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Saudoso, ficas recriando as
paisagens altas e enevoadas da serra malagueta, enamoradas das chãs de
achada falcão, das detalhadas fracturas da infância do filho de nho
juvenal cabral, da sua precária, conquanto sã e nobre genealogia, da sua
casa-grande, do seu amplo quintal de debulha do milho, do feijão e de
outros cereais das colheitas de novembro e dezembro, da sua terra
vermelha circundante do remanso e da alegria das águas de fonteana, das
suas árvores de fruto sinalizando os infalíveis cronogramas da vida e da
morte, dos seus passeios guarnecidos de acácias rubras, de floridos
cardeais e buganvílias, das suas criaturas colectoras das purgas das
plantas e do destino, das suas oleaginosas acossadas pelos machins dos
moços de sedeguma, pelas facas dos homens de tomba-touro, pelas pedras
das crianças do birianda, pelos machados das mulheres de ribeirão manuel,
dos seus arbustos assediados pelos órfãos esfaimados das colinas de cruz
grande.
Indefectível, ficas emoldurando o
percurso islenho do menino de sua mãe, do seu corpo pudico
emaranhando-se castanho-escuro às lembranças do verde imprescritível da
sua bafatá natal, da densa vegetação da sua outra terra amada, da foz do
geba, dos seus músculos atletas movendo-se nas ruelas insalubres de
ponta-belém, das suas pernas ganhadoras campeando nos poeirentos campos
de futebol dos subúrbios da cidade da praia, das suas mãos amorosa da
máquina de costura e dos dedos fatigados, crepusculares de nha iva, dos
seus olhos cultivados nas lentes tímidas, renegados pelos enfatuados
companheiros das lides literárias embrenhados na dissecação dos
cadáveres de odes e sonetos, na explanação dos males da terra abandonada
pela rima e pela grandiloquência dos velhos vates das ilhas, erodida
pela incúria, pela ignorância e pela desflorestação, da sua pupila
marítima alongando-se prolífera pela baía vazia de barcos e de carvão do
porto grande de san vicente, pelas distâncias do vasto mundo defronte,
pelas rotas conducentes aos templos do saber da capital do império, ao
clandestino tirocínio da lisboa insubmissa, às cicatrizes abertas das
terras do alentejo, à dor calada, implosiva, dos trabalhadores das
plantações de angola, às fainas agrícolas, às memórias guerreiras dos
camponeses da guiné, às indagações universais do lato mundo alado em
mudança
Solícito, ficas moldando o rosto
recto de amílcar debruçado sobre as límpidas nascentes de txororó,
depois acabrunhando-se enlutado sobre as memórias destroçadas das muitas
vítimas das as-secas, das inúmeras fomes e mortandades, depois
definhando-se enluarado sobre as valas comuns da década de quarenta,
depois erguendo-se palavra plena repleta do cerimonioso silêncio dos
campesinos de txuba txobe, da solenidade metafórica dos anciãos das
aldeias de achada-além e águas belas, da sombra ínvia dos lavradores do
colonato de chão bom e das vozes metropolitanas contestatárias
aprisionadas na colónia penal vizinha, na reclusão do campo de
concentração do tarrafal, da dúbia desmesura dos seus murros e
desalentos caiados do branco da sua reputação de campo de morte lenta
repercutindo nos tempos abafados em receio, nos tempos recheados de
silêncio.
Eufórico, ficas revivendo os
dilatados tempos da circunvalação da ilha maior, da circum-navegação das
suas íngremes estações, das suas estradas imprevisíveis construídas
sobre a visibilidade da afronta e do desaire, do desastre iminente, e os
verdes desfiladeiros de figueira das naus e figueira muita, dos tempos
serpenteando com as gentes do planalto da assomada, do fundo dos
engenhos, das angras da calheta de san miguel, das hortas de santa cruz
até às portas abertas, escancaradas do presídio do tarrafal e à aparição
das suas efígies heróicas, das suas silhuetas atónitas, libertas para o
regaço das multidões entusiastas, das suas vestes talhadas para a
urgência dos tempos de acolhimento do sangue e do coração de amílcar,
dos seus tempos da nova largada das ilhas, dos seus tempos do
definitivo enterro dos mitos passados, persistentes, coloniais, dos seus
tempos da reafricanização dos espíritos, da profusão da súmbia,
do bubú feminino, da sulada, da babalaika, dos panos da terra, das
camisas djila, dos penteados afros, das barbas densas e irreverentes e
de outros inconfundíveis sinais do reencontro com o rosto escuro,
aberto, descoberto das origens desde há muito sonegadas, dos tempos
grunhos ritmados pelo batuco e pela incandescência dos cabelos
crespos, arredondados para a dimensão da dor do mundo e da controvérsia,
tais negros algodoais crepitando rebeldes sobre as ruínas dos tempos
outros, latifundiários, das palavras finas, mofinas, das expressões
mercantis, do verbo timorato, da pátria antiga agónica, renegada, da
longínqua pátria peninsular, remordendo-se no despertar da nova nação
lusitana, convulsiva e sonhadora, em abril pluviosa, em maio solidária,
em setembro esperançosa, em novembro sorridente.
Entusiasmado, ficas rememorando os
celebrados tempos juninos da irruptiva eclosão da história, dos seus
profetas e mártires, dos seus filhos dilectos, pródigos de razão e
valentia, dos seus míticos heróis regressados, abraçados ao ritmo
esfusiante das ruas fervilhantes de slogans e protestos, da explosão da
alegria no reencontro com as pombas da tabanca, com o saracoteio dos
seus olhos gratos, com o frenesim dançante, lascivo e não mais
pecaminoso das ancas no colá sanjon, com os pilões ecoando as chuvosas
gargalhadas do milho e do tambor nos soçobrados alicerces do sobrado e
do morgadio, nas fissuradas faces da branca ganância deglutindo a lava e
o café, com o desmedido orgulho da ostentação das faces crioulas,
nossas, diversas, dos cabelos muitos, sumptuosos, das gentes das ilhas,
com a devassa dos labirintos da amnésia e da ocultação do nosso
tetravô africano, escravo insulado entre o mar e a terra, desterrado
entre a nau das américas e a cana-de-açúcar das ilhas, expatriado e
deslocado entre a nau catrineta e a infinita pescaria do amargor
da humilhação, da sua tristiose curtindo-se à beira dos funcos e
dos casebres de pedra e palha, dos seus irmãos de raça e desgraça, das
suas angústias, dos seus inaudíveis lamentos, das suas saudades da casa
paterna, longínqua, devastada na terra firme africana, para nunca
mais perdida, dos seus levantes, da sua inicial e renitente comunhão
com a terra insular árida e exaurida, da sua exumação na sua nova mátria
madrasta, dele e dos sus rebentos negros e mulatos, dele e da sua amada,
arredada do seu aconchego na esteira de palha para o desvario da luxúria
do clã dos seus senhores, dele e dos filhos negros e mulatos do ventre
das suas companheiras da dor e da intemperança.
Comovido aprendiz, ficas cultivando
os castanhos nutrientes do sol e da substância do mundo, do
nosso cabo verde de esperança, da terra retornada às fontes da
desidratação do ser, intentando afastar-se da distância e do mar
gentio da terra-longe, esparramando-se pelo júbilo e pelo canto chão
dos trovadores, dos poetas populares, dos vates de intervenção social,
pelo redondo metaforismo dos desvendadores dos herméticos códigos
da subsistência e da floração do verde sobre a cabeça calva de deus,
da árvore e do tambor, do pão e do fonema eclodindo no
cântico do habitante, embevecido com caboverde, amadamente em
construção, com o seu povo de notcha, com os seus sentidos
letrados no crioulo, com as suas gestas, com as suas crenças, com os
seus pastores, pescadores e catraeiros, com as suas panelas de milho
vermelho, púbere, raríssimo, com os seus alguidares de milho branco,
importado, molhado de véspera para o cuscus e o prazer da vizinhança,
com as suas crianças castanhas, negras, brancas, crespas, frisadas,
loiras, pétalas da mesma flor arquipelágica, com as suas frágeis
auréolas de cordeiros de deus, com as suas confissões afinadas
nas noites livres de áfrica, com os seus sons revirando-se
com as alvíssaras das folhagens de setembro e das novas conjunturas
divisadas germinais nos traiçoeiros tempos de outubro, nos incertos dias
de novembro, nos chuvosos dias de janeiro batendo no portão das
nossas ilhas.
Surpreso, ficas planando sobre os
rostos de repente crispados, sobre as bocas de repente amarguradas dos
antigos companheiros do militante número do nosso partido e a sua
nunca acabada rememoração dos incomensuráveis sacrifícios consentidos na
nossa longa e gloriosa luta armada de libertação nacional, as muitas
façanhas praticadas na frente político-diplomática, na logística
da guerra e das zonas libertadas, na guerra de guerrilha de longa
duração levada a cabo conjuntamente com a força física principal da luta
constituída pelos bravos combatentes da guiné-bissau.
Convicto, ficas dissecando todas as
outras arroladas provas da genialidade político-estratégica do
princípio da unidade fundado nos laços históricos e de sangue e na
duradoura comunidade de aspirações entre as populações da guiné e de
cabo verde,
na permanente comunidade de
interesses estratégicos dos dois territórios africanos submetidos à
multissecular dominação estrangeira do mesmo poder colonial bem como na
sua complementaridade geo-económica tanto no período colonial como na
actualidade dos dias das nossas vidas e das vidas futuras das gerações
vindouras com vista ao seu desenvolvimento acelerado e auto-sustentado,
Convencido, ficas desencobrindo
todas as provas, genuínas e cabais, na prática comprovadas, do princípio
da unidade guiné-caboverde solidificado na aliança fraternitária e na
luta comum encetada com o povo heróico do país irmão na busca, aliás,
coroada de total e inequívoco sucesso, da nossa vocação para a plena
soberania política e do nosso destino africano, livremente escolhido
pelo povo das ilhas, sob a esclarecida direcção do nosso glorioso
partido e do nosso líder imortal, barbaramente assassinado em desespero
de causa dos agentes do imperialismo e do exército agressor, ocupante de
uma pequena parte do solo sagrado da nossa terra firme da guiné e das
ilhas de cabo verde, a mando das forças mais retrógradas e
obscurantistas do colonial-fascismo português, conforme rezavam os
obituários, os elogios e orações fúnebres, os cartazes dos activistas
ocidentais da solidariedade anti-colonial, os comunicados de guerra
lidos na rádio libertação.
Consternado, ficas pesando as
faúlhas das pelejas, a sua estranheza entranhada na insondada história
das nossas ilhas crioulas afro-atlânticas, consciencioso ficas sopesando
as cores ouro-verde-rubras da repulsa do eventual vitupério, da
desesperança na balança das mitologias e dos seus sumo-pontífices, das
suas dissensões, das suas desnorteadas geografias, das suas trocas de
palavras inflamadas, demolidoras, das suas antigas raivas desenterradas
desembocando difamatórias nas silhuetas dos rios atiçados de ódio e de
ressentimento navegando nas praças repletas de regozijo e alegria,
atingindo caluniosas os rostos pardos das ribeiras envoltas em pranto e
remorso, revolvidas em alívio, em gratidão e orgulho sussurrantes,
devastando as efígies dos guardiães dos cemitérios, dos coveiros das
contemporâneas ossadas dos comandos africanos, e de outros vilipendiados
mercenários da pátria lusa, e de outros sofisticados guerreiros
aliciados pelo fúnebre odor do sangue e da impunidade, e de outros
supostos colaboracionistas do mais velho e obsoleto dos impérios
coloniais, amaldiçoados pela veemência da derrota, sua e dos tempos dos
gritos desventrados das mulheres grávidas de pano preto, sumariamente
executados em praça pública, no sigilo dos matagais, na inconfidência
dos cárceres nauseabundos, e de outros pronunciados fautores da
discórdia e do morticínio fuzilados, sem o processo penal devido, sem
julgamento prévio, por deliberação unânime do conselho executivo da luta
do partido, sufragada pelo conselho superior da luta, aplaudida pelos
militantes do partido dos vencedores da guerra na nossa terra da guiné,
ainda em estado de prevenção, e de outros estropiados congeminadores do
dissídio e do litígio, e de outros conspiradores implicados no bárbaro
assassinato do nosso líder imortal, e outros actores de reiteradas
tentativas de invasão e de derrube do nosso regime progressista a soldo
do imperialismo internacional, e de outros beneficiários das comutações
das penas de morte em penas de prisão perpétua em razão das políticas de
clemência e de recuperação do homem propugnadas pelo nosso partido, e de
outros perpetradores da desunião das fileiras cerradas do nosso povo
em luta, uníssono na implementação dos altos e generosos ideais
do nosso partido elaborados pelo nosso saudoso líder para a
concretização da justa aspiração do nosso povo à construção da paz, do
progresso e da felicidade para todos os seus filhos nas nossas terras
africanas da guiné e de cabo verde, nos termos dos noticiários
radiofónicos captados no país irmão e reproduzidos ipsis verbis
nos jornais nô pintcha e voz de povo.
Calado e apreensivo, ficas
perscrutando as faces enrugadas dos comandantes islenhos
retornando às agruras dos tempos impacientes da luta político-militar
conduzida em terra alheia, irmã, alongando-se ditirâmbicos sobre os
tempos da pacatez e da legendária morabeza das ilhas,
Compreensivo, ficas contemplando as
vestes escuras preventivas dos antigos combatentes e comissários
políticos, exilados em terras estrangeiras, hospitaleiras, treinados e
fortalecidos entre povos amigos, aliados, acolhidos e ajuramentados ante
a continência da mão generalíssima de amílcar cabral para a aventura da
operação esperança, do aguardado desembarque armado nas nossas ilhas do
meio do mar, para a eventual disseminação de focos guerrilheiros entre
os camponeses da serra malagueta, do topo da coroa, do monte gordo, da
chã das caldeiras, depois traídos pela denúncia desertora de um antigo
companheiro recrutado pela polícia política colonial-fascista, depois
mobilizados para a inexorável fraternidade de armas, sangues e idiomas
com os heróicos combatentes da guiné ex-portuguesa,
Compassivo, ficas intentando pôr-te
no seu lugar heróico, todavia trágico e solitário,
e injectar-te da turbulência
das suas máscaras abandonadas aos
auspícios da defecação do secreto fel das sonegadas estórias da
história, da desinibida exposição da vileza e do pus dos tempos, das
incicatrizadas feridas das tardes de ziguinchor,
dos seus nervos desiludidos
vindos de conacry, das suas gestas e gentes solidárias, das
suas díspares intentonas, das suas inúmeras inventonas, das
suas noites torcionárias, dos seus dias fúnebres, das suas pressas
carcerárias, dos seus torturados silêncios, dos seus persistentes
rumores deambulando pelas esquinas das ruas, explodindo na sua eterna
noite de pranto, ainda carpindo, voraz e retrospectiva sobre as sombrias
instigações ao genesíaco fratricídio, à deicida vilania, ao horror
homicida, de amílcar tombando, de abel djassi dando-se em sacrifício na
noite de conacry, de amílcar três vezes baleado, de amílcar por três
vezes se redimindo da alheia falta na nocturna mesa das macabras
celebrações, na tardia indigestão dos comensais do azedo pão da
ignomínia, de amílcar cabral transfigurando-se em moisés negro da vara
sagrada dos mandamentos da dignidade, do inesgotável manancial da
liberdade, da terra prometida gizada, não mais repisada pelos pés
lavradores dele abel djassi, não mais gozada pelas mãos generosas dele
amílcar, não mais tocada e acarinhada pelo corpo verdejante dele abel,
da terra prometida antevista, dele amílcar abel por três vezes
instituindo-se chama fraterna, inextinguível, da veracidade dos tempos
premonitórios dele, isaías revelando-se nas palavras proféticas dele
cumprindo-se nos estalidos letais das cápsulas da morte dele, de abel
djassi dando-se em holocausto ante o sacrilégio do kaifás kani pilatos
da expurgação do emanuel nosso, do messianismo dele amílcar, cristo
negro dos rebelados de santiago entre as mãos irresolutas do caim da
ocasião propícia, repelente, irrepetível, repetida entre os lábios do
judas cani do momento comprado, com o perdão e o beneplácito dele,
amílcar das cordas insolentes do desencapuçado e frustrado captor, do
fatigado monóculo, da delinquente proficiência, da espancada delação
frutificada com o fascínio do amo e senhor carcereiro entre as sombras
muradas do tarrafal de caboverde, rejeitados, dos tortuosos caminhos que
navegam amarrados de conacry a bissau rejeitados, da forca simbólica, do
impávido gume do infinito vilipêndio aguardando nas calçadas amordaçadas
da capital do império agónico rejeitados, das multidões ignaras ululando
sobre as pedras frias do rossio de lisboa rejeitadas, da rejeitada
evidência da nova nobreza e da plebe de sempre, da canalha toda rindo-se
do corpo enforcado do rei da ilha de santiago, do orgulho
capturado, dos olhos atónitos do rei vátua exilado numa ilha das
imediações das batalhas libertadoras do marechal negro tricolor
encarcerado na bastilha escravocrata, das cadeias tenebrosas, do cárcere
cerimonioso, da coroa de espinhos traiçoeiros rejeitados prefigurando a
paixão dele, amílcar, vertical na honra e na ternura, radical na
observância dos princípios, aceso na recusa do rebaixamento dele,
amílcar oferecendo-se cristo negro à polvorosa cruz, ofertando-se à
lança asfixiante de inocêncio kani, momo touré, aristides barbosa,
abdulay ndjay e outros vivos mortos, e de outros futuros
mortos morridos, irrecuperáveis para o panteão da pátria, inermes
para a história, todavia salvos para o limbo, para os ignóbeis
resquícios, para a pequenez dos sinistros rodapés do paradoxo
conspurcando o memorial das criaturas valorosas, todavia irreparáveis
para a inocência, dele, amílcar traído e interpelado pela raivosa
impotência de antigos companheiros de armas aliciados pela parva moeda
da ambição, desmesurada, de uma pátria vil e pequena, mercenária,
adulterando a paixão dele, amílcar entregando-se à eternidade das cores
ouro-rubro-verdes da bandeira da unidade e luta, da estrela negra
tremeluzindo, futura e opulenta, nos céus soberanos da guiné e do cabo
verde dele, abel djassi, cristo africano erecto agonizando em conacry,
para a redenção dele, amílcar cabral, flor defumada em lume de ouro,
riso perfumado na prata e no incenso do odor das estrelas da
liberdade no seu canto cativo da glória, na perenidade da palavra justa,
imorredoura dele, amílcar cabral estatuindo-se morto imortal,
possuído pela paixão de uma pátria à medida inalienável da dignidade da
pessoa humana, à imagem e semelhança dos homens, africanos livres do
sonho libertário dele, abel amílcar djassi cabral, da casa e da semente
fecunda de juvenal cabral, da genealogia das gentes dos reis borges de
achada falcão de santa catarina, do parentesco dos costa lopes dos
engenhos, da raça negra heróica do nome denunciando em londres os
indescritíveis desmazelos da vil condição de colónia, ressuscitando com
o corpo indómito do primeiro combatente caído em tite, para sempre
comandante rui djasssi, da gerada luminosidade da família cabral,
gerando-se nome único, criando-se nome singular, dele da generosidade do
umbigo enterrado com o verde dos mangais de bafatá da primeira infância
em terra firme africana, dele da segunda vida repleta cobrindo-se do
verde mar das ilhas, dele maravilhando-se com os cajueiros da plena
maturidade no mundo dele, da fecundação do abraço materno da terra natal
dele, engenheiro da lavra e dos sonhos das gentes dele, da
universalidade nos augúrios fraternos dos povos combatentes deste vasto
mundo, dele dos tempos todos do simples africano que quis saldar a
sua dívida para com o seu povo e viver a sua época dele, da ampla e
nominada descendência de príncipes, reis e imperadores guerreiros
africanos, de chefes resistentes ilustres, tais aníbal barka, amílcar
barka, samory touré, abdel kader, al mahdi, meneliki, shaka zulu, dele
da fertilizada camaradagem de sábios e locutores de todos os recantos da
palavra incisiva e libertadora dele, da inexpugnável irmandade com a
humilde e anónima humanidade, toda e inteira, dele do aquoso carinho
materno de iva pinhel évora e do seu umbigo semeado em godim da ilha de
santiago do sotavento caboverdiano, de apelidos tracejados nos areais da
ilha pastoril da boavista do barlavento caboverdiano, de suor derramado
nos trabalhos e nos dias de bafatá, praia, san vicente e bissau,
dela a um tempo eva e maria, mater dolorosa da pátria e da
pietá, do seu folhoso regaço, doravante vazio, das suas vestes
lenhosas, ainda lacrimejando na noite de conacry, dos seus fantasmas
emboscados, ainda redivivos, dos seus dias albinos, dos seus deuses
despigmentados, das suas gentes chorosas, alvas nas túnicas brancas do
luto e do estádio lotado, nas exéquias e em outras cerimónias fúnebres
do menino da sua mãe iva, na purificação do menino da sua
mãe-terra, guinécaboverde, do menino chorado pelos meninos do chão natal
das suas duas mátrias, do menino velado pelos meninos da sua mãe de
criação, a terra toda e inteira de todas as criaturas humanas, das
cabras, dos touros e das panteras, de todos os seres vivos, das pedras e
das pombas, de todos os seres inertes e rumorejantes, do menino em
conacry caído, na sua noite atordoada, nos seus tumores ainda
corroendo-se nas intrigas políticas, nos golpes palacianos, nas diurnas
e nocturnas execuções sumárias, nas soturnas eliminações físicas, na
sempre tempestiva excomunhão de adversários políticos e inimigos
ideológicos, na abrupta destituição de altos cargos dirigentes no
partido e no estado, na consentida expatriação de afectos e desafectos
da família e da vizinhança, por via da força das armas, de golpes de
estado, ainda e sempre fulminantes.
Silencioso, ficas escrutinando o
teor dos pêsames, respeitoso ficas exaurindo a cor das condolências
apresentando-se de cara levantada aos heróis nacionais do sahel
insular, pela segunda vez vestidos do negro retinto, pela segunda
vez envoltos do silêncio distinto do pesado luto,
Pesaroso, ficas mensurando os seus
rostos lívidos, doravante entregues à inumação do espírito profanado, da
alma penada de amílcar,
as suas sobrancelhas conturbadas,
todavia tenazes, doravante entregues à exumação da memória sagrada dos
inesquecíveis mártires das ilhas e do país irmão, dos filhos anónimos do
povo guineense perecidos, inumeráveis, na luta armada de libertação
bi-nacional,
os seus olhos esbugalhados,
doravante entregues à autópsia dos mitos, à dissecação da alma sangrada,
todavia imorredoira, do herói do povo, da sua fronte alta e nua,
da sua súmbia carismática, dos seus lábios grossos banhados na
fraternidade dos povos, exercitados na arma da teoria, dos seus
ouvidos cingidos pela sensatez e pela sabedoria, dos seus óculos escuros
marcados pelo fecundo brilho das florestas africanas impenetráveis, das
suas lunetas metálicas reflectindo a luz fluorescente dos areópagos
internacionais, a luz ondulante das bolanhas das duas guinés, a luz
ofuscante das savanas do mali e do senegal, a luz faíscante dos desertos
da argélia, do marrocos e da mauritânia, a luz ampla das cidades do
sahel, a luz azul das urbes do mediterrâneo, a luz calorosa de havana e
de santiago de cuba, a luz toda de adis abeba, a luz gelada de moscovo e
berlim, a luz branca de praga e budapeste, a luz oblíqua de pequim, a
luz baça de londres, a luz ambígua de paris e nova york, a luz fosca e
carinhosa das cidades da escandinávia, fraternas da sua biblioteca
deslocando-se entre as narrativas dos griots e os provérbios das
finaderas, dos seus dois torrões amados, das suas duas almejadas
soberanias populares irrompendo súbitas no concerto universal das nações
livres e independentes, dos seus estados proclamados pelos povos solenes
e soberanos na antecâmara limpa de escombros e passados
desentendimentos, nos umbrais referendados da sua pátria africana
futura, pensada una e solidária,
os seus deliberados esquecimentos,
as suas calculadas amnésias, doravante entregues à flagelação do
pesadelo, às labaredas do impossível olvido, à causticação dos maus
agoiros e das brumas da morte, às intermináveis querelas dos outrora
festejados companheiros de luta, às insolúveis controvérsias dos
antigos camaradas de armas e de ideários, às inultrapassáveis contendas
dos irmãos desavindos postados sobre a turbulência e o atrito dos corpos
separados, dos corações desfalecidos, dos estados de espírito
litigiosos, das amargas disposições das almas, doravante secessionistas
da pátria dantes germinando das sombras lacónicas da luta recordada, dos
esporádicos abraços pós-coloniais das nossas nações africanas, outrora
sublimando-se irmãs, outrora sonhadas gémeas entretecidas em laços
duradouros e indissolúveis, outrora erigidas inexpugnáveis sobre os ecos
da lonjura, das orografias relevando-se complementares, das águas
desencontradas das nossas terras africanas da guiné e de cabo verde,
doravante definitivamente libertas uma da outra.
Aliviado, ficas dissecando os
tempos da gratificação, insípido ficas desocultando os inóspitos
bastidores da tristeza, os camarins das lágrimas e das mágoas passadas,
frio e estratégica ficas desvelando o teatro das aparências, das
difundidíssimas parábolas bíblicas reiterando a inelutável
transitoriedade dos tempos de todas coisas sob o sol, das
instrutivíssimas lições da história asseverando, versadas, a inevitável
reversibilidade dos sentidos inoculados pelos deuses, os mais ternos, os
mais omniscientes, os mais eternos, e pelos homens, os mais atentos, os
mais teimosos, os mais astuciosos, os mais fecundos, os mais sábios, os
mais adivinhos, assim também da fraternidade forjada na luta e na
comunidade de aspirações e dos projectados interesses dos povos, dos
mistérios, das maldições, das mistificações da dita unidade entre o
cavalo e o cavaleiro, do lento estertor da chantagem política por
mor dos muitos corpos heróicos finados para a história e para a glória
dos povos da guiné e de cabo verde, da áfrica, do terceiro mundo, da
humanidade, da verberação da vassalagem ante a megalomania dos
militantes armados do nosso partido, dos valentes comandantes das
zonas libertadas e das regiões militares então em disputa na nação
africana forjada na luta, dos celebrizados chefes da guerra de
guerrilha, dos grandes militares agraciados pela indomável bravura
em combate, dos comissários do povo perspicazes, doravante alcandorados,
generais e almirantes, ministros e conselheiros da revolução e do livre
comércio do chão de cadáveres e das insígnias da nação, ao poder supremo
do partido e do estado do ex-país irmão, para o ajustamento dos medos e
dos pressentimentos, para o reajustamento dos desastres e dos bolores,
dos ressentimentos de há muito inoculados na carne dos tempos, para a
mitigação dos sonhos e das utopias de outrora, dos seus fantasmas
elementares, para a subtil decapitação dos seus heróis preliminares,
do merecimento da sua vida e obra, das suas palavras exemplares, sempre
precursoras, dos seus gestos e actos, sempre lavradores do futuro, ainda
e sempre acompanhando os passos e as afrontas de apili, ainda e sempre
convivendo com a gentileza e a audácia do povo, das suas intermitentes
irrupções de cólera.
Cansado, ficas rememorando os
renovados tempos da vanglória dos auto-proclamados melhores filhos do
nosso povo, das suas entranhadas convicções, das suas afirmadas
deliberações, dos seus inexpurgáveis dilemas de criadores originais
do nosso regime da democracia nacional revolucionária, fundado na
unidade nacional e na participação popular, com vista à prioritária
salvaguarda dos verdadeiros interesses do nosso povo e das suas classes
trabalhadoras para a paulatina edificação de uma sociedade sem
exploração do homem pelo homem, liberta do medo, da miséria e da
ignorância, expurgada de tratamentos desumanos, cruéis ou, de alguma
forma, degradantes da inviolável dignidade da pessoa humana.
Sonolento, ficas captando a
ritualização das palavras da renovada beatificação dos combatentes da
liberdade da pátria, refastelados nos lugares cativos da história
das ilhas, das suas memórias guerrilheiras, das suas poses
beligerantes, das suas sitiadas reminiscências de antigos confidentes do
morto imortal, das suas barricadas congeminações de líderes
históricos do nosso povo, postando-se severas nas tribunas dos
comícios, das paradas das milícias populares com as convocadas forças
vivas da nação crioula soberana, entrincheirando-se órfã da nação
africana forjada na luta, da pátria africana sonhada siamesa na
guerra e na paz, enquadradas nos tempos coléricos das infinitas
diatribes contra o rosto hostil dos inimigos do povo de cabo verde,
das suas gentes humildes da
ribeira-seca, de tabugal, das ribeiras de santa-cruz, dos engenhos, de
chã de tanque, da boa-entrada, de jalalo ramos, do cerrado dos órgãos,
de cova da joana, de ilhéu de contenda, de caleijão, de san pedro, de
pedra do lume,
da povoação velha, da calheta do
maio, de nova senhora do monte,
dos seus ressabiamentos, das
suas sinopses revanchistas,
das suas cogitações
parasitárias, emboscadas sobre
os campos maduros, as várzeas
semeadas, os caniçais em flor, as árvores de fruto frondosas, as
apetecíveis sombras das calabaceiras, os minadouros e os poços de água
recém-escavados, os coqueirais rumorejantes com o regozijo
das terras novas doadas em posse
útil, das cooperativas de produção agrícola, dos novos sistemas de rega,
dos diques de retenção de água pluvial, das unidades de produção
agro-industrial, das creches e dos jardins de infância, dos círculos de
cultura e de alfabetização de adultos, dos seminários de vulgarização de
novas técnicas agrícolas e de luta contra as pragas das culturas,
e de outras insígnias da terra
que renasce,
e de outros emblemas do homem
novo
que se vai engendrando na nossa
pátria amada,
da sua firme convicção num
futuro próspero e risonho
para os filhos do povo das
ilhas,
e de outros testemunhos de
inteligência e clarividência
dos dirigentes do nosso partido
africano
da independência e do
desenvolvimento,
e de outras provas da
perspicácia dos responsáveis máximos
do nosso pequeno estado
afro-insular soberano,
e de outros frutos da força
emancipadora da democracia participativa
na libertação das energias
criadoras das massas populares,
na geração e optimização de
grandes consensos nacionais
respeitantes à defesa e
salvaguarda aos interesses fundamentais
do nosso povo sofredor e da
nossa nação insular soberana,
e de outras novíssimas palavras,
e outras virginais construções
idiomáticas,
intentando levedar as ânsia e as
expectativas do nosso povo,
a sua crença na terra prometida
do amanhã sonhando edificar-se
dia a dia, orvalho a orvalho,
ilha a ilha, povo a povo,
todo e inteiro, com a vida que
se vai reconstruindo,
e se remanejando nas
antiquíssimas linhas de todas as batalhas,
das suas fronteiras, dos seus
limiares, dos seus limites estipulados nos solenes conclaves dos
salvadores do povo das ilhas, dos seus imutáveis rituais de guardiães da
história, de vigilantes atentos do correcto sentido dos ventos da
história e das ventanias do sahel que aprendemos a dominar (já não somos
os flagelados do vento leste!), blá, blá, blá, et
cetera, und so weiter, também nos teus olhos desapiedados e impacientes,
regressados, moderadamente saudosos, moderadamente cépticos, dos
estudos, da boémia e dos ares amputados, dos tempos turvos, dos tempos
invernais, dos tempos hibernados da cortejada e amada cidade de leipzig,
belíssima plantando-se no coração dilacerado da alemanha de leste,
também chamada, também fazendo-se genuinamente alemanha democrática nos
tempos vindouros das vozes dissidentes, das vozes cuidadas, das vozes
académicas, das vozes pacifistas das sombras encurraladas das ruas
cinzentas.
Furioso, quase furibundo, ficas
ressuscitando os tempos do cerco e da exaltação, da exasperação dos
combatentes da liberdade da pátria, e de outros discípulos confessos
da doutrina política de amílcar cabral, e de outros ostensivos
seguidores do pensamento ideológico do fundador do nosso estado-nação,
dos seus muito citados princípios humanistas alegadamente fundados na
defesa intransigente da dignidade da pessoa humana e na recuperação do
homem transviado das normas sociais que regulam e antecipam a existência
de um homem novo na nossa terra,
das suas falácias, das suas
divagações, dos seus mal-entendidos,
das suas controversas
interpretações dos sinais dos tempos,
das suas intermitências repressivas
repletas do iluminado afã,
dos devaneios lexicais, dos
transtornos verbais da palavra de ordem,
da virulência da fúria da noite
varada e compacta, da voz de prisão
intimidatória, do bastão policial
vigiando impiedoso
a subversiva inanição das pedras,
dos mornos acordes do saudosismo
da gemada do gato de mané jon
e das mocratas do monte, do contrabando
de aguardente e de quinquilharias
várias, dos corpos candidatos
à emigração clandestina no porto
grande do mindelo e no novo porto
de águas profundas da cidade
capital da nossa república, dos pés
reclamando contra o nepotismo e a
impunidade de velhos pedófilos
inveterados e a impudicícia de
outros anciãos irrequietos
na promiscuidade e na poligamia,
das vozes clamando contra
os kalashnikovs em riste sobre as
encostas adúlteras da vila nova
e de outros esquisitos subúrbios, e
as lagartas dos tanques serpenteando
gravosas sobre as pedras indefesas
do plateau e dos insalubres arrabaldes
da cidade da praia de santiago de
cabo verde, do suplício dos suspiros
encarcerados e de outras
sonoridades, guturais, lancinantes,
das desprevenidas criaturas de
coculi, do mindelo, de nhagar
da assomada, de nova sintra, da
boca de ambas-as-ribeiras,
perfilando-se nos recorrentes
pesadelos,
nas frequentes licitações da
cólera,
nas repetidas incitações ao
desvario,
na descrença e na intimidação
da pele virgem dos sonhos
em renhida combustão,
em prenhe dilaceração,
todavia sobreviventes,
todavia impacientes
da pele ilesa dos sonhos
ainda em construção,
todavia despertas,
todavia fumegantes
com as utopias
que entre a viagem e a erosão dos
sentidos
ainda respiram e ardem contra
o logro, contra a peroração, contra
o duradouro eclipse das estrelas
Incrédulo, ficas assistindo ao
chamamento geral, intenso e urgente, para um novo djunta mon na
aventura da consolidação da nação africana do meio do mar,
suor a suor, dor a dor, amor a
amor, palmo a palmo, das ilhas e diásporas.
Surpreso, ficas observando a
persistência dos novos tempos do homem novo, radicado na
paciência e na expectativa, na permanente esconjuração dos pastores da
desgraça, dos profetas do naufrágio iminente da nossa nau insular,
da nossa jangada de sonhos,
e o inusitado regresso dos seus
filhos pródigos
vindos da emigração política e do
exílio interno no crioulo chão das ilhas;
regressados da reforma dos
irrecusáveis postos na administração colonial, das ilusões
luso-tropicais da província/colónia, dos ansiosos desenganos da
adjacência, das muitas quimeras da autonomia, das desilusões
luso-ultramarinas do império, dos antigos confrontos com a fúria
libertadora das ruas em dezembro de 1974,
retornados do desassossego da
resignação e da nossa antiquíssima melancolia de órfãos de superpátrias
vastas, desmedidas, de enteados e bastardos de terras firmes
continentais, monumentais,
para a penitência perante o altar
da pátria amada, da terra dos nossos avôs ilhéus,
e a sua sagração como filhos
legítimos da pátria nossa, insular, secular, e a sua consagração como
inteiros participantes das corridas de estafetas das criaturas das
ilhas, de corredores de fundo dos tempos vários do nosso
arquipélago afro-latino, na sua inextinguível demanda do direito de
cada cristão, de cada zimbrão, à sua gota de água, do x tanto que
é preciso e imprescindível para uma vida humana com dignidade, do
direito de filho das ilhas e diásporas ao seu quinhão de felicidade, do
direito de cada criatura verdiana à sua porção do paraíso possível da
humanidade tornado provável pela chuva que nós próprios ousarmos
chover.
Partícipe, ficas observando as
metamorfoses da praia-maria,
sedento ficas auscultando a praça
maior da cidade
e os seus burburinhos restolhando
em insanáveis disputas clubistas, em sôfregos debates, tertúlias e
controvérsias político-culturais; em sigilosos planos para a definitiva
irradiação do c, do ç, do q, do til e dos chapéus do alfabeto e da
caligrafia da língua da terra; e a concomitante introdução do k,
do y e do w no novo alfabeto a ser urgentemente adoptado no colóquio de
tira-chapéu;
as suas incessantes palpitações
ante o vário e belo desfilar das criaturas das ilhas, da diversa
fisionomia do idioma da terra; do diverso resplendor das mulheres e dos
homens do arquipélago crioulo, nosso, idolatrado;
as suas periódicas conturbações, as
suas iradas ameaças de convulsão, as suas constelações de alaridos
iluminando-se na boémia e na paródia, na conjura e na conjuntura
possível esgueirando-se contra o cabisbaixo estatuto de carneiros,
contra a infalibilidade dos predicadores do conformismo, contra as
vestes uniformes dos pastores das igrejas, todas elas crendo-se
omniscientes, e as suas águas bentas, dessacralizadas, paradas,
pútridas, pantanosas, sufocantes;
o seu quiosque afogado em jornais
da terra entediantes e revistas estrangeiras desactualizadas;
os seus ecos dos padre-nossos,
credos e avé-marias apertando-se na nave minguada e nas imediações da
igreja-matriz com as multidões de crentes suburbanos num só deus e no
seu filho unigénito, gerado e não criado, inabaláveis na fé, firmes
na expectativa do pão nosso de cada dia derramando-se da missa e
da prédica (todavia sempre adiada para outros dias que hão-de vir,
generosos, se deus quiser), caritativos para com os seus próximos
e semelhantes, também eles filhos de deus, mesmo se viventes das esmolas
de sábado, nossa senhora, e para com as própria almas, coitadas,
necessitadas da semanal confissão dos pecados, felizmente sempre venais
e remissíveis, e de um pé de dança ao som da música debitada pelos
rapazes, suburbanos como eles, da banda domingueira residente no bonito,
se bem que degradado, coreto da praça;
as obsessões, as transgressões, as
angústias do seu repuxo de pouca água, banhada em hidropisia e limo
verde refrescado comprado na fábrica de tintas sita;
a sua esplanada, de onde ainda se
aguarda o disparo da bomba termo-nuclear concebida e pomposamente
anunciada pelo poeta predilecto da cidade e construída pelo poeta
guerrilheiro gerado no subúrbio da achada de santo antónio e pelo poeta
com sotaque de soncente, ex-presidiário político e ex-sindicalista,
morador do bairro da achadinha, para despedaçar a arruinada rotina da
urbe e a ruindade das mentes circundantes, capciosas,
(tomem nota, se não se importam, da
cobertura abaulada em estilo neo-modernista da esplanadas da praça
central grande da cidade da praia (inaugurada – atenção! a praça e não a
esplanada! - com o nome de praça albuqualquercoisa, rebaptizada
depois da independência praça amílcar cabral, carinhosamente conhecida
tanto pelo vulgo como pelas elites autóctones e vindas como praça grande
da praia), e reparem como, agora mesmo, ela, a esplanada da praça se
aperalta e se mostra como vistosa e extrovertida montra social da
cidade);
os seus velhos funcionários
reformados e as suas memórias resguardadas sob a sombra do silêncio e da
saudade; das estórias e peripécias passadas mil vezes recontadas;
os seus engraxadores de sapatos e
das várias egolatrias que passam impacientes e as suas moradas nutridas
na infinitamente bendita poeira dos caminhos dos subúrbios e das ruas
degeneradas da urbe e na palavra acesa, ininterrupta, rebrilhando com os
risos satisfeitos, com as mãos perdulários dos clientes;
os seus piratinhas, capitães de
areia e crianças de rua, preteridos na aquisição e no gozo das batas
azuis que povoam a imensa multitude das escolas do país bem como na
selecção e promoção dos seus coleguinhas pioneiros do partido a
flores da revolução, a razão principal da nossa luta
(murmura-se, contudo, que à revelia dos intentos humanistas e da vontade
do fundador da pátria, postumamente interpretado e devidamente
divulgado pelos ideólogos e outros oráculos do partido e da sua
organização unitária da juventude,
dos seus pedintes, mendigos,
estropiados e outros deficientes físicos e mentais, enroscados aos
restos e às sobras, aos rostos camaleónicos do verbo litigante dos
predicadores de novos e mais substanciosos manás;
os seus jovens quadros
recém-chegados de muitas universidades estrangeiras rivais,
as suas roupas impecáveis, as suas
gargalhadas vaidosas e confraternizadoras, os seus gestos livrescos, os
seus gostos díspares e cosmopolitas deambulando pelos corpos velados,
pelas promessas reticentes das moças estridentes, libidinosas,
namoradeiras;
os seus ministros, secretários de
estado e membros da comissão política do partido ausentes, invisíveis,
velocíssimos nos ladas, nos toyotas, nos mercedes e em outras viaturas
doadas por governos de países ocidentais amigos e de países aliados
naturais do nosso povo, embrenhados na dissecação dos dilemas
emergentes do suicídio de classe e na invenção dos rumos certos para a
estratégica garantia do êxito completo da obra heróica da
reconstrução nacional;
os seus sagitas velando as mortes e
as ressurreições das loucas das serranias da vida e da fantasia,
acariciando as mornas noites serenando-se nos lavores do amor e
da introspecção, dilacerando-se na insónia da libido e no diurno recato
dos sentidos acesos, repreendidos;
os seus stalions (não interessa se
gatos ou ratos no horóscopo chinês!) trilhando as estações inacabadas
dos tempos do remorso e do comedimento, galgando as achadas em demanda
dos frutos silvestres amadurecendo entre as fogosas coxas das mulheres
das ilhas, entre as fugazes ardências das moças recém-desfloradas;
os seus escricoitores
calcorreando os caminhos do lento e irreversível obscurescimento das
rotas do vinho e do êxtase, sustendo os umbrais da assombração da
diuturna claridade, da clara idade dos desenganos, do recolhimento dos
ecos e dos odores dos tempos sob a sombra dos ciprestes;
as suas petonisas de sempre, belas
sacerdotisas do ócio e do adultério, poetusas como sempre
terralonginquamente emersas na mangatxada e em outros
irrecusáveis jogos e brincadeiras do sexo e da sensualidade,
os seus cantores e músicos com as
suas guitarras húmidas, molhadas nos recentes tempos das águas,
com os seus ritmos percutindo o marulhar dos milheirais nas tranças dos
cabelos das raparigas da cidade, com os seus baixos cadenciando a alma
no balanço do pranto e na levitação da rebeldia, com as suas violas
celebrando a angustiada urgência dos pés descalços ruminando as voltas
todas da ilha completa, os muitos redemoinhos da terra bufa de todos os
dias, do chão de massa-pé em tempos de aridez, do mar largo dos
marinheiros, com as suas percussões encaracolando-se nos corpos doados à
dança e à alegria, com as suas vozes trepidantes, inquietas verberando a
água rara de todos os dias, a parca espessura do onirismo das
madrugadas, a parcimónia dos amanhãs fartos e cantantes outrora
prometidos aos vultos murchos das criaturas dilacerando-se com a
escassez e a vanidade nas penumbras dos bairros degradados, nos campos
arrasados pelos malefícios dos tempos da lástima e da calamidade, e em
outros lugares da apascentação da lamúria e das estações da carestia,
todavia esperançosas em dias outros cantarolando os passados ditames dos
hinos guerrilheiros e das marchas revolucionárias e os vaticínios do
futuro divisando-se com as vacas langorosas, de passos lânguidos,
rigorosamente urbanos, discretamente feminis, ecológicos na ruminação do
lixo circundante refundindo-se verde-alface nos seus olhos repletos de
miragens contaminadas pelas avaras paisagens do sahel insular;
os seus consagradíssimos literatos
e os seus fragmentos de vocábulos preciosos, as suas cozeduras de versos
encaracolados, por vezes insolentes, as suas miríades de desatinos e de
outros sonhos acordados, vivazes, abissais, arreliantes da sua
corte de poetastros e versejadores de última hora, e de outros
escrevinhadores de versos espontâneos e rimas mal-amanhadas, de estrofes
feminis de má catadura, e de outros correligionários das horas do café e
do futebol, do whisky dos princípios do mês recheado de vencimentos e
dívidas de jogo saldadas;
os seus novíssimos cultores das
artes e das letras traçando as miméticas rotas do fingimento estético e
do suicídio de poetas metafísicos e existencialistas e as melhores
formas de metaforização do discurso para a tempestiva salvação
da palavra indomada, incendiada, para as exéquias e as demais
cerimónias fúnebres do verbo chão moribundo com a mente, e o tronco, e
os pés, e os braços fincados na terra resignada absorvida em extensos
solilóquios junto do mar parado, na incessante busca dos oníricos
caminhos para a pasárgada e para a conclamação da espada justiceira
do crucificado, bem como nas repetitivas transladações e versificadas
projecções dos discursos semanais dos oradores políticos de serviço
difundidos na íntegra na gazeta do partido único, bem assim na rádio, na
televisão e no jornal oficiosos e devidamente repudiados pelos cronistas
de serviço no jornal católico da oposição e no muito e acerbo
diz-que-diz dos botequins;
os seus jornalistas, revisores,
impressores, ardinas e colunistas de sábado e outros reconhecidos titãs
das praças da nossa urbe, de âncoras presas na crítica e na autocrítica
(re)construtivas, por vezes no desagravo impiedoso, na conveniente
contra-informação e na crítica destrutiva (dizem as más-línguas, na
calúnia e na difamação), nos ganhos e perdas do xadrez e dos jogos de
fortuna, de velas soltas nos restaurantes avis e o poeta, nos cafés
cachito e vulcão, no bar do restaurante flor de lys, nas noites
caboverdianas do djonsa soares e da vila miséria, nos prostíbulos do
lém-cachorro e da achada de santo antónio, na taberna do xindo peto
pomba (diga-se, em lembrança do lonha alemão, que estrategicamente
localizada num sobrado do centro histórico da cidade), nas
mercearias&botequins flor da brava e cantinho de san tomé, na casa de
pasto amélia&josé benício&herdeiros (vale a pena esclarecer para memória
futura que este último estabelecimento de restauração é considerado –
aliás, com toda a justiça - como o verdadeiro centro de difusão da
cultura lusófona na cidade da praia sendo, por isso, obrigatório o uso
do português por parte dos clientes, mesmo em se tratando de bêbados
iletrados ou de prostitutas analfabetas, desde que se comprometam a
falar um de cada vez, conforme tabuleta colocada à vista de todos os
interessados. Tal ilação não acarreta, como é óbvio desprimor algum para
os centros culturais português e brasileiro, mais virados para a
lusografia e o aprofundamento das letras por parte dos escritores
noviços, para além de funcionarem como verdadeiras bibliotecas
municipais e escolares, muito procuradas pelos alunos do liceu e pelos
estudantes da escola de formação de professores);
os seus dissidentes e opositores
políticos relaxando-se no bate-boca e na resiliência do maldizer
enrodilhados no fumo fugaz do sagaz silêncio, no cheiro da lava e do
café, nos vulcânicos tremores da astúcia política esgueirando-se, após
as horas normais de expediente e os cordiais despachos com os
respectivos ministros de tutela, nos preparativos de simulacros
tipográficos de bombas-relógio devidamente travestidas de caricaturas de
altos dirigentes do regime, dos seus timbres monocórdicos, dos seus
lazeres elitistas, e concomitantemente revestidas de palavras
avessas às instituições da república e ao regime instituído de
democracia nacional revolucionária, e, por isso, consequente e
necessariamente adversas ao partido, aos seus satélites orgânicos
criados para o pastoreio do mulherio militante e para a neutralização da
mocidade do contra, politiqueira e arredia aos constantes apelos ao
consenso nacional requerido pela sempre relembrada ingência da obra da
reconstrução nacional, sistemática e injustamente conspurcada pela
indigência política dos desocupados de sempre e de outros intelectuais
dos cafés de cá, e de lá, de lisboa, boston e roterdão. |
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[...] Agora, em ostensiva sintonia
com o louco predilecto da cidade, recapitulas com ares marginais e
antecipadamente em contra-mão,
o ciclotímico humor dos burocratas
e as alucinações cleptocratas
dos vendilhões dos tempos actuais
adulados,
e de outros postulantes a
mercadores
de tempos outros, jubilosos, das
nossas ilhas finalmente afortunadas;
de tempos outros, gloriosos, do
desinibido e vampiresco enriquecimento de ex-gestores de empresas
públicas levadas à falência para serem vendidas ao desbarato aos seus
sócios estrangeiros;
de tempos outros, prodigiosos, da
arca dos tesouros dos quarenta ladrões crioulos e dos alibabás do
ex-arquipélago da fome e do comedimento;
de tempos outros, glamourosos,
do incontinente nomadismo dos corpos perfumados, um pouco nada luxuosos
e discretamente acomodados em pedras preciosas;
de tempos outros, de porcos em
delírio chafurdando no nosso vindouro e democraduro animal farm;
de tempos outros, da meritocracia
da ladroeira, da competência da alta gatunagem, do empoderamento
grão-burguês da nova aristocracia do dinheiro, do monetário
afidalgamento de alguns poucos filhos dilectos das ilhas, da nobilitação
financeira da esperteza refrescada na insídia e na dissimulação, das
suas garras desafiantes, sempre afiadas, dos seus ubíquos sustentáculos
estrangeiros, sempre disponíveis para o saque e para o afiançamento e a
apadrinhagem da apatridia do lucro;
de tempos outros, desejados, de
outras futuras conjunturas despontando mais além da década,
proclamando-se propulsores, aguerridos e combatentes da
liberdade na pátria, antevendo-se competentes, petulantes e
ostentatórios na sua coerência maioritária, super-qualificada e
rancorosa da velha nomenclatura de combatentes da liberdade da pátria,
tempestivamente excomungados, tempestuosamente degradados ao boçal
estatuto de combatentes do mato, definitivamente despejados das
residências de função, perpetuamente despojados dos privilégios da
nomenclatura (assim ficando também definitivamente resolvidos os dilemas
referentes ao suicídio de classe da pequena burguesia intelectual e
burocrática, tanto por via da sua ressurreição como meros trabalhadores
assalariados, quer mediante o seu enriquecimento, que aliás, se prevê
muito acelerado), nos exactos termos das ganas revanchistas dos velhos
reaccionários do pós-25 de abril e de outros saudosistas do império do
medo e dos lustrosos afectos lusotropicais, na clarividente medida das
justiceiras interpelações dos antigos dissidentes do partido único
exilados e de outros ex-esquerdistas arrependidos convertidos aos
mandamentos da democracia liberal e às maravilhas da economia do
mercado, e de outros ex-revolucionários reconvertidos à deliciosa
selvajaria terceiro-mundista do capitalismo, das suas profecias exaradas
na irritação das sempre ríspidas pichagens das frontarias dos edifícios
públicos e das honoráveis varandas das moradias oficiais dos
governantes, dos pasquins clandestinos, dos panfletos nocturnos, das
ousadas caricaturas residentes dos bares, dos cafés e de outros lugares
de escárnio e de maldizer, das praças, das esquinas e de outros focos de
difusão de boatos e de alarme social, das ruelas, dos cubículos e de
outros habitáculos da inspiração poética, da transfiguração metafísica,
da reflexão filosófica e da refracção político-ideológica, das noites e
de outras locas de conjura e conspiração, das festas e de outros
momentos de disseminação do sarcasmo e da maledicência, da dissidência
contra as instituições da república e símbolos nacionais, deles,
nossos, africanos insulares.
E cambaleias, com os olhos
cerrados, calamitosos, divagando o semblante áspero pelos estilhaços que
povoam os iminentes abismos de ocasos e colapsos e tingem a súbita pausa
do louco predilecto da cidade.
É sabido (dizes-me, dando-te ares
fingidamente banais de leitor assíduo das páginas literárias dos
quando-calhários que se achegam aos teus olhos letrados) que as palavras
estão gastas por demasiado repetidas na nomeação de realidades
sobre-evidentes, mesmo se recolhidas nas tenebras do silêncio cauteloso,
temeroso do estilhaçamento e da quebra dos cordiais laços comestíveis
convenientemente estabelecidos com o estado.
Quiçá ignorante das palavras
gastas, de todo o modo raivosamente reticente em relação às supostamente
funestas sabedorias que de há muito nelas chafurdam e se digladiam
(confidencias-me num tom reiteradamente grave e pesaroso), o louco
predilecto da cidade continuou, peremptório e febril, interpelando todas
as palavras gastas, todavia incrustando-as do odor dicionário, do
iluminado fulgor, do radioso alvor de algumas expressões eruditas.
Palavras gastas, deambulas
reflexivo atropelando-te inconclusivo nas incongruências do quotidiano,
mas paradoxalmente germinando nas mentes e nos gestos de todos,
incluindo na transida indiferença dos passos apressados dos transeuntes,
dizes de polegar em riste numa espécie de ponto de ordem a meio do
discurso, já exausto e histérico, do louco predilecto da cidade,
palavras gastas mas ainda pertinentes e verosímeis na retratação da
cidade e das suas verdades, das suas evidências, das suas verdades
super-evidentes e das suas verdades camufladas, asseveras, das suas
veracidades, inventas, inveterado neologista, de coração
deflagrando-se na raiz do sepulcral silêncio do louco predilecto da
cidade e da sua face recoberta de turbação, agora transfigurada em
irreversível túmulo de palavras.
Eis-te pois num funéreo momento de
lucidez,
oscilando entre o teu cérebro e o
resto do teu corpo,
trucidado entre ambos.
Nesse momento, em que batalhas com
as palavras e com elas perambulas indeciso entre, por um lado, o perfil
sério, prosaico, sorumbático (por vezes marcial e repreensivo) dos
discursos oficiais e das cautelosas e jubilatórias crónicas dos jornais
oficiosos e, em outro canto também ele plausível e acessível à mão de
semear, o libertário metaforismo dos poemas declamados na intimidade das
tertúlias, das tocatinas e de outros restritos convívios de amigos e
confrades, de silhuetas sempre festivas e alternativas, poderias passar
por louco, ou por bêbado inveterado, ou por tóxico-dependente
inconfesso, ou por pederasta inrevelado, ou por impertinente
incorrigível, ou por inconformado inconsequente, tal como se diria,
aliás, de qualquer outro desinibido transeunte da cidade prudente e
pacata.
E, todavia, insistes em chamar
louco ao esquizofrénico predilecto da cidade ou a qualquer outro tribuno
de ocasião que, devidamente palavroso e altissonante, persistisse em
proclamar verdades evidentes na surda e agastada face das multidões
emudecidas.
Palavras super-evidentes,
como no mais que conhecido axioma:
a loucura é a razão da minoria em dissídio,
a razão é a loucura dos mandarins das grandes
maiorias conformadas em multidões.
Eis-te desterrado do quotidiano
e do seu bom senso
(e sou eu a sombra
com quem falo e que em mim se agita
e ventríloqua se exalta com a resplandecência
das palavras, e sou eu a exacerbada cintilação do
desassombro
na desfraldada impertinência do louco predilecto da
cidade
jorrando sobre o corpo agónico da urbe martirizada
e mal-amada,
e das suas intermitentes convulsões aguardando
a chegada das sagradas águas vorazes das cheias,
líquidas, ruidosas, barrentas, e a verde e
apaziguadora aparição
que se há-de erguer entre os destroços das ribeiras
e as ruínas
das miragens enrouquecidas do venerado profeta da
grande ilha,
nhu naxu chamado e celebrizado como ícone da
imortalidade
das pétreas palavras perpétuas da ilha antiquíssima
e imperecida
nas silenciadas indagações do poeta (in)timorato
que se queria panfletário
habitante da clandestinidade conspirando contra a
fininha e silenciosa revolta melancólica escorrendo da banalidade
dos seus dias salgados e neurasténicos
e da paz burocrática das repartições
auscultando o barco alemão
aproximando-se pachorrento e paquidérmico da terra
morna, inerte,
depois distanciando-se entre silvos metálicos,
aliviados, da terra
langorosa, inerme e calva, rebelada
metamorfoseando-se
convicta e utópica na pátria livre do meio do
mar,
ora veementemente causticada pelo verbo enraivecido
do louco predilecto da amada cidade da praia de
santa maria
/da esperança
e da vitória,
agora alvejada nas suas maleitas, nas suas
bazófias, nas derivas
autistas, nos desvios autoritários dos senhores do
seu destino).
Eis-me, pois, aparentemente intacto,
calado e inteiro, num curvo momento de lucidez
com a minha sombra guilhotinada
balouçando entre a mente e a carne
(e sou eu a acústica reverberação,
o rutilante eco, a nocturna retórica,
o desvairado tambor, a rítmica equação,
a frenética percussão ecoando
a ancestral voz do profeta da mutação
dos tempos nos tempos que hão-de vir
nos gestos febris, na silhueta temerária,
nos abraços viris, no perfil excêntrico,
nas mãos predestinadas, na enlutada
memória do louco predilecto da cidade
-digo, do esquizofrénico adivinho-mor da cidade
predilecta -
e das minhas subversivas fantasias de poeta
panfletário
estrebuchando contra as pulsões avaras,
as corriqueiras deambulações, as dissimulações
funcionárias da prudência e da rotina, estiradas
sob a secretária de mogno polido, da sua fina tampa
ornada dos seguintes versos, ora jocosamente
atribuídos a bertolt brecht, ora tidos por
malevolamente
surripiados ao seu sonegado espólio
de poeta inconveniente:
“Poeta ou polícia
Ainda ontem em prostitutas
Espalhámos o sal branco
Dos nossos espermas irreverentes
Vate ou vadio
Ainda ontem em noivas enrubescidas
Levedámos o sal manso
Dos nossos espermas embevecidos”
Em tempo: na folha amarelecida,
na qual os versos acima transcritos
se encontram exarados, de forma,
aliás, quase ilegível, foi rasurada
a expressão sal manso, a qual foi
substituída por uma outra expressão
muito parecida com a anterior: sal baço.
Ou seria sal bravo? Quiçá sal bravio?).
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