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		Sabemos que uma língua é um organismo vivo, que veicula o ser social e 
		idiossincrático de um povo e, enquanto viva e não enquanto documento 
		histórico, durará enquanto um homem ou uma mulher dela se apossarem para 
		expressar o que lhes vai na alma, no coração ou no pensamento. O 
		Mirandês, língua independente do português e próxima do lionês, foi 
		sempre a língua minoritária das gentes rurais do Planalto Mirandês, sediada fundamentalmente no espaço geográfico do concelho de Miranda do 
		Douro e zonas limítrofes de Vimioso e Mogadouro. Rude e áspera como o 
		mundo que evoca, convoca e retrata, trazendo em si o quotidiano 
		campestre e a vida dura de quem moureja nos campos de sol a sol e 
		integrando em si o vívido pragmatismo de dar conta de um viver singelo, 
		estóico, humilde. Com o despovoamento dos campos, o abandono da 
		agricultura, o alastrar da morte lenta sob os criminosos nomes de pousio 
		e subsídios para a destruição das culturas, o aumento exponencial da 
		instrução para os filhos dessa gente, humana demasiado humanamente 
		heróica - cujas mãos revestidas, sedimento sobre sedimento, dos calos 
		dos enxadões, picaretas e charruas e olhos inundados de sol e gelo 
		dispensaram, naturalmente, os excessos para eles dispensáveis do saber 
		livresco – veio-se paulatinamente a reduzir o número de falantes do 
		mirandês enquanto primeira língua e ficou uma pequena hoste de 
		resistentes usando-a enquanto genuíno acto de resistência e de amor ao 
		torrão natal e à memória dos antepassados, recuperando-a e mantendo-a -- 
		se ligada à máquina ou não é um diagnóstico médico que não coincide 
		entre mim e o meu amigo Amadeu Ferreira -- pelo menos em estado onde são 
		perfeitamente comprováveis o funcionamento dos órgãos e funções vitais. 
		Mas Amadeu Ferreira não se contentou em permanecer no simples espaço da 
		comunicação quotidiana entre as gentes das zonas rurais de Miranda e aí 
		não está só, antes, e desde sempre, acompanhado por outros heróicos 
		resistentes dos quais destaco o bem conhecido Dr. Domingos Raposo, mas 
		enveredou, com assinalável êxito, (fazendo pleno uso da sua assinalável 
		condição de poeta) pela produção literária ao nível da poesia, da 
		narrativa, da tradução e da edição. Com regularidade, tem assinado 
		traduções literárias de clássicos da literatura portuguesa e universal, 
		a que junta neste contexto a obra mor de Camões, clássico intemporal de 
		qualquer tempo e de qualquer época, Os Lusíadas - Ls Lusíadas. O livro 
		é alias iniciado com um longo, sólido e informadíssimo prefácio do 
		professor Ernesto Rodrigues, transmontano não de Miranda nem falante, 
		tanto quanto sei, do mirandês, mas também ele prestando a Amadeu 
		Ferreira a sua cumplicidade transmontana e nordestina, e reconhecendo 
		igualmente no tradutor de Os Lusíadas um espírito inquebrantável 
		e uma preparação científica e cultural abrangente: poética, linguística, 
		hermenêutica, histórica, antropológica e etnológica, o que aliado ao seu 
		incansável labor dá origem à concretização destes projectos de largo 
		alcance e dos quais esta tradução é um exemplo que grita.  
		Cingindo-nos mais concretamente ao processo adoptado por Francisco 
		Niebro neste hercúleo empreendimento, podemos dizer que ele não diverge 
		de forma sensível do habitual trabalho de tradutor do poeta Francisco 
		Niebro em outros trabalhos que conheço. Numa atitude em relação à forma 
		de encarar o acto da tradução que diríamos se situa a meio caminho entre 
		os processos operativos adoptados por um Albano Martins e os processos 
		operativos adoptados por um Vasco da Graça Moura, para exemplificar com 
		o caso de dois grandes tradutores, poetas-tradutores, cujo trabalho, por 
		motivos que não vêm ao caso, acompanhamos de perto de há longo tempo. 
		Pormenorizando, de forma mais concreta: Albano Martins mantém em todas 
		as circunstâncias um escrupuloso respeito pelo texto-fonte, procurando 
		na sua versão, não obstante criativa, uma espécie de literalidade 
		essencial, embora uma literalidade estética, num processo de mimesis 
		representacional onde em caso algum o texto de partida se perca no texto 
		de chegada, mesmo sacrificando ganhos estéticos ou poéticos que ele 
		consideraria sempre abusivos e até ilegítimos; e por isso perdas seriam 
		sempre esses lucros. Mantém-se sempre na pele de tradutor, o poeta fica 
		na sombra, ainda que sempre dentro de uma sombra viva, dinâmica e 
		actuante. Já Vasco da Graça Moura assume ostensivamente a posição de 
		poeta sempre e em todas as circunstâncias, a solução estética precede o 
		respeito literal perante o texto fonte, o tradutor aqui é o poeta que 
		apresenta a sua melhor versão, o demiurgo da língua de chegada e por 
		isso senhor todo o poderoso que cria e recria o criado. E assim nas suas 
		recolhas poéticas amiúde se misturam poemas por ele escritos ab initio e 
		poemas traduzidos, deste ponto de vista recriados, reescritos. Deve 
		dizer-se, ambos os casos apresentados, o tradutor executa, de forma 
		diferente, um acto de autoria.  
		Francisco Niebro, como já se deixou entrever, balança escrupulosa e 
		sabiamente entre estas duas respeitabilíssimas atitudes, procurando 
		pragmaticamente para cada caso, do seu ponto de vista, obviamente, a 
		melhor solução. Atenhamo-nos aos materiais manuseados por Niebro: uma 
		língua desde sempre, salvos raríssimos e excepcionais casos, usada 
		somente na sua vertente oral; língua rural, popular, de reduzido e 
		semanticamente limitado léxico. Então como fazer face aos gigantescos 
		problemas colocados por obras-primas universais como as de Horácio, 
		Ovídio, Saint-Éxupéry ou, neste caso, o Camões épico? É um processo de 
		expansão lexical e sintáctico paulatino, por proximidade, contiguidade, 
		analogia e homologia, que leve à solução mais correcta e, sobretudo, 
		eficaz. Um conhecedor do mirandês e das limitações lexicais e 
		estruturais da língua mirandesa espanta-se perante a flexibilidade das 
		traduções de Francisco Niebro, pela forma como ele expande e agiganta 
		esse reduzido núcleo vocabular e o submete às mais duras provas 
		expressivas com resultados, não raro, surpreendentes. Quem tiver dúvidas 
		pode esclarecê-las com um método tão simples quanto eficaz. Leia esta 
		tradução mirandesa de Os Lusíadas e verá se não chega à mesma 
		conclusão do autor destas linhas ou a aquela superiormente autorizada do 
		professor Ernesto Rodrigues, que assina extenso e completíssimo 
		prefácio, como já atrás se deu conta.  O 
		tradutor move-se pois no exímio equilíbrio do compromisso, cada estância 
		coloca um problema novo, da vária ordem do som, do sentido, da 
		pragmática, da cadeia sintáctica, da estrutura formal. Numa diplomacia 
		estética de alta filigrana conjugam-se, não raro no fio da lâmina, os 
		diferentes planos, quais sejam o do sentido, o da forma estrófica, o da 
		literalidade do léxico, o antropológico e claro, o fónico, nas 
		diferentes vertentes da rima, da métrica e da acentuação. Da nossa 
		própria leitura e da consulta do ficheiro estabelecido pelo tradutor 
		onde se elencam casos problemáticos da tradução e que gentilmente 
		Francisco Niebro nos forneceu, podemos, de seguida, exemplificar 
		diferentes situações surgidas enquanto barreiras superadas com êxito. 
		Recorrendo, para o sucesso dessa tarefa, reitera-se, à inteligência, ao 
		saber poético, à técnica do tradutor, à mestria versificatória e à vasta 
		cultura literária e filológica nos planos das línguas portuguesa e 
		mirandesa, ao que acresce, e muito ajuda, ainda ser Amadeu Ferreira um 
		puríssimo caso de bilinguismo. A Tudo isto se associa um estudo profundo 
		da obra camoniana bem como o conhecimento exaustivo das inúmeras 
		traduções de Os Lusíadas, ao longo dos tempos e nas mais 
		desvairadas latitudes.  Vejamos 
		então, em concreto, e a título meramente exemplificativo, tantos eles 
		são, alguns casos curiosos colocados pela tradução e que sublinham 
		exuberantemente este árduo mas exímio labor:  
			1-     
			Logo 
		no canto I, na Proposição, no terceiro verso da segunda estância 
		encontramos “terras viciosas”, que a preservar a literalidade, daria um 
		efeito totalmente contraditório em mirandês, pois terras viciosas 
		significariam, ao contrário do pretendido pelo nosso épico maior, terras 
		férteis, viçosas, frutíferas quer entendidas no plano do literal quer no 
		plano metafórico. O tradutor muda não traindo; ou seja para não trair 
		foge da acrítica fidelidade. Escolhe, subtilmente, “perdidosas” ideia de 
		algo moral e eticamente perdido, impuro, “mulheres perdidas”, assim se 
		denominam as mulheres da vida, as que vendem o corpo ou, quiçá, a alma. 
		Precisamente a ideia que Camões procura transmitir para o carácter 
		herético e pecaminoso das terras dominadas pela moirama. 2-     
			 Outro exemplo interessante é a palavra “famosas”, no segundo verso da 
		estância dezassete ainda do Canto I em que o tradutor sacrifica o 
		esquema métrico e rimático em obediência a um imperativo maior qual seja 
		o carácter totalmente espúrio ao mirandês, até porque se trata de um 
		vocábulo importando também em relação ao português, substituindo-o pela 
		genuína palavra mirandesa “afamadas”.  3-     
			Um 
		caso que merece saliência passa-se precisamente no quinto verso estância 
		106, última do Canto I: “onde pode acolher-se um fraco humano”, vertido 
		para “adonde um fraco houmano achará scanho”. O verbo “acolher-se”, 
		espúrio à língua mirandesa é substituído pelo substantivo “scanho”, 
		banco situado na cozinha, junto á lareira, lugar privilegiado de refúgio 
		e de repouso da árdua labuta diária. O meu saudoso amigo, Padre António 
		Maria Mourinho, dizia-me, em mirandês, a propósito desta central peça de 
		mobília de um lar mirandês, mais ou menos isto, cito de memória: “aqui 
		se é feito, aqui se nasce, aqui se vive e aqui se morre”. 4-    Um 
		verdadeiro achado é a solução engendrada nos versos sete e oito da 
		estância 120 do Canto III, o episódio universal de Inês de Castro: “Aos 
		montes ensinado e às ervinhas / o nome que no peito escrito tinhas”. Num 
		gesto sacrificial à literalidade o tradutor estaria obrigado a qualquer 
		coisa como “yerbicas / tenies”, situação verdadeiramente calamitosa de 
		todos os pontos de vista. Em primeiro lugar porque o diminutivo “inhas” 
		não existe em mirandês, a alma da língua repele-o, vomita-o, sendo os 
		diminutivos feitos de uma maneira geral com os sufixos “ico/ica” ou 
		“in/ina”. Segue-se que um mirandês só por excepção usará o termo yerba 
		com diminutivo, pois o valor expressivo comummente de carácter afectivo 
		associado fere a sensibilidade de qualquer camponês, cuja labuta diária 
		assenta na luta sem tréguas contra essas amaldiçoadas ervas daninhas. 
		Quando muito “erbicas” cingir-se-ia a uma pequena quantidade de ervas, o 
		que contraria totalmente a ideia camoniana cujo magistério de Inês 
		abrange, como é sabido, a totalidade das ervas, de toda a vegetação. 
		Logo, recusou-se o diminutivo original para deixar simplesmente “yerbas” 
		em seu grau normal, e para acertar as contas à moda de Miranda com a 
		métrica usou a muleta “a to las”. Chegados aqui, o resto caiu que nem 
		ginjas na estrofe camoniana, visto que para “tinhas” é magistralmente 
		seleccionado “lhiebas”, que cai sem mácula no coração do sentido. À rima 
		pobre camoniana respondeu Francisco Niebro com a riqueza da sua rima e 
		da sua solução poética e semântica.  5-     
			O 
		Professor Ernesto Rodrigues disserta no seu prefácio sobre a questão do 
		uso de “conselho”/”concelho” em sentido de reunião, assembleia. Os seus 
		argumentos parecem perfeitamente sólidos para o caso do português, já 
		para o mirandês o caso se apresenta bem diferente, já que as duas 
		palavras, homófonas em português, em mirandês se pronunciam sempre de 
		forma diversa: cunseilho – que reporta ao acto de aconselhar e cunceilho 
		– que refere assembleia, reunião e, naturalmente, divisão 
		administrativa. Daqui decorre que independentemente da grafia que se 
		adopte em português, a palavra mirandesa nunca poderá variar.     
			 E 
		poderíamos continuar assim indefinidamente, tal a quantidade de provas a 
		que o tradutor teve de se submeter, sempre ultrapassadas com êxito, ou, 
		no pior dos casos, com danos reduzidos ao mínimo. E se me disserem que o 
		óptimo é inimigo do bom eu digo que neste caso, e para sorte de Camões, 
		da sua obra maior e das línguas mirandesa e portuguesa, o óptimo não foi 
		inimigo de ninguém e, bem pelo contrário, pacificou-se com todas as 
		partes.  Para 
		terminar, e como testemunho da acção de Amadeu Ferreira/Francisco Niebro 
		em prol da sua língua de berço, referir um texto tocante, assinado por 
		Francisco Niebro, com mais de uma década, - não publicado, mas por 
		outros meios conhecido por próximos e falantes do mirandês – intitulado, 
		em tradução portuguesa, “Manifesto por uma Língua Moribunda”, “Manifesto 
		por ua Lhéngua Marimunda”, que é a mais comovente, vibrante e apaixonada 
		declaração de amor de um falante à sua língua que decai, desfalece, 
		fraqueja em seu pulso de sangue. Esse Manifesto, de cerca de duas 
		dezenas de páginas, à uma sereno e desesperado, poético e trágico, 
		visceral e espiritual, é um misto de poema, oração e interpelação. 
		Dirige-se aos seus conterrâneos em particular e aos portugueses em 
		geral, porque património de Portugal é o mirandês, e merece que 
		apresentemos aqui dois pequenos excertos: precisamente a abertura e o 
		seu fecho. Repete-se, traduzidos por nós para português: 
			
			“Deus é como os de Miranda: não fala mirandês. 
			Quando uma língua não 
		serve para rezar. Quando se dizem todos os pecados a Deus, sem medo, e 
		se tem vergonha de rezar em mirandês. Quando é assim, não há língua que 
		se aguente. Parece que Deus, quando andou pelo mundo a aprender línguas, 
		chegou aqui e passou ao lado. Eu acho que o desviaram. É tempo de deus 
		não ter vergonha de falar em mirandês. (…)  
			Vou-me ficando por aqui. 
		Mas ainda vos quero fazer um desafio, a vós, mirandeses que, como eu, 
		aprendestes a falar mirandês enquanto mamáveis, e também a vós que não o 
		chegastes a aprender bem mas ainda estais a tempo, pois só por ele 
		lembrareis vossos avós, e a todos vós que, quer sejais mirandeses ou 
		não, só agora o descobris (…). Olhai por dentro de vós, lá bem no fundo, 
		e respondei, um por um, olhos nos olhos: quereis ser os coveiros da 
		língua que herdastes? Quereis deixar que morra a única coisa que é só 
		vossa e, como nenhuma outra, vos distingue? Se quereis, então é tempo de 
		comprar o esquife e preparar o enterro. Se não quereis, então 
		despachai-vos porque o tempo urge para fazer alguma coisa. 
			Quem leu tudo isto, já 
		está cansado e com razão. Por mim, podia continuar. Com o coração na 
		ponta dos  dedos toda a noite fui escrevendo, sem sono, como quem fica a 
		velar para esconjurar a morte. Lisboa inteira, e arredores, deixa-me a 
		falar sozinho. A terra de Miranda, a 500 KM daqui, cheira-me a vindimas 
		e a sementeiras. 
			                                      Lisboa, uma 
		longa noite de Setembro de 1999 Se 
		algum leitor, especialmente, como eu, natural dessa terra encantada, 
		incomparável entre todas, que é o Planalto Mirandês, perante este 
		excerto, sentir uma lágrima furtiva a lavrar-lhe a face, lamento. Não é 
		nada aliás que não me tenha acontecido.   
		                                                       
		                     Bragança, 1 Agosto de 2010 |