REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

 

 

JOSÉ LUÍS

HOPFFER C. ALMADA

 

 

Alguns apontamentos a propósito de recentes polémicas sobre a identidade literária caboverdiana

 

                                                                   José Luís Almada

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Advertência: o presente artigo constitui uma versão revista e aumentada do texto da intervenção do autor no acto de lançamento do CD de poemas de Arménio Vieira, realizado no Palácio Foz de Lisboa, a 2 de Maio de 2010, Dia de Cabo Verde, por ocasião da Semana Cultural da CPLP.

Excertos do presente artigo, designadamente as suas partes inicial e final, serviram como texto de base para a alocução proferida pelo autor no passado dia 1 de Julho do corrente ano no Auditório Agostinho da Silva da Universidade Lusófona de Humanidasdes e Tecnologias no quadro da Mesa-Redonda comemorativa do 35º aniversário da independência nacional organizado pelo respectivo Núcleo de Estudantes Cabo-Verdianos.

 O presente texto e os textos das intervenções, acima referidos, constituem, por sua vez, versões abreviadas de um mais longo e precedente ensaio, por ora parcialmente inédito.

 

 

 “O poeta é um fingidor/ um pedreiro muito lido, /calceteiro dolorido/
cujas pedras são pedaços/que ele arranca dos penhascos/de uma alma
nua e sua/ e da alma de outros poetas//
Um poeta e o seu canto:/Harpa eólia, sons de louco/O vento sopra,
sopra, sopra/o vento é brisa e é vendaval/O vento aquece e arrefece
//POESIA-pássaro livre, quase verde/que os poetas alimentam com
mãos de afago/e tenros, ternos grãos/sejas tu-cantor solitário nas
horas sem canção/sejas tu-na minha morte/ (mão de amor e
serenidade/dedos de mãe e de amada)/-sejas tu a cerrar-me os olhos”
Ser Poeta
Arménio Vieira, in Poemas

 

  1. Notas preliminares
 

À semelhança do que tem ocorrido com vários protagonistas de outras literaturas africanas de língua portuguesa, alguns poetas e outros escritores caboverdianos contemporâneos vêm sendo intensamente interpelados e, até, causticados por alguns críticos mais ciosos de preocupações teluricistas bem como por outros auto-investidos guardiães de uma certa “monocultura identitária” (para usar uma expressão cunhada pelo poeta caboverdiano José Luís Tavares aquando da recepção, em 2003, do prémio Mário António da Fundação Gulbenkian pela obra Paraíso Apagado por um Trovão).

Essa tarefa de crítica literária (ousaríamos dizer, de quase “vigilância identitária”) tem sido levada a cabo com tanto mais afinco quanto os seus promotores vêm ajuizando que a “monocultura identitária”, acima referida, consubstanciaria, e da forma mais cabal, uma imaginada ou real autenticidade literária caboverdiana, devendo ser, por isso, tratada como património e causa intocáveis e devidamente preservada de malfazejos desvios, contaminações e outras conspurcações estéticas, estético-ideológicas e temáticas.

É neste contexto que os poetas e escritores caboverdianos mais avessos (ou tão-somente indiferentes, ou temporáriamente indiferentes) à “monocultura identitária”, em parte ou na totalidade da sua obra, têm sido amiúde acusados de inautenticidade e apatridia literárias, bem como de sabida ancoragem num universalismo supostamente desenraizado, os quais, por seu lado, são percepcionados como epifenómenos de uma espécie de novo evasionismo na literatura caboverdiana.

Diferentemente do antigo evasionismo claridoso e da sua alegada postura resignativa e escapista em face das prementes necessidades e carências do povo caboverdiano (também ele, aliás, tematicamente problematizado pelos fundadores do nosso modernismo literário e por eles tornado sujeito principal dos enredos literários, mesmo se então completamente à mercê da natureza madrasta e das seculares políticas de abandono colonial), o novo evasionismo teria como característica diferenciadora e distintiva a fuga pura e simples ao tratamento de temáticas tipicamente caboverdianas e o enveredamento pela revisitação jubilatória, (des)sacralizante, ou mesmo sarcástica, de mitos e ícones da cultura europeia ocidental, nela inserindo as margens mais proeminentes das suas periferias passadas e presentes, reais ou imaginadas.

Tratar-se-ia, assim, de um evasionismo de cariz predominantemente temático, isto é, de uma escrita na qual Cabo Verde e as suas gentes, nas ilhas e diásporas, primariam pela ausência.

Essa ausência temática é considerada assaz grave pois que, para além de alegadamente representar um inadmissível desvio aos cânones estéticos da “monocultura identitária” e às exigências mais essencialistas do “nacionalismo literário”, ela estaria sendo exibida e muito ostensivamente reafirmada pelos seus cultores como prova de superação de um suposto provincianismo literário corporizado pelo telurismo de cariz temático e estético-ideológico.

Acresce ainda que esse suposto provincianismo literário estaria sendo catalogado como por demais pernicioso porque especialmente propiciador de restritivos condicionamentos identitários, sendo, por isso, firme, sobranceira e, a seu modo, muito sectariamente condenado pelos opositores confessos da “monocultura identitária” e do “nacionalismo literário” e do seu também estigmatizado núcleo essencial, o telurismo literário.

Ademais, e conexa com a alegada sobranceria de teor sectário, acima mencionada, a fuga ao telurismo literário (e, deste modo, à mais visível e consumível substância da “monocultura identitária” e do “nacionalismo literário”) estaria também sendo ilegitimamente incensada pelos actuais cultores da chamada “arte pela arte” como sinal do triunfo de um conseguimento estético alegada e exclusivamente fundado no mérito estético-formal da lapidação da palavra, supostamente livre das cangas político-territoriais do nacionalismo identitário e das suas marcas eventualmente etnicizantes e, por isso, digno do universalismo literário que, do mais fundo da sua busca e da sua pretensão de reconhecimento pelos grandes centros metropolitanos do poder e do saber eruditos, de fisionomia e substância eurocêntricas, almejariam todos os poetas e escritores autênticos, mormente em se tratando de ex-colonizados.

À guisa de conclusão, deixa-se (sub)entender que, nos seus traços gerais e ainda que localizado num tempo histórico diametralmente diferente porque vincadamente marcado pela pós-colonialidade, o chamado novo evasionismo se aparentaria àqueloutro alegadamente praticado pelos literatos pré-claridosos, especialmente na sua poesia lusógrafa. Relembre-se nesta circunstância que, até muito recentemente, a mesma poesia lusógrafa pré-claridosa foi sistematicamente acossada e virulentamente acusada de défice de caboverdianidade literária bem como de excessivo e serôdio mimetismo em relação a modelos temáticos e estético-formais metropolitanos historicamente superados, ou, ainda pior, de obsessiva e quase doentia e exibicionista recorrência a temas e signos característicos da antiguidade clássica greco-latina e da cultura ocidental, em geral.

É neste contexto de acesos e profícuos debates (em meras tertúlias ou no quadro de publicações jornalistícas, literárias ou académicas) que têm sido igualmente desferidos ferozes ataques de parte a parte das trincheiras literárias, devidamente coadjuvados pelos “altos comandos” das análises, tanto as mais impressionistas como as de feição académica, aliás, em livre, desassombrado e, por vezes, quase desembaraçado exercício do direito de crítica e de opinião e da expressão das legítimas razões que as possam eventualmente fundamentar (incluindo as atinentes ao gosto e aqueloutras alicerçadas num saber mais academicamente sustentado).

Razões legítimas que, todavia, não nos podem, a nós, amantes confessos da civilização do universal, inabaláveis defensores do pluralismo estético e cultores convictos tanto do telurismo identitário como também dos vários outros rostos das modernas correntes e estirpes poéticas caboverdianas e não só, levar a ignorar que, do processo de completo enraizamento literário da caboverdianidade e da correlativa afirmação de uma identidade literária islenha plenamente autónoma, resultaram dois fenómenos de grande relevância histórico-literária:

a) por um lado, a vituperação quase unânime e por modos diversos, em especial pela rasura, por tempo demasiado, da memória nossa das ilhas e da historiografia das literaturas africanas de língua portuguesa dos chamados escritores pré-claridosos, nativistas e hesperitanos;

b)  por outro lado, a ostracização da escrita de quaisquer poetas e escritores caboverdianos modernos que, supervenientes, intentassem desviar-se dos cânones claridoso, neo-claridoso e nova-largadista, entretanto tornados quase exclusivos na sua auto-percepção de únicos e legítimos rostos-estafetas da caboverdianidade literária, e se atrevessem, sobretudo se motivados em pretensas ou reais veleidades metafísicas, existencialistas  ou cosmopolitas, a fugir ao teluricismo atávico dominante, nos tempos de outrora como nos tempos de agora.

É este o lado mais controverso e menos positivo de alguma recepção crítica e de outras leituras da literatura caboverdiana passada e contemporânea. Lado mais controverso e menos positivo dessa recepção, crítica e não só, em razão sobretudo da sua natureza por demais excessiva na sua exclusivista valorização do telurismo, quer o de teor identitário de feição claridosa, quer o de rebelde e combativa interpelação e “irritada postulação da fraternidade”, no dizer de Aimé Césaire, retomado por Mário Fonseca no pósfacio do seu livro Se a Luz é para Todos.

Infelizmente e a despeito do carácter diversificado da obra que vem sendo construída por muitos poetas caboverdianos contemporâneos, alguns críticos persistem, aliás, de forma nem sempre coerente, no mesmo arreigado e exclusivista apego ao telurismo e, quiçá por razões muitas vezes de origem extra-literária, continuam a saga das tentativas de marginalização e de exclusão de todas as outras correntes estéticas cultivadas por escritores caboverdianos e africanos em geral, com destaque para as de teor metafísico e de indagação existencial.

 

  2. Um caso já antigo de ostracização literária - A experiência universalizante de João Vário
2.1. Um processo meditado, complementar e polémico 
 

Um caso exemplar, flagrante, paradigmático e tornado célebre da acima referida ostracização literária foi o ocorrido com João Vário (um dos nomes literários de João Manuel Varela).

João Vário foi o primeiro poeta moderno caboverdiano a reencetar a experiência poética de pendor universalizante com Horas Sem Carne, livro marcante da sua estreia poética, publicado em 1958/59 e repudiado, pouco tempo depois, pelo autor, por alegadamente resultar da "má factura de um poeta neófito".

A despeito da sua retirada do mercado, excertos e poemas do mesmo livro foram integrados (à revelia do autor, depreende-se) em antologias marcantes como Modernos Poetas Cabo-Verdianos (Edições Henriquinas, Imprensa Nacional, Praia, 1962), de Jaime de Figueiredo, ou No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira. A atestar a valoração estética positiva dessa poesia por parte desses antologizadores, mesmo se, por vezes, considerada "desfasada" de uma realidade estritamente caboverdiana, tenham-se em conta as seguintes palavras de Jaime de Figueiredo:"João Vário nos primeiros passos ainda da realização poética, surge revestido de forte armadura de conceitos de ordem metafísica, e entre bela construção de palavras, e imagens, debate-se em íntimas contradições, cuja problemática profunda não se desprende de válido conteúdo existencial" (Prefácio a Modernos Poetas Cabo-Verdianos).

Seguem-se os vários Exemplos, dados a lume, desde os princípios dos anos 60, primeiramente em forma de excertos na revista coimbrã Êxodo e depois em livro, num total, até agora, de nove dos doze anunciados pelo seu autor, falecido em Julho de 2007, e datando o primeiro livro, o Exemplo Geral, de 1966.

Trata-se de um conjunto de longos poemas narrativos, de interpretação ontológica, para usar a terminologia ensaística de T. T. Tiofe, organizados em "Cantos", abertos e fechados por uma "Ode". Dois dos Exemplos (Exemple Restreint e Exemple irreversible) foram escritos em francês, tendo o autor anunciado a ultimação de dois volumes em inglês (European Example e American Example).

Assinale-se que a poesia de João Vário representa somente uma das faces (quiçá a mais complexa porque nutrindo-se de fontes, temas, motivos, discursos e saberes de mais difícil descodificação) do rosto poético de João Manuel Varela, sendo as outras aquelas que se encontram representadas na poesia épico-telúrica de temática caboverdiana de O Primeiro e O Segundo Livro de Notcha, de T. T. Tiofe, e em Sturiadas, de G. T. Didial, livro inédito anunciado pelo autor como sendo um poema épico incidente sobre a história de África e as independências africanas. Excertos de Sturiadas foram publicados, já depois do falecimento de João Manuel Varela, em Destino di Bai-Antologia de Poesia Inédita Cabo-Verdiana, organizada pelo jornalista português Francisco Fontes e que reúne, no mesmo volume, textos poéticos tanto de alguns dos maiores poetas consagrados caboverdianos como de muitos (e, bastas vezes, incipientes) principiantes nas lides da poesia. Sublinhe-se ainda que a poesia constante de Sturiadas é atribuída a G. T. Didial, nome literário que, como referido anteriormente, também subscreve a obra ficcional e alguns textos ensaísticos de João Manuel Varela.

Como acima aludido, a experiência poética universalizante valeu ao poeta João Vário a ostracização por parte da generalidade dos literatos e ensaístas nacionalistas e teluricistas caboverdianos da sua geração e da geração seguinte.

Essa ostracização que começou por assumir a forma de ostensiva ignorância dos Exemplos que Vário ia entretanto dando à estampa em edição de autor e em limitadíssimas tiragens, distribuídas de forma artesanal a um restrito grupo de amigos, amantes das letras e outros eleitos, resvalou para a marginalização crítica e a estigmatização politico-ideológica (como ilustrado no caso do muito abrangente primeiro volume da antologia No Reino de Caliban, dedicado de forma esmagadora à poesia de Cabo Verde) para atingir foros de ostensiva hostilidade no imediato pós-independência. A hostilização estético-ideológica tornou-se quase epidérmica e de carácter pessoalizado quando Vário, numa conferência realizada na Cidade da Praia, nos idos de de 1975 (ou 1976) considerou largamente medíocre a poesia modernista (ou versilibrista) produzida até então em Cabo Verde, mormente aquela produzida pelas gerações nacionalistas, tendo contudo o cuidado de, curiosamente, ressalvar e ressaltar grande parte da poesia de Jorge Barbosa, mesmo se também alcandorando a sua própria poesia (e dos outros heterónimos de João Manuel Varela) aos píncaros da constelação poética caboverdiana.

A acima referida hostilidade chegou às polémicas páginas da secção cultural do recentemente fundado semanário único e oficioso Voz di Povo, passando depois pelas páginas da revista África – Literatura, Arte e Cultura (ALAC), fundada e dirigida por Manuel Ferreira. É nesta última revista que é perpretado o maior ataque à poesia de João Vário pela pena do professor universitário norte-americano Russel Hamilton, à semelhança, aliás, do que havia ocorrido no livro Voices of an Empire-The Afro-Portuguese Literature (Literatura Africana. Literatura Necessária, na tradução portuguesa) do mesmo académico.

Ataques esses a que, segundo explica o próprio João Manuel Varela pela pluma de um dos seus heterónimos, Vário foi impedido de responder devido ao fechamento das páginas da revista África (e, depois de devidamente solicitada, da revista Ponto &Vírgula) à publicação do texto de resposta e desagravo que, muitos anos mais tarde, integraria a edição de O Primeiro e O Segundo Livros de Noticia, com o título Oitava Epístola ao meu Irmão António –Dos Desacertos da Crítica, assinado por T. T. Tiofe.

Nesse texto, João Manuel Varela ajusta, pela interposta pessoa do seu heterónimo T. T. Tiofe, as suas velhas contas com a crítica académica, com destaque para aquela representada pelos universitários Russel Hamilton e David Brookshaw, bem assim com os críticos impressionistas da geração dele contemporânea que, amiúde, tinham apodado o seu heterónimo João Vário de poeta desenraizado, por isso muito merecedor de definitiva irradiação da literatura caboverdiana.

Assinale-se que, à primeira vista, João Manuel Varela pareceu compreender e, até, aceitar as alegações de desenraízamento veiculadas contra a poesia de João Vário pelos poetas nacionalistas e teluricistas dele contemporâneos, quando, na introdução da primeira edição de O Primeiro Livro de Notcha, escreveu, pela pena de T. T. Tiofe, que até então tinha dado a público, sob o pseudónimo de João Vário, "uma poesia que nada tinha a ver com os problemas específicos de Cabo Verde". Sublinhe-se a aparente concordância com as considerações de Manuel Ferreira nas considerações relativas aos “Poetas das sete partidas”, secção da antologia No Reino de Caliban na qual integrou excertos da poesia de JoãoVário, retirados dos livros Horas sem Carne, Exemplo Geral e Exemplo Relativo (de 1968)”:”(…) depois de discretos vestígios insulares, que se apreendem no seu primeiro livro, Horas sem Carne, e a que terminou por renunciar, abertamente perfilhando uma atitude poética de desenraizamento caboverdiano, partidário da poesia pura”.

Na verdade, T. T. Tiofe repudiou veementemente essas críticas, sobretudo quando se pretendeu tornar a sua eventual pertinência extensiva à poesia do Primeiro Livro de Notcha. A essas críticas respondera, aliás, T. T. Tiofe iniciando, em 1961, a escrita da obra que a sua geração alegadamente dele aguardava, e que viria a ser entregue para publicação a uma editora caboverdiana logo depois do 25 de Abril de 1974, tendo vindo a lume em 1975.

Sublinhe-se, pois, que a escrita de O Primeiro Livro de Notcha foi iniciada pouco depois de João Vário ter encetado a elaboração dos Exemplos. A escrita das duas obras complementares iniciou-se, assim, quase simultaneamente no dealbar dos anos sessenta, como explica o próprio T.T. Tiofe no prefácio a O Primeiro Livro de Notcha, e reitera em algumas das Epístolas ao meu irmão António.

Quanto ao epíteto negro greco-latino utilizado na fala chã e telúrica de Bia d’Ideal, reprodutora da erudição de Corsa d' David (um quase pseudónimo de Corsino Fortes para a poesia escrita em crioulo), no poema "Carta d' Bia d'Ideal" do livro Pão e Fonema), cremos ser possível constatar nela uma irónica censura a Junzin (nome que integra um outro heterónimo (G. T. Didial) de João Manuel Varela para a área da prosa de ficção e ensaística), agora chamado João Vário ou T. Thio Tiofe, por parte da mãe Bia, pelo seu alegado distanciamento das coisas caboverdianas e da “água da nossa secura”.

Concomitantemente e na sequência seguinte do mesmo poema, a voz erudita e lusógrafa do poeta Corsino Fortes detecta a permanência das fontes e das ressonâncias islenhas na poesia tanto de T. T. Tiofe como de João Vário:”Junzin! Até na boca de Solvente/bô nome agora ê Vário ô T. Thio Tiofe/ E Corsa de David dzê/ C’ma bô ê um negro negro greco-latino/Ma! Dvera dvera/ As ondas/ já trepam/ os degraus do teu poema/ E quebram no violão da ilha/ Tectos da Europa/ sob as nossas cabeças”.

Reconhecendo que Vário foi "vítima inicial de uma injusta e generalizada acusação de desenraizamento", explica Arnaldo França tal atitude "por os condicionalismos epocais marginalizarem qualquer não comprometimento evidente à autonomia nacional" (“Evolução da literatura cabo-verdiana”, in Descoberta das ilhas de Cabo Verde (edição bilingue português/francês), Editions Karthala, Paris, 1998).

Ressalve-se todavia que são por demais conhecidos os pergaminhos nacionalistas de João Manuel Varela, durante muito tempo exilado na Bélgica em razão da sua oposição ao colonial-fascismo, tendo sido o “Discurso V” (publicado em 1972 na revista Nôs Vida, de Roterdam, e, depois de revisto, integrado na segunda edição de O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe) o primeiro poema de um vate caboverdiano a abordar em estilo épico a saga libertadora da luta armada dos movimentos africanos de libertação nacional contra a dominação colonial portuguesa, em particular, a do PAIGC conduzida por Amílcar Cabral.

Ultrapassados os constrangimentos epocais referidos por Arnaldo França, já na década de oitenta do século passado, podia Oswaldo Osório homenagear o poeta João Vário num dos poemas do livro Clar (a) idade assombrada: “ó vár…/ varão ilustre que cavalgas o dorso do mundo/ nosso epos após ti!”.

Anote-se que, a despeito da hostilização e da ostracização a que acima se fez referência em contaponto, aliás, às encomiásticas palavras de Jaime de Figueiredo de incentivo ao jovem poeta revelado em Horas sem Carne, a poesia de João Vário merecera o reconhecimento de intelectuais e críticos como Jorge de Sena, João Gaspar Simões e António Ramos Rosa, tendo-o este último incluído nas suas Líricas Portuguesas. Deste modo, Vário seria dos raríssimos caboverdianos a integrar As Líricas Portuguesas, para além de Jorge Barbosa e do luso-caboverdiano António Pedro Costa.

Em 1998, João Manuel Varela regressa definitamente a Cabo Verde, onde viria a falecer em Julho de 20007.

Na sequência desse regresso definitivo e da sua instalação na sua cidade natal do Mindelo, viria a exercer as funções de professor universitário, fundaria a Academia de Culturas Comparadas, dotando-a de uma revista de investigação, a Anais, daria à estampa o seu mais novo Exemplo , o nono, intitulado Exemplo Coevo e o segundo volume dos Contos da Macaronésia, e, finalmente, criaria uma editora, A Pequena Tiragem, que viria a encarregar-se de reunir e dar à estampa em volumes únicos os nove livros de Vário anteriormente publicados (os célebres Exemplos) e dois dos três anunciados Livros de Notcha, de T. T. Tiofe.

Sublinhe-se que, até então, a obra poética de João Vário, tinha sido quase inacessível ao público caboverdiano e, em especial, às novas gerações caboverdianas.

A obra literária assinada pelos restantes nomes literários de João Manuel Varela, designadamente O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe bem como o romance O Estado Impenitente da Fragilidade e o primeiro volume dos Contos da Macaronésia, de G. T. Didial tinham sido anteriormente editados em Cabo Verde, o de poesia em 1975 pela Gráfica do Mindelo, e os de prosa de ficção a partir de 1986 pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro. Na altura da sua edição tiveram amplíssimas repercussões na configuração das novas correntes estéticas abraçadas pelas novas gerações literárias.

Na sequência da edição das obras assinadas pelos seus diferentes heterónimos, especialmente da obra reunida de João Vário, João Manuel Varela, que já gozava de grande prestígio intelectual em razão do seu labor científico como neuro-cientista e das suas descobertas nesse campo, viria, agora por via dos seus vários heterónimos, a granjear, com absoluto merecimento, amplo reconhecimento público da intelectualidade literária caboverdiana, em especial das novas gerações de poetas e ficcionistas.

O literato polifacetado passou assim a ser quase unanimemente apontado como o mais provável vencedor do Prémio Camões, quando finalmente chegasse a vez de Cabo Verde, malograda que fora a postulação pública a favor de Manuel Lopes, entretanto falecido, e ignorados que tinham sido os escritores Gabriel Mariano e Teixeira de Sousa, também eles na altura importantes ícones da literatura caboverdiana e agora na memória colectiva do povo das ilhas e das suas letras.

Tanto mais que a obra literária de João Manuel Varela apresentava-se esmagadora na sua dupla faceta poética dos Exemplos, de João Vário, e de O Primeiro e O Segundo Livros de Notcha, de T. T. Tiofe, e na sua inovadora vertente ficcional com Os Contos da Macaronésia e o romance O Estado Impenitente da Fragilidade, de G. T. Didial.

 

  2.2. A cultura ocidental como arma miraculosa
 

João Vário perfila-se pois não só como a mais célebre vítima e o mais conhecido alvo das diatribes dos guardiães da “monocultura identitária”, como também aquele, que intelectual apetrechadíssimo, não deixou os seus créditos em mãos alheias e, pela pena impiedosa de T. T. Tiofe, respondeu à letra ao que ele próprio designou por “desacertos da crítica” de alguns escribas paternalistas numas das suas doravante famosas “Epístolas ao meu irmão António” designadamente na “Oitava Epístola ao meu irmão António - Dos Desacertos da Crítica” ( in O Primeiro Livro de Notcha e O Segundo Livro de Notcha, Edições Pequena Tiragem, Mindelo, 2001).

Problemáticas várias e de inegável interesse foram abordados nesses verdadeiros ensaios, nesses autênticos e hermenêutica literária e de exegese e enquadramento histórico-literário da obra de lavra própria e da lavra de outros poetas, caboverdianos e não só, e que o autor (o heterónimo T. T. Tiofe), talvez pretendendo remeter e aludir às epístolas bíblicas como, aliás, é recorrente na sua obra, denominou de epístolas.

É assim que, referindo-se à universalização (tanto no sentido da assimilação crítica das técnicas incorporadas na grande poesia do mundo, como no sentido de des-telurização na temática, nos motivos e/ou na linguagem), proposta e praticada pelos mais conhecidos heterónimos poéticos de João Manuel Varela, bem como por uma franja significativa de poetas caboverdianos contemporâneos, diz T. T. Tiofe numa dessas epístolas ao seu irmão António Neves ("Segunda Epístola ao meu irmão António - A propósito de Pão e Fonema, de Corsino Fortes", in O Primeiro Livro de Notcha e O Segundo Livro de Notcha, Edições Pequena Tiragem, Mindelo, 2001)):"sirvo-me da cultura ocidental como duma arma miraculosa, como dizia Césaire, para elaborar a partir de coisas nossas, de raízes específicas, uma poesia de interpretação ontológica ou uma poesia cabo-verdiana de vigor novo. E para ter uma consciência aguda deste mundo ou deste século. Admito, como Senghor, que tudo é mais fecundo adentro duma tal mestiçagem cultural".

Dissecando especificamente a poesia do heterónimo que se ocupa da poesia ontológico-metafísica, sublinha o autor na “Oitava Epístola ao meu irmão António - Dos Desacertos da Crítica” (in obra supra-citada): "O esforço de Vário, quando escreve, consiste em ter presente, tanto quanto possível, no seu espírito ou na sua arte poética, toda a tradição (ou as técnicas significativas) da poesia universal".

Num outro momento da mesma epístola e prosseguindo na análise da poesia de João Vário, escreve T. T. Tiofe: "Essa poesia ontológica surpreendeu muitos compatriotas ou não foi, simplesmente, aceite (…) embora como frisei algures (cfr. entrevista a Filipe Correia de Sá, Voz di Povo, 1992) espante que num país, como o nosso, com um passado de mortes, pela fome, pela doença, uma história de múltiplas carências várias, tal como o próprio continente, não tenha visto de imediato que isso levava, naturalmente, a reflectir sobre a vida, o destino, a mortalidade, numa palavra, sobre a condição humana, que tudo isso levaria a seu tempo a uma criação literária de índole ontológica, que poderia dar a impressão de nada ter a ver com o arquipélago, mas que, no entanto, estaria a ela ligado por essa reflexão assim suscitada. Uma problemática que provocaria, algum dia, o aparecimento dum poeta, duma poesia dessa natureza no seu seio. Tive a má ou a boa sina, enquanto João Vário, de ser o primeiro desse tipo de poeta, de forma mais manifesta, porque já tenho dito que tal também é o caso da poesia de Osvaldo Alcântara (…)".

Numa entrevista, estruturada em forma de ensaio, concedida a Danny Spínola ("Uma Entrevista Possível", in Evocações, IBNL, 2002) debruça-se João Vário especificamente sobre a questão da linguagem na poesia constante de Exemplos:"Para a longa poesia narrativa, tal a minha, como geralmente para outras formas de criação de certa extensão, as dificuldades surgem no essencial ao nível da articulação, da textura, que deve criar variação e diversidade para evitar a monotonia, ou a linearidade narrativas, que podem desbotar ou sufocar o texto; os ingredientes usuais do verso devem ser trabalhados na perspectiva da arquitectura global da obra, que não deve ser fruto apenas da palavra, por mais sedutora ou bela que seja; o suporte mais fiável e mais sólido para esse tipo de poesia deve ser uma reflexão, presente em cada página. Esta reflexão estabelece os alicerces dos versos, fornece-lhes o léxico e o ritmo, as unidades estruturantes de som e sentido".

Prossegue João Vário na mesma entrevista: "Estou convencido de que é neste tipo de poema que o extracto das ideias metafísicas se apresentam como verdadeiramente crucial, porque é um motor ou promotor dos nexos e do temperamento órfico do discurso, quando os restantes extractos dão mostras de estagnação, de esgotamento e de impasse, apesar da pesquisa de diverso teor que tiver preparado a escrita (…). Como se depreende da obra de grandes mestres do longo poema narrativo, Homero, Virgílio, Dante, Milton, Eliot, Pound, Perse, a reflexão é o fio da meada: dita a regra de ouro da construção, da coesão, do comprometimento entre a unidade e a variedade, e alinha tudo, uma espécie também de fio-de-prumo. Chamei a esse fio de meada e fio-de-prumo metafísicos, no caso da minha poética, a cogitação irrepreensível".

Desenvolve o poeta, mais à frente:" O que tinge a voz de um poeta tão originalmente (…) é sobremaneira o que a reflexão faz do léxico ou o que exige que ele faça, a inesperada metamorfose que ela opera com palavras comuns, a bem do esplendor e de uma luz que não se esperava que fosse própria do homem. Porque descobrimos com uma tal leitura que são do homem, estamos inclinados a pensar ou sentir que um tal verbo do homem se fez deus, pois que criou um mundo. Dessa desmesura se lembrará sempre a poesia, já que é ela que nos induz em tal êxtase, tal conjectura, tal sopro de eternidade".

Conclui João Vário: " A cogitação irrepreensível, que também recolheu todos os prefácios aos mais diversos sortilégios, porque é assim que, com intermitência, pode decalcar o texto do destino, a estupefacção mais barroca possível para semear a sonoridade metafísica, a versão que o poeta privilegia da verosimilhança".

Quanto ao instrumentário imagético utilizado na obra e à sua intensa congruência com a reflexão, diz o autor:" como é feito o utensílio, a metáfora pode ser inferido do que se tem dito: é feita, por via de regra, de palavras abstractas fornecidas por uma meditação sobre o mal, o sofrimento, o perdão (ou a misericórdia) e o carácter imponderável da verosimilhança, esses meus temas primordiais. Ou seja, há uma estrutura gnoseológica produzindo e manipulando o estado da metáfora, ou da semântica, se preferir. Quando não é assim, é porque por amor da beleza, não quis que a opacidade do mundo passasse à frente da leveza do lirismo e da primeira sensibilidade, a que tudo entende atravessando esse miolo alegre da consciência e do tempo".

Na alocução que proferiu, em Paris, em 1984, por ocasião do Colóquio Internacional sobre Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, João Manuel Varela considera o "período actual", subsequente ao chamado período de cantalutismo, que se estenderia de 1963 a 1975, como de "procura de inefável identidade". Segundo o exegeta, seria característico desse novo período uma poesia, da qual "dimana um tom novo" que "nada tem a ver com os problemas específicos de Cabo Verde" e que "começa a pensar Cabo Verde, não mediante interpretações limitadas a dados geopolíticos restritos, circunstanciais ou locais, mas no seio da cadeia de peripécias ontológicas, que fazem o homem universal pelas pulsões gerais, que não pela veracidade transitória, imposta pelas conjunturas, mesmo inóspitas e falazmente definidoras de individualidade ou identidade" ("Artefactos poéticos e Arte poética na poesia cabo-verdiana. Reflexões sobre os últimos cinquenta anos da poesia cabo-verdiana" in Literatures Africaines de Langue Portugaise, Actes du Colloque International, Fondation Calouste Gunbelkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1984).

Finalmente, assinala o mesmo autor ainda na "Oitava Epístola ao meu Irmão António - Dos Desacertos da Crítica"(in obra supra-citada): "há já alguns anos que muitos patrícios começaram não só a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se de paradigma".

 

  3. Arménio Vieira: uma fulgurante ilustração da mudança de paradigma na poesia caboverdiana
 

Sublinhe-se que a mudança de paradigma no sentido de universalização e da extra-territorialização temáticas e de indagação existencial e metafísica referido por João Manuel Varela, na sua alocução de Paris, e o seu heterónimo T. T. Tiofe, nalgumas Epístolas ao meu irmão António, se tornou, no período pós-independência, opção consciente e deliberada de ruptura

i.                     quer com a mundividência telúrica enclausurada do homem insulado na sua resignação;

ii.                   quer com a palavra lapidar e rudemente imprecativa de alguma rebeldia cantalutista (tanto na acepção de poesia oficinalmente lapidada para a contestação social e anti-colonial cunhada por Osvaldo Osório no livro Caboverdeamadamente Construção, meu amor (Editora Nova Aurora, Lisboa 1977) como também na acepção mais restritiva e controversa que, na aocução acima proferida, lhe foi atribuída por João Manuel Varela como "artefactos poéticos" destituídos ou insuficientemente apetrechados da arte poética intrínseca à verdadeira poesia);

iii.                  quer ainda com a linguagem ínsita no chamado português literário caboverdiano, de invenção claridosa e muito usual na nossa literatura de feição telúrica (se bem que mais na prosa de ficção do que na poesia). Português literário caboverdiano, aliás, reconhecidamente muito propício, na sua pertinência identitária, à plena assunção de latas funções especificadoras da crã comunhão entre o homem e a terra islenha e, ademais, oficinalmente depurado na sua chã indumentária, no seu "vocabulário concreto".

A opção poética de sentido universalizante acima explicitado representa um dos signos maiores da nossa contemporaneidade literária e tornou-se por demais visível não só na poesia de inúmeros vates caboverdianos dos nossos dias pós-independência, como também na prosa de ficção cultivada por alguns ficcionistas caboverdianos pós-coloniais, incluindo G. T. Didial, como já referido, um dos vários nomes literários de João Manuel Varela.

Cremos não laborar em erro se afirmarmos que, a par dos diferentes nomes literários de João Manuel Varela e de alguns poetas e prosadores deles contemporâneos e das novíssimas gerações, Arménio Vieira integra o restrito clube dos escritores caboverdianos vivos na primeira década do presente milénio que mais têm contribuído para a consolidação de novos paradigmas na literatura caboverdiana contemporânea.

É o que comprovam o muito audível impacto e as muitas repercussões críticas que tiveram os seus dois romances O Eleito do Sol e No Inferno, tanto no que se refere à ousada reformulação das temáticas e das abordagens estéticas herdadas do telurismo claridoso e nova-largadista, como também da surpreendente dissecação das interrogações e da sagacidade do ser humano colocado ante a omnipotência e a arbitrariedade do poder, o absurdo e os paradoxos carcerários das insularidades e o suposto esgotamento da criatividade do escritor saturado tanto da cultura literária ocidental como da quotidiana omnipresença do telurismo e dos seres deambulantes desse inferno que se situa entre o “suão e a chuva”.

É o que também comprova a escrita poética desse “irreverente e indomável espadachim da sorte e da morte, poeta de vento sem tempo” que, na feliz caracterização de Jorge Carlos Fonseca, foi e continua a ser Arménio Vieira.

Cultor assíduo da revisitação da cultura greco-latina, a partir sobretudo da sua recusa em participar na nojenta gastronomia poética que seria a escrita de ortopoemas, necessariamente transitivos na sua degradação utilitária e na sua sempre precarizante instrumentalização político-ideológica, Arménio Vieira representa em Cabo Verde a figura do poeta - parente do gato, porque, "o espírito de um gato é como o canto de um poeta - não atende nem escuta a ordem de ninguém". A imagem libertária do poeta e do seu ofício ressaltam não só dos poemas “um gato lá no alto” e “ser poeta”, mas de inúmeros outros poemas constantes sobretudo do caderno “poesia dois” do seu livro Poemas (ALAC, Lisboa, 1981). Não obstante a consciência de que setembro dói e sangra, isto é, de que a humanidade persiste em sofrer e em ser vítima, por vezes passiva e autocompassiva, das agruras sociais e da voracidade de quem tem ganhado e lucrado com as suas miséria e submissão, as opções estéticas de Arménio Viera decorrem da descoberta de que "ser poeta a sério implica uma espécie de suicídio" e que "é pela metaforização do discurso que se salva o pensamento".

A primeira poesia mais significativa dessa ruptura e tomada de consciência metacrítica (como a caracteriza José Vicente Lopes no estudo "Novas Estruturas Poéticas e Temáticas na Poesia Cabo-Verdiana", in "Ponto e Vírgula”, nos 16 e 17, de 1986) consta sobretudo dos cadernos "A noite e a lira-1976", "A musa breve de Silvenius-1971/1978" e "Poesia Dois-1971/1979" do seu livro Poemas (ALAC, Lisboa, 1981).

A mesma poesia de ruptura e consciencialização metacrítica foi sendo retomada em poemas dispersos, dados posteriormente à estampa, em especial nas revistas “Ponto&Vírgula”, “Sopinha do Alfabeto”, “Fragmentos” e “Artiletra”, e, depois, integrados na segunda edição aumentada do livro Poemas com o título “Poesia Três”.

É nos cadernos “poesia dois” e “poesia três” que a indagação da liberdade existencial se torna mais premente, quer face aos “deuses terrenos” e às suas propensões tirânicas, quer em torno dos caminhos do natural impulso do homem à liberdade. É nesses cadernos (os últimos na segunda edição alargada do livro, abrangendo “poesia dois” o período de 1971 a 1978 e “poesia três” o período de 1982 a 1998 a sublinhar a intemporalidade da busca da liberdade e a sua libertação de conjunturas político-sociais, para o efeito irrelevantes) que é mais evidente o despojamento do poeta de eventuais e limitadoras gangas políticas e ideológicas.

Tal indagação começou a assumir nítidos contornos de ruptura estética e temática com o caderno “A noite e a lira-1976” (primeiro prémio dos “Jogos Florais 12 de Setembro de 1976”, cuja atribuição, aliás, foi assaz surpreendente para a época revolucionária que então se vivia em Cabo Verde). Ressaltam nesse caderno os poemas “didáctica inconseguida”, “momento”, “touro onírico”, “canto final ou agonia de uma noite inconseguida”, entre outros de teor existencialista ou de transposição de temas da mitologia greco-latina pelo perturbante olhar de um homem da segunda metade do século XX, e que tinha sofrido na carne, na alma, na reclusão política e na lonjura da incorporação forçada no exército colonial de ocupação dos territórios dos povos africanos sublevados, as consequências da sua incondicional opção pela irreverência existencial e pela liberdade da sua pátria africana do meio do mar (como se diz parcialmente num poema de Ovídio Martins), finalmente festejada a Cinco de Julho de 1975.

Essa poesia de indagação existencial e metafísica segue-se à poesia socialmente comprometida e de nítida opção anticolonial, também amplamente cultivada pelos seus colegas do grupo “Seló” (em particular por Mário Fonseca e Oswaldo Osório, camaradas das lides literárias e políticas com os quais constituiu um excelente trio de poetas combatentes da liberdade) e pelos seus companheiros da geração da Nova Largada, e constante sobretudo do caderno "Poesia Um" ou dispersa e anterior a 1971. Dessa última poesia, e da capacidade de ilustração desses sombrios tempos de todavia luminosa rebeldia anti-colonial, permanecem, lapidares e inesquecíveis, “Toti Cadabra”, “Isto é que fazem de nós…”, “nunca dobres a espinha”, “Lisboa-1971”, “Canta co alma sem ser magoado” (musicado por Pedro Rodrigues com arranjos de Paulino Vieira e popularizado pela majestosa voz do Bana).

Com “ A musa breve de Silvenius-1971/1978” envereda Arménio Vieira pela levedação das incongruências do quotidiano e da condição humana numa temporalidade histórica que é tanto colonial, como pós-colonial, tanto caboverdiana, como de qualquer lugar. Perpassado de algum lirismo amoroso, como no poema “os amorosos”, o olhar inunda-se de sarcasmo e torna-se ferinamente corrosivo, a um tempo avassalador e penitente, e, por vezes, aridamente desesperante, como no poema “um dia em moscovo”.

Deste modo, essa poesia (a constante de ”Poesia 1” e de “A musa breve de Silvenius”) ergue-se, mesmo se (ou porque) fazendo uso de uma linguagem chã, por vezes erosiva e fulminadora dos mitos greco-latinos, como em “Fábula de Esopo” ou “Tuto é finito”, outras vezes rente a um indisfarçável, contestado e detestado quotidiano, como em “Homens-cães (e vice-versa)”, “Os mortos que somos”, outras vezes onírica e satírica, como em “Caviar, champanhe e fantasia”, de irónica homenagem ao plateau (parte alta e histórica) da sua cidade natal da Praia e à esplanada da sua praça grande.

A poesia de Arménio Vieira singulariza-se por também fugir ao usual cânone estético da poesia cabo-verdiana, quer pela forte presença da ironia e do sarcasmo, como meios estéticos de transgressão, quer pelo papel que nela desempenham a aliteração, a paródia, a linguagem coloquial, o desencanto metafísico e o jogo com o paradoxo e o absurdo, mesmo quando recorre a mitos greco-latinos, dessacralizando-os.

De interesse é também o parentesco linguístico, estético-formal e filosófico entre alguma poesia de interpretação e interpelação ontológicas de Arménio Vieira (por exemplo, "Canto do Crepúsculo" e "Homenagem a quem…") e a poesia de João Vário. Referimo-nos àquela poesia, como a constante dos poemas “Que bela casuarina”, “Também os deuses”, “Isaías, profeta de Deus”, “Destruição pelo fogo” ou “A vida e a morte de Jaime de Figueiredo”, em que a linguagem se eleva na imagética e no léxico da indagação da transitoriedade de tudo.

Igualmente digno de realce nalguns poemas de Arménio Vieira, em especial dos constantes do caderno “Poesia Dois”, é o enveredamento por um certo formalismo de teor experimentalista, como se pode comprovar nos poemas “Alfabeto e cotovia” e “Estrela. Pedra. Consoante. E cotovia”. Tal experimentalismo contribuiu sobremaneira para a construção da plurifacética substância do caderno “Poesia Dois”.

Nos seus mais recentes livros de poesia, designadamente MITOgrafias (Ilhéu-Editora, Mindelo, 2006) e O Poema, A Viagem, O Sonho (Editorial Caminho, Lisboa, 2009) Arménio Vieira retoma algumas das linhas mestras da sua poesia.

É nesta óptica que, depois de feita a devida louvação aos seus mestres no primeiro e no segundo cadernos do livro MITOgrafias (designadamente no “Canto das Graças” e em “Dez Poemas Mais Um, para João Cabral (…)”, essa poesia prossegue na senda corrosiva da dessacralização, quer das idiossincrasias mais tipicamente caboverdianas, designadamente das relacionadas com o infortúnio e a seca (como se pode ler no poema sem título “Quando a Chuva não chove…” ou nalgumas alusões à cabra, ao suão e à chuva ao longo do livro), quer ainda dos mitos da cultura ocidental e dos seus representantes mais icónicos, em cujas obras o autor erudita e literariamente se ancora, como se pode constatar no “Canto das Graças”, mas também literalmente se diverte e se inferniza, como se pode verificar nos poemas (e seus títulos por vezes sarcásticos tais como “Excentricidades gregas”, “Hegel era um Ilusionista de Feira”, etc.) do caderno três (“Mitografias”). Destaque-se neste último caderno, o conjunto de poemas reunidos sob o título A musa breve de Silvenius que vai sendo longa, uma das suas partes mais incisivas no desvendamento das vertentes mais sombrias, aterradoras e infernais da história da humanidade, em particular da civilização cristã europeia, e dos seus meandros carniceiros, sacrificiais, inquisitoriais, jacobinos e totalitários infestados das humanas “Crueldades” desses “Homens Terríveis”, como Atila, Ivan, Hitler, Estaline, os homens da Gestapo, isto é, os tais “flagelos de Deus”, esse Deus que, sendo também “o verbo”, é o “urdidor mor de metáforas”, esse Deus que, querendo ser “metáfora de si mesmo” “ na cruz (...), partido em dois, sucumbiu”.

De sublinhar no seu livro mais recente (O Poema, A Viagem, O Sonho) a opção de Arménio Vieira pela quase total rasura de qualquer referencialidade explícita à realidade caboverdiana, em contraponto a uma exaustiva e quase extenuante viagem à cultura literária ocidental, viagem essa aparentada com aqueloutra empreendida no romance No Inferno, também ela alicerçada numa erudição avassaladora, na desmesurada fantasia bem como nas potencialidades imprevisíveis de um imaginário fundado na constante reinvenção existencial do homem no seu confronto com o absurdo, quer o de suposta fonte divina, quer o de terrena criação civilizacional.

Livro de meditação, por vezes jocosa, sempre desassombrada, a mais das vezes surpreendente, sobre o Destino e o que ele (nome outro da Divindade, diz o vate) “oferta ao Tempo”, isto é “ à parte de si que já não ama”, os textos que perfazem O Poema, a Viagem, o Sonho têm como matéria primordial os labirintos nos quais se vem enredando a criatura humana na perscrutação do seu destino, do qual, aliás, procura libertar-se, desvendando-lhe os signos ou prosseguindo a sina que nele vem selada e lhe marca os passos todos, sejam os amorosos, os trágicos, os jubilosos, os inqualificáveis. Nessa meditação, a constância das referências greco-latinas, judaico-cristãs e outras fundamente ancoradas na cultura ocidental e nas suas expressões periféricas, como é o caso da afro-latinidade (ou crioulidade) caboverdiana, e delas marcantes, parece querer primacialmente significar a permanência e a imutabilidade de uma condição humana, sempre indagada, sempre perplexa perante si própria e perante a aparente insolubilidade das questões que o ser humano se vêm pondo ao longo dos tempos. Nesta óptica, os textos de O Poema (…) mais não representariam que as indagações de uma qualquer criatura humana nossa contemporânea, ciente de si própria e da teia (histórica, mítica e de outro teor) que a envolve, isto é, de uma criatura que, versada (neste caso, excepcionalmente versada) no saber erudito de matriz ocidental e vendo-se ao espelho, seu e da humanidade do seu semelhante, nele vê perfilar-se a cultura que consigo carrega, enquanto fardo, paraíso ou inferno, e a canga da civilização de que só se pode desenvencilhar, digerindo com a requerida sofreguidão as suas frutas, amargas e saborosas, mediante a viagem que se enceta pelo sonho ou pelo pesadelo, desde que seja uma via que seja aberta pela poesia e a ela conduza.

Igualmente digna de realce na mais recente poesia de Arménio Vieira é a opção pela prosa poética ou pelo poema em prosa, em nítido contraste com o regresso ao soneto e outras formas fixas herdadas bem assim, como em alguns dos poetas adiante nomeados, a uma linguagem literária de tom elevado, preciosista e/ou metrificado recentemente empreendido, aliás, com assinalável êxito, por alguns poetas caboverdianos, francófonos, como Mário Fonseca, crioulógrafos, como Kaká Barboza, ou lusógrafos, como Danny Spínola, José Luís Tavares ou Filinto Elísio Correia e Silva.

Por este modo, Arménio Vieira retoma a célebre consigna mallarmeana “a prosa não existe”.

Quanto à lição mallarmeana, ela é inteiramente assumida logo no segundo poema do caderno “Canto das Graças “ do livro MITOgrafias, no qual se dá graças por “Bento Spinoza e também por Malarmé, /já que ambos, em seu tempo/e seu lugar, viram o que jazia/oculto sob a máscara da Esfinge”, “esse ponto em que o texto/como um rio /se desdobra e, nítido, surge o poema,” e que “só se vê num mapa que Mallarmé doou/aos filhos que teve com a Musa”.

Para além disso e à semelhança, aliás, do que tinha intentado no romance No Inferno e no poema “Epopeias” do livro MITOgrafias quanto à suposta impertinência, na actualidade, respectivamente do romance e da poesia épica/heróica como géneros narrativos pertinentes, a opção pelo poema em prosa e pela prosa poética narrativa parece constituir uma insofismável subversão (aliás, sempre esperada, porque congénita à praxis poética do vate praiense) e reflectir, se não uma condenação explícita, pelo menos um posicionamento crítico não só em relação ao poeta como artesão do verso (mormente daquele metrificado e sujeito à classicizante e disciplinadora (por isso, libertadora e criadora, segundo outros) “tirania” da rima e das formas fixas) como também em relação às práticas versilibristas, oportuna, tempestiva e irruptivamente introduzidas em Cabo Verde pelos claridosos e, depois, generalizadamente cultivada por poetas de diferenciado mérito e de diferentes opções estético-ideológicas (neles se incluindo o próprio Arménio Vieira e a sua respiração poética por vezes assaz coloquial, se bem que trespassada pela metáfora), assim como por versejadores de múltiplos calibres panfletários. Versejadores, diga-se, as mais das vezes enredados nas armadilhas do versilibrismo e da aparente simplicidade da poética caboverdiana anterior, sobretudo daquela legada por Jorge Barbosa, bem como na crença sustentada nas mesmas armadilhas e segundo a qual a factura da poesia, em especial da poesia moderna, derivaria, não da congruência das palavras utilizadas e do seu ordenamento com as exigências do ritmo, da imagética e da sua propensão e capacidade expressiva para a produção de emoção estética e/ou qualquer outra forma de sensação estética de estranheza e/ou de adesão, mas da mera versificação das palavras, quer mediante a sua submissão, ainda que em grau mínimo, às regras da rima e da métrica, quer ainda, e num sentido mais obtuso, mediante a sua mera e abstrusa colocação em escadinhas, sem mais e desnecessárias interferências quer da rima e da métrica, quer ainda do ritmo e da imagética.

É o que perscrutamos no 25º texto de O Poema, a Viagem, o Sonho (sem título como a esmagada maioria dos textos desse livro):

“De repente um pobre homem, sem apoio de mágica ou de alquimia, que também é magia, converte-se num aparelho de espremer poemas. Ele então que os faça, pois assim quis a sina. Se for soneto, isto é, um monte deles, que eles saiam mais ou menos bem rimados. Atenção: quem rima choro com cachorro, jamais apanha a chave de ouro, e no fim é o cão que fica a rir-se. Por que não uma ode, semi-Píndaro, semi-pimba, ou então uma epopeia, já que em democracia a cópia de Homero é cópia de direito? Em cada beco um Pai Natal, o que se vê é mais barbas que brinquedos, meu Deus, a crise que aí vai! Nos acuda Sto António, ubíquo e forte em sortilégios de que os peixes deram fiel testemunho. Já que o santo era padre e a poesia é o tema, encerre-se o texto com Vieira, também padre e António, tanto mais que os sermões, a mor das vezes chatos, em Vieira eram poemas. Entendeu-o Pessoa e, a dobrar, também eu. Por me chamar Vieira?”.

Deste modo, a aparente similitude entre a rasura temática da caboverdianidade mais típica, designadamente no que respeita à nomeação explícita de lugares, ambiências, espaços, cheiros, odores, cores, pessoas, tragédias, estórias, ou à sua mera alusão, e a “obsessão greco-latina” e ocidentalizante de Arménio Vieira e idênticas rasura e obsessão europeia classicizante dos pré-claridosos é destroçada não só por um diferente enquadramento histórico-epocal das respectivas poéticas e gerações literárias como pela antonímia das técnicas e do formalismo estético presentes nas respectivas oficinas.

Decididamente, Arménio Vieira - tanto o celebrado poeta versilibrista como o nosso mais recente cultor do poema em prosa- situa-se nas antípodas das convicções estéticas mais profundas e sinceras de Pedro Cardoso e seria certamente amaldiçoado pelo venerando poeta neo-clássico, hesperitano, nativista e pan-africanista e pela sua visão que, tendo excomungado o versilibrismo e havendo-o remetido à ciclotímica comiseração da piedade divina, não seria certamente menos áspera (ou, sequer, mais condescendente) em relação ao poema em prosa, mesmo que se se tratasse de um poema em prosa que deambulasse pelas mais sábias e controversas cogitações dos mestres da antiguidade greco-latina.

Relembremo-nos, pois, do que escreveu o mestre foguense na sua “Profissão de Fé”: “Todo o artista pressupõe uma técnica, o poeta tem de ser um técnico da métrica, porque o verso é a vestimenta mais própria e condigna da poesia (…) Impetrando ao bom Deus da misericórdia que deles se amacie e lhes remita a veleidade da extravagância de chamarem verso à prosa, que, em última análise, não é nem uma coisa, nem outra”.

O mesmo raciocínio antinómico, acima dissecado, pode igualmente ser aplicado às aparentes similitudes entre as oficinas dos actuais cultores das formas fixas e a compreensão do poeta como um técnico da métrica e das formas fixas clássicas por parte dos antigos.

Cremos deverem essas similitudes serem antes interpretadas como indícios de recentes tendências tanto de reabilitação/cultivo de um português literário elevado e de há muito arredado da nossa literatura como também de revalorização quer da intertextualidade com a grande poesia do mundo quer de uma parte importante da nossa herança e história literárias. Tais tendências vêm-se desenvolvendo no quadro das contemporâneas interrogações dos poetas caboverdianos num contexto de assumido cosmopolitismo e de plena e multifacetada identificação com os múltiplos rostos, matrizes culturais e raízes identitárias da nação diaspórica caboverdiana.

A propósito das peculiaridades poéticas da prosa poética e do poema em prosa, que, aliás, perfazem a totalidade do seu último livro, escreve Arménio Vieira precisamente no poema “Prosa e Poesia”: “Troco as voltas à metáfora, / fazendo de conta que Aristóteles/ e o seu alfarrábio de tropos/valem tanto como esse velho/ Mar Morto onde os peixes, / de tanta secura, já nem sabem /se são peixes ou pedras de sal./Assim, embarco e sigo/sem que eu saiba em que ponto no rio ou no mar/bifurca a prosa e, nítido, se vê o poema”, retomando, aliás, a tal consigna malarmeana a que acima se fez referência.

Consigna mallarmeana que, aliás, foi incorporada e vem sendo igualmente prosseguida, é certo que com diferentes níveis de conseguimento estético, por poetas caboverdianos tão díspares entre si, como, por exemplo, Ovídio Martins (designadamente no poema “Ilha a Ilha”), Mário Fonseca, Dina Salústio, José Luís Tavares, Vera Duarte, Valentinous Velhinho, Danny Spínola, António da Névada ou Filinto Elísio Correia e Silva, cultores pós-coloniais da prosa poética e do poema em prosa, mesmo que não necessariamente na extensão e com a identidade própria dos longos poemas de louvação da cidade, como em Jorge Carlos Fonseca, e de virulenta causticação das incongruências do quotidiano pós-colonial, como em Osvaldo Azevedo ou Erasmo Cabral de Almada, ou dos longos poemas narrativos, de teor epicizante, cultivados por T. T. Tiofe, Nzé di Sant’ y Águ, Mário Lúcio Sousa ou António da Névada (relevando-se os momentos deliberadamente prosaicos que, por vezes, salpicam e entranham alguma dessa poesia, designadamente a de T. T. Tiofe), ou, até, em seu sarcástico contraponto como assinalado no poema “Epopeias”, de Arménio Vieira:

 “EPOPEIAS

Arma virumque cano… Deixemo-nos/de tretas! Versos destes escreviam-se/ antigamente, quando Eneias e Ulisses,/em barquinhos de papel, arrancavam/olhos aos ciclopes, rindo nas barbas/ de Neptuno, um rei de óculos e bengala/ a precisar de viagra. Ezra Pound,/ cowboy e poeta, quis ressuscitá-los./ Pensando em quem? Mussolini via-se/ que não. Era um anão gorduchinho,/ parecido aos que andam nos circos/ a divertir a garotada. Entre um bicho/ assim e um homem chamado Aquiles/ a distância é de uma légua.// Canto l´arme pietose e´l capitano…/Deixemo-nos de tretas! Nós, a mor/ das vezes, somos tigres a fazer figura/ de urso. As armas e os barões…/Isso era antigamente, quando os Lusos/ se riam a custa de Baco, rei sem/ préstimo, bebedor de vinho”.

 Sarcástico contraponto que, por representar um dos muitos e contraditórios olhares do poeta sobre a herança poética ocidental, da qual se sustenta, todavia não impede Arménio Vieira de beber reverentemente da taça onde rescende ainda o inebriante odor dos versos tanto de Homero e Dante como de Walt Whitman e Álvaro de Campos

Com os seus últimos livros, Arménio Vieira coloca mais pedras – aliás, maioritariamente rutilantes - no edifício do espanto e da perplexidade que vem construindo para deleite dos seus admiradores e benefício do alargamento do pluralismo estético-formal e temático na literatura produzida pelos filhos das nossas ilhas e diásporas, e para alguma raiva e contestação dos (in)habituais detractores da sua poesia (ou, pelo menos, daquela mais recentemente dada à estampa), talvez demasiado ciosos de uma mais estrita observância de um determinado formalismo técnico mais conforme com o cânone dominante e/ou de caminhos mais irrepreensível e exclusivamente telúricos na poesia caboverdiana, independentemente do nível e do tipo de linguagem eleitos, desde que compenetradamente apegada ao chão mátrio das ilhas ou a ele alusivo, ainda que de forma um pouco remota.

Diz o poeta num dos textos mais emblemáticos da sua ancoragem numa pátria, nua e sua, irredutivelmente inominada porque tão-somente aspergida de palavras e do seu desejo de liberdade, o qual, aliás, se expande em todos os sentidos e perpassa todo o seu último livro:

“Apaga as escrituras todas. Se a missa ou o sino de qualquer igreja chegarem aos teus ouvidos, o que ouves é apenas o vento a sacudir os ramos, é um velho boi ruminando sempre a mesma palha. Em ti há um marinheiro demandando uma ilha onde ninguém ainda esteve. Também em ti encontrarás o mapa, a bússola e o navio. Há coisas a que não deves atribuir nomes”. E conclui peremptório: “ A tua ilha não tem nome”, para que, embevecidos, possamos rematar - pois que inomináveis são os trilhos da poesia da liberdade (incluindo da liberdade de construir o poema desta ou daquela forma) que habitam o wanderlust, ou, se se quiser, o evasionismo e o sonho da viagem, lavra consabidamente de muita fértil imagética. Viagem essa, aliás, sempre de novo encetada em especial pelos poetas islenhos, da beira-mar e da beira-sonho, pelos poetas badios aparentados com os gatos, sejam eles brancos, pretos, pardos ou de cores zebradas; sejam eles de inspiração greco-latina ou uma sua mera ilusão, magicação ou desconstrução, mas certamente crioulos caboverdianos firmemente ancorados na sua dupla herança matricial, na sua ambivalência (no sentido próprio de bivalência), também identitária, e na sua inesgotável demanda de entrelaçamento com tudo que lhes foi legado e com o todo de que foram diversamente gerados ou de que livre, sabida e soberanamente se apropriaram.

Terá sido pela polivalência da sua obra poética e ficcional que, a despeito das legítimas expectativas criadas em torno de outros abalizados postulantes caboverdianos, e não só, que Arménio Vieira teve o privilégio de nos dar a incomensurável alegria de ser o primeiro galardoado caboverdiano com o Prémio Camões?

Foi certamente também pelo seu imperial domínio da língua de labor literário e da linguagem da poesia bem como pela sagaz pertinência das suas indagações existenciais na sua congruência com as preocupações do viajante e náufrago do mundo, que também é o ilhéu caboverdiano, esse ser permanentemente expectante porque habitante, a um tempo, sedentário e nómada, de um algures sempre se abrindo a esse mundo que até ele chegou com as sementes iniciais, nele doridamente renovadas pelas contingências da história, nele sempre se renovando pela inteligente apreensão da por demais trágica saga do seu nascimento e da sua maturação como povo crioulo soberano e da sua consciente incorporação nas deambulações do escriba e no labor do poeta.

Afinal, embora diversos na cana que se utiliza para a pesca da palavra sensível, ela própria peixe e anzol, presa e predadora, e na substância concreta ou onírica do pão-nosso-de-cada-dia que se almeja, parecem ser idênticos os sonhos do cais-de-ver-partir de “O poema de quem ficou” de Manuel Lopes” (paradigmático do que se convencionou chamar evasionismo psicológico e anti-terralongista, também omnipresente no poeta dantes considerado sacro-santo e sumo-pontífice desse mesmo evasionismo psicológico) e os sonhos do viajeiro sedentário que é o poeta Arménio Vieira, aquele que, (anti-)máscara contemporânea de Ulisses, pede que, vindo a desgraça, que venha de avião, e prefere o voo que só pela imaginação se enceta-:

“Quem jamais viaja, e, viajando nunca, poupa-se ao enjoo, a que se junta a chatice de juntar papéis de que a pauta é o avesso. O viajante que jamais viaja é quem deveras viaja, pois que, viajando nunca, ele sabe dos múltiplos dons com que o Destino distingue o sonhador. Sendo assim (por arbítrio alheio, é certo), o navegante, que jamais teve navios e nunca os desejou, mesmo assim, ele é o detentor das rotas que levam aos portos por nomear. Diga-se então que o azul de tantos céus, que Ulisses viu, como ninguém houvera visto, mais não é que os sonhos de quem, em terra, os sonhou no mar”. Eternos insulares, viajantes inveterados com as âncoras presas à inominada solidão da ilha, evasionistas anti-evasionistas, Ulisses sempre em demanda da casa, daquela casa que também se constrói pela capacidade de sonhar e, estando lá, segura e indefectível, alimenta todos os sonhos de viagem por todos os mundos, deste e de outro mundo, conhecidos ou simplesmente vaticinados…

Diríamos, concluindo, que a sagração de Arménio Vieira, o poeta praiense das altas escarpas marginais da vida e das suas praias esparramadas em sonho e fantasia, ocorreu quase que em conformidade com as expectativas todas, de quase toda a gente, tanto da nação literária como também daquela, que de forma quase inexplicável, se vem deslumbrando com os demiurgos, os cultores e os semeadores dessa lavra misteriosa que é a palavra poética, incluindo as do poeta eruditíssimo (sapientíssimo, diriam outras sombras) retratado no poema “Megalomania” do livro O Poema, A Viagem, O Sonho:

“Eu, que de Homero recebi o poema no instante em que o poema nasce, e vi o Inferno pela mão de Dante, tal-qual Leopardi mais tarde o viu, e, após me afundar no rio onde Hamlet e Lear beberam o vinho que enlouquece, comecei a ter visões que Rimbaud, De Quincey e Poe registaram em negros textos; eu, que no eterno transportei a bandeira que era peso nas mãos de Elliot, e renovei a charrua com que Pound lavrava os versos, e de Whitman furtei-me ao licor, que em Álvaro, digo Campos, porque dorido e menos doce, sabia melhor; então que falta em mim para de Camões herdar a estrela, que Pessoa deixou fugir?”.

Premonição de um estatuto camoniano (ainda que travestido na pouco fugaz honraria do prémio homónimo), apesar de, na vida e na obra, o poeta se posicionar, a mais das vezes, como nitidamente avesso a um qualquer mimetismo grandiloquente e neo-camoniano e indiferente a outras fulgurações neo-clássicas e neo-nativistas da palavra poética. Palavra poética que em Arménio Vieira é quase sempre entendida e posta em riste como radicalmente vocacionada para a transgressão na sua evidência contra as correntes hodiernamente hegemónicas, tal como, aliás, vazada no livro O Poema, A Viagem, O Sonho. Indiferença que, todavia, não o impede de também revisitar a obra de D. Dinis, o Camões lírico, entre outros autores marcantes da tradição poética lusógrafa.

Livro que, escrito um tanto antes da atribuição ao seu autor do prestigiado prémio (porque a maior distinção respeitante a uma carreira literária em língua portuguesa) na rotina solitária e automatizada do teclado do telemóvel (também ele merecedor de louvação com ressonâncias necessariamente greco-latinas chuviscando sobre um qualquer banco de praça ou mesa de café do plateau praiense), foi todavia publicado depois da mesma atribuição. Atribuição que ao povo das ilhas e diásporas e a todos os seus poetas, escritores e outros letrados e criaturas de cultura, cumulou de auto-estima e de auto-confiança, de muita empáfia e fundada basofaria (essa bazófia especifica e vistosamente caboverdiana) pela merecida consagração da maturidade da sua literatura, neste caso representada por um dos seus maiores poetas e prosadores de sempre que foi, é e certamente continuará a ser o literato Arménio Vieira, o super-vate das ilhas com nome, digo o super-felino do arquipélago bafejado com um nome miraculado porque incrustado na verde ficção de uma terra, e de um mar, e de um céu, em suma, de um povo, merecedor ele todo de todas as rogações e rezas, porque habitante e construtor de uma “pátria tão pequena que cabe inteira no coração”, como assinalado num dos textos de O Poema, A Viagem, O Sonho.

 

  4. Notas finais e conclusivas
 

Felizmente, a literatura caboverdiana logrou superar, e com inegável sucesso, as reais e supostas crises de identidade que marcaram o processo da sua emergência, da sua autonomização e da sua consolidação como sistema literário, aliás concomitantes com a constituição histórica do povo que lhe vem servindo de esteio e com o processo, ainda em curso, se bem que acelerado, da sua plena consolidação como nação crioula soberana, sendo notáveis a pluralidade de estéticas e de estilos que caracterizam a nossa contemporaneidade literária e o pleno e descomplexado exercício da liberdade de criação que esse estado plural das coisas estéticas vem propiciando ao labor dos escritores caboverdianos.

A contemporânea pluralidade de estirpes e de tendências poéticas, resultante da já relativamente longa história literária caboverdiana e absorvida como um dos principais legados dos tempos primevos do pós-independência (porque, na nossa opinião, mais prenhes de consequências no que respeita à diversidade do nosso panorama literário actual), afere, de forma assaz assertiva, da plena maturidade da poesia caboverdiana.

Assim, construída e plenamente consolidada a identidade literária caboverdiana, graças fundamentalmente ao labor dos ultra-românticos, dos neo-simbolistas, dos hesperitanos e dos demais escritores oitocentistas e letrados nativistas, dos claridosos das várias vagas e dos émulos da nova largada – fautores, em tempos históricos diferentes e com linguagens e estéticas diferenciadas, da independência e da diversidade literárias cabo-verdianas -, a questão da caboverdianidade explícita ou assumida nos textos literários, quer nas suas vertentes telúrica e combativa, quer nas suas facetas existencialista, de indagação metafísica e lírica, de pura deambulação lírica ou, até (e porque não?) de “puro exibicionismo cultista” tem-se tornado, para um número crescente de escritores e, especialmente, de poetas das ilhas e das diásporas caboverdianas, cada vez menos um problema ontológico enquanto factor eventualmente indutor ou ilustrativo de crises identitárias.

Pelo contrário: a existência de um sistema literário caboverdiano consolidado tem servido de esteio aos novos poetas e ficcionistas para trilharem caminhos diferenciados, por vezes díspares, e intentarem proceder às seguintes experiências de escrita:

 

     i)                    ao alargamento temático, pan-insular e pan-diaspórico, do campo de jurisdição da nossa tradição literária e dos cânones literários caboverdianos, arduamente edificados em língua portuguesa e em acelerado e seguro processo de construção em língua caboverdiana;

ii)                   ao enriquecimento estético-formal da literatura das ilhas e diásporas caboverdianas mediante a incorporação de novos estilos, tendências, técnicas e metodologias literários, como, por exemplo, o realismo mágico de extracção sul-americana, o nouveau roman, os hai-kais japoneses, as técnicas de incorporação numa linguagem poética contemporânea de formas clássicas e de formas elevadas da língua ou ainda as técnicas de moderna elaboração de longos poemas narrativos de teor epicizante;

iii)                 à potenciação de experiências de subversão, de transgresssão, de ocultação e de sabotagem da herança literária, tanto nos planos temático e dos motivos, como a nível estético-formal e linguístico.

São disso elucidativas as experiências ficcionais dos claridosos de segunda vaga Maria Helena Spencer, Teixeira de Sousa, Nuno Miranda, Virgílio Pires e Pedro Duarte, dos novo-largadistas Luís Romano, Gabriel Mariano e Onésimo Silveira, dos escritores neo-claridosos pós-coloniais Orlanda Amarilis, Germano Almeida, Carlos Araújo, Fátima Bettencourt, Ondina Ferreira, Leopoldina Barreto, Evel Rocha, António Ludgero Correia, entre outros, por um lado, bem como, por outro lado, dos contistas e romancistas pós-claridosos ( em alguns casos, parcial ou totalmente anti-claridosos) G. T. Didial, Arménio Vieira, Fernando Monteiro, Dina Salústio, Danny Spínola, Mário Lúcio Sousa, Joaquim Arena, José Vicente Lopes, Eilleen Barbosa, Vasco Martins e Tchalé Figueira. Experiências elucidativas porque fautoras tanto de continuidade como de amplas rupturas em relação ao telurismo claridoso, pesem embora as notórias deficiências quanto à melhor revisão do texto dado à estampa bem como ao domínio da língua de labor literário detectáveis na escrita lusógrafa de alguns poucos dos seus protagonistas, aliás, em regra detentores de fértil imaginação ficcional. Deficiências que mais não são do que eloquentíssimas ilustrações do estado calamitoso em que, a vários níveis, se encontra o português em Cabo Verde, dirão alguns e com toda a razão! Coisas da diglossia, agora transposta para o plano do manejamento da escrita e da lusografia do labor literário, corroborarão outros, ainda com mais razão.

À escrita literária lusógrafa supra-referida, acrescem as recentes experiências de ficção em língua caboverdiana protagonizadas por Manuel Veiga, T. V. da Silva, Eutrópio Lima da Cruz, Danny Spínola, Ely Bakar, Zizim Figueira, entre outros.

Ilações idênticas às respeitantes à prosa de ficção podem ser extraídas em relação à poesia caboverdiana pós-colonial, designadamente no que respeita à inequívoca sedimentação do pluralismo estético-ideológico, à renovação temática e às inovações formais introduzidas por várias correntes contemporâneas, designadamente as representadas:

i.                     Pela poesia épico-telúrica de rememoração dos tempos e da saudade da história de T. T. Tiofe, Corsino Fortes, Kaká Barboza, Mário Lúcio Sousa, Nzé di Sant´y Águ, Danny Spínola e José Luís Tavares, e os respectivos exercícios de reconstrução, mediante a palavra lapidada e meditada, do sopro genesíaco das ilhas e das ruínas de uma história trágica ainda mal ou insuficientemente narrada. Tentativa que, bastas vezes, se vem concretizando mediante a comovente re-encenação da memória perscrutadora dos trilhos islenhos da infância e da nostalgia do perdido paraíso das águas, assiduamente fustigadas pela inclemência das as-secas e das intempéries históricas.  

ii.                   Pela poesia da plena maturidade ética e estética, do desencanto existencial, da eventual decadência da idade e da buscada regeneração das utopias revolucionárias da liberdade de Oswaldo Osório, Mário Fonseca e Arménio Vieira;

iii.                  Pela poesia de indagação ontológica e metafísica de João Vário, Arménio Vieira, Valentinous Velhinho, José Luís Tavares, Filinto Elísio Correia e Silva, Alma Dofer Catarino, José Vicente Lopes, entre outros.

iv.                 Pela poesia de reinvenção caboverdiana da subversão surrealista de Jorge Carlos Fonseca;

v.                   Pela poesia de fundas ressonâncias arquipélágicas dos tormentosos caminhos da busca poética da felicidade e da liberdade pessoais trilhados por Danny Spínola, Filinto Elísio Correia e Silva e outros poetas da nova geração;

vi.                 Pela poesia de contundente crítica social, sátira dos costumes e muita virulência verbal (também delineada em apurado crioulo) de Kaká Barboza, Danny Spínola, Oswaldo Azevedo, Erasmo Cabral de Almada, Ano Nobo e algum T. V. da Silva.

vii.                Pela poesia de lirismo amoroso, muito afagada pela consagradíssima lira crioula de Eugénio Tavares, magistralmente reinventada, nos tempos pós-coloniais, por Oswaldo Osório e actualmente muito cultivada pela generalidade dos poetas caboverdianos, neles se incluindo a malograda Yolanda Morrazo (a matriaca das poetas caboverdianas do período modernista e autora de uma multifacética obra poética dada à estampa pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal em 2006), Carlota de Barros e Vera Duarte, entre outras raríssimas poetisas e demais amantes do verso no activo.

viii.              Pela poesia do saudosismo pátrio exalado do além-mar diaspórico da terra-longe por cultores do verso de diferente mesura e quilate estéticos, com destaque para Nuno Miranda, Teobaldo Virgínio e Artur Vieira, relevando-se o bilinguismo literário deste último escritor, desde há muito radicado no Brasil.

Anote-se que, nas actuais circunstâncias de nítida, plena e definitiva sedimentação nacional da literatura caboverdiana, aliás, correlativa com o crescente cosmopolitismo dos seus sujeitos, actores e respectivas temáticas, uma franja representativa de escritores, em especial de poetas, das ilhas e das diásporas caboverdianas quer ser primacialmente compreendida na sua infungível condição de criadores, no sentido de artífices da linguagem, cuja única missão – se, porventura, alguma missão lhes coubesse – teria como essencial fundamento ético e inexpurgável escopo estético a liberdade plena de criação e, no plano da factura da obra, consistiria essencialmente na disseminação de máscaras da condição humana, quer ela se situe em Cabo Verde, na Diáspora, na "Macaronésia", no Antigo Egipto ou nenhures no mundo ou na morte, desde que seja um algures da resplandecência do verbo.

Tal desiderato levou à plena potenciação da arte da linguagem literária bem como das línguas de labor literário (em especial do português, do crioulo e, de forma mais marginal, do francês), não só como meios estéticos de expressão e instrumentos de radicação telúrica e existencial e universalização literárias das criaturas caboverdianas como também da livre expressão daqueles que, afirmando-se e assumindo-se tão-somente como artesãos da palavra exacta e livre, todavia carregam consigo a sensibilidade caboverdiana que, inusitada ou deliberadamente, consciente ou inconscientemente, lhes impregna, e da forma mais indelével, a alma de criaturas e criadores insulares e/ou o seu híbrido rosto de seres da diáspora.

Nos casos de João Vário, de um certo Arménio Vieira (designadamente o de "Poesia II”, “A Musa Breve de Silvenius”, "A Noite e A Lira" e “Poesia III” do livro Poemas, do primeiro e terceiro cadernos (“Canto das Graças” e “Mitografias”) do livro Mitografias bem como da totalidade do seu mais recente livro de poemas em prosa O Poema, A Viagem, O Sonho), de Valentinous Velhinho dos inúmeros “labirintos metafísicos” que perpassam a sua já vasta obra publicada, do José Luís Tavares de Agreste Matéria Mundo (especialmente do caderno A Deserção das Musas), do Danny Spínola de alguns cadernos de Infinito Delírio e do livro-poema Na nha Sol Xintadu, de Alma Dofer Catarino de Sonhos à Sombra e outros poemas de Elegia de Sombras (parcialmente inédito), a sintonia com as tendências dominantes do cânone ocidental da poesia metafísica, destelurizada ou místico-existencial, em cujo chão pátrio e em cujos meandros de linguagem e atribulações de alma cresceram ou amadureceram como poetas, torna quase imperceptível ou assaz residual qualquer réstia textual de referencialidade caboverdiana explícita ou meramente alusiva, especialmente a de natureza telúrica.

A esses poetas podem ser acrescidos, sem maiores pruridos, e para somente nomear autores de livros que nos parecem esteticamente mais depurados:

i. O Mário Fonseca de momentos significativos da sua poesia em língua francesa, especialmente daquela inserta nos livros L’ Odiferante Evidence de Soleil qu’est une Orange, La Mer à tous les Coups e nalguns cadernos de Mon Pays est une Musique, e da sua poesia lusógrafa “contra a idade” e outra ilustrativa da germinação dos tempos do “morrer devagar”.

ii. O Oswaldo Osório dos poemas de meditação sobre o tempo, o amor e a condição do homem angustiado e dilacerado em face da irreversibilidade e da finitude das suas “estações inacabadas”.

iii.                  O Jorge Carlos Fonseca do cosmopolita deflagrar da palavra indomesticada.

iv.                 O António da Névada da incessante busca de um caminho próprio e de um canto suficientemente audível entre os luminosos escombros das indagações metafísicas de João Vário e telúricas de T. T. Tiofe e Corsino Fortes.

Com ressalva do exemplo de T. T. Tiofe e G. T. Didial em relação a João Vário e de um ou outro caso eventualmente de menor pregnância (e entre os quais se inclui o autor das presentes linhas), é notória a ausência na esmagadora maioria dos poetas supra-referenciados da nomeação baptismal ou da crisma, de forma autónoma, de uma heteronímia, de uma pseudonímia ou de uma qualquer outra alteridade poética ou, tão só, de uma obra poética engendrada para uma referencialidade explícita e assumidamente caboverdiana, neles, aliás, predominante ou co-existente com uma outra de teor destelurizado, des-insularizado ou de intenção universalista.

Na esmagadora maioria dos poetas caboverdianos já referidos coexistem escritas poéticas de várias facturas temáticas e estético-formais numa mesma obra ou na cronologia diversa das obras, por vezes bilingues. É o que se pode constatar em Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Mário Fonseca, Jorge Carlos Fonseca, Danny Spínola, Mário Lúcio Sousa, Filinto Elísio Correia e Silva, José Luís Tavares ou António da Névada ou, de forma ainda mais singular, na obra literariamente binacional ou identitariamente híbrida dos luso-caboverdianos António Pedro Costa e Daniel Filipe.

Um caso excepcional na poesia caboverdiana contemporânea parece ocorrer com a poesia de Valentinous Velhinho, poeta quase exclusivamente metafísico e absolutamente avesso a qualquer referencialidade à terra que, impávida e solenemente muda, conquanto inteiramente cúmplice, assiste às suas deambulações noctívagas e divagações oníricas.

Excepções a essa linha estética geral do autor de O Túmulo de Fénix parecem constituir os raros poemas evocativos de Calheta, a terra natal do poeta, e outras construções poéticas indiciadoras de um suicidário mal-estar que se acotovela no quarto suburbano onde o vate se abriga e (res)guarda as suas quatro estações místicas.

Assinalável na poesia do autor de Relâmpagos em Terra, Adeus Loucura Adeus e Tenho o Infinito Guardado em Casa é igualmente a omnipresença de uma ambiência marcada pelo mar e pelo monte e de uma cultura impregnada e saturada de referências judaico-cristãs, de fundas e remotas ressonâncias na cultura caboverdiana, enquanto suas co-matrizes, e que e por sua vez, a par das referências nietzcheanas, pessoanas e neo-simbolistas, envolvem toda a poética deste autor e eventualmente contaminam o seu rosto quase exclusivamente universalizante e "contra-enraizador".

Parecem-nos pois cada vez mais acrescidos os desafios aos poetas e demais escritores caboverdianos, inseridos que estão numa ambiência complexa em que são extremamente pregnantes e tendencialmente esmagadoras as solicitações identitárias veiculadas e corporizadas pelo telurismo, de invenção claridosa e recriação nova-largadista, neo-claridosa ou outra de outro teor mais contemporâneo, a par e/ou em contraponto das experimentações, também no domínio literário, de (auto)recriação diaspórica e cosmopolita da sua matriz insular bem como da tentação, sempre livremente assumida, de diluição e dispersão nas águas (des)identitárias e supostamente universalizantes que banham as nossas almas e  as suas diferentes máscaras, desde sempre insuladas, e, por isso mesmo, muito propensas ao sonho das evasão para além, e a despeito, da ilha-prisão, dos seus muros reais e imaginados, e da sua ininterrupta sublimação em trilhos de liberdade .

Por isso, esses poetas e outros escritores caboverdianos (incluindo os hifenizados) são, amiúde, obrigados a traduzir-se e a traduzir a sua condição de criaturas modernas e pós-modernas, inteiramente pós-coloniais e pós-claridosas, iniludivelmente confrontadas com os seus abismos, angústias e labirintos existenciais, a par da continuada dissecação da humanidade inerente ao caboverdiano das ilhas e diásporas, tornando-se, assim, de um ou outro modo, heterónimos de si próprios.

 

Lisboa, 30 de Abril/ 2-10-16 de Maio /6-7-8 de Junho de 2010

José Luis Hopffer C. Almada

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras. Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009). Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

 

 

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