| 
      
        |  |  | 
 |  
        | REVISTA TRIPLOVde Artes, Religiões e Ciências
 |  
        |  | 
		
		          
		
		         Escolheu o ônix, porque ela seria uma criatura do mar, algo 
		como uma ondina ou nereida, cuja pele delicada guardaria do mar o verde, 
		além de que o ônix daria o tom delicado, a nuance da pele. 
		
		         Não o verde dos mortos e zumbis, não o verde dos demônios,  mas 
		aquele tom de verde próprio do ônix, daquele ônix que fora tão caro a 
		Camille Claudel. 
		
		         Há dias a imagem dançava em sua mente, entre seus olhos – 
		quando dormia, quando acordava. Mas a imagem era kinema – essa femme 
		des femmes aparecia sempre em movimento, algumas vezes como elemento 
		da paisagem, outras como elemental de puro movimento de onda, os longos 
		cabelos loiros dançando nas águas, os seios balançando ao sabor das 
		ondas, a voz como o som de cascatas se espalhando no ar. |  
        | DIREÇÃO |  |  
        | Maria Estela Guedes |  |  
        | Índice de Autores |  |  
        | Série Anterior |  |  
        | Nova 
		Série | Página Principal |  |  
        | SÍTIOS ALIADOS |  |  
        | TriploII - Blog do TriploV |  |  
        | TriploV |  |  
        | Agulha Hispânica |  |  
        | Arditura |  |  
        | Bule, 
		O |  |  
        | Contrário do Tempo, O |  |  
        | Domador de Sonhos |  |  
        | Jornal de Poesia |  |  
        |  |  | 
          
            |  | 
		
		                                                                  
		 
		
		                                                                           
		
		
		GLEDSON SOUSA 
		  
		
		O espírito da leveza 
			  |  
            |             
			Gledson Sousa |  |  
        | 
		 |  |  
        |  |  
        |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  |  
        |  |  
        |  | 
		          O problema seria como capturar o espírito do movimento na pura 
		imobilidade da pedra. Para ele não havia outro caminho a não ser o das 
		pedras; era a única arte que ele dominava, a única em que ele se 
		eximia.  Dobras e contorções no mármore, no diorito, no ônix. Pulsações 
		nos gestos imobilizados, intensidade nos olhares petrificados. 
		
		         Às suas esculturas se dizia possuírem o poder de, ao contrário 
		da Medusa, vivificarem a quem as contemplasse, como se a vida pulsasse 
		ali sob o imediato véu da aparência, como se houvesse uma interioridade 
		escultórica, quando o que havia era a fusão perfeita entre o momento, o 
		gesto do artista e a obra que nascia. Mas a fama se espalhara, 
		principalmente depois que uma mulher tivera um filho que nascera quase 
		idêntico a uma estátua que ela comprara dele; de boca em boca, a notícia 
		se espalhara e todos perguntavam: o que Urmensch é, mago ou escultor ? E 
		alguns respondiam: os dois. 
		
		         Ele não dava ouvido aos boatos, mas também não os negava. O que 
		o preocupava agora era dar vazão aquela criatura que queria nascer, 
		brotar de seus braços, surgir de seus músculos e martelos e instrumentos 
		de talhe que dariam à matéria bruta da pedra a forma desejada. Há mais 
		de um mês que ele se trancara e esquecera do mundo exterior: nada de 
		visitas, nada de correspondência, nenhuma ligação com o mundo. Havia 
		comida suficiente para mais alguns dias – vinho abundante, queijos, pães 
		e azeitona – suficientes principalmente pelo pouco que ele comia. 
		
		         A arte é uma coisa obsessiva; nós que somos artistas o sabemos. 
		Somos tomados, às vezes, por uma impressão persistente ou por um vazio 
		que grita, que clama por redenção, aí mobilizamos todos os nossos 
		esforços para obtermos uma resposta, para acharmos uma saída; e nada 
		mais importa – nem pessoas, nem sentimentos, nem o mundo – mobilizamos 
		todo o nosso ser para encontrar a resposta, como faço agora narrando 
		essa história, como o fez o próprio Urmensch, atordoado por delírios da 
		suave dama d'água. 
		
		         Uma fúria o corroía por dentro, como se fosse possível que ele 
		mesmo se convertesse em ondina e pedra. Abandonou o ônix pelo mármore 
		verde – mais apto às suas investidas furiosas, à velocidade de quem 
		queria a todo custo plasmar o próprio pensamento o mais rápido possível. 
		
		         Começou pelo mais inesperado, começou pelas mãos, aquelas mãos 
		de dedos longos de criança, segurando displicentes, na mão direita uma 
		concha de vieira, na esquerda uma alga que trazia algo como uma flor do 
		mar. O gesto das mãos, postadas ao longo do corpo, era da pura 
		displicência da infância; ela carregava os objetos como se fossem 
		pequenos brinquedos que ela trouxesse de presente, como se ela os fosse 
		ofertar e as mãos esboçavam – somente esboçavam – o gesto possível de 
		levantarem-se e ofertarem os pequenos presentes a quem estivesse na sua 
		frente. Essas mãos eram o mais difícil, não porque exigisse uma técnica 
		por demais aprimorada, mas porque parecia-lhe impossível conseguir 
		reproduzir a naturalidade daquelas mãos infantis. Um dia sonhara 
		acordado e vira a si mesmo como um gigante que sorrindo perseguia a 
		pequena ninfa; segurava-a pela cintura e seus dedos eram enormes para o 
		corpo esguio. Ela escapava e corria pelas falésias, sorrindo, os longos 
		cabelos soprados pelos ventos, confundindo-se com as dunas, e ele só 
		perguntava: 
		
		         - Qual seu nome ? - e ela nada dizia, só corria em direção ao 
		mar e se jogava da falésia num salto de atleta e num instante 
		desaparecia entre as águas, enquanto ele ficava ali entre a areia 
		vermelha e o vento leste esperando ouvir o nome dela na boca do mar. 
		
		         A pergunta era: como trazê-la do sonho para a pedra ? Não se 
		preocupava com as discussões formais, sabia que a escultura figurativa 
		praticamente desaparecera, mas ela era a única maneira de se aproximar 
		do seu modelo de sonho. Não seria uma arte realista, porque na realidade 
		ele estaria materializando um sonho. Tampouco ele procurava uma arte 
		ideal, uma perfeição a todo custo: ele a queria como ela era – com suas 
		mãos de criança, com suas coxas torneadas, mas também com seus pés 
		espalmados de dedos membranosos como das aves marinhas e mais aquele 
		sorriso indefinido entre a sedução e a traquinagem. 
		
		         Não sabia que nome lhe dar, porque ela não dissera: 
		
		- Você vai se chamar  “o espírito da leveza” ou “a juventude”. 
		
		         E enquanto falava, teve a nítida impressão de que aquelas mãos 
		que ele acabara de terminar se moviam numa suave afirmação. |  
        |  | II |  
        |  | 
		
		         O vinho acabara; no pão que restara, os fungos se reproduziam 
		numa velocidade espantosa; diria-se que surgiriam cogumelos. 
		
		         Então ele saiu. Há tanto tempo não via nem o sol nem o mar que 
		se assustou. O sol parecia muito maior, como se houvesse crescido, 
		inchado, aumentado de repente. Mas ninguém percebia, só ele. As pessoas 
		só percebiam que sua barba estava enorme, que seus olhos estavam fundos, 
		que ele parecia vir de outro mundo, um mundo muito distante. E o mar... 
		o mar parecia uma garganta aberta pronta para devorá-lo. A linha da 
		praia diminuíra, o mar prometia avançar sobre as falésias como se 
		reivindicasse seu direito de azul sobre o planeta. E ele achou tudo 
		muito belo: as crianças que catavam conchas pela praia, o cheiro incerto 
		do mar, o grito das mulheres anunciando peixes e outras comidas, os 
		pescadores contando histórias dos povos do mar. Almoçou num bar de  
		pescadores e passou a tarde a ouvir e a contar histórias, como se fosse 
		um velho do mar. E enquanto ele contava histórias que nem ele conhecia, 
		alguns pescadores falavam entredentes: 
		
		-        
		Seu Ursch vai morrer. 
		
		         Carregado de vinho e queijo, ele entregou doces para as 
		crianças e comprou peixe salgado das mulheres. Parecia feliz. Parecia 
		que habitava o espírito da leveza. 
		
		         Voltou para casa. Ela lhe esperava. Estava quase pronta; o 
		pequeno corpo esguio, as coxas-colunas, os cabelos longos, as mãos com 
		presentes, o sorriso leve e traquinas na boca, os pés membranosos. O 
		mármore verde brilhava como se fosse o próprio mar. 
		
		         Ele entrou e sentou. Abriu a garrafa de vinho, serviu um pouco 
		para ele mesmo e ofereceu outro tanto para ela. Olhou-a sem pressa, a 
		ela, que tanto tomara de seu tempo; ela, que crescera na enormidade do 
		mármore; ela, que só esperava os olhos para sentir-se completa, para 
		ficar una, para existir. 
		
		         Ele retardava a dura missão. Terminar, acabar a obra, seria 
		como instaurar um hiato em sua vida. Pois o gesto criador equivalia a 
		todas as dimensões da vida e mesmo que ela ganhasse vida, o gesto 
		pareceria incompleto quando terminado. 
		
		         Por isso ele retardava. Se guardava e guardava para si essa 
		última solidão, esse que em si era um momento inominável. Lembrou-se de 
		Cézanne, pelas palavras de Rilke, quando esse conta da solidão de 
		Cézanne, que era perseguido pelas crianças como se fosse um louco; essa 
		solidão do criador, que só é diminuída quando da criação. Por isso 
		tantas vistas do Monte Victória, por isso as 36 vistas do Monte Fuji, 
		por isso o espírito da leveza. 
		
		         Ela estava quase pronta. Parecia que já poderia sair correndo e 
		saltar pelas falésias e urinar nos montes com seu sexo violeta, enquanto 
		ele, gigante apaixonado, correria em vão no seu encalço, tentaria 
		atraí-la com o som de uma flauta de cabeça de veado enquanto ela 
		sorriria despreocupada, só pensando no mar. 
		
		         Pegou a flauta que estava na estante. Era uma antiga flauta 
		desana; ela se chamava ñama-dupuru, e dizia a tradição que os índios, 
		sob o som daquela flauta, dançavam como bêbados. Soprou e o som 
		pareceu-lhe um tanto lúgubre. Buscou outra flauta – também desana – e 
		pegou a flauta chamada sû, feita com o casco de caracol. 
		
		         Tentou criar alguma música e o máximo que conseguiu foi uma 
		melodia minimalista de poucas notas, mas que parecia incomodá-la porque 
		ela estava sem olhos. Sem olhos ela não poderia ouvir. 
		
		         Buscou o cinzel e foi completar a obra. Ele temia os olhos 
		porque sabia ser impossível reproduzir os que ele vira em fuga. Porque a 
		expressão do olhar se transformava com a mudança de cores – os olhos 
		reagiam de maneira diferente a cada situação: quando ela fugia qual 
		menina levada – os olhos ficavam com uma cor violeta que aumentava e 
		diminuía conforme a ansiedade dela de voltar para o mar. Quando ela 
		estava quieta, triste mesmo, seus olhos ficavam cinzas e por mais que 
		estivessem abertos pareciam fechados. Amorosa, ela ficava com os olhos 
		da cor do coral e uma expressão tão intensa de amor que não havia como o 
		mármore traduzir tal intensidade. 
		
		         Resolvera fazer-lhe órbitas simples no mármore, mas 
		acrescentou-lhe pupilas em ônix que ele já havia feito. 
		
		         Custou a fazê-lo. Era o gesto mais doloroso, completar a obra, 
		acrescentar-lhe as pupilas que a tornariam quase uma obra viva, pois o 
		mármore inteiro parecia pulsar; parecia que ela arfava o peito, agitando 
		os seios em concha, que as pálpebras piscavam, que as mãos se erguiam um 
		pouco mais para entregar-lhe a vieira e a alga. 
		
		         Colocou as pupilas e por um momento esperou e por um momento 
		sentou e admirou. Agora saberia se era mago ou escultor. Sua solidão 
		acabaria, pela passagem entre os mundos, pela assunção dessa arte total, 
		absoluta, que o espírito da leveza representava. 
		
		         Ela era a beleza, dos dedos delicados aos seios, do sorriso 
		maroto ao monte de Vênus que o mármore traduzia numa pequena elevação 
		rugosa. 
		
		         Por um momento esperou. Algo parecia se agitar sob o mármore, 
		quais veias sutis. Ajoelhado, ele esperava a oferta dos presentes, 
		queria ter em mãos a alga e a vieira. Então ele sentiu: que a pele de 
		seus pés se marmorificava, que seus músculos adquiriam um tônus de 
		pedra, que seus movimentos aos poucos se petrificavam. Num esforço 
		supremo ficou em pé e aproximou-se ainda mais do espírito da leveza, até 
		abraçar-lhe, até tê-la junto ao peito enquanto seus dedos endureciam, 
		enquanto seus cabelos enrijeciam-se em pequenos cachos, enquanto sua 
		boca se petrificava num quase beijo. 
		
		         Sentia que por dentro também virava pedra e seus dedos 
		fundiam-se mármore ao outro mármore, sentia o hálito frio da pedra 
		soprar-lhe as narinas. As unhas aos poucos sumiam sob a pedra e as 
		pernas paralisavam-se num pequeno passo em busca de equilíbrio. 
		
		         Na medida em que o corpo enrijecia, sentia que o ar ia saindo 
		dos pulmões e num átimo de tempo moveu-se à frente para abraçá-la ainda 
		mais e dizer-lhe o nome, batismo quase tardio. Abriu a boca e pode 
		dizer: 
		
		- Mar... - mas a fala foi interrompida. 
		
		         No meio do estúdio, o mármore brilhava, ondina e homem, como se 
		existissem ali desde o início dos tempos. |  
        |  | 
		 |  
        |  | 
			
			Gledson Sousa (Brasil, Juazeiro do Norte, Ce, 1972)Desde 1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou
			O ANTIMIDAS – Poemas
			- São Paulo, Ed. Jano, 1998, Martina 
			- Monólogo de Um homem para sua Alma- 
			SP, Ed. Íbis Vermelho, 2001,
			O Roubo da Alma 
			- Conferência- 
			SP, 2OO3, Ed Autor e Sind. Dos Bancários de São Paulo; em 2004, O 
			Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo; em 
			2006 publicou 
			o ensaio 
			O Princípio da Indeterminação Genética, no 
			livro
			Números e Outras Coisas da Vida, pela 
			editora Apenas Livros Lda, de Lisboa, e em 2009 o ensaio PRESENÇA DO 
			FEMININO NO RELATO DE VIAJANTES – CAMINHA, VESPÚCIO E CARVAJAL, no 
			livro DESIGUALDADE NO FEMININO, pela editora Apenas Livros, de 
			Lisboa. Tem vários textos em linha no site TRIPLOV. Formado em 
			História, tem especialização em Paleografia pelo Arquivo do Estado 
			de São Paulo, atualmente faz pós graduação em História da Arte. 
			Assina dois blogs, o
			
			
			http://aesferadamanha.blogspot.com 
			e o  
			http://adeusutopia.blogspot.com
 |  
        |  | 
		 |  
        |  | © Maria Estela Guedesestela@triplov.com
 Rua Direita, 131
 5100-344 Britiande
 PORTUGAL
 |  
        |  | 
		 |  
        |  |  |  |  
        |  |  |  |  |