Todos eles partiram e eu fiquei. Fiquei
aqui, nesta terra que me parecia imensa, infinita. Agora sei que é
pequena, insignificante como um grão de areia ou um torrão que aperto
nos meus dedos e esmago e não é nada. Todos ou quase todos eles partiram
para o de lá dos mares, à procura doutros sóis, doutras luas e doutras
mulheres.
Aqui semeio, aqui planto e colho, o pão
que darei aos meus filhos que pari. Também eles me prendem, me impedem
de partir além, à aventura pelos mares. Pedem-me o pão, não me pedem a
água salgada do sonho marítimo, não me pedem que arrisque a minha vida
nem querem que o faça, como fez o pai, como fez o avô que morreu no mar.
Coisas bem mais prosaicas tenho que lhes dar, se sou mãe e se mulher me
vejo.
Choro o meu marido que partiu p´ró mar, e
eu aqui. E eu aqui, semeando e colhendo e comendo o pão, o pão salgado
das minhas lágrimas mas não salgado das ondas que imagino e sonho e
nunca vi, num sonho de aventura.
Esta terra, portugal chamada, prisão
minha e teia de que sou a involuntária aranha, de que sou a aranha e a
mosca, presa eu na rede dos meus próprios gestos.
Procriarei, criando aqui aquilo que todas
criam, mesmo as fêmeas dos bichos: filhos e filhas. Rapazes que partirão
para longe atrás dos outros que já foram, que morrerão talvez no fundo
do mar antes de chegarem ao sonho e à aventura.
Salgadas, como as do mar, as minhas
lágrimas, águas da minha alma, serão o fruto amargo do meu julgar o
tempo.
Esta terra que tão grande parecia na minha
inocência, tão pequena a sei agora no meu limite de
mulher...desencoberta.
Sonho e desespero e choro por todos
aqueles que não são aqui, onde deviam ser, por mim que me julgava eterna
e útil mas sem sina me vejo. Mãe de todos, telúrica, genésica de
impérios a fazer, aqui me vejo reduzida a nada.
Pátria talvez perdida eu sou, mátria
talvez esquecida, gero e gerando espero o que já nem sonhar ouso. De
fugaz centelha me anima a Esperança às vezes, pátria sem homens que
fiquei, mátria desencoberta, portugal chamada, perdida imaginada apenas
e lembrada nas minhas noites e dias de infindável solidão.
Aqui me vêem! Nem já de terra e de ervas mas de
pedra, erigida em estátua que ninguém procura, tombada na curva do
caminho. Bandeira! Bandeira sem vento que a agite, sem cor que a
simbolize no porvir.
Imagino-me pedra, indócil e vazia.
No meu amanhecer esperarei ainda:
partiram os meus filhos, os meus amos, os meus fados e os meus todos
amores.
Vazia, desértica até mesmo de mim, sem
destino nem viagem que me espere, aguardo a serena morte de quem já não
crê. O desespero me agita. Em ondas de desejo, desejo tudo e nada ouso.
Sou aquela mulher e aquela mátria que
ninguém ama já. Sem deuses, sem homens, sem gente, com a paciência de
quem é terra aguardarei o regresso: a fuga de todos os lugares para a
pátria-mãe, em séculos a vir. O retorno do desânimo que não é esperança
já, antes começo de algo que não quero.
Retornarão um dia, em lama
transformados de tanto querer ser água esta terra. Encherão o meu solo
de imaginários lugares.
Contemplando-me, verão o que recordam,
sonharão o que perderam. Vendo-me, verão outra.
Não só a que deixaram com saudade e
ânsia, mas também as que encontraram lá longe e não existem mais, assim
como as recordam: o império que perderam.
O que de tudo isto restará serão eternas
águas, desabitadas sempre, hostis à amestragem dos que as desejaram
possuir, oceanos vazios de gente.
Água eu também gostaria de ser, a nunca
possuída nem completamente achada. Marés transitórias que procurarão
também no espaço, na lua distante e misteriosa, que de outros sonhos
ocupará o meu espaço real. No espaço inconhecido sonharão a aventura
outra vez, o sonho e o desejo.
E eu aqui, durante séculos terra
despojada, aquela que em saudades recordaram, aquela que abandonada
fica, aquela que ninguém ama.
Esperarei para sempre. Aqui, à beira do
oceano, transbordante de desejos que não chegam até mim, mátria
esquecida, terra desencoberta.
O meu não ser além é o espelho quebrado
em que me miram, feita eu em pedaços de não ser outro lugar, mais ao
norte ou mais ao sul, segundo a rota e o desígnio das suas intenções.
Mátria mais ousada ou pátria mais fêmea ainda me
desejariam, sempre diferente daquilo que fui, daquilo que serei nem
posso ser.
Vendo-me, verão outra, sempre outras me
verão sem me aceitarem como eu sou e fui, sem me verem a mim.
Mátria esquecida, terra-mãe desencoberta,
contudo me sei desenhada nos mapas como qualquer outra. Os mapas me
desenham e me apontam, naturalmente, à superfície da esfera que rola
pelo espaço infinito: lugar nenhum, dos meus desencontrada, aqui me vejo
reduzida a nada.
Lisboa, 30 de Abril de 1997 |