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Eu não diria que Fuhro
e eu fomos companheiros na utopia. Nunca fomos tão solenes. Éramos
amigos e, durante décadas, vejo agora, nos organizávamos em três rituais
de convívio. O primeiro, era a conversava telefônica que se prolongava
nas madrugadas. Ríamos muito. Talvez por falta de juízo. E discutíamos
literatura, a nossa literatura, arte e comportamentos. O segundo ritual
acontecia em eventuais viagens minhas à Porto Alegre. Esquecidos de tudo
pela proximidade física e pela empatia lembrávamo-nos da nossa juventude
gaúcha e de uma Porto Alegre expressionista colhida na nossa
subjetividade.
O terceiro ritual tinha um caráter hierático e
sagrado. No pequeno ateliê do Fuhro eu contemplava o seu trabalho. Um a
um, com lentidão, de maneira demorada, ambos silentes, gravuras,
desenhos, pinturas, eram mostrados e, às vezes, retornavam. Eu rompia o
silêncio e falava sobre a nossa época, os rios subterrâneos da cultura e
relacionava o seu trabalho com vertentes universais. Mais do que
escolher uma corrente artística, tão voláteis, eu preferia identificar
um sentimento que o unia às grandes personalidades. Para mim, Henrique
Léo Fuhro era, e é, o artista que percebeu e registrou a perda da
individualidade substituída pela função, como se pode encontrar na sua
infindável série de figuras mascaradas.
E no movimento, no gesto de seus personagens, nas
ações repetitivas, sempre a solidão, o homem abandonado de tudo, imune
ao amor humano e ao amor divino. No começo, na sua bela série de
bicicletas, tudo era perpassado em doce melancolia. Mais tarde, nada era
tão explícito, mas entranhado nos gestos mecanizados e nos rostos
funcionais sentíamos o ar desértico e a implacável prisão à que a
humanidade se condenou. Armadilha e sem esperança.
A obra de Fuhro é construída numa técnica primorosa,
severa, econômica. A complexa visão do artista foi sustentada por meios
adequados criados por ela mesma. Nos últimos anos o motivo dos
instrumentos musicais tornou-se constante. Um novo personagem do
artista. E uma metáfora de oculta doçura: é possível criar uma música
para a vida, quem sabe um solo improvisado de jazz, música que ele tanto
amou. O artista nos deixou fragmentos do nosso tempo. Improvisos
fulgurantes de um solo que só ele podia executar.
Em julho de 1980.
A figura definitivamente fixada na sua pose
hierática, na sua existência, multiplicada como um clichê que se usa
infinitamente, como um carimbo, manipulada e utilizada, tornada reflexo
no espelho, definitivamente gravada no seu instante de ação, a figura
protótipo de uma época tão rápida, o clichê de uma figura observada à
velocidade média de 80 km horários, a figura da figura, o clichê de uma
imagem clichê. Entrar no mundo de Henrique Fuhro é simplesmente estar no
mundo. O desenhista e gravador Henrique Fuhro é um sensível aparelho
registrador, olhos e memória, percepção e mão, emoção e gesto. Um
artista profundamente tocado pela realidade que, no seu caso, é composta
de imagens repetidas, vibrantes padrões visuais, instrumentos de sopro,
ornamentos. E, principalmente, é uma realidade composta de sínteses
emocionais, retornos memorialísticos e organizações espaciais. O seu
objeto de estudo é o contemporâneo e, no contemporâneo, o homem e os
seus instrumentos. A visão de Fuhro não é a da arquitetura espacial, mas
a da introspecção dentro da sensibilidade moderna.
Este, na verdade, os dois vetores do trabalho de
Fuhro. A objetividade social e a reflexão através da figura. Objeto e
introspecção. O estímulo do exterior e a meditação interior. Esta rara
combinação é o que torna este trabalho tão particular. Há muitos anos
que este artista organiza um universo feito de atualidade, o que
significa fundamentalmente a organização da percepção e das imagens. Em
sucessivos mergulhos Henrique Fuhro tem fixado estas imagens, mistura de
percepção e síntese conceitual. Hoje ele se apresenta novamente e a sua
preocupação filosófica e qualidade formal é a mesma. A diferença é,
talvez, uma opção cromática de cores mais puras e um maior requinte
gráfico. Certamente o mesmo artista e a mesma realidade: a figura
definitivamente fixada na sua pose hierática, na sua existência,
multiplicada como um clichê que se usa infinitamente, como um carimbo,
manipulada e utilizada, tornada reflexo no espelho, definitivamente
gravada no seu instante de ação, a figura protótipo. |