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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 07
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Neste dia, a horas de véspera,
houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e
redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele: e de terra chã, com
grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal –
e à terra - A Terra da Vera Cruz.
Carta de Pero Vaz de Caminha dirigida a D. Manuel [*]
(...)
Marcha o homem sobre o chão
Leva no coração uma ferida
acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão da infinita
beleza
Finda por ferir com a mão
essa delicadeza
Coisa mais querida, a glória
da vida
Luz do sol que a folha traga e
traduz
Em verde novo, em folha, em
graça em vida
Em força, em luz
Caetano Veloso, Luz do Sol |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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Índice de Autores |
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Nova
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O |
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Contrário do Tempo, O |
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Domador de Sonhos |
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Jornal de Poesia |
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JOSÉ PINTO CASQUILHO
Esteios da lusofonia
- Do culto do Espírito Santo
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José
Pinto Casquilho, CEABN/UTL & CECL/UNL |
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Não consiste em ser sábio em conhecer
só o que é certo como certo; mas em conhecer o certo como certo, o falso
como falso, e o duvidoso ou provável como provável ou duvidoso. Do certo
nasce a verdade, do falso se faz o erro, do duvidoso e provável se
compõe a opinião, e estas três coisas há de distinguir e advertir sempre
quem quiser avaliar sem paixão, e fazer exame justo das doutrinas
alheias.
Padre António Vieira [&] |
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É frequente a invocação de que os descobrimentos
portugueses se efectuaram sob a tutela simbólica do culto do Espírito
Santo, de par com a cruz. Juntaram-se assim o destemor e a fé dos
cruzados com o legado de Joaquim de Flora repercutido pelos
franciscanos. Simbolizando a graça divina, signo de esperança, da
terceira idade anunciada, promessa de bem-aventurança, o culto do
Espírito Santo tem um inegável valor cultural como vector antropológico
da colonização portuguesa. Uma das suas expressões tangíveis poderá ser
a designação da capitania do mesmo nome no Brasil, o que ocorreu por
volta de 1535 [1] - a carta de doação a Vasco Coutinho é datada de
1/VI/1534 e o foral de 7/X/1534 [2].
A cruz da Ordem de Cristo aparecia no horizonte,
pintada nas velas das naus como signo, emblema do rei de Portugal. Foram
os descobridores portugueses que registaram o Cruzeiro do Sul
prescrutando os céus à procura de um ponto fixo que os orientasse. O
século XVI foi uma época de ouro para a Europa e para a cultura
portuguesa que produziu [3]: a astronomia náutica, a rumação da poma, o
nónio, a navegação por altura, as correntes, os ventos alisados. O auge
do culto do Espírito Santo coincide no país com o período mais intenso
da expansão portuguesa no planeta [4], particularmente os séculos XIV e
XV. |
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Dinis e Isabel |
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Em Portugal, o culto foi lançado ou disseminado por
Isabel de Aragão, no século XIII, depois designada Rainha Santa e
canonizada, embora haja quem o faça remontar a reinado anterior [5].
Isabel era mulher de Dinis, 6ª rei de Portugal, cognominado Lavrador e
Rei-Poeta entre outros, considerado um grande civilizador ao estabelecer
as bases materiais, espirituais e simbólicas, para o Portugal dos
próximos séculos. Por exemplo, em 1293, Dinis confirmou a bolsa marítima
que era uma organização de capitais provenientes do comércio formada por
uma percentagem sobre os lucros que servia para custear os prejuízos dos
sinistros marinhos [6]; entre outras medidas, introduziu o português
vernáculo como língua oficial do reino, fundou a universidade (Estudos
Gerais), mandou (re)plantar o pinhal de Leiria para abastecer a
construção naval, nacionalizou os Templários, perseguidos e esmagados na
Europa, na nova Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, ratificada por bula
papal em 1319, que tomou em mãos a transmutação do cavaleiro terrestre
em náutico. O infante Henrique, cognominado o Navegador, seria um século
depois seu administrador.
Dinis e Isabel formaram um casal que reinou em
Portugal durante mais de quarenta anos, e conviveram num tempo em que a
poesia trovadoresca lançada na Aquitania marcava o século: a gaya
scienza e o gai saber, ou a gaia ciência do trovar, mais do que uma
ideologia eram uma modalidade de enunciação do mundo que correspondia a
uma iniciação. Dinis era trovador, deixou-nos belas canções, seja por
exemplo esta estrofe de Cantiga de Amigo [7]:
O meu amigo,
amiga, não quer
Que haja grande
pesar, nem grande prazer,
E quer-me neste
pleito assim trazer,
Porque confio
tanto no feitio seu
Não o quero
curar, nem matar,
Nem o quero de
mim desesperar.
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A corte de Dinis e Isabel era rica e
faustosa. Dinis foi referido como o príncipe que mais se aplicou
a tratar das minas, nomeadamente da de ouro da Adiça, de onde se
fez uma coroa e um cetro que usou o soberano e os seus
sucessores [8], e a baixela de ouro e prata do rei descrita nos
documentos é impressionante; também Isabel é mencionada como
possuidora de muitas jóias e de várias coroas: a mais importante
doou a Santiago de Compostela quando enviuvou. Isabel de Aragão
foi uma mulher sábia, poderosa e generosa, já não falando das
lendas dos milagres. Quando Dinis faleceu Isabel tomou o hábito
de clarissa, embora não professasse os votos. Fez-se enterrar no
convento de Santa Clara de Coimbra por si mandado erguer em
1314, assim demarcando-se do rei que fora sepultado no convento
de S. Dinis em Odivelas onde se seguia a regra beneditina.
A rainha foi uma mulher notavelmente
interveniente na política da época, efectuando mediações
sucessivas em conflitos na península, incluindo entre o marido e
o filho - ficou célebre a referência à sua intervenção na
batalha de Alvalade, que assim não chegou a acontecer: à chegada
da rainha montada numa mula os soldados ajoelharam [9]; na sua
última missão de paz faleceu de doença em Estremoz. |
Fig 1 – Dinis e Isabel
representados
num quadro da Universidade de Coimbra |
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Fora educada na corte de seu pai Pedro o Grande de
Aragão e teria tido como mestres, ou referências, Raimundo Lúlio,
autor do Livro do Amigo e do Amado, e que demonstrou a necessidade da
existência de um continente desconhecido frente às praias da
Grã-Bretanha dada a esfericidade da Terra; e ainda Arnaldo Villanova,
médico alquimista. Por volta de 1365, Pedro Rosell dizia que a doutrina
de Llull era a do Espírito Santo [10] e que propagava os ideais de
Joaquim de Flora.
O Abade cisterciense de Florença Joaquim, no século
XII, tinha profetizado o advento de uma nova época, a Idade do Espírito,
que, dentro da Trindade cristã, sucederia às do Pai e do Filho; para
alguns tal idade teria começado em 1260 [11], outros afirmam que Joaquim
de Flora não precisou data nem teria intenção de o fazer mas terá
introduzido com contundência teórica a idéia de progresso histórico num
campo onde a História era entendida como o palco onde se assistia à
interacção e à tensão entre a graça divina e o livre arbítrio humano
[12]. Magalhães-Vilhena recorda-nos que o fulcro luminoso da reflexão do
homem sobre a sua trajectória, sobre o sentido do seu viver, valor ou
desvalor fundamentais da existência, é justamente a idéia de Progresso
[13]. Com a sua sequência de idades Joaquim de Flora operou uma inversão
do tempo, um rejuvenescimento progressivo: nesta senda a caminhada da
humanidade faz-se por um regresso da inocência e de modalidades de
partilha e de festa.
O culto do Espírito Santo não dependia da jurisdição
eclesiástica [14], sempre foi muito abrangente, e tinha o seu auge em
festas populares onde se coroava o imperador, alguém do povo, muitas
vezes menino ou menina. Ainda hoje persiste como tradição e encenação,
mormente no Açores e pelo largo do mundo onde se fixaram comunidades das
ilhas. Também a Festa dos Tabuleiros em Tomar remonta a esse fundamento. |
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A Trindade da ermida do Espírito Santo do
Castelo |
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No contexto das Trindades cristãs figura-se Deus como
forma trinitária envolvendo as facetas de Pai, Filho e Espírito Santo,
este representado o mais das vezes por uma pomba. A Trindade presente no
baptistério da igreja de Santa Cruz da freguesia do Castelo em Lisboa,
estava antes localizada na ermida do Espírito Santo, no cimo da rua do
mesmo nome que ruma ao castelo. Na gravura de Giorgio Braunio, publicada
no último quartel do século XVI na Alemanha [15], datada de 1593,
podendo ser cópia de um exemplar umas décadas anterior, vê-se o complexo
da Alcáçova desdobrado no casario que se encontrava adentro das portas
da cerca. |
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Fig. 2 -
Pormenor da gravura da cidade de Lisboa de Giorgio Braunio |
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A ermida do Espírito Santo seria uma casa do topo da
ladeira. Terá sido fundada no reinado de D. Manuel pelos navegantes da
carreira da Índia [16] e situava-se num conjunto habitacional referido
como casas pertencentes ao rei Dinis, as casas da rua do padelo que
ficavam ante a capela de S. Miguel [17], mais tarde dedicada a Santa
Bárbara; esta capela ocupava presumivelmente parte da área do antigo
templo de Júpiter no período romano. Na passagem do século XII para o
século XIII Lisboa teria cerca de 20000 habitantes [18] e a sede do
poder situava-se nos Paços da Alcáçova, integrados no castelo e
muralhas, que comportavam a capela real, equipamentos e casas;
conhece-se a carta em que Dinis estabelece normas da capela de S.
Miguel, incluindo a nomeação de capelão e a encomenda de missas por sua
alma, incumbindo a todos os reis futuros que mantenham a capela em uso
sob pena de condenação ao Inferno [19]. Na Lisboa quinhentista refere-se
que os Paços da Alcáçova eram em cantaria, sem estilo definido, e
revelavam diferentes épocas de construção; o São Miguel Expulsando
Lúcifer que se venerava na capela do Paço era considerado obra de mestre
[20].
Ainda hoje se pode ver a casa que substituiu a ermida
- então muito danificada pelo terramoto de 1755 -, que faz esquina entre
as actuais ruas do Espírito Santo e das Flores de Santa Cruz. A igreja
de Santa Cruz foi construída logo após a conquista de Lisboa em 1147 e a
primeira referência documental que cita a igreja data de 1191. |
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A Trindade que dantes estava abrigada nessa
ermida, de pedra policromada, está referenciada como tendo sido
esculpida nos séculos XIV/XV [21]. Deus Pai apresenta-se como
rei, encimado com uma coroa tardo-gótica aberta, com traço
vegetalista de elementos verticais arborescentes e que se poderá
eventualmente reportar ao período de Afonso V ou seu pai,
comparando com coroas dessa época [v. 22]. Existe aliás no Museu
Nacional de Arte Antiga em Lisboa uma Trindade semelhante,
sensivelmente das mesmas dimensões, policromada, embora
mutilada, referenciada como proveniente de Nottingham, século XV.
No entanto, entre outros aspectos, a coroa do rei difere.
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Fig. 3 – Localização da antiga
ermida do Espírito Santo. |
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O rei está sentado e pensativo - o que se vê
pelas três rugas verticais entre as sobrancelhas -, e segura nas
mãos Cristo crucificado como uma sua projeção, ou emanação,
sendo a mediação feita pela pomba que, ao nível do coração,
segue na continuidade da barba e aponta para baixo: tem uma
simbologia vectorial, vertical, no eixo de simetria definido
pelo traço maior da cruz; visto em sentido contrário, de baixo
para cima, da cabeça de Cristo emana a pomba como forma radiante
que se prolonga nas barbas do rei, dir-se-ia em cordões de
flamas ou fumo.
Vejamos como a noção de esquema desenvolvida
por Fontanille e Zilberberg, no âmbito da sintaxe tensiva, onde
o facto tensivo se expressa como intensidade e extensidade [23]
poderá ajudar a interpretar: o que transparece mais na imagem de
pedra é quietude, tranquilidade, no entanto as rugas verticais
na testa do rei atestam intensidade e a figura de Jesus
crucificado comporta implicitamente a tensão da cruz, tensão
estática. |
Fig. 4 - Santíssima Trindade da
antiga ermida do Espírito Santo |
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A disposição vectorial da pomba indica direção,
sentido, movimento. Umberto Eco recorda-nos que o vector é um signo
ratio difficilis, a par com as marcas e as congruências [24], quando, à
falta de um tipo expressivo pré-formado ele é moldado segundo o tipo
abstracto do conteúdo. É assim que podemos admitir que a pomba
representa o pensamento, ou um seu correlato, a força de vontade,
determinação, potência, em qualquer caso indica transmissão de força e
de sentido. Na medida em que a Trindade subsume uma totalidade concebida
como unidade - Deus, apresentado em três facetas ou instâncias de
enunciação -, não é suposto haver algo que acrescente mais sentido do
que aquele que lá está; os contextos situam, mas a imagem tende a
bastar-se a si própria.
A coroa do rei representado na Trindade é semelhante
à que encima as armas de Afonso V no convento do Varatojo, fundado em
1470 e dedicado à Ordem de S. Francisco. Afonso V, cognominado de o
Africano, toma Arzila e Tanger (1471) e Larache, juntando ao título de
«rei de Portugal e dos Algarves» o de «aquém e além-mar em Africa» [25],
e mostra-se glorificado nas tapeçarias de Pastrana onde se vê o seu
dístico pessoal: o rodízio [v. 26]. Afonso V, depois do fracasso da
batalha de Toro, abdicou, fazendo-se substituir por seu filho João II, e
recolheu um tempo ao convento. |
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Fig. 5 –
Armas de Afonso V no convento do Varatojo |
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A actual localização da Trindade no baptistério da
igreja de Santa Cruz, fundada após a conquista da cidade em 1147 no
local de uma antiga mesquita [27], e eventualmente no sítio do anterior
templo de Minerva, reconstruída numa forma simplificada depois do
terramoto de 1755, terá a ver com a importância que os católicos
atribuem ao acto do baptismo. Citando o Padre António Vieira [28]: antes
do Baptismo conhece Deus a todos os homens por filhos de Adão; depois do
Baptismo conhece-os a todos por filhos de Cristo; antes do Baptismo
podem-se chamar os homens de diferentes nações, depois do Baptismo, onde
essa distinção se afoga e se acaba, todos são da mesma nação e do mesmo
sangue, porque todos ali nascem de novo, renascidos e regenerados pelo
Espírito Santo. |
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A Trindade da antiga ermida do Espírito Santo
corresponde a um modelo, que a menos de variações nos detalhes
suporta a tríade onde se destaca a cabeça luminiscente de deus
Pai, também dito Padre Eterno, de que a coroa é um primeiro
significante. Bem como abundam as barbas e cabelos. Sobre a
importância simbólica das barbas no tempo em que se ergueu a
ermida referida diz-nos Leite de Vasconcelos [29]: quando morreu
el-rei D. Manuel, em 1521, determinou-se aos barbeiros, como
manifestação pública de tristeza, que durante seis meses não
barbeassem ninguém, nem cortassem cabelos – os cabelos e barbas
eram barómetro de sentimento. |
Fig. 6 – Imagem do Padre
Eterno, registo do Museu Etnológico Português. |
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Do culto do Espírito Santo |
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O Espírito Santo aparece nomeado na Bíblia desde o
Antigo Testamento: o termo Ruach HaKodesh refere-se à presença de Deus
experimentada pelo ser humano, o mais das vezes interpretada como sopro,
luz ou chama. Os resultados visíveis da actividade do Espírito Santo, de
acordo com a concepção Judaica, são os próprios livros da Bíblia,
narrando o livro dos Actos dos Apóstolos do Novo Testamento o seguinte
[30]:
“Quando chegou o dia de Pentecostes, todos os
seguidores de Jesus estavam reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do
céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse
barulho encheu toda a casa onde estavam sentados. Então todos viram umas
coisas parecidas com chamas, que se espalharam como línguas de fogo; e
cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. Todos ficaram cheios do
Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o
poder que o Espírito dava a cada pessoa.” |
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É assim que surge associada ao culto do
Espírito Santo a chamada mística pentecostal e a promessa da
chegada do Paracleto ou Paráclito - o auxiliador, o consolador,
de acordo com as traduções mais frequentes.
Já no século V Orósio de Braga escrevia a sua
História contra os Pagãos onde o universalismo cristão aparece
afirmado numa perspectiva de história universal. A obra foi
escrita em Cartago a pedido de Santo Agostinho, para contrariar
a acusação de que tinham sido os cristãos a causa da queda de
Roma às mãos dos Godos de Alarico. Defendia o autor que a função
de Roma, no plano providencial da história, foi ter criado uma
unidade política, sobre a qual se ergueria a unidade da
consciência, por meio da propagação da fé em Cristo [31], onde o
império, antes de ser uma realidade política, é a expressão do
estatuto comum da natureza humana. |
Fig. 7 - Ingeborg Psalter:
Pentecostes - miniatura, ca. 1200, Museu Condé. |
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Essa idéia de império da cristandade perdurará
revestindo-se de amplitudes sucessivas. Um dos seus maiores mentores foi
o Padre António Vieira, durante o século XVII, na figura do Quinto
Império de que Portugal seria o pólo disseminador, socorrendo-se das
profecias do sapateiro de Trancoso. Afirma Vieira que Bandarra dizia que
[32]: se hão de converter à fé, e sujeitar ao império de Cristo os
judeus, os hereges, os pagãos, e os gentios, e que tudo, como fica dito,
é conforme a profecias e promessas de toda a Escritura que se hão de
cumprir nos tempos determinados pela Providência Divina.
Antes, Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, escrita
durante o século XV, anunciava a sétima idade que teria começado nesse
tempo, onde segue as balizas temporais que Santo Agostinho indica na
Cidade de Deus para as seis idades anteriores e entende-a como uma idade
histórica realizada no tempo, precisamente o mundo novo e a nova geração
de gentes que se iniciara com o Portugal de Avis [33].
A dimensão profética de Portugal como disseminador do
império da fé cristã é um marco presente em toda a epopeia dos
descobrimentos. Recordando Jaime Cortesão [34]: foi durante os séculos
XIV e XV que o culto do Espírito Santo, ligado à festa do Império, tomou
maior desenvolvimento em Portugal, celebrando-se a bordo das naus que
atravessavam os oceanos, e espalhando-se pela África portuguesa, a Índia
e, principalmente, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, donde passou
mais tarde, em grande parte por obra dos açorianos, ao Brasil e à
América do Norte. Ainda de acordo com o mesmo autor, e conforme informam
os cronistas seiscentistas Rodrigo da Cunha, Fr. Manuel da Esperança e
Fr. Francisco Brandão, que assistiram aos últimos esplendores desse
culto, celebrado durante a semana de Pentecostes, a sua principal
cerimónia constava da coroação do imperador, geralmente na pessoa de um
homem do povo, pertencente à irmandade do Espírito Santo, que o elegia;
o imperador empunhava o estoque ou vara, símbolo do mundo, e aquela
irmandade, que em geral administrava um hospital, assumia o encargo de
celebrar todos os anos a festa do Império. A análise da documentação das
confrarias do Espírito Santo, particularmente a de Benavente, obriga a
recuar a um período anterior ao reinado de Dinis e Isabel a existência
da devoção ao Paráclito [35] e a criação das festas em honra da Terceira
Pessoa da Santíssima Trindade.
A rua do Espírito Santo no Castelo termina numa das
portas do recinto fortificado vulgarmente conhecido pelo castelejo:
porta Norte, porta das cozinhas, porta do Espírito Santo. Está
referenciada como sendo uma porta ogival antiga [36], apresenta o brasão
das armas reais no tempo de Afonso III, provavelmente relativo ao tempo
em que Lisboa é nomeada capital do reino (c. 1256), e é encimada no
vértice pela esfera armilar, símbolo manuelino da empresa dos
descobrimentos, presente na sala do trono dos Paços da Alcáçova, de par
com as armas de Portugal, desde Duarte. |
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Fig. 8 – Porta Norte do
Castelo de S. Jorge no cimo da rua do
Espírito Santo |
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A simbologia do culto do Espírito Santo virá a ser
retomada por Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia,
entre outros pensadores, poetas ou filósofos portugueses. Citando uma
análise recente [37]: se em Fernando Pessoa a idéia quinto-imperialista
era uma espécie de ecumenismo multicolor, ou melhor, de total fusão das
raças, culturas, povos e religiões do mundo pela capacidade unificadora
da língua e da cultura portuguesas transformando tudo num Paganismo
Superior; se em Agostinho da Silva a Era do Espírito Santo era a
assunção do domínio sereno da inocência infancial pela diluição das
hierarquias contra a estreiteza da ordenação da racionalidade ortodoxa e
pela miscigenação de todas as raças ao sabor do exemplo português; para
Natália Correia o Quinto Império é a harmonização das relações humanas
pela afirmação dos valores tutelares associados ao universo feminino. Na
teoria joaquimita colocavam-se assim as três idades, nas palavras de
Joaquim de Flora [38]: o chicote para o primeiro, a acção para o
segundo, a contemplação para o terceiro; sucessivamente, o temor, a fé,
a caridade; o estado de escravos, o estado de homens livres, o estado de
amigos; de velhos, de adultos, de crianças.
Existem tríades onde o género feminino é dominante.
Na Sé de Lisboa (igreja de Santa Maria Maior) tem-se uma imagem na
capela do Espírito Santo, também designada da Trindade: a capela foi
erguida no final do século XIII [39] e a imagem é designada de Nossa
Senhora da Pombinha e estava referenciada por frei Agostinho de Santa
Maria como a mais antiga em mãos de cristãos, titular da paróquia de Sé,
antecessora da invocação de Santa Maria [40]. O culto de Nossa Senhora
da Pomba é reportado aos séculos XI/XII, datando de 1136 o início da
construção da abadia do seu nome, próxima do povoado de Alseno, por S.
Bernardo [41]. Trata-se aqui de uma trindade com um conceito
predominantemente feminino, já que a figura de Deus Pai é agora mulher,
Nossa Senhora, que domina a tríade, segurando numa mão a pomba e na
outra o menino - a pomba apresenta-se horizontal e o menino transporta
numa mão a bola do mundo. Recorda-se uma significação mítica: no livro
do Genesis refere-se que foi uma pomba largada por Noé que levava no
bico um raminho de oliveira e assim anunciava o fim do Dilúvio, promessa
de paz. |
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Fig. 9 -
Nossa Senhora da Pombinha na capela do Espírito Santo da Sé
de Lisboa |
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Coda |
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«É bom que o senhor me pergunte, porque acho que na
cidade falam, falam e acertam pouco. Sem ofensa, até acho que não sabem
nada, de nada. Mas eu digo como é que meu pai dizia e o pai dele
lembrava muitas vezes como era. Eu digo que os dons do Espírito Santo
são sete e são sete porque é assim mesmo, é um número que vem dos
antigos, como as "sete partidas do Mundo" ou os "sete dias da semana" e
não vale a pena estar a aprofundar muito porque não se chega a lado
nenhum e só complica.»
Gregório Machado Barcelos [v. 42]
Para Jaime Cortesão a mística dos Descobrimentos
portugueses é de origem franciscana, tendo esta ordem religiosa
representado o estímulo renovador, a tendência à observação da Natureza
e as aspirações à liberdade individual [43]; Duarte Pacheco, escrevendo
nos primórdios de quinhentos, atribuía os descobrimentos henriquinos à
inspiração do Espírito Santo.
Enquanto objecto semiótico o culto do Espírito Santo
enraíza elementos que a ciência positiva considerará lendas e
superstições, mas é inegável que, sendo objecto de crença alargada,
torna-se vector antropológico, suporte e indutor dos seus crentes e
mentores com destaque para os navegantes e descobridores portugueses,
sob tutela real. Recorda-nos Eco que os códigos são sistemas de
expectativas no universo dos signos e as ideologias são sistemas de
expectativas no universo do saber [44]: a ideologia não é o significado,
antes é a conotação final da totalidade das conotações do signo ou do
contexto de signos. Outrossim, sobre a dimensão mitológica refere-nos
Fernando Pessoa: o mito é o nada que é tudo [45], e por seu turno Roland
Barthes afirma que o mito é uma linguagem - acabando por atribuir o
estatuto de fala, uma dimensão discursiva; ele releva de um sistema de
significação, de uma forma [46].
Pode assim dizer-se que o culto do Espírito Santo foi
um eixo anímico maior da aventura portuguesa nos mares e na expansão da
lusofonia. Aliás, dos dons atríbuídos ao Espírito Santo destaca-se desde
logo o dom das línguas, que se expressa inclusivé na linguagem dos
pássaros, um código de homofonias que terá sido inventado pelos
trovadores para fazer passar mensagens com segundo sentido - pássaros
esses em que, de acordo com a lenda mitológica romana, Júpiter se
transmutava nos seus amores furtivos. A deixis, ou sistema de
indicadores, associada ao culto do Espírito Santo não deixa margem para
dúvidas: a festa, o bodo aos pobres, a coroação do menino, a
comunicação, o convívio - um sopro de amor de inspiração divina
anunciando uma nova idade de esperança e redenção é o seu motor. De como
se pode associar à mensagem de fraternidade, comunidade, e
bem-aventurança, do culto do Espírito Santo, todas as perversões que lhe
estarão associadas na colonização portuguesa é assunto que fica por
explorar; por exemplo, no que concerne à escravidão, retenha-se que na
Bahia, em 1808, a colónia tinha 140000 escravos, quase um terço da
população [47]. Ainda hoje teólogos defendem que a igreja católica
enquanto comunidade se sustenta sobre duas colunas [48]: Jesus Cristo e
o Espírito Santo; este estaria presente no acto da criação do cosmos,
sempre acompanha a humanidade e cada pessoa, e chega antes do
missionário; suscita a espiritualidade, a vivência do amor, do perdão,
da solidariedade, da compaixão e da abertura a Deus.
O culto disseminado por Isabel de Aragão, com um
momento maior no seu exílio em Alenquer, funcionou como um dos esteios
da expansão da lusofonia. Outro esteio ideológico principal é o de
cavaleiro templário, marca de Dinis. O rei exercitava-se na arte de
trovar e talvez seja bom recordar que nos vários graus de vassalagem
amorosa do fin’amor sucedem-se o fingidor, o suplicante, o entendedor e
finalmente o amigo: drudo. Tem-se uma bela súmula da visão do rei na
Mensagem de Fernando Pessoa [49]:
Na noite
escreve um seu Cantar de Amigo
O
plantador de naus a haver,
E ouve um
silêncio múrmuro consigo:
É o rumor
dos pinhais que, como um trigo
De
Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio,
esse cantar, jovem e puro,
Busca o
oceano por achar;
E a fala
dos pinhais, marulho obscuro,
É o som
presente desse mar futuro,
É a voz
da terra ansiando pelo mar.
Ora, a partir de drudo é inevitável aproximarmo-nos
do termo druida, com raiz etimológica na palavra grega que designa
árvore sagrada e com o significado de vidente e até de filósofo na
cultura celta [v. 50], e daí também ser interrogável um substrato
ecológico profundo da gaya scienza, sendo esta uma forma pregnante de
que o pensamento ambientalista contemporâneo poderá constituir-se em
forma saliente, eventualmente levando à concepção da Terra como
superorganismo, Gaia, no sentido que foi explanado por Lovelock. Mas
essa será outra história a contar.
Dedico
ao pessoal do Castelo,
e ao projecto Unilab,
com votos de felicidades. |
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Referências: |
|
[*] in Max Justo Guedes (coord.), A
Viagem de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil 1500-1501.
Academia da Marinha, Lisboa, 2003, p: 189.
[&] Padre António Vieira, Apologia das
Coisas Profetizadas (org: Adma Fadul Muhana). Cotovia, Lisboa, 1994, p:
278.
[1]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Capitania_do_Esp%C3%ADrito_Santo
[2] A. H. de Oliveira Marques,
História de Portugal vol II - Do Renascimento às Revoluções Liberais,
Editorial Presença, Lisboa, 1997, p: 73.
[3] A. A. Marques de Almeida, O Mundo
de Pedro Nunes e de Damião de Góis: a diferença dos olhares entre o
inovar e o resistir, 1502-1578. Comissão Nacional para as Comemorações
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[4] Lima de Freitas, O culto do
Espírito Santo e o imaginário lusitano in Dinis – o Rei Civilizador (H.
Barbas, M. Máxima, J. C. Fernández, P. Loução coord.), Ésquilo, Lisboa,
2009, p: 197.
[5] Manuel de Sousa, Reis e Rainhas de
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[6] José Hermano Saraiva, História de
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[7] Antologia de poemas de D. Dinis in
Dinis – o Rei Civilizador (H. Barbas, M. Máxima, J. C. Fernández, P.
Loução coord.), Ésquilo, Lisboa, 2009, p: 154.
[8] Julio de Castilho, Lisboa Antiga -
segunda parte: Bairros Orientais (2ª ed.), S. Industriais da C. M.L.,
Lisboa, 1938, p: 51.
[9]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Alvalade
[10] Paulo Alexandre Loução, A
influência de Isabel de Aragão no reinado de D. Dinis in Dinis – o Rei
Civilizador, idem, p: 165.
[11] Paulo Alexandre Loução, Síntese
Cronológica in Dinis – o Rei Civilizador, idem, p: 91.
[12] José Eduardo Franco e José
Augusto Mourão, A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa
– Escritos de Natália Correia sobre a utopia da Idade Feminina do
Espírito Santo, Roma Editora, Lisboa, 2005, p: 28.
[13] Vasco de Magalhães-Vilhena,
Progresso: História breve de uma idéia (2ª ed.), Editorial Caminho,
Lisboa, 1979, p: 15.
[14] Paulo Alexandre Loução, Dos
Templários à Ordem de Cristo in Dinis – o Rei Civilizador, idem, p:60.
[15] A. Vieira da Silva, A Cerca Moura
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1987, p: 44.
[16] Marília Abel e Carlos
Consiglieri, Castelo, Dinalivro, Lisboa, 2007, p: 47.
[17] Ferreira de Andrade, Palácios
Reais de Lisboa, Vega Lda, Lisboa, (2ª ed.) 1990, p: 120.
[18] Dejanirah Couto, História de
Lisboa (3ª ed.), Editora Gótica, Lisboa, 2003, p: 62.
[19] Torre do Tombo, Chancelaria de D.
Dinis (livro 3-fol.6) in Ferreira de Andrade, idem, p: 143,144.
[20] António Borges Coelho, Ruas e
Gentes na Lisboa Quinhentista, Editorial Caminho SA, Lisboa, 2006, p:
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[21] Helena Pinto Janeiro, Lisboa:
freguesia do Castelo, Contexto Editora, Lisboa, 1993, p: 61.
[22]http://br.monografias.com/trabalhos913/metamorfose-dinastiaavis/metamorfose-dinastia-avis.shtml
[23] Jacques Fontanille e Claude
Zilberberg, Tensão e Significação, Discurso Editorial, São Paulo, 2001,
p: 99.
[24] Umberto Eco, Signo in
Enciclopédia Einaudi, vol. 31 (Signo), Imprensa Nacional – Casa da
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[25]
http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/afonso5.html
[26]
http://paineis.org/C04_link_AfonsoV_Pastrana.htm
[27] Helena Pinto Janeiro, idem, p: 9.
[28] Padre António Vieira, idem, pag.
14.
[29] José Leite de Vasconcelos, Signum
Salomonis, A Figa, A Barba em Portugal – Estudos de Etnologia
Comparativa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, p: 382.
[30]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Esp%C3%ADrito_Santo
[31] Pedro Calafate, Portugal Como
Problema – Séculos V-XVI: A Afirmação de um Destino Colectivo (vol. I),
Fundação Luso-Americana e Publico, Comunicação Social, SA, Lisboa, 2006,
p: 60.
[32] Padre António Vieira, idem, pag.
102.
[33] Pedro Calafate, idem, p: 88.
[34] Jaime Cortesão, Os Descobrimentos
Portugueses, cit. in Lima de Freitas, O culto do Espírito Santo e o
Imaginário Lusitano in Dinis – o Rei Civilizador, idem, p: 197.
[35] José Eduardo Franco e José
Augusto Mourão, idem, p: 104.
[36] Augusto Vieira da Silva,
Dispersos vol III, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa,
1960, p: 176.
[37] José Eduardo Franco e José
Augusto Mourão, idem, p: 128.
[38] cit. in Paulo Alexandre Loução, A
influência de Isabel de Aragão no reinado de D. Dinis in Dinis – o Rei
Civilizador, idem, p: 176.
[39]
http://portugalromanico.files.wordpress.com/2010/01/lisboa-se.pdf
[40] Eduardo Sucena, A Sé Patriarcal
de Lisboa – História e Património. Produções Editoriais Lda. Lisboa,
2004, p: 71.
[41]http://www.paulinas.org.br/diafeliz/maria.aspx?Data=10/2/2005&DiaMariaID=121
[42]
http://www.triplov.com/espirito/fiore/luis_fagundes_duarte/index.htm
[43] Lima de Freitas, idem, p: 202.
[44] Umberto Eco, A Estrutura Ausente
(7ª ed., 2ª reimp.),Editora Perspectiva SA, São Paulo, 2007, p: 86,87.
[45] José Augusto Mourão e Maria
Augusta Babo, Semiótica – Genealogias e Cartografias, Edições
MinervaCoimbra, Coimbra, 2007, p:123.
[46] Fernando Pessoa, Mensagem (13ª
ed.), Edições Ática, Lisboa, 1979, p: 25.
[47] Hendrik Kraay,
Afro-Brazilian Culture and Politics – Bahia, 1790s to 1990s, M. E.
Sharpe, Armonk, 1998, p: 8.
[48]
http://www.triplov.com/boff/2010/igreja.htm
[49] Fernando Pessoa, idem, p: 31.
[50]http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_04/jose_casquilho/index.html |
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José Pinto
Casquilho.
Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com (CECL/UNL).
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© Maria Estela Guedes
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