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Mais! Não se importava de o revelar com uma
naturalidade assustadora. Esta leveza e esta falta de pudor chocavam o
jovem músico, mas entrou no jogo. “E eu? Eu seria um burro, ahn? Que te
parece?” “Sim” disse Xavier “Sim, claro, mas isso não é mau, isso pode
ser bom para ti, muito bom mesmo, na tua vida passada deves ter
carregado muitos fardos, porque os burros antigamente, as pessoas
usavam-nos para carregar fardos pesados, e agora estás a colher os
lucros com o teu talento.” O Trombonista envaideceu e assumiu a postura
clássica de um músico de orquestra com colarinho engomado e casaco de
aba de grilo. Todos podiam ver o orgulho que ostentava no peito. Um
orgulho quase arrogante e sem vincos. Por isso fazia-se acompanhar
sempre do seu amigo Trompetista bem mais desleixado do que ele, as
fragilidades expostas na roupa pingada dois números acima do tamanho do
rapaz trémulo escondiam a sua própria timidez. A cantora estava curiosa.
“E eu? O que teria sido eu?” Xavier não hesitou. “Ah! Tu foste uma fada…
não, uma sereia, foste de certeza uma sereia.” E levantou-se para imitar
o movimento que lhe inspirava a voz da rapariga. Um movimento amplo e
suave como a cauda de uma ondina. “Quando te vi o meu coração fez
assim.” Esticou o braço para acender intermitentemente a lâmpada que
pendia sobre o seu assento no autocarro. Estava a demonstrar nesta
metáfora física a alegria que lhe aqueceu as têmporas da primeira vez
que a viu. A rapariga baixou os olhos envergonhada, tolerava mal os
elogios.
As lágrimas inundavam os olhos de Xavier
cada vez que bradava aos ventos com a cabeça do lado de fora da janela
que ia ser pai. Que a sua companheira trazia há cinco meses um menino
que já tinha nome. “É um “pilas”, e vai chamar-se Octávio Amadeu, é que
nós gostamos muito de Mozart. Ah! Mozart…” Ficou de repente absorto em
melodias de um violino que ostentava invisível em suas mãos. Estacou e
mudou de assunto para não se emocionar demais, embora essas tentativas
fossem sempre inúteis. “Eu! Comprei um porco! É mesmo verdade, comprei
um porco. És vegetariana?” A cantora disse que não com a cabeça. Ele
repetiu a pergunta a todos os que se encontravam presentes sem dar
espaço a respostas, assumindo que ninguém se privava dos prazeres da
carne. “ Vos convido a todos, em Novembro, a comer o meu porco. É mesmo,
estão todos convidados!” Ele tinha mesmo comprado um porco por 30 euros
que estava agora a engordar no curral de um vizinho, não o queria muito
perto, nem lhe podia pôr um nome, caso contrário nasceriam laços
afectivos entre os dois e já não teria coragem de o matar para oferecer
o tal banquete. “Ei! Porque não compras também um burro?” Troçou o
Saxofonista que até agora se tinha mantido calado, mas de ouvidos bem
atentos. “Agora até já oferecem um subsídio a quem tiver um burro,
parece que estão em vias de extinção”. E soltou uma gargalhada grave de
saxofone barítono. “Oh! Sim, sim! Eu queria, mas a minha companheira não
gostou da ideia. Pronto, eu fiz-lhe a vontade, primeiro o filho e depois
o burro. Um burro e um pato, vão ser amigos inseparáveis, já estou a
ver… vai ser lindo… O burro a pastar, o pato a patinhar e o Octávio
Amadeu a gatinhar no meio dos dois.” Todos riam descontroladamente, e
não era só do vinho que temperara um jantar bem regado e bem brindado,
Xavier era realmente divertido enquanto não se contrapunha a intuição de
uma tristeza proporcionalmente directa a toda esta euforia. Mas ninguém
estava para ali virado. Enfim… talvez não existisse essa tristeza,
talvez houvesse pessoas assim, tão simples quão alegres e generosas.
Talvez o tal bloqueio fosse, na verdade, a sua salvação. Um filtro à
fealdade do mundo. Para ele tudo eram flores e cores, e os malmequeres
não faziam parte do seu jardim. Parecia que a toda a hora estava
alucinado, cada minuto era para ele uma dádiva de Deus e retribuía as
graças dos céus com um sorriso inimaginável e de semblante liso,
desprovido de qualquer peso que lhe curvasse as costas. “És muito
poético, tudo isso é muito poético.” Atreveu-se a cantora. Xavier
respondeu-lhe com aquele gesto de beijo repenicado com os dedos unidos e
esticados que fazem os italianos, assim que se lhes dá o cheiro de uma
pizza suculenta. Ela interpretou este gesto como um agradecimento
desmesurado, mas já se estava a habituar, tudo naquela criatura estava
fora de qualquer medida convencional. Estas palavras surtiram efeito, o
Trombonista que mantinha uma atenção aguda na conversa enterneceu-se com
a rapariga, admirava a sua coragem de dizer o que lhe vai na alma. Ele,
que achava que os seus vinte e oito anos de vida lhe tinham dado
experiência suficiente para analisar sem erro qualquer situação nova,
começou a vacilar. Era sem duvida um músico talentoso e de um
profissionalismo inegável, mas na vida e no amor era uma criança ainda,
começava agora a dar os primeiros passos. Quando a viu convenceu-se que
se tratava de mais uma criatura que vomita a beleza e futilidade, que
lhe provoca náuseas. Mas nestas palavras e na expressão que se
encorajava, a medo, a ver, sentia algo bastante mais profundo – um ser
humano. Está baralhado, e não gosta nada de se sentir assim, de pôr à
prova as suas premissas irrefutáveis, mas não tem hipótese, o ambiente
que se respira dentro do autocarro tem tanto de cómico como de
autêntico… em consonância com os seus mais secretos desejos, que ele
próprio mantém bem escondidos em folhas de pautas e em código de música.
Esta espécie dentro da fauna dos músicos não era a mais rara, homens
transformados pelo seu instrumento substituem as emoções pelo estudo, e
o amor pelo reconhecimento público. Assim, sem atilhos que o prendam, a
vida torna-se mais fácil e mutável. Ela não… era tão transparente, não
sabia ser de outra forma, o mundo não tem qualquer sentido se não for
vivido e sentido às claras, sem subterfúgios. A esta altura já se tinha
deparado com as desvantagens de nadar de costas nos lagos da vida, não
se está espera, quando findam, não dá para nos protegermos, mas, em todo
o caminho, sabe-se a cor do céu. Assim o seu estilo não é ingenuidade, é
um caminho consciente e uma busca que não acaba enquanto o coração não
parar de bater. É uma questão de perspectiva, e de escolha também, não
se pode julgar alguém por ser aéreo ou da mesma forma alguém que receia
o embate e põe as mãos sobre a cabeça.
O autocarro comia depressa os
quilómetros de estrada, os passageiros sentiam a leve náusea da
deslocação acelerada. Em breve a escuridão da noite acabaria por apagar
também as memórias desta viagem, mas as sensações ficarão retidas à flor
da pele num suor estagnado. |
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Maria Morbey
Henriques
(Lisboa, 1975).
Possui
formação académica em Psicologia Clínica e Mestrado em Psicossomática,
com a classificação final de 19 valores. Em 2006 é convidada como
comunicadora no colóquio interdisciplinar de Psicossomática no ISPA sob
o tema “Corpo e Corporalidade na Arte”. Desenvolve uma reflexão sobre a
correspondência o Modelo Multidimensional de Sami-Ali e a Música ou a
procura do som do instrumento e o papel da voz enquanto manifestação
orgânica e psíquica como manutenção de saúde através da Arte.
Em canto teve formação com Luísa Bastos, Bárbara Lagido
(técnica vocal) e Paula Oliveira (vertente de jazz e técnica vocal –
alexander’s technique). Em 2003 frequenta o 1º ano do curso geral de
Jazz (piano e formação musical) na JBJazz.
Como
vocalista trabalha em formações de Jazz e Bossa Nova acompanhada por
músicos como: Guto Lucena, Xico Zé Henriques, Zé Soares, Massimo Cavali,
Yuri Daniel, Paulo Rosa, Emílio Robalo, Carlos Miguel, Múcio Sá, Carlos
Barretto e João Lencastre entre outros. Desenvolve o Projecto “Andança”
com direcção musical e arranjos de Gustavo Aquino e Yuri Daniel, com a
participação do Violoncelista Andrzej Michalczyk e do Pianista Emílo
Robalo, tratando-se de um objecto criativo com efeitos sonoplásticos
electrónicos num contexto acústico, e poesia (da sua autoria). Em
educação pela Arte tem formação com Madalena Wallenstein. Em Dezembro de
2009 inicia um projecto com o CCB criando um Atelier “Clube de Jazz para
Miúdos e Graúdos” na Fábrica das Artes – Serviço Cultural e Educativo do
CCB sob a nova direcção de Madalena Wallenstein. Este projecto é também
apresentado no Festival de Jazz itenerante (Jazz.pt) e no festival de
jazz de Portimão; tendo continuidade em Julho numa segunda edição no CCB.
A partir desta experiência no CCB foi convidada a tornar-se artista
colaboradora da casa desenvolvendo projectos artísticos para a
comunidade. Desenvolve sob encomenda do Teatro Tempo de Portimão um
Atelier “No País dos carrocéis” (Música e Movimento). Tem, desde o ano
de 2009, colaborado com a Fundação do Gil (Hora da música em hospitais
em todo o país), levando experiências musicais interactivas num contexto
hospitalar. Foi directora artística de um projecto encomendado pelo CCB:
um concerto encenado (Banjazz, um “Bichinho Esquisito) na área do Jazz
com temas originais, vocacionado para público a partir dos 6 anos, que
teve lugar entre 24 de Fevereiro e 28 de Fevereiro de 2010.
Presentemente integra um Trio numa performance cujo fio condutor são o
Jazz e imagens emocionais com textos em prosa poética (da sua autoria)
num espectáculo intitulado “Lua à janela” com Zé Soares e Carlos
Barretto. |