|  |  | Ser convidado de Francisco Garção, nome civil de Nicolau Saião, em 
		Arronches, é um privilégio, pela beleza da vila, da sua Casa 
		da Muralha, de personalidade alentejana, certamente pela simpatia e hospitalidade 
		da família, mas muito especialmente por se tratar de uma casa-museu. Já 
		tive oportunidade de publicar no TriploV uma reportagem fotográfica da 
		arte exposta, de modos vários, desde os quadros suspensos convencionalmente nas paredes, 
		aos grandes painéis de azulejaria (2).  A visita à Casa da Muralha proporciona excelente conhecimento da obra de pintura de Nicolau Saião, 
		de um ponto de vista geral, e também nos fornece alguma informação biográfica útil, 
		quanto às suas preferências intelectuais. Como escritor, e poeta acima de 
		outras letras, Francisco Garção não só é um devorador de livros como um 
		bibliófilo. Na altura em que visitei a Casa da Muralha, o sótão era o 
		depósito para formação da futura livraria. O que mais saltava 
		à vista, por se tratar de coleções, eram obras sobre cinema, romances 
		policiais, de mistério, e outra literatura cujos autores Umberto Eco 
		levou para a Academia debaixo da etiqueta "Apocalípticos". 
		Apocalípticos e Integrados foi a obra que permitiu que nas 
		universidades passassem a estudar-se as também chamadas literaturas e 
		artes marginais. Sobre a 7ª das artes, não no sótão mas na casa de 
		Portalegre, foi-me mostrada a colecção de DVDs de filmes. Na noite 
		passada em Arronches, deliciei-me assim a ver o Nostalgia de 
		Andrei Tarkovski. Voltando ao sótão da Casa da Muralha, encontramos 
		nele ainda os integrados, a literatura clássica e moderna, assisada e 
		turbulenta. Turbulenta é a que vem das vanguardas do princípio do século 
		XX, com Orpheu e Dadá, 
		futurismo e cubismo, e atingindo-nos a todos depois no redemoinho surrealista. Foi nesta 
		turbulência que se desenvolveram artes híbridas, em resultado da fusão 
		de pintura e literatura. Aliás, precursor de tanto -ismo da modernidade, 
		o mais remoto pintor que recordo a fundir letras e pintura, escrevendo 
		nos quadros, é Amadeo de Souza Cardoso. 
		 Os artistas dimensionam-se em totalidades 
		wagnerianas, haja em vista Almada Negreiros, que escreveu, dançou, 
		cantou, declamou, desenhou e pintou a manta. É neste mundo de fusões e 
		agitação cultural que incluo Nicolau Saião. Ele não pode ser considerado um pintor, sob pena de falseamento grave 
		da sua figura de criador, nem só um escritor, pela mesma razão. Temos de 
		o considerar um 
		artista para darmos conta da sua totalidade. Um artista multifacetado e um militante cultural, de forte atuação no 
		tecido político e social do país. O artista exprime-se 
		ora como pintor ora como 
		escritor, por vezes faz acompanhar os textos por ilustrações, mas o 
		aspeto que me interessa salientar e sobre o qual vou deter-me é o do pintor-poeta, 
		o artista que escreve diretamente sobre o quadro. 
		Primeira nota sobre a escrita na pintura é a circunstância de se 
		apresentar como manuscrito, como caligrafia.  As letras têm beleza 
		própria, aliás só isso justifica que exista tanta variedade de 
		letterings à nossa escolha, nos programas de computador e nas 
		tipografias. Foi a beleza gritante das palavras impressas que levou 
		Mário de Sá-Carneiro a integrar anúncios em «Manucure», e a 
		cantar a beleza dos tipos. No caso de Nicolau Saião, não se trata de carateres tipográficos, sim de cali+grafia - bela grafia. O quadro pode 
		incluir uma história, um poema, um comentário crítico, uma anedota sobre 
		a situação política, e pode ainda acrescentar a essa 
		literatura a contida nas legendas. As legendas assumem formas várias e 
		ora são internas ora externas às obras.  Volto a socorrer-me de Umberto 
		Eco para melhor compreendermos o apocalíptico criador que é Nicolau 
		Saião. Quando ele pinta, mais do que quando escreve, e sobretudo quando 
		pinta e escreve em simultâneo, fica muito próximo das artes típicas da 
		cultura de massa, como os graffiti e a banda desenhada. Sem esquecermos 
		a sua costela erudita, pois outro tipo de aliança entre imagem e palavra pode aparecer 
		também, 
		como o frontispício ornamental de livro e a iluminura. Nicolau Saião não pinta 
		só com palavras e frases, ele pinta livros, os livros são tema da sua 
		pintura, quer como textos manuscritos, quer como formas geométricas que 
		desaguam numa técnica recorrente, a da história em quadradinhos. O «Livro de Horas de 
		Nicolau Saião» é um exemplo magnífico desta arte em que a imagem ilumina 
		o texto - ou vice-versa. São casos de irrupção da cultura clássica no 
		seio das artes mais modernas. 
		 Outro aspeto característico da obra de 
		Nicolau Saião é a criação de personagens, umas vezes integradas na 
		pintura, outras vezes exteriores, funcionando como 
		pessoas. Não se trata de heterónimos, sim de figuras borgianas, no 
		sentido em que Borges inventou autores, livros e bibliografias, e figuras do 
		espectro de Umberto Eco, para voltarmos ao escritor italiano. A 
		epígrafe deste artigo não sai diretamente da pena de Umberto Eco, sim da 
		de Temesvar, uma sua personagem de intelectual. No TriploV, encontra-se uma já bem conhecida personagem de Nicolau Saião, o 
		doutor Jagodes, dotada de retrato pictórico e verbal. O seu discurso é crítico 
		relativamente à situação política e social 
		portuguesa. Estas figuras, distintas dos 
		pseudónimos e dos heterónimos, tendem a tornar-se autossuficientes, e 
		nessa medida podem ludibriar os leitores, que as acreditam reais. Não 
		parece que tal extremo aconteça com o doutor Jagodes. 
		Outras personagens, próximas das figuras das histórias de quadrinhos, 
		aparecem na literatura desenhada do autor. Aliás, ao escrever «literatura 
		desenhada», recordo que Nicolau Saião dá o título de «Poemas desenhados» 
		a uma série de textos dedicados e referidos aos pintores Maité Bayon, 
		Giorgio Morandi, Carbajal e Hundertwasser (3). Existe nele o duplo entendimento de que a pintura é 
		poesia desenhada e que o poema é um objeto visual. Este duplo 
		entendimento suporta toda a sua obra, em especial a que se expõe como 
		artes plásticas, tornando muito evidente nela essa técnica tão recorrente, 
		que é a de dar o mundo a ver em quadradinhos. 
		 É preciso entretanto não esquecer que em Nicolau 
		Saião se manifestam duas faces contraditórias: à banda desenhada, e a 
		todas as técnicas e formas próprias da cultura de massa a que o artista 
		deita mão, não corresponde a ideologia própria, que é, evidentemente, a 
		de massificar, ou a de mover à reprodução de modelos. A intenção e o 
		discurso veiculados por esta arte, em Nicolau Saião, pertencem à esfera 
		das artes e culturas eruditas, que justamente reprovam a massificação e forçam o 
		receptor a tomar 
		consciência de si e do mundo, e portanto a assumir posição crítica face 
		aos acontecimentos. Ao conservadorismo da cultura de massa opõe-se o 
		espírito criador e renovador da arte. 
		 Ridendo castigat mores, eis a máxima com que 
		se pode encerrar esta nota sobre um artista que tem sentido na pele, ao 
		longo dos anos, a resposta do sistema à turbulência da sua sátira. | 
      
        |  | Maria Estela Guedes (1947, 
		Portugal). Diretora do TriploVALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta 
		Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto 
		de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de 
		Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a 
		solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; 
		“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às 
		portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010. 
		ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de 
		Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom 
		homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O 
		reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. 
		Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. 
		Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. TEATRO. Multimedia “O 
		Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de 
		Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José 
		Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no 
		Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, 
		cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.
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