As coisas multiplicam-se
muito mais que as pessoas. Só elas
possuem o segredo de tranquilamente jazer
entre as ervas, as águas, as ruínas
ausentes e presentes. A sua pele
é mais fina que a casca dos minutos
e contudo, sob o lume e o vento
sob a terra em que os passos já não soam
ou no deserto violento das palavras
as coisas repousam
ou, subitamente iluminadas
gritam e falam-nos com movimentos graves
adejando como estranhos pássaros nocturnos
ou como trémulos animais interditos.
As coisas
sofrem
elas sofrem como se existissem noutra esfera
próxima de nós
como uma Lua oculta, como um peixe fantasma
como uma flor solitária numa casa abandonada
como um gato que no sono se agita pleno de medo
As coisas
minúsculas, gigantescas, iguaizinhas a nós
ensanguentadas pelo nosso terror e a nossa cólera
sob as nossas mãos
entre os nossos cabelos
repousando junto a nós quando dormimos
calmas como o ruído dum comboio numa cidade
matutina
As coisas
respirando devagarinho nas nossas memórias
andando junto às nossas recordações como se fossem
um elefante, um rato, um cão fiel
feitas de barro, as coisas
de madeira ou de cera, de vidro ou de cimento
feitas de cristal e de platina, de celulóide
do fresco celofane, de aço e de papel
pobres coisas num rés-do-chão amontoadas
esquecidas como um trapo manchado
livres e belas
nosso testamento, papiro para milénios a vir
As coisas
sempre atentas, sempre dormindo esperando o
despertar
o silencio luminoso
As coisas
nossas irmãs de mundo, nossas filhas, nosso sinal
perfeito
neste universo que é o nosso resumido encontro
com a sua
eternidade acontecida. |