REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

 

     

      Um estrondo ecoa-me na alma. Bernardim ouve vozes. Ou melhor, eu oiço vozes. Espreito pela janela do pequeno quarto. Lá fora ruge uma tremenda tempestade, os ramos nas árvores chicoteiam a vidraça numa dança violenta e incessante. A noite estará quase a descer com os seus passos de veludo negro para envolver a angústia, também ela negra... Virá depois o rouxinol espalhar o seu trinado canto de saudade e morte anunciada?

Encontro-me no norte, em Cabeceiras de Basto, onde dois velhos criados velam por mim. Estive por dias no hospital de Todos os Santos, mas consegui voltar a sair. Dizem que estou louco...

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Maria Estela Guedes  
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DORA GAGO

 

Menino e moço

me levaram...


In A Sul da escrita (Prémio nacional de Conto Manuel da Fonseca), Porto, Ed. Campo das Letras, 2007.

Dora Gago.............

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   

      Não distingo a realidade do turbilhão confuso de imagens que me rodopia no cérebro. O que é a realidade? Só aquela mesa, aquela cadeira? Será ela o monstro que me ataca a cada momento, ou ele nem sequer existe?

Escrevi numa cantiga, «perdido e desterrado,/ que farei? Onde me irei?/ depois de desesperado,/ outra mor mágoa achei.» (1). Desterrado sempre fui e como tal continuo.

Há quanto tempo regressei de Itália? Não sei. Talvez tenha sido por volta de 1524,  mas as fronteiras do tempo já há muito se me desvaneceram da alma. Talvez venha durante a noite a «Dona do Tempo Antigo» para me envolver no seu manto quente e me desafogar o espírito através de riachos de palavras. A incerteza é uma matilha de lobos enfurecidos, vigiando-me cada segundo.

Terei mesmo passeado pelas magníficas ruas ancestrais de Roma com Sá de Miranda, e observado as grandiosas ruínas do Coliseu? Terei sentido na pele esse frémito único de um novo mundo que renascia, qual fénix? De um novo pensamento que rasgara as trevas da Idade Média?

Conseguirei enfim superar-me a mim próprio? Atingir o âmago do oceano da dor? Mergulhá-lo, absorvê-lo, bebê-lo até ao último gole? Virá a esperança, no seu cavalo verde, libertar-me de toda angústia e transportar-me para a planície dourada da paz e do pão? A terra sonhada e sempre inatingível onde pastam os rebanhos, soltando doces melodias de chocalhos... Rasgará a minha alma de branco, como as alvuras de um monte...

«De esperança em esperança/ me levou após si/ grande engano ou confiança. /Se me isto tomara outrora/ cuidara de ver-lhe a fim./ Mas que hei-de cuidar já agora/ sem esperança e sem mim? / Dentro do meu pensamento/há tanta contrariedade/ que sento contra o que sento/ vontade e contra-vontade» (2).

O monte... sim, esse, ainda o lembrava. Esse tempo anterior ao tempo antigo, em que a minha alma era clara e límpida como o amanhecer, onde tudo tinha o seu lugar, a sua ordem intocável, inalterável.

Menino e moço abandonei a casa dos meus pais na perdida aldeia alentejana do Torrão («Quando as fomes grandes foram,/ que Alentejo foi perdido,/ da aldeia que chamam o Torrão/foi este pastor fogido» - escrevi um dia). Os meus progenitores haviam sido vítimas da conjuração contra D. João II e exilaram-se (o meu pai em Espanha, a minha mãe em Sintra).

Mas agora devo vencer-me a mim próprio, tornar-me surdo às vozes incoerentes que me gritam na alma... às vezes com tanta intensidade que penso que os tímpanos rebentarão... Tenho de terminar a novela. «Menina e moça» espera-me antes que venha definitivamente a ave dos poetas com o seu suave e implacável canto de fogo.

A triste história de amor dos dois Amigos tem de se revestir de existência e encarnar na pena e no papel... o primeiro convertera-se em Bimnarder que passara de cavaleiro a pastor por se ter enamorado de Aónia... Bimnarder serei eu próprio? Mais um desdobramento do meu conflituoso e multiplicado «eu»? Não o sei. Do mesmo modo, Aónia poderá ser a síntese de todas as mulheres a quem entreguei o meu coração numa bandeja dourada. Dourada! Essa cor recorda-me a Corte, sempre dourada e prateada, de onde fugi... Era rouxinol, não canário de gaiola. Não me adaptava às galanterias do meio palaciano, nem ao falso elogio, nem à adulação dos mais ricos para garantir a digna sobrevivência. A isso acresciam as intrigas de bastidores que derrubavam e erguiam vidas, como caravelas de papel.

O amor? Um leque de desencontros, a fonte da saudade e a semente da desgraça!

Já vai alta a noite, o luar bate-me à janela com dedos de linho. A luta cada vez se agudiza mais. É o mais sangrento de todos o combate que travamos com o nosso próprio ser. Pior do que todas as batalhas de todos os «cavaleiros da ponte», de todos os guerreiros. Não há espadas que aniquilem o inimigo que nos habita a alma. Como lhe podemos rasgar as veias, se é nas nossas que o seu sangue corre?

Quero ainda ouvir a sinfonia mágica dos chocalhos dos rebanhos, quero ainda beber a seiva da nostalgia à beira de um regato sem nome. Quero contemplar-me transcendendo as amarras da dor e do cuidado, perseguindo a esperança qual predador desesperado em busca da vítima que o saciará.

Binmarder e Avalor, os dois amigos estão mortos, as amadas suicidam-se, talvez para na eternidade viverem os seus amores sofridos.

A mudança é uma serpente alada que tudo devora, possui, regurgita e deteriora...

Já vai alta a noite. Os rebanhos dormem o sono dos justos. Vem, rouxinol, vou abrir-te a janela, para que transportes nas tuas asas e na melodia do teu derradeiro canto a minha alma exausta.

 

 

(1) Bernardim Ribeiro, Obras Completas, vol. II, Lisboa, Sá da Costa, s/d.
(2) Idem.

 

 

Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida  a 20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é Professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as “imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt

 

 

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