelos
que constituem um rosário permanente de queixas que se arrastam sem a
mínima solução, apesar da adopção de medidas que aparentam
dar seguimento às reclamações”.
(Humberto Baquero Moreno)

 

Todo o movimento desta mole iria forçar o surgimento de condições propiciadoras a melhores e mais rápidas deslocações, surgindo num novo quadro as estalagens. A sua existência, nestes termos, é reveladora das movimentações de pessoas e bens, no interior do Reino.

Pela morosidade das deslocações, a necessidade de lugares para descansar e alimentar homens e animais, eram um imperativo. É evidente que, com o recurso à aposentadoria, este problema podia ser facilmente contornado. É também verdade, porém, que esta situação era de tal modo onerosa, por acomodações, aos aposentadores, e abusos, violências, esbulhos e roubos por parte dos aposentados, e, não raro, ficando estes últimos impunes, que, nas cortes, sempre foi alvo de constantes queixas pelos procuradores dos concelhos que aí faziam representar-se contra a manutenção desta obrigação. Perante este cenário, não é de estranhar o surgimento de estruturas próprias para apoio as viajantes: as estalagens.

Com efeito, em 1249, por carta de D. Afonso III, de 10 de Fevereiro, é criada uma estalagem em Coimbra (9). A maior parte das hospedarias eram de iniciativa concelhia ou de particulares, e os preceitos reguladores da sua exploração eram, normalmente, fixados por diploma régio.

Um factor de realce da regularidade maior ou menor de deslocações – obrigatórias ou não - no Interior do Reino residia no aumento crescente do número de estalagens, assinalando-se, no Séc. XIV, uma sistemática correria por todo o território, apesar dos abusos nesses locais continuarem a existir, tal como nas habitações dos particulares. Apesar de tudo, este facto atesta, sem dúvida, o desenvolvimento das relações entre os habitantes das diferentes terras, atraindo simultaneamente para as localidades diversas vantagens óbvias.

Concelhos houve e até simples aldeias que estabeleceram estalagens, o mais perto das vias de deslocação terrestres e marítimas por onde passavam comerciantes e outros. Os estalajadeiros encarregados da exploração delas, obtinham do rei a concessão de privilégios que os colocassem ao abrigo dos abusos e aos estabelecimentos, facilitando a sua manutenção. Impunham também aos estalajadeiros certas obrigações, a bem dos hóspedes (10). Nenhum cliente poderia apropriar-se de roupas, ou de outro qualquer bem da estalagem, sem o consentimento do seu dono, além de, naturalmente, ser obrigado a pagar, antes de partir, todas as despesas efectuadas.

 

Estas casas, destinadas a dar pousada a caminheiros ou viajantes, podiam fornecer-lhes alimentação, roupas de cama, azeite para iluminação e outras facilidades, além da segurança de pessoas e bens, que o hospedeiro se obrigava a acautelar. Nestas estruturas, havia também acomodações para as cavalgaduras que nelas encontravam abrigo, palha e água bastante para o seu sustento.

 

          O estalajadeiro tinha, pela importância do seu papel, direito a alguns privilégios, tais como:

          . A isenção do pagamento de tributos extraordinários, régios e concelhios;

          . Não prestava serviços militar nem paramilitares e, nestes últimos, incluem-se as anúduvas e as atalaias, estando também isentos dos encargos dos besteiros do conto e de participar nas vintenas do mar; 

          . Os animais de carga, ao serviço da estalagem, não podiam ser requisitados para outros fins; 

          . Os alimentos vendidos na estalagem encontravam-se isentos de almotaçaria; 

          . O dono podia fixar, livremente, os preços do que cedia e vendia; 

          . Podia vender todos os produtos vindos de fora; 

O hospedeiro tinha, porém, como obrigações providenciar: 

          .  Que nunca faltasse pão, vinho, carne e peixe; 

          . As camas (e limpeza); 

          . Alimentação e abrigo para as montadas dos seus hóspedes. 

A distribuição geográfica destas instalações não era uniforme. O seu maior número localizava-se, como é natural, nas zonas mais densamente povoadas, sendo, desta feita, a sua maior concentração no Norte do País.

As estalagens facilitaram as comunicações e as deslocações necessárias, e atenuavam um pouco, o pesado encargo da aposentadoria passiva, de um povo já bastante sobrecarregado de obrigações (realçamos o facto de o direito de aposentadoria só ter sido, de facto, abolido, em pleno século XIX).

   
 

Deslocações Fluviais

 

“A esta outra barca me vou
Hou da barca! Para onde ir?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Olá! Hou!...
(Por Deus, aviado estou!
Quanto a isto é já pior…)
Que jumentos, com o devido respeito”.
(Gil Vicente)

 

Devemos ter em conta que os transportes fluviais são muito diferentes dos marítimos, tanto pelas características dos barcos como pelas técnicas e ainda pelos conhecimentos de navegação que são distintos.

À extensão da costa marítima de 1230 Km em Portugal, teriam de juntar-se 667 do arquipélago dos Açores e ainda 250 Km da Madeira, Porto Santo e Desertas. Sem contar com o Norte de África que começa a ficar parcialmente disponível desde 1415 e o Ocidente Africano, a partir de 1434, com a passagem do Bojador… o total do Continente e Ilhas ficava bem perto dos 2 150 Km, ou seja, 1 200 milhas marítimas, calculadas, à época em légoas, cada uma correspondendo a 5 Km, ultrapassando as 420.

Também os rios, ainda sem os problemas actuais de assoreamento, escoando-se no sentido Leste/Oeste, com excepção do Guadiana e do Chança, propiciaram, pelas condições naturais a manutenção e conservação das pontes romanas, de outras posteriores que se iam construindo, o aparecimento de portos fluviais de onde eram expedidos e recebidos os produtos para e vindos de diversos pontos do País e do Exterior (Mapa 5). Não apenas os rios que desaguavam no Oceano, eram percorridos por embarcações, também um grande número de afluentes detinha a maior importância nesta rede de transportes, à semelhança com o que se passava em toda a Europa nestes tempos medievos.

Havia nos rios uma grande variedade de embarcações, desde os maiores que percorriam o mar em longo curso - naus, galés, baixéis, entre outros, os de menores dimensões que vogavam ao longo da costa, só a favor do vento (inicialmente), como as pinaças e os batéis, até aos pequenos barcos a remos tripulados por um só indivíduo, com uma pequena capacidade de carga e utilizado nos menores cursos de água no interior do País.

Nas movimentações internas (Mapa 6 e Mapa 7), em virtude das dificuldades de circulação terrestre, os rios tiveram sempre um papel determinante com especial destaque para os rios Minho (navegável até Tui), Lima (até Ponte de Lima), Douro, Vouga, Mondego (até Coimbra), Tejo (até Abrantes), Sado, Mira (até Odemira) e Guadiana (até Mértola). Existiam também outros troços fluviais com navegação durante todo o ano ou em certos períodos do mesmo, como nos casos dos rios Cávado, Ave, Lis e Aljezur e, muito provavelmente, outros afluentes, em maior ou menor escala. Diversos forais de concelhos anteriores ao século XIII, consagram privilégios a certas categorias de barqueiros, dando a entender a existência de um importante tráfego fluvial – Arega no rio Alge, afluente do Zêzere, Pombal, junto do rio Arouca, afluente do Mondego, Torres Vedras, perto da qual passa o rio Sizandro.

Com variadas isenções para um eficiente desempenho da sua profissão e com vista a um permanente conserto das barcas, o número de barqueiros seria bastante elevado, exigindo, no entanto, da parte destes uma certa especialização e conhecimento do troço do rio onde operavam de forma a evitar rápidos, baixios e redemoinhos, que poderiam pôr em risco pessoas e bens. Em virtude da rede hidrográfica em Portugal, e numa época em que a técnica não podia vencer com compridas pontes estas barreiras, raros seriam os trajectos que não comportavam travessias em barca, pois são numerosos os topónimos fixados por essa função: Ponte da Barca, Barco, Barca, Barquinha, Barqueira (local onde havia barcos), Barqueiro, Barca Nova, entre outros (11). Ainda Barcadouro (12). A atestar a importância destes, e, simultaneamente, o grande número de pessoas e bens que circulavam na época, e deles dependiam, diziam nas Cortes de Elvas:

“Jtem Ao que diziam no lxxvij.º Artigoo que nos nossos Regnos há barcas de passagens em Alghuus Rios Assj em teio como em outros logares e os que as hj tramgessom tam negligentes em nom passar os camjnhantes que vezes hi há que Jazem huu dianas Ribejras atendendo essas barcas e que leuam delles tamanho preço por passarem que he desaguisado e contra o que se costumou nos logares do tempo antigo e due esto // se fazia porque as Justiças nom ousauam hj de tornar porque em alghuus logares as barcas heram das ordeens e nossas E que fosse nossa merçee de poermos a ello Remedjo.

A este Artigoo Mandamos que as nossas Justiças façam andar as barcas em esses portos continuadamente de guisa que esses caminhantes nom seiam detheudos per malícia desses que em ellas andam. E nom consentam que leuem mayor preço que aquel que for aguisado. E se maijs leuarem façam lho tornar e demaijs stranhem lho como no fecto couber e se alghuus poderosos assj comendadores como outras pessoas esto quiserem enbargar enujem no lho dizer per scriptura certa e nos lho stranharemos como no fecto couber” (13).

A existência de barcos para o trânsito entre Lisboa e Almada é atestada pelo acordo entre os dois concelhos, celebrado em 10 de Junho de 1284, o qual passou a regular o preço das viagens da travessia do estuário do Tejo: um dinheiro por passageiro transportado, outro por cesto ao colo, três dinheiros por cada besta asnal, proibindo-se a passagem de escravo mouro sem autorização do seu senhor (14). No Tejo, seriam de primordial importância estas embarcações, uma vez que esta barreira natural se apresentaria intransponível a pessoas e produtos provenientes do sul do País, sem o recurso aos barcos de passagem.

No rio Douro, no local denominado Porto de Rei, existia uma barca de travessia permanente, a cujo barqueiro D. Pedro I isentaria de servir, por mar e por terra, desde que trabalhasse permanentemente com a barca. No mesmo rio, mas na região da Régua, existia outro barco de travessia que era pertença do rei e que D. João I iria doar em 1385. Faz-se notar que estas embarcações, entregues na travessia dos cursos fluviais, eram na sua maioria propriedade senhorial, proporcionando rendimentos, não desprezíveis com a sua exploração, muitas vezes, à custa de preços abusivos que eram objecto de contestação nas cortes.

Os rios serviam, no entanto, como excelentes vias de comunicação entre vários pontos do Reino, pela possibilidade que permitiam para o internamento no território, quer pela rapidez, pela possibilidade de efectuar as viagens sem necessidade de interrupções, facilidade, sem dúvida bem maior, das deslocações que ofereciam, bem como pela segurança, relativamente aos assaltos sempre possíveis, a quem viajava por terra. Além destas vantagens, salienta-se também a possibilidade de transporte de maiores volumes de carga, comparadas com o meio terrestre, apesar das queixas contra os barqueiros pelos abusos praticados, já referidos anteriormente e de que o excerto anterior, dos Capítulos Gerais do Povo das Cortes de Elvas é exemplo.

Nos rios portugueses que correm quase todos perpendiculares à costa, realizava-se um tráfego intenso desse tipo que, em Mérida, Constância e Abrantes, Montemor-o-Velho, Régua, - isto nos rios principais -, entroncava com o tráfego de almocreves e carreteiros.

Pelos rios Tejo e Douro afluía a Lisboa e Porto, transportada em barcos, grande quantidade de produtos e saíam outros. Esse era o meio ideal, pela rapidez com que efectuava as viagens, para o transporte, do campo para os centros urbanos, de produtos agrícolas, perecíveis e baratos do Interior, além do vinho, trigo, azeite, castanha, entre outros. Nestas vias aquosas, circulavam também madeiras, dispondo-se, neste caso, muitas vezes, de embarcações para o seu transporte. Viajando directamente nos rios, aproveitando a força da corrente até ao seu destino.

À capital do Reino, chegavam produtos hortícolas e artesanais, vindos de Castela, da comarca da Beira, do Sul da nossa Estremadura e do Entre-Tejo-e-Guadiana, transportados em barcos que circulavam pelo rio Tejo e a Norte pelo Douro, outro expoente máximo fluvial do País naqueles séculos. No Norte, já, em 1355, se assinalavam, em ligação à cidade do Porto, que, em pleno século XIV, era a cidade que mais navios construía, os núcleos mercantis de Braga, Guimarães, Viseu e Lamego.

De referir que se ficou a dever, igualmente, aos barqueiros que efectuavam as tarefas de cabotagem de e para os navios de transporte martírio, logo, os de maior calado, a ligação às cidades mais importantes, principalmente Lisboa, na execução do comércio entre o País e o Norte da Europa e ainda com o Mediterrâneo.

Além da função primordial, que era o transporte, algumas embarcações serviam de estabelecimento comercial onde se vendiam mercadorias transportadas: frutas e, principalmente, vinho e cereais, sendo as que carregavam o vinho as denominadas barcas taberneiras, sendo as barcas do pão, as cerealíferas.

Globalmente, os transportes fluviais tiveram uma substancial importância no sistema medieval de deslocações entre todos os meios existentes.

   
 

Deslocações Terrestres

 

Os mercadores portuguesas punham em ligação a costa de Portugal
com o hinterland luso-leonês ou luso-castelhano, através de
estradas romanas ou novas sobre as primeiras,
ou originais antes concebidas pelos pés de homens e mulheres pelo desconhecido e medonho caminho florestal

 

A rapidez, regularidade e eficiência destas deslocações dependiam do estado dos caminhos, da existência de pontes sobre os cursos de água ou acidentes do terreno, das condições atmosféricas, bem como de factores humanos – imposições de trânsito por este ou por aquele caminho.

Complementares dos circuitos fluviais e marítimos, os terrestres tinham também - e apesar de todas as dificuldades -, primordial importância, estando, já no século XIV, identificados caminhos e distâncias entre várias terras das comarcas do Entre-Tejo-e-Guadiana e da Beira.

Incipiente e primitiva, esta rede viária integraria também alguns troços das vias romanas, que, apesar do seu abandono resistiam, referindo-se-lhes, ainda nos séculos XII a XV, os Portugueses, como estradas velhas. No que respeita à sua construção ou mera conservação, a regulamentação senhorial é inexistente, já que para estas entidades este tipo de obras não tinha interesse, pois não implicava comércio e, nas suas deslocações, usava-se essencialmente o cavalo, bastando-lhe para tanto simples carreiros e atalhos. Os municípios, no entanto, tinham alguma preocupação em manter as vias terrestres em estado aceitável para o fim a que se destinavam, como foi referido anteriormente.

A actividade transportadora terrestre medieval baseava-se na condução sobre o dorso dos animais e às costas do próprio homem – não se nega o emprego de carros, mas este deveria ser apenas possível em pequenos percursos e onde a qualidade das vias o permitisse. A corroborar esta afirmação citam-se os costumes e foros de Beja que declaravam: “costume de Beja, e de todo o reino, que a carga comprida é a da besta cavalar e a meia carga é a da besta asnal”, no entanto, o seu emprego nos transportes a longa distância não era possível, devido às condições sociais, económicas, precariedade de estruturas viárias e condicionamentos tecnológicos da Idade Média. Mesmo os elementos da mais alta estirpe, nas suas deslocações, utilizam o cavalo ou “mulas ricamente ajoeradas e conduzidas à rédea por grandes senhores, deslocavam-se rainhas e infantas, a caminho das igrejas onde iam realizar os casamentos” (15). No que se refere ao Povo, este apenas podia deslocar-se a pé ou em asno, porque cavalgar num macho ou mula estava-lhes vedado, situação apenas revogada, no séc. XVI, por Filipe II, dado que, até então, andar de mula seria considerado um luxo e uma honra apenas cometidas aos membros da  realeza, aos prelados, altos eclesiásticos e chefes militares.

No que se refere ao transporte de bens, fala-se de três tipos de taxas, aplicáveis a três géneros de cargas:

     - as transportadas à cabeça ou às costas;

     - as conduzidas no dorso de mulas ou burros;

     - as carregadas por cavalos.

Estas diferentes taxas indiciam os valores dos artigos transportados por cada um daqueles meios. Assim, a carga máxima incidia sobre as cargas cavalares, vinham a seguir as conduzidas por gado asinino, fixadas em metade daquelas e, por fim, os artigos carregados às costas, chamadas de colonho, collar ou em colo, e em cestos à cabeça que pagavam metade das conduzidas em asnos.

Nos pequenos percursos, os produtos viajavam a cargo dos carreteiros que conduziam carros puxados por juntas de pachorrentos bois. No transporte de pessoas - que seriam logicamente da nobreza laica ou religiosa -, recorria-se aos carros de quatro rodas, sempre que o conforto fosse o desejado em detrimento da rapidez e o percurso tal permitisse, utilizando-se cavalos ou muares na sua tracção.

Nas longas distâncias, as movimentações de produtos estavam a cargo dos almocreves, almoqueires ou recoveiros, profissão referenciada em Portugal, desde o conde D. Henrique, citada em vários forais e que, juntamente com o barqueiro, o caminheiro e o carreteiro, cada um na sua função, constituíam os elementos sociais especializados no transporte de mercadorias no interior do País para lugares mais perto da costa e vice-versa.

Os caminheiros estavam encarregados do transporte, para distâncias cujo percurso de ida e volta demorava mais de um dia, para cargas de pequenos volumes e transmissão de recados orais. Deslocavam-se a pé e eram remunerados pela extensão da viagem ou pela espera que teriam de efectuar pela resposta. Esta função de caminheiro podia ser exercida como ofício, ou por obrigações, decorrentes de um imposto, em que seria obrigado a efectuar um certo número de viagens deste tipo ao serviço do senhor a quem o imposto era atribuído.

Assentava, nos almocreves, pela sua importância e número, a rede principal de transportes no País, persistindo esta figura até inícios do século XIX, que, com o advento da criação de estradas e, mais tarde, os caminhos de ferro, iriam ditar o apagamento desta actividade. Pela importância da sua função, o seu papel principal nas operações comerciais, o contrabando que efectuavam, actos especulativos em tempos de carência, provocaram contra eles queixas expressas nas cortes.

Desde o século XII, os forais que lhes fazem referência relacionam os almocreves com as formas e quantitativos das rendas que deviam prestar aos senhores dos concelhos a que estavam arreigados, rendas que consistiam em um ou dois transportes por ano. Outras disposições determinavam que todo o animal alugado para trabalhar na eira ou no lagar pagaria foro de almocrevaria, bem como as que isentavam do pagamento de encargos os cavaleiros que colocassem o seu cavalo ou as suas bestas no serviço de almocrevaria.

Desde o século XIII ao XIX, foram, de facto, os almocreves que detiveram o transporte do peixe e do sal da zona costeira para o Interior, bem como o comércio por terra com Castela que sempre foi bastante importante.

Esta rede comercial distribuía-se a partir de grandes centros, que eram logicamente os principais locais de carga: portos de mar e zonas ribeirinhas, e cuja distribuição seria efectuada do seguinte modo:

          - Do Porto de Aveiro, fazia-se a ligação com Lamego, Viseu e Coimbra;

          - De Viseu partiam para a Guarda e a Beira interior;

          - Coimbra era ainda abastecida através da foz do Mondego;

          - Lisboa interligava-se com Santarém e Abrantes, através do Tejo, e com Montemor-o-Novo, como sendo esta vila o grande centro distribuidor do País, pois estava ligada a Coimbra, através do interior e abastecendo as zonas envolventes e ao Alto Alentejo;

          - Do rio Sado, havia ligações para Évora e Beja, que, por sua vez, eram centros distribuidores de sal;

          - Beja recebia ainda peixe, proveniente do Algarve, de onde era depois expedido para o Baixo Alentejo actual. 

Há um elemento importantíssimo no sector dos transportes, o único que com as estradas e os caminhos calcorreados pelos pés dos comerciantes, embora estante e fixo, é vital para a ligação entre as povoações. Referimo-nos à ponte. Quando derrubada, é vulgar sabermos, em Cortes, as queixas que alguns procuradores apresentam sobre vizinhos de outros concelhos que se recusam a colaborar na sua recuperação. Por exemplo, Viseu e seus termos, ficavam sem peixe nem sal que, de ordinário, viria de Aveiro e que, a nosso ver, teriam, então, de ir buscar-se a Setúbal, pelo Sado, atravessando as terras até cruzar o Tejo e transportados finalmente ao centro, a estas localidades. Era demorado, viria em menores quantidades e mais caro. Verificámos a existência deste problema no nosso estudo dos Forais de Viseu.

   
 

Deslocações Marítimas

 

“Por 1419, os Portugueses intentam a livre circulação dos seus
navios, numa vasta região marítima. A pesca e depois esta e o
comércio abriram grandes estradas no mar ainda desconhecido”
(Peter Russell).
 

 

Uma época em que as vias terrestres eram praticamente inexistentes, onde os percursos por terra estavam eivados de perigos e dificuldades de variados tipos atmosféricos, ataques de salteadores, prepotências dos senhores, desconfianças dos habitantes, legislação incerta e, por vezes, não respeitada, paragens frequentes por diversas imposições; a via marítima apresentava-se também como uma alternativa mais convidativa, principalmente na época estival, menos sujeita a tempestades.

No entanto, esta actividade não estava isenta de riscos, que, para além dos naturais, incluíam os decorrentes das surtidas e incursões de piratas normandos e sarracenos a partir de refúgios estabelecidos no litoral, nas regiões que ainda dominavam e que, só após a conquista de Lisboa, em 1147, puderam ser mais eficazmente combatidos.

Um diploma régio emanado de D. Sancho I, a autorizar o transporte de mantimentos por via marítima, desde que não fossem destinados ao estrangeiro, atesta o relevo e importância deste meio de comunicações interno, mas também externo.

Para suprir as deficiências dos transportes terrestres e as insuficiências do fluvial, um sistema de pequena cabotagem marítima, funcionava também entre os portos de toda a costa portuguesa.

Todo o litoral estava ponteado de numerosos locais apropriados a este movimento marítimo, vários portos, enseadas, golfos, abrigos seguros, estuários de rios; eram locais convidativos que permitiam o movimento a embarcações, de vários tipos em percursos de pequeno ou longo curso.

No Norte de Portugal, o Porto era o grande centro onde afluíam as linhas de comércio provenientes do Minho, Trás-os-Montes e das Beiras. Desta cidade e de Leixões saíam e chegavam embarcações para e do Sul do País, principalmente de Lisboa, transportando vários artigos, com destaque para os destinados à alimentação: trigo, cevada, milho, centeio, aveia… em grão ou em farinha. Do Porto, eram igualmente exportadas mercadorias agrícolas do interior nortenho, juntamente com o sal e o pescado, seco e salgado, recebendo, por sua vez, da Europa Setentrional, panos e armas.

Mas Lisboa constituía a principal peça marítima do Reino, e era, nesta cidade, que estavam estabelecidos os mais ricos mercadores estrangeiros.

Por mar, fazia-se o comércio internacional entre Lisboa e a Espanha, Bretanha, Normandia, Irlanda, Inglaterra, Flandres, Liga Hanseática, Sevilha, Málaga, Valência, Bugia, Itália, Constantinopla (Mapa 8).

Internamente, e pelo mar, Lisboa recebia produtos agrícolas e artesanais provenientes de diversos pontos do Reino. Estava ligada às povoações algarvias e a Sines, Alcácer, Setúbal, Selir, Atouguia, Buarcos, Aveiro e às cidades e vilas marítimas do Norte.

A Lisboa afluíam também embarcações de outros locais do País, além do Porto já citado, assim, rumavam e esta cidade navios provenientes do Minho, de Alcácer, Setúbal, Alcácer…, centros urbanos onde afluíam, vindos pelo Sado, os cereais provenientes do Alentejo, sendo as dízimas das embarcações envolvidas neste tráfego pertença da Ordem de Santiago, de Odemira através do rio Mira, que penetrava no Baixo Alentejo actual, bem como de Sines, situado na sua foz.

O Sul de Portugal era local de aportagem de navios que efectuavam transportes através do rio Guadiana, com destaque para o trigo proveniente de Serpa, Mértola e Beja.

Ainda durante o século XIV, Portugal estava integrado no comércio inter-regional europeu, exportando produtos agrícolas e pescados: vinho, azeite, mel, carne, peles, unto, cebo, peixe (sobretudo a sardinha e os cetáceos) e sal; importando panos, armas, madeira, espelhos, cutelos, bainhas e correias.

O tráfego marítimo desenvolveu-se devido a condições de maior estabilidade política, militar e económica bem como pelo aumento da produtividade agrícola e maior exploração de recursos naturais como o sal e o peixe (Mapa 9), produtos que eram exportados para vários pontos da Europa, recorrendo-se ao transporte em navio. O maior aproveitamento daqueles recursos naturais facilitou também um afluxo de populações para a faixa litoral que se empenhavam na sua exploração.

Este comércio já a longa distância assumia na economia portuguesa uma grande importância: foi a preocupação por parte dos monarcas em o organizar “nacionalmente”, reportando-se a primeira tentativa a D. Dinis pela confirmação da comuna feita entre os mercadores portugueses. Mas já D. Afonso II tinha, em 1211, tomado medidas de protecção aos que do mar dependiam, obrigando todos aqueles que se apossassem de bens de náufragos a proceder à sua devolução, prova também da importância desta actividade para a economia do Reino (16).

O progresso desta actividade foi evidente, de tal modo que, em finais do século XIII, a frota mercante portuguesa tinha navios que deslocavam para cima dos 100 tonéis. Como pode deduzir-se, através da confirmação régia de 1293 (17) que fixava o montante do frete a pagar pelos barcos que carregassem nos portos portugueses para a Flandres, Inglaterra, Normandia, Bretanha, La Rochelle e Sevilha: vinte soldos de estrelins para navios de mais de 100 tonéis e dez soldos para os de menor capacidade. Determinava também esta confirmação a constituição de um fundo permanente de cem marcos de prata à disposição dos armadores e mercadores na Flandres e outra reserva em Portugal para salvaguarda dos interesses dos comerciantes resultantes de litígios. Tudo isto é demonstrativo de um florescimento da marinha, no comércio internacional, de fundamental importância para a economia.

A propósito das embarcações que existiam na Idade Média em Portugal, a multiplicidade de funções que tinham, nos rios, nos mares, na guerra, começaram a especializar-se: a barca de travessia dos rios e que transportava homens e bens e, entre estes, inclusivamente gado graúdo foi o responsável pelo aparecimento de um barco de pesca e travessia nos rios que suportem uma maior tonelagem e de um outro de maior capacidade ainda e com especificidades próprias para se movimentar no Mar Oceano, levando pescadores ao Mar do Norte e às costas do futuro Novo Continente e ainda para o alto comércio atlântico e mediterrânico. O barco de pesca a que nos referimos deu o retrato apropriado que serviria de modelo às embarcações de guerra que tiveram de ser simplificados e adaptadas à navegação costa africana. 

Os comerciantes envolvidos nesta actividade não eram, no entanto, apenas nacionais, pois há notícias da existência de mercadores estrangeiros desde 1338, tendo D. Pedro I confirmado os privilégios concedidos por seu pai que os tinha equiparado aos mercadores portugueses. Todavia, as queixas contra estes forasteiros multiplicaram-se, quase desde o seu estabelecimento no País, e, em 1365, são proibidos de efectuar revendas de mercadorias adquiridas em Portugal.

As relações entre o poder e os mercadores nem sempre foram pacíficas, havendo alianças e queixas contra o poder do rei de Portugal em 1361, apesar de, durante este governo, ter-se expandido o papel destes mercadores.

Além desta faceta comercial da marinha havia também a vertente militar, existindo indicações comprovativas de que uma marinha de guerra real desde os primórdios da autonomia política era um facto, bem como a construção de embarcações destinadas a esse fim nos estaleiros régios. Por outro lado, as normas reguladoras do dever de serviço nas embarcações do rei, bem como as acções de recrutamento de tripulantes – as chamadas vintenas do mar – já que os recrutados eram designados, separando um indivíduo de um grupo de vinte – são também prova de actividade marítima militar.

O corso foi igualmente uma prática legalizada, estando os corsários que os praticavam sob a disciplina militar do seu monarca e protegidos pelas autoridades, caracterizada pelos assalto aos navios de comércio que sulcavam o mar. Os navios que desempenhavam estas acções combinariam características dos navios de guerra, de fácil manobrabilidade, com as de um navio comercial, já que deveriam dispor de capacidade de carga para poder transportar os valores e mercadorias apresados.

A evolução dos transportes estava, tal como agora, ligada e sujeita ao crescimento da produção dos outros sectores económicos, a condicionalismos tecnológicos, instrumentais e energéticos. Há, no entanto, outros factores externos que limitavam e dificultavam os processos de comunicação e dos transportes, e nos quais podemos enquadrar: a precariedade das vias de comunicação terrestres, os obstáculos naturais, a dependência das condições climatéricas, as restrições à circulação dos produtos e entraves vários à aquisição de artigos estrangeiros. A adicionar a estas barreiras podemos mencionar a velocidade de propagação, não só dos produtos mas também das pessoas e das ideias.

O já longínquo Império romano deixara como legado excelentes estradas e pontes, porém, deveriam ser, já nestes tempos, pouco mais que vestígios. Além disso, os circuitos efectuados não seriam os mesmos, porque as vias romanas tinham um papel essencialmente militar, não coincidindo com circuitos cujo fim era agora principalmente comercial, mas também fruto de imposições de percurso provenientes dos encargos de trânsito, além de preocupações em evitar despovoamentos de certos núcleos demográficos – no reinado de D. Pedro I, o concelho de Cabrela reclamava pelo facto de os almocreves, e outros caminheiros, terem deixado de passar por lá.

Perante isto, o papel das vias romanas deveriam ser, neste quadro, diminuto. No que diz respeito às pontes – além de se terem construído algumas – herdadas do Império, a atitude foi a inversa, da que se tomou para as estradas, pois houve sempre a preocupação de as conservar. Na realidade, e no que respeita às obrigações nas obras de conservação, não há referências a trabalhos nas estradas, pois o seu interesse não existia, uma vez que a circulação terrestre era feita quase totalmente recorrendo ao dorso dos animais, e mesmo os séquitos usavam cavalos, bastando para isso  simples veredas.

As vias terrestres não seriam senão simples caminhos desenhados no solo, pelo pisar constante do solo por pessoas e bestas, e onde os veículos de tracção animal teriam poucas ou nenhumas possibilidades de circular. Nos períodos de invernia transformar-se-iam em lamaçais, tornando as caminhadas bem mais penosas e morosas, num tempo em que as carências, sobretudo alimentares, eram prementes e as técnicas de conservação desses produtos, rudimentares.

Estas dificuldades não foram impeditivas das movimentações, de pessoas e bens, no interior do território, bem como nas deslocações para o estrangeiro, numa altura em que o tempo não seria certamente, e, ao contrário de hoje, o elemento mais premente (18).

   
  Nota Final
   
 

Além da bibliografia referida nas notas ao longo do texto, servimo-nos de A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1974; António Borges Coelho, Clérigos, mercadores, judeus e fidalgos, Questionar a História II, Lisboa, Editorial Caminho, s. d; Armando Castro, A Evolução Económica de Portugal – Dos Séculos XII a XV, Vol. IV, Lisboa, Portugália Editora, 1966 e do mesmo autor, a História Económica de Portugal, Vol. II, Lisboa, Editorial Caminho, 1978; Arnold Toynbee, Cities of Destiny, s.l., McGraw-Hill, 1967; Cortes Portuguesas – Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da F.C.S.H., I.N.I.C., 1986; o Dicionário de História de Portugal, Vols. I a VI, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1974; Gary Bridge e Sophie Watson, A Companion to the City, ed. Blackwell Publishers, s.l., 2002; Iria Gonçalves, Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Livros Horizonte, 1988; Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. I, Editorial Verbo, 1974; Lewis Mumford, The City in History: its Origins, Its Transformations, and its Prospects, s.l., Harvest Books, 1968; Peter Whitfield, Cities of the World: A History in Maps, s.l., University of California Press, 2005.

   
  Notas
   
 

(1) Ponta Delgada, 1980 (ver esta ed. fac-similada), para o efeito.

(2) Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009.

(3) Itinerários do Infante D. Henrique, Lisboa, Academia da Marinha, 1996.

(4) Lisboa, Livros Horizonte, 1991.

(5) Art.º 75.º dos Capítulos Gerais do Povo nas Cortes de Elvas de 1361. In Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa INIC, Centro de Estudos Históricos da FCSH, pp. 69 e 70.

(6) Ver Iria Gonçalves, Viajar na Idade Média: através da Península em meados do século XIV, sep.ª de Arquipélago, n.º II, Janeiro-1980, Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, p. 128.

(7) Vide João Silva de Sousa, Dos privilégios outorgados por D. Afonso III (1252-1273), sep.ª da Atlântida, Angra do Heroísmo, 1980, pp. 41-61; Leontina Ventura, D. Afonso III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006.

(8) Iria Gonçalves, Privilégios de Estalajadeiros Portugueses (Séculos XIV e XV), sep.ª da Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, III Série, n.º 11, 1967, pp. 5-19. Vejam-se ainda João Correia Aires de Campos, “Antiguidades Nacionais – III- Dos estáos e aposentadorias em 1439”, in O Instituto, Jornal Scientifico e Literário, Vol. XIII, Coimbra, 1866, pp. 20-23; J. A. Pinto Ferreira, Os Estalajadeiros do Porto e seus privilégios, vols. XIX-XX, Porto, 1956-1957.

(9) João Silva de Sousa, Dos Privilégios outorgados por D. Afonso III, cit.. e Leontina Ventura, Obr. cit..

(10) João Correia Aires de Campos, Obr. cit. J. A. Pinto Ferreira, ibidem; e Iria Gonçalves, Privilégios dos Estalajadeiros Portugueses, cit..

(11) Ver A. de Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa. Exame a um dicionário, Arouca, 1999 (obra redigida em 1997/1998 (Maio-Set. / Março-Abril), pp. 77-78 e 80.

(12) A. de Almeida Fernandes, Toponímia Arouquense, Arouca, Associação para a Defesa da Cultura Arouquense, 1995, p. 46; Toponímia de Ponte de Lima. Tomos I e II., Arquivo de Ponte de Lima, 2001.

(13) Cfr. Art.º 77.º dos Capítulos Gerais do Povo das Cortes de Elvas de 1361, in Obr. supracit.. INIC. CEH da UNL.

(14) Documentos do Arquivo Histórico da Câmara de Lisboa, Vol. I, p. 15.

(15) Ver Maria Teresa Campos Rodrigues, “O Itinerário de D. Pedro I, (1357- 1367) ”, in Revista Ocidente, Vol. LXXXII, Lisboa, 1972, p. 205.

(16) Cfr. Livro das Leis e Posturas, ed. por Nuno Espinosa Gomes da Silva e Maria Teresa Campos Rodrigues, Lisboa, 1971.

(17)  AN/TT, Chanc. de D. Dinis, l.º 3, fls 12 e ss..

(18) Acerca dos itinerários régios e alguns mais significativos particulares, veja-se n/ nota [9], p. 63, do Cap. II, no n/ livro A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, 1991.

 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História

 

 

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