O afastamento da cultura tradicional para que o país
se enquadrasse na política internacional, exigia a modernização da nação
em detrimento das promessas da revolução: “Veio a tecnologia / espreitou
/ mas não entrou / tropeçou num buraco / estava escuro / não deu com a
entrada / e continuou na rua ao pé da casa / à espera de luz “ (p. 36).
A ganância dos dirigentes causa revolta na população, antecipando o
clima da guerra: “era preciso não deixar / que a prostituição / guiasse
a nossa constituição / Que a intuição / grávida de mentira /
substituísse / nua e crua / a nossa construção” (p.37-38).
Com frágeis recursos, o país aceita as leis
neoliberais e o poema questiona a entrada na competitividade ocidental:
“à espera de um dia novo / interrogavam-se entre si / como caminhar no
escuro / como dar o que não se tem / como ter o que não se construiu /
como arrecadar o que não se juntou / como juntar o que não se espalhou?”
(p.43).
“A história dos trezentos e trinta e três dias”
denuncia a agonia dos guineenses com o cruel conflito. A chegada voraz
do capital estrangeiro, abandona os valores da revolução: “a tecno e a
sua logia / a demo e a sua cracia / mais casados do que nunca /
obrigaram a outros caminhos / outras gentes surgiram / ... com outras
idéias / com outros ideais / Alguma alegria / reajustes / aberturas /
acordos / muitos dissabores / mal-estar” (p. 62).
O caos estabelecido pela violência dos militares
nacionais e estrangeiros acompanha o horror da poetisa: “venceram a
ganância / a violência / e o desespero / E nós? / não acredito / no que
os meus olhos vêem” (p. 74). O vaticínio se cumpriu; os ideais da
libertação, minados: “Um mundo de promessas / foi deixado para trás” (p.
68). Surge a distopia: “Bissau não quis acreditar / que estava sendo
violada / violentada / adulterada (...) / nua deitou-se de bruços / para
receber chicotadas / para receber açoite” (p. 69-70).
Com a guerra fratricida, o sujeito poético sente-se
isolado, recupera os valores autóctones e clama aos antepassados e
entidades: “Onde estarão os defuntos / da nossa djorson / nossos titãs /
Onde se terão escondidos / asalmas e irans / de Kobiana e de Forombal /
protectores de mulheres e crianças / nossas crenças / Estarão
envergonhados?” (p. 83)
No “Consílio dos Irans”, a convocação das entidades
de todas as etnias e subetnias, seus irans e totens em rituais mostra a
pluralidade cultural guineense. As linhagens anunciam-se: “Irans de
Bissau / de Klikir a Bissau bedju / de N’ala e de Rênu / de Ntula e de
Kuntum / de Ôkuri e de Bandim / de Msurum / Varela e do Alto krim / de
Klelé e de Brá” (p. 87). É feita a kontrada (grande reunião) com irans
(divindades protetoras) de todas as djorsons (linhagens), porque “há
culpados... / que não fiquem mudos / nem impunes” (p. 87). Semedo
recorre à religiosidade tradicional para reconstruir a fragmentada
identidade nacional através da identidade coletiva e salvar a nação da
guerra.
Contudo, as djorsons são hierárquicas. Algumas não
têm direito à palavra ou não foram chamadas, e comparecem por vontade
própria. É a busca metafórica da poetisa em unir o país: “Pertencemos a
este mundo / ao mundo dos irans / protectores de djorsons / djorson de
Guiné / djorson de Bissau / cá estamos pois esta que é vossa / também é
a nossa terra / Não fomos chamados / foi um erro / Se não participarmos
/ será outro erro (...) / pois a mufunesa que abalou Bissau / tocou-nos
também... não escolheu djorson” (p. 93)
Etnias reunidas, inicia-se a abertura dos
“embrulhos”. O primeiro mostra a violência, a fuga dos moradores da
capital e os que se beneficiam com o horror: “Cada exclamação mais
desespero / em cada desesperado um fugitivo / cada fuga um desencontro /
a cada desencontro um desencanto (...) / Na desgraça de uns / muitos se
enalteceram” (p. 117).
O segundo embrulho destaca, com ironia, a
perversidade dos oportunistas que se adaptam aos novos tempos com
personagens inescrupulosos: “Matutino foi crescendo (...) / Manhã
virando tarde / Matutino / Vespertino se tornando / Jurou até a morte /
jamais ficar para trás / mas para trás / passar os outros (...) /
Viviano viveu anos / na prostituição (...) / Anos passaram / Viviano
mudou de nome / de postura e de residência / por conveniência / das
circunstâncias / Hoje Viviano é Presentino / de futuro garantido (...) /
Agora em favor da renovação / conselho do seu avô Prudêncio” (p.
140-143).
O terceiro embrulho mostra o descrédito com os
políticos, revela o cinismo das autoridades no “discurso de Urdumunhu”
(redemoinho) ao disfarçar o atraso tecnológico e as desigualdades
sociais e “incentivar” os valores tradicionais: “Nada de receber ao
final do mês / que é vício colonial (...) / Não vos deixeis levar / por
ideais / neocoloniais (...) / Para quê, luz elétrica? / Saudosismo / do
imperialismo colonial (...) / Voltemos às nossas origens irmãos / Para
quê, importar fósforos? / Mil vezes melhor / atritar duas pedras / e
obter o lume precioso / sem encher o cofre imperialista” (p. 151-153).
Entretanto, o rompimento com a exploração se dá
quando todas as etnias se unem, ou seja, o país se recompõe pela
reconciliação de seus filhos, sem apoio estrangeiro. A força dos
antepassados e das entidades emerge a nação: “Os irans das djorsons
sentiram / Guiné e Bissau uma só / erguendo-se com vigor / reafirmando
sua força (...) / invocaram todas as energias / do alto às profundezas
do mar / e o chão foi abençoado” (p. 159).
Depreendemos após a leitura de “No fundo do canto”,
que, Odete Semedo, testemunha do conflito de 1998/1999, denuncia o
horror da guerra, usa a ironia para desmascarar o discurso da classe
dominante e o mal que o neoliberalismo encoberta. Em seu texto, propõe,
através de alegorias e da desconstrução da realidade do país, a
revalorização da multifacetada cultura guineense em favor da identidade
e soberania nacionais. |