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		Não distingo a realidade do turbilhão confuso de imagens que me rodopia 
		no cérebro. O que é a realidade? Só aquela mesa, aquela cadeira? Será 
		ela o monstro que me ataca a cada momento, ou ele nem sequer existe? Escrevi numa cantiga, «perdido e desterrado,/ que farei? Onde me irei?/ 
		depois de desesperado,/ outra mor mágoa achei.»
		(1). Desterrado sempre fui e como tal continuo. Há quanto tempo regressei de Itália? Não sei. Talvez tenha sido por volta 
		de 1524,  mas as fronteiras do tempo já há muito se me desvaneceram da 
		alma. Talvez venha durante a noite a «Dona do Tempo Antigo» para me 
		envolver no seu manto quente e me desafogar o espírito através de 
		riachos de palavras. A incerteza é uma matilha de lobos enfurecidos, 
		vigiando-me cada segundo. Terei mesmo passeado pelas magníficas ruas ancestrais de Roma com Sá de 
		Miranda, e observado as grandiosas ruínas do Coliseu? Terei sentido na 
		pele esse frémito único de um novo mundo que renascia, qual fénix? De um 
		novo pensamento que rasgara as trevas da Idade Média?  Conseguirei enfim superar-me a mim próprio? Atingir o âmago do oceano da 
		dor? Mergulhá-lo, absorvê-lo, bebê-lo até ao último gole? Virá a 
		esperança, no seu cavalo verde, libertar-me de toda angústia e 
		transportar-me para a planície dourada da paz e do pão? A terra sonhada 
		e sempre inatingível onde pastam os rebanhos, soltando doces melodias de 
		chocalhos... Rasgará a minha alma de branco, como as alvuras de um 
		monte... «De esperança em esperança/ me levou após si/ grande engano ou confiança. 
		/Se me isto tomara outrora/ cuidara de ver-lhe a fim./ Mas que hei-de 
		cuidar já agora/ sem esperança e sem mim? / Dentro do meu pensamento/há 
		tanta contrariedade/ que sento contra o que sento/ vontade e 
		contra-vontade» (2). O monte... sim, esse, ainda o lembrava. Esse tempo anterior ao tempo 
		antigo, em que a minha alma era clara e límpida como o amanhecer, onde 
		tudo tinha o seu lugar, a sua ordem intocável, inalterável.  Menino e moço abandonei a casa dos meus pais na perdida aldeia alentejana 
		do Torrão («Quando as fomes grandes foram,/ que Alentejo foi perdido,/ 
		da aldeia que chamam o Torrão/foi este pastor fogido» - escrevi um dia). 
		Os meus progenitores haviam sido vítimas da conjuração contra D. João II 
		e exilaram-se (o meu pai em Espanha, a minha mãe em Sintra). Mas agora devo vencer-me a mim próprio, tornar-me surdo às vozes 
		incoerentes que me gritam na alma... às vezes com tanta intensidade que 
		penso que os tímpanos rebentarão... Tenho de terminar a novela. «Menina 
		e moça» espera-me antes que venha definitivamente a ave dos poetas com o 
		seu suave e implacável canto de fogo. A triste história de amor dos dois Amigos tem de se revestir de existência 
		e encarnar na pena e no papel... o primeiro convertera-se em Bimnarder 
		que passara de cavaleiro a pastor por se ter enamorado de Aónia... 
		Bimnarder serei eu próprio? Mais um desdobramento do meu conflituoso e 
		multiplicado «eu»? Não o sei. Do mesmo modo, Aónia poderá ser a síntese 
		de todas as mulheres a quem entreguei o meu coração numa bandeja 
		dourada. Dourada! Essa cor recorda-me a Corte, sempre dourada e 
		prateada, de onde fugi... Era rouxinol, não canário de gaiola. Não me 
		adaptava às galanterias do meio palaciano, nem ao falso elogio, nem à 
		adulação dos mais ricos para garantir a digna sobrevivência. A isso 
		acresciam as intrigas de bastidores que derrubavam e erguiam vidas, como 
		caravelas de papel. O amor? Um leque de desencontros, a fonte da saudade e a semente da 
		desgraça! Já vai alta a noite, o luar bate-me à janela com dedos de linho. A luta 
		cada vez se agudiza mais. É o mais sangrento de todos o combate que 
		travamos com o nosso próprio ser. Pior do que todas as batalhas de todos 
		os «cavaleiros da ponte», de todos os guerreiros. Não há espadas que 
		aniquilem o inimigo que nos habita a alma. Como lhe podemos rasgar as 
		veias, se é nas nossas que o seu sangue corre? Quero ainda ouvir a sinfonia mágica dos chocalhos dos rebanhos, quero 
		ainda beber a seiva da nostalgia à beira de um regato sem nome. Quero 
		contemplar-me transcendendo as amarras da dor e do cuidado, perseguindo 
		a esperança qual predador desesperado em busca da vítima que o saciará. Binmarder e Avalor, os dois amigos estão mortos, as amadas suicidam-se, 
		talvez para na eternidade viverem os seus amores sofridos. A mudança é uma serpente alada que tudo devora, possui, regurgita e 
		deteriora... Já vai alta a noite. Os rebanhos dormem o sono dos justos. Vem, rouxinol, 
		vou abrir-te a janela, para que transportes nas tuas asas e na melodia 
		do teu derradeiro canto a minha alma exausta. |