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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 07
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CENÁRIO UM:
Ambiente de guerra, um tanto incaracterístico. Paisagem mais
ou menos campestre, com um rochedo ao meio.
Personagens deste cenário:
Rapariga
Jovem
- rapaz armado, que anda na guerra
Homem
- outro homem da guerra |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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Índice de Autores |
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Nova
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SÍTIOS ALIADOS |
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TriploII - Blog do TriploV |
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TriploV |
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Arditura |
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Bule,
O |
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Contrário do Tempo, O |
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Domador de Sonhos |
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Jornal de Poesia |
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GRACIETE NOBRE
Aldeia das cavernas |
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Graciete Nobre |
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CENÁRIO DOIS:
Sala de uma casa burguesa, um ou 2 sofás, um televisor
dominando a decoração. Um sofá fica exactamente em frente ao televisor e
foi lá colocado para que a pessoa que se sentar lá não veja mais nada.
Este cenário fica oculto quando o cenário 1 um estiver
iluminado
Personagens deste cenário:
1ª
Mulher - 1ª mulher, dona da casa
2ª
Mulher - 2ª mulher, visita da 1ª mulher
Filha: rapariga, filha da dona da casa |
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Cena 1
Cenário Um |
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Jovem
Rapariga: quero cantar e bailar, quero rir e namorar e colher flores.
Para quê pensar na guerra, para quê pensar na morte? E esses belos
rapazes que caem como as folhas do Outono, amo-os também. Amo a vida e a
alegria, amo o sol e a maresia. Amo!
Coro:
são estas as notícias do mundo: que como as folhas caem aqui e além os
velhos e os novos. Náufragos acostam à praia e corpos de crianças e
mulheres tombam no lodo.
Jovem: Que diferença pode haver entre morrer assim ou doutro modo? Viver
é o que importa! Enquanto a minha vela flutuar sobre o rio, enquanto
este cabelo brilhar à luz do sol... vivo, e vivendo esqueço. Amo e
amando canto de alegria. Ouvireis vós o meu grito de vitória? Sou.
Rapariga que entra dançando de roda: Porque o mundo sobre si
mesmo roda, é perfeitamente natural que morram alguns e que vivam os
outros. Eu, por exemplo. Porque é agora o meu tempo, não vou esperar
pela maré vazante que leva tudo pra trás. etc... lá lá lá lá...
Jovem: Pensas como eu.
Rapariga: Penso como tu. Que pensas tu?
Jovem: Nada...
Rapariga: Penso exactamente como tu. Agarra-se a ele e dançam.
Jovem
parando bruscamente de dançar e falando pomposamente, como se
estivesse a citar: mas não será indigno e infame retitar a vida aos
inocentes e ingénuos que despreocupadamente vivem nas suas miseráveis
cabanas ou nos seus opulentos castelos? (Falando em tom casual):
Já tenho ouvido dizer isso...
Rapariga: Tirar a vida é um acto divino. Tal como dar a vida. Mais ainda
do que dá-la. A prova disso é que os deuses costumam fazer ambas as
coisas.
Jovem: Sejamos deuses, então, pois que assim nos está destinado.
Rapariga: E cada um deve cumprir o seu destino.
Jovem
voltando-se para os bastidores: Alto lá! Tu, aí! Sim, tu. Olha
lá, tu comes carne de porco, ou carne de vaca?
Voz
de homem: De vaca.
Jovem: tirando um revólver do bolso, dispara na direcção da voz.
R:
Porque é que o mataste?
Jovem
(indiferente): Porque ele deve ser judeu, ou então é muçulmano de
certeza.
Rapariga: Então, e se for?
Jovem
(Sorrindo com expresão um tanto ingénua): Já não é. Volta a
guardar a arma.
Rapariga: Então, e se ele tivesse dito que comia carne de porco?
Jovem: Nesse caso devia ser cristão ou hindu. Os hindus não comem carne
de vaca.
Rapariga: Ah! E os cristãos comem de tudo. Já percebi.
Continuam a dançar, despreocupadamente.
Ouvem-se tiros. Param.
Rapariga: Porque será que mataram aquele?
Jovem
indiferente: Devia ser comunista...
Vozes: Abaixo o capitalismo! Morte aos capitalistas!
Jovem: Afinal era capitalista.
Rapariga.sentando-se: Mas também há aqueles que não comem carne
nenhuma, nem de vaca nem de porco.
Jovem: Esses são os vegetarianos. Por exemplo, os budistas. Morte aos
budistas! Dá um tiro para o ar.
Rapariga abraçando-o: Estar contigo é quase tão animado como ver
televisão. |
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Cena 2
Cenário 2 |
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Numa
casa estão 2 mulheres e uma televisão. Uma delas come avidamente massa
com molho de tomate, olhando para o écran. A outra está de pé olha para
o outro lado.
1ª
Mulher: ver gente a morrer à fome, é uma coisa que me abre sempre o
apetite.
2ª
Mulher: eu não gosto de ver essas coisas...
1ª
Mulher: coitadinhos! Olha pr´aquele, que magrinho, ui, até faz
impressão!
2ª
Mulher: eu já te disse que não gosto nada de ver essas coisas!
1ª
Mulher: essa tua sensibilidade exagerada... isto é a realidade. Temos
que abrir os olhos para a realidade social do nosso mundo, da nossa
sociedade! Não podemos fazer como as avestruzes que metem a cabeça
debaixo da areia para não verem a realidade!
2ª
Mulher irónica: Então as avestruzes conseguem veer a
realidade? Tal como tu?
1ª
Mulher: Mas repara... isto fica tudo muito longe, felizmente. Aqui, no
nosso país, estas coisas não acontecem. Nós vivemos bem, nós vivemos
muito melhor do que eles...
2ª
Mulher: eu já te disse que não gosto nada de ver essas coisas!
1ª
Mulher: tu sempre foste assim, uma... uma insensível. És como a minha
filha. A rapariga não come nada, até já a levei ao médico, está magra
como um carapau, e eu digo-lhe sempre. Filha, come tudo, se não comeres
mais esse bocado, tenho que o deitar ao lixo. Lembra-te ao menos
daqueles pobres diabos que morrem de fome por não terem que comer. E tu
sabes o que é que ela me responde? Começa a resmungar e ainda come
menos. Até parece que está a fazer a greve da fome.
1ª
Mulher: E o que é que ela te responde? Não cheguei a perceber...
2ª
Mulher: eu também não percebo muito bem, é qualquer coisa assim...que
não adianta, que não é por ela comer que os outros não vão morrer à
fome... modernices!
1º
Mulher: Bem, isso por acaso até faz bastante sentido.
2ª
Mulher: O que ela me responde sempre, é o mesmo que tu: "eu já te disse
que não gosto nada de ver essas coisas!" Parecem um disco rachado. Até
faz impressão. A influência que tu tens sobre a rapariga não é nada boa.
Ela ainda me morre, e a culpa é tua!
1ª
Mulher: Talvez a pequena se alimentasse melhor se tu não lhe falasses
dessas coisas. Tem cuidado, ela até pode ficar doente.
2ª
Mulher: Isso queria ela! Não, eu educo a minha filha como se deve. Quero
que ela tenha a noção das realidades sociais. Não queres ver aquele
concurso?
1ª
Mulher: Qual concurso?
2ª
Mulher: Aquele dos travestis. um homem que se veste de mulher, estás a
ver? Depois ganha aquele que conseguir comer mais coisas esquisitas sem
fazer intervalo nenhum.
1ª
Mulher: Mas eu já te disse
2º
Mulher: Pois: "eu não gosto nada de ver essas coisas!" |
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Cena 3
Cenário um
As
mesmas personagens da cena 1 |
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Entra um homem desarmado, braços erguidos, não em rendição, mas numa
atitude de triunfo e de vitória.
Homem: Alto! Chega de intolerância de guerra e de mortes desnecessárias.
É absolutamente necessário impor, por todos os meios, a tolerância e a
paz.
Jovem: E quem é que vai impor isso?
Homem: Eu.
Jovem: Não vejo motivo para tal imposição. O meu pai ensinou-me a matar,
por razões ideológicas, é claro, e eu por acaso até gosto!
Rapariga: E esses belos rapazes que caem como tordos, amo-os também.
Inimigos e amigos, amo-os a todos. Entram nas casas pelo telhado e não
pelas portas. São os novos heróis, mesmo quando morrem pelos seus
ideais, sejam eles quais forem.
Homem: E quais são?
Rapariga: Isso não sei nem me interessa. Mas tens razão, também gosto da
paz. Pessoalmente, ainda não matei ninguém..
Jovem: E a paz, para quê? Eu cá, gosto da guerra. A sensação de destruir
o que Deus criou torna-me divino, ainda mais divino. Não é divina a
mulher que criando e gerando cumpre a vontade do criador, mas sim o
homem que destruiu o que ele fez com tanta dedicação e trabalho, digo...
talvez. Por acaso, até foi o meu pai que me ensinou isto.
Homem
Que pensarias tu, meu jovem amigo, se a tua mãe fosse morta, assassinada
por algum infiel?
Jovem
Eu próprio a matei. Se outro o tivesse feito, eu dizimaria toda a sua
família.
R: E
por que razão a mataste?
Jovem: Era cristã, e além do mais caridosa. (num tom revolucionário)
A revolução não pode ser feita se a caridade e a bondade hipócrita a
impedem e a atrasam
Homem
Vejo eu que grande admiração tens pelo teu pai, que te ensinou tudo
isso. Que pensarias tu de alguém que assassinasse o teu pai por ser
caridoso e bom?
Jovem
com um ar doce: Fui eu também que o matei com as minhas próprias
mãos (Faz o gesto de o estrangular). Nunca perdoaria a outro
qualquer que o tivesse feito. Oh, eles que se atrevam a atravessarem-se
no meu caminho: Vários o tentaram e só eu sobrevivi dessa luta demasiado
fácil, a meu ver.
Rapariga: Mataste o teu pai, porquê? Agora sou eu que não te entendo
Jovem: Ora, era um porco comunista. Meteu-me todas essas ideias na
cabeça, ideias falsas. Foi até por causa dessas ideias que eu matei a
minha mãe. A culpa foi do gajo, das coisas que ele me meteu na cabeça.
Tudo tolices! Abaixo as ideologias, sejam elas quais forem. Pegando
no revólver, dá dois tiros para o ar, depois aponta a arma ao peito da
rapariga que fica amedrontada. Dispara, mas não sai nenhuma bala. O
jovem ri às gargalhadas. : Já não estava carregada, contei os tiros.
Que cara de susto. Ri, divertido.
Homem
Mudando de tom: Não gostarias tu de ter filhos e netos, alguém a quem
pudesses ensinar tudo o que sabes? Ensiná-los a disparar uma arma, a
montar a cavalo, a apanhar o inimigo de surpresa...?
Jovem: Ainda sou muito novo para pensar nisso, mas hei-de tê-los, é
claro.
Homem: Nunca os terás, nem tu nem ninguém. Com estas mentalidades
intolerantes, o mundo acabará necessariamente muito em breve. Não
sobrará memória de ti nem de ninguém, nem da humanidade nem do nosso
século... nem de mim... quero dizer, muito menos de ti. Acabarás para
sempre.
Rapariga: Concordo com ele. Eu, por acaso, até já tinha pensado nisso.
Para que servem os heróis como tu, se não ficar ninguém para os lembrar,
os homenagear, os ...
Homem: Pelo contrário, enquanto houver gente haverá quem ame os heróis
da guerra. Lembra-te, ignorante: Já vários senhores da guerra receberam
até mesmo, entre outros, o prémio Nobel da Paz. A paz só existe como
conceito louvável enquanto houver guerra. Sejamos pela paz, então.
Louvemos a tolerância, o amor ao próximo!
Rapariga e Jovem não muito convencidos: Viva a paz. Viva a
Tolerância. Qual é a outra coisa que tu disseste?
Homem
Não interessa.
Rapariga: E como vais tu impor essas coisas, num tempo destes ?
Homem: Obviamente, através duma ditadura. Serei eu o ditador. Um ditador
tolerante, é claro, pacífico, capaz de fazer uma carnificina
desnecessária, apenas para que todos desejem e beneficiem dos benefícios
da paz. É claro. Serás tu o meu lugar-tenente, a 2ª pessoa mais
importante a seguir a mim. Aceitas?
Jovem
solenemente: e pondo-se em sentido: Aceito.
Homem: Deponhamos as armas, então. Coloca no chão um revólver que
tira do bolso.
Jovem: E como posso eu confiar em ti, se depuser as armas minhas? Talvez
tenhas outra escondida... Não!
Homem
Retirando outro revólver doutro bolso e sorrindo: Vejo que és
inteligente, vejo que escolhi bem o meu lugar-tenente. Deponhamos as
armas, então, todas menos as nossas. Pela ditadura! Pela paz! Às armas!
Jovem
e Rapariga repetem: Pela ditadura! Pela paz! Às Armas! |
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Cena 4
Cenário 2 |
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Mulheres que vêm isto na televisão
1ª
Mulher: Que bonito. Estas coisas na televisão parecem sempre mais
verdadeiras do que a própria realidade. Imitando-os num tom de voz
mais feminino: Pela ditadura! Pela paz! Às Armas!
2ª M:
Como podes tu ser tão estúpida?
Entra rapariga, filha da 1ª mulher. Voltando-se para a 2ª
: O que é que esta besta está a dizer agora?
1ª
Mulher Ousas insultar a tua própria mãe?
Filha: Tu tens a certeza de que és a minha mãe? Muito mais minha mãe me
parece ser esta...apontando para a 2ª.
2ª
Mulher: Não, eu não sou a tua mãe, embora muitas vezes concorde contigo.
E gosto muito de ti.
1ª
Mulher: Dizia eu, e muito bem: contra os canhões marchar, marchar!
Filha: Contra quais canhões?
1ª
Mulher: Contra os do inimigo, é claro. Ora!
Filha: Quem é o inimigo?
1ªM:
a mim, niguém me tira da ideia que tudo isto, estas guerras e estas
coisas, é tudo obra dos extraterrestres. Até a própria bruxa mo disse, e
ela nem acredita nestas coisas... e eu também li um livro sobre o
segredo das Pirâmides, que demonstra, provado científicamente, eu quero
dizer... os extraterrestres...
Filha: Abram alas, que vai sair asneira de certeza.
2ªM
irónica: É a lógica da batata, claro: a bruxa, que nem acredita
nestas coisas, é uma fonte fidedigna para explicar que os
extraterrestres estão disseminados entre nós, como ela costuma dizer, e
muito bem. Se a bruxa acreditasse nessas coisas, a opinião dela seria
demasiado suspeita... não percebes?
Filha: Isto já para não falar do segredo das Pirâmides e do mau-olhado,
que, deitado a uma planta, a faz murchar imediatamente, logo ali.
1ªM:
Duvidas? Não há planta que resista ao mau-olhado, está provado
cientificamente. E as minhas dores de cabeça? Basta a Isabel olhar pasra
o meu carro último modelo com aquele ar de inveja, que a enxaqueca já
não me larga mais durante todo o dia.
!ªM:
Podias comprar um carro mais barato...
Filha
irónica : Ou um já muito velho. Ninguém tem inveja dos carros
velhos.
!ªM:
Riam-se, riam-se. Mas a realidade aqui está a confirmar o que eu digo.
Não vedes a televisão? Não ouvis as notícias? Tudo isto são as profecias
do Nostradamus
Filha
enfadada : Ah, agora passamos para o capítulo do Nostradamus. |
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Cena 5
Cenário um |
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Rapariga: Para quê pensar nos ventos que sopram sempre
desencontradamente uns dos outros e de nós só? E esses belos rapazes que
caem como as folhas do Outono na esquina das horas, mortos talvez ou
quem sabe? Conquistam o que possuem e nada têm. Controlam o destino dos
outros, o destino do mundo. Entram pelo telhado, não mais pela janela ou
pelas portas. E eu amo-os por isso.
Jovem: A mim?
Rapariga: E a todos. A ti e a todos. Amar-vos-ei para sempre, na minha
vida, curta ou comprida ou seja ela como for... até ao fim, nesse dia em
que com um tiro ou com uma espada, ou apenas com um cordel atado ao meu
pescoço, vós mesmos me matareis.
Jovem
acariciando-lhe o pescoço: Tão suave e tão de seda o teu pescoço.
Tão leve e tão fugaz a vida. Tiro-a. Dou-a. Quem pode tirar também pode
dar o que retira. Frágil pescoço de pele de seda deslumbrante, dourado
aos raios do sol, como o desejo! (Aperta-o). Ofereço-to, que te
pertence e eu to podia estrangular. (Larga-o intempestivamente).
Pertence-te, porque eu to dou.
Homem: Quem é, quem é o inimigo?
Jovem: Todos! Os amarelos porque são amarelos, os pretos porque são
pretos, os judeus porque são judeus.
Rapariga: e os brancos?
Jovem: Talvez porque são cristãos...
Rapariga pedagógica: Podem não ser... há muitos brancos que são,
por exemplo, budistas, hinduístas, há até muitos que praticam Yoga.
(Sincera): Eu, por exemplo, conheço alguns.
Jovem
desculpando-se: Bem, eu não sou propriamente um filósofo...
Rapariga: E os ateus, por que razão os matarias tu, por exemplo?
Jovem: Porque não adoram os ídolos. Os ateus são de longe os piores!
Rapariga: Não adoram os heróis. Nem vos adoram a vós. Porque os heróis
sois vós! Amo-vos a todos. A todos!
Homem: E porque mataríamos nós esta rapariga?
Jovem: Porque nos ama, por exemplo, e porque tem um pescoço de seda que
mais parece o gargalo duma garrafa de soberbo licor. Bebamos o licor e
quebremos a garrafa!
Homem: Estou a ver que aprendes depressa. Em breve serás o líder, quando
os anteriores líderes morrerem, ou seja, o actual líder, o seu sucessor
e depois eu e depois, etc.. Estás a perceber?
Jovem: Entendo muito bem.
Rapariga: E por que motivo matarias tu este homem?
Jovem: Eu depois explico-te.
Homem: mais sério e discursivo: Dizem os nossos líderes
carismáticos (actuais), os nossos líderes políticos, ou seja, os que nos
mandam agir, que o que conta, efectivamente, é assim qualquer coisa como
os preços do petróleo, as minas de diamantes e a estratégia de não sei
do quê, geoestratégia, como eles dizem, etc. Pausa
Enfático: Mas o verdadeiro motivo, aquele que nos
leva a lutar e a matar, não é outro senão o amor! O amor!
Jovem: O amor!?
Rapariga: Oh! O amor!
Homem: O amor, fonte de todas as carnificinas. A caridade, o desejo, a
piedade desmedida. O apaixonado sempre desejou destruir o objecto do
amor adorado... sempre assim foi e assim será, para lá dos tempos que
hão-de vir. A caridade: por exemplo, todos sofrem em vida.
Jovem: É necessário acabar com o sofrimento do mundo! Só a morte lhe põe
termo, verdadeiramente. E a terra. A terra que os absorve, como mãe,
amorosa e amante. Oh! A terra amorosa e amante, que tudo recolhe, no seu
seio amorável e eterno!
Homem: A terra, a grande meretriz!
Rapariga: Tal e quase como eu. Gargalo partido de garrafa partida e que
nos ama a todos. Gargalo de seda, colo de esmeralda sempiterna. Do meu
seio brotará o amor que nos une e que destruirá a terra. Que em terra
transformará os seus filhos... (Pausa) E as suas noras. Pois o
que é o amor senão a outra face do ódio?
Jovem: Rostos de Janus, o amor e o ódio finalmente unidos, nos levam ao
combate.
Rapariga: E a terra. A terra que nos absorve, como mãe, amorosa e
amante. Oh! A terra amorosa e amante, que tudo recolhe, no seu seio
amorável e eterno!
Voz da 1ª Mulher: Esta parte, eu vos juro
que não entendi muito bem. Não me parece muito lógica.
Voz
da Filha irónica: Não tem lógica, mas faz sentido.
Enquanto se ouvem estas vozes, o homem, que se aproximou dos
bastidores e prestou atenção a qualquer coisa no exterior, regressa e
diz:
Homem: Alto! Acabou a guerra!
Jovem: com ar insolente: Porquê?
Homem: Porque o chefe vai abrir aqui, nesta terra, uma fábrica de
enlatados. A partir de agora todas as pessoas aqui existentes e ainda
vivas serão consideradas como potenciais consumidores.
Rapariga: E os que morreram também são potenciais consumidores.
Homem: Eram. Mas todos os consumidores em potência podem tornar-se
consumidores de facto, e de qualquer maneira... tu não entendes nada de
negócios.
Rapariga no tom de quem explica para quem não a entende: Mas se
os vivos podem não vir a consumir, então os mortos estão na mesma
categoria desses vivos, e portanto...
Homem: Mas para além desses há os outros vivos, e são esses que contam.
Ora!...O que é que tu percebes do assunto?
Jovem: Eu, por mim, vou continuar a lutar, e não quero saber de nada
disso, até porque não entendi nada, quero dizer, eu acho que a rapariga
por acaso até tem razão. Não é por matarmos meia dúzia de pessoas que
vai haver menos consumidores potenciais, isto pela lógica, como ela diz.
Homem
impaciente e um pouco irritado: A lógica não é para aqui chamada. O
que acontece é que o chefe vai deixar de fornecer as munições para as
pistolas, percebes?
Rapaz: Roubamos as munições do inimigo.
Homem: Mas o chefe também vai deixar de fornecer as munições ao inimigo.
Rapariga: Ah! Então o chefe é o mesmo?
Homem: Eu não sei se é o mesmo, porque eu nunca o vi. Aliás, nunca
ninguém o viu. Mas se não é o mesmo, há-de ser talvez amigo do outro.
Jovem, duvidoso: Talvez sejam primos?!
Rapariga com um ar de sincera ingenuidade:
: Não, os primos não costumam ser
amigos.
Homem: Isso não importa.
Jovem: Não é preciso ter mais munições para continuar a combater!
Qualquer vulgar faca de cozinha pode servir perfeitamente para o
mesmo... daquelas grandes, claro. Seja como for, eu ainda tenho muitas
balas.
Vozes das mulheres do cenário dois (permanecendo este
cenário ainda oculto):
1ªMulher.: Quem diria que uma vulgar faca de cozinha pode muito bem ser
uma arma de guerra?
2ª
Mulher.: Uma arma de guerra?
Filha: Uma arma de guerra?
1ªMulher: Uma arma de guerra!
2ªMulher.: Cala-te, deixa ouvir!
Rapariga de cenário Um, que entretanto saiu, entra com uma
grande faca de cozinha, que entrega ao rapaz. |
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Cena 6
Cenário dois |
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1ª
Mulher.: (empunhando uma faca de cozinha igual, com uma expressão um
pouco atordoada e idiota, que aliás é a sua expressão normal): Estas
facas de cozinha estão muito caras. E é difícil encontrá-las. Ainda
agora mandei afiar esta, porque não consigo encontrar outra igual.
2ªMulher.: Essas facas de cozinha são uma verdadeira homenagem ao ódio
universal: o ódio de todas as coisas por todas as coisas. Do homem pelo
animal, do homem pelo vegatal, do metal sobre o vegetal e o animal, e do
mineral sobre todas as coisas, incluindo o homem. Comparado ao ódio
universal, só há uma coisa: o amor universal!
1ª
Mulher.: O que eu estou a dizer é só que costumo cortar com ela o peixe,
os legumes e também a carne, claro.
2ª
Mulher.: Também era isso mesmo que eu estava a dizer... |
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Cena 7
Cenário Um |
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Rapariga eufórica: Já
podemos continuar outra vez a guerra! Morreu Ataná!
Jovem: Quem é esse?
Rapariga: É Aquele dos
enlatados.
Jovem: Ah, aquele que tinha medo
que lhe matássemos os clientes?
Rapariga: Potenciais!
Jovem: Morreu?
Rapariga: Morreu.
Jovem: Morreu, como?
Rapariga: Morreu, completamente
morto, e para sempre.
Jovem indiferente:
Morreu, como? Quem é que o matou?
Rapariga: Ninguém.
Jovem: surpreendido:
Ninguém?
Rapariga: Ninguém...
Jovem: Então como é que ele
morreu?
Rapariga: Talvez de apoplexia.
De paragem cardíaca.
Jovem: Toda a gente morre de
paragem cardíaca, que pode ser provocada por uma bala, uma facada bem
dada, ou... quer dizer..
Rapariga: Morreu sossegado e
feliz na cama dele; sofria do coração e a mulher pôs-lhe os cornos.
Quando ele soube, teve um ataque e pronto.
Jovem: Mas dizias tu que o gajo
morreu feliz...?
Rapariga: E cornudo. Os cornudos
costumam ser felizes! Os produtos que pertenciam a este pobre Ataná
tiveram sempre vários potenciais consumidores, e ele gostava disso.
Jovem um pouco deprimido:
Todos os covardes morrem na cama, sossegados e felizes. E agora, então?
Já não precisamos das facas de cozinha?
Rapariga: Não, os herdeiros
agora vão continuar a fornecer-nos as munições.
Jovem: Porquê?
Rapariga: Porque não gostam de
comida enlatada. Ficaram ricos, com a herança de Atáná, e do que eles
gostam é de frequentar bons restaurantes de comida francesa.
Jovem: Francesa?
Rapariga: Pois.
Jovem filosófico: É assim
o mundo! Para que nos havemos de preocupar com as mudanças? Sempre que
alguma coisa muda radicalmente, fica tudo na mesma, e quanto maior for a
mudança, mais fica tudo ainda mais na mesma...
Rapariga: Também digo.
Jovem: Também dizes?
Rapariga: Também digo.
Jovem: Então diz.
Rapariga: De todas as vezes que
alguma coisa muda radicalmente, fica tudo na mesma. O que eu digo é que
a guerra só se faz por amor e por caridade.
Jovem: Pois, e é claro, também
pelo gosto de matar, de tirar a vida, ou pelo contrário de a dar, pelo
facto de não a ter tirado.
Eu agora, por
exemplo, podia muito bem matar-te, (apontando-lhe a pistola:) mas
resolvi oferecer-te a tua vida, como se ela fosse realmente tua, como se
tu tivesses realmente direito a ela. Como se tivesses mais direito do
que eu, eu que magnanimamente ta ofereço, porque eu, no fundo, sou muito
bom.
Rapariga: A minha mãe e o meu
pai também me deram a vida.
Jovem: Portanto, têm o direito
de ta tirar. Eu, pelo contrário, tenho o direito de ta dar, o que é
muito melhor.
Os dois
abraçam-se e beijam-se. |
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Cena 8
Cenário dois |
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Em
cena estão as personagens Filha e 2ª Mulher
Filha: Achas que ela é doida?
2ªMulher: Não!
Filha: Não?!
2ª
Mulher.: Não...
Filha: Então como é que tu explicas todos estes desaforos, estas
incongruências todas que ela diz?
2ªMulher: A tua mãe tenta interpretar o real, ou pior ainda, a
realidade. Ora, o Mundo é absurdo, portanto ela interpreta-o em termos
de absurdo. Está tudo bem, é mesmo quase lógico.
Filha: Não entendo...
2ªMulher: A televisão é como se fosse a caverna de Platão. O que nós
vemos, são apenas as sombras do real, através das sombras da sua
representação, ou seja, o que vemos na televisão são as sombras das
sombras. Ou talvez seja melhor dizer as luzes: as luzes das luzes.
Filha: E no meio disso tudo, onde é que fica o real?
2ªMulher: Muito para lá das sombras e das luzes. É como se fosse um jogo
de espelhos. O verdadeiro real projecta-se como sombra na realidade.
Sendo assim, a televisão dá a ilusão do real que é sombra. A luz é, no
fundo, a sombra das sombras. É claro que tudo isto é ilógico, tudo isto
é absurdo, tal como a actual realidade.
Filha: E aonde é que fica a luz da luz?
2ªMulher: Isso não sei eu, nem sei se existe. Eu e tu ainda sabemos, no
fundo, menos do que ela. Porque não temos um sistema e ela tem, embora
fraco e falível. Nós apenas sabemos julgar...
Filha: Se bem te endenti, a tão falada "aldeia global", vista desse
modo, não passa no fundo de uma caverna global. Voltamos todos à
caverna, ao ponto zero das coisas e da civilização, mas estamos em
contacto com tudo, e apesar disso.. temos imenso por onde escolher.
Escolher é difícil e exige decisão, portanto o mais simples é alguém não
escolher coisa nenhuma, e deixar-se levar... assim...
2ºMulher: É isso mesmo, ou melhor, não é nada disso, digamos assim.
Filha
poética: E esses belos rapazes que caem como as folhas do Outono,
amo-os também.
2ªMulher: Que espécie de linguagem é essa?
Filha: E a terra. A terra que os absorve, como mãe, amorosa e amante.
Oh! A terra amorosa e amante, que tudo recolhe, no seu seio amorável e
eterno!
Entra a personagem 1ª Mulher
1ªMulher: Oh!, que grande horror! Imaginem que morreu o príncipe do
Botaquistão!
2ªMulher: Quem é esse?
1ªMulher horrorizada: Não sabes? É o último descendente da
dinastia mais antiga do planeta! Que horror! O que o mundo, o planeta
perdeu! O verdadeiro planeta inteiro. Está tudo, obviamente, em estado
de choque.
2ªMulher: E como é que ele morreu?
1ªMulher: Imagina tu: Andava a fazer alpinismo nos Himalaias, desportos
de Inverno, é claro, o mais chique do chique, a "crème de la crème".(Dramática)
Pois ele caiu de 2000 metros de altitude, e esborrachou-se.
Filha: Morreu, completamente morto e para sempre.
2ªMulher: Não percebo... que diferença pode haver entre a morte desse
homem e a morte de milhares ou talvez até de milhões de pessoas que
morrem de fome, ou por cataclismos...
Filha: É que este morreu feliz, e de costas. Caiu de costas, não foi?
1ªMulher: Não percebes, mas é que tu não percebes nada, vós não
entendeis a realidade!Ele era, muito simplesmente, Ataná, o grande
Ataná, sabes, aquele da televisão. Aquele que pagava a guera. É um caso
muito diferente desses que dizes, esses milhões, como dizes, porque
Ataná também pagava a paz. Enfim, fazia bem à humanidade.
1ªMulher: Ah! Era aquele dos enlatados!
2ªMulher: Era Ataná, de cognome o Grande. Deixem-me ver na televisão!
Filha: Mas na televisão disseram que ele morreu de apoplexia!
1ªMulher indiferente: Então não devia ser o mesmo...
2ªMulher irónica: Enfim, digamos que morreu de paragem cardíaca.
1ªMulher: Pois, mas esse de que vós falais devia ser aquele que pagava
as armas do inimigo.
Filha: Quem é o inimigo? |
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Cena 9
Cenário Um |
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Rapariga: Afinal também morreu o outro, aquele que pagava as armas ao
inimigo!
Jovem: Então já podemos continuar a guerra?
Rapariga. Bem me parece que sim.
Jovem: E esse, como é que morreu?
Rapariga: A fazer alpinismo nos Alpes Franceses. Caiu de 2000 metros de
altitude e esborrachou-se no chão, completamente morto e para sempre.
Jovem: Caiu de costas?
Rapariga: Está o mundo inteiro em estado de choque. Neste momento está
tudo colado à televisão a ver o funeral. É uma audiência televisiva como
nunca se viu, e toda a gente chora.
Jovem: E como é que se chamava esse gajo?
Rapariga: Ataná. O Príncipe Ataná.
Jovem
confuso:Mas o nosso também se chamava assim, o dos enlatados...
Rapariga: Pois, mas este chamava-se, na realidade, Atanaxágoras II. O
outro, o nosso, chamava-se só Atanágoras Papironautilus Nekrófilus da
Silva Pereira.
Jovem: Ah!
Entra o Homem
Homem: Já sabem as notícias, não é? Pois agora já temos outra vez
dinheiro para fazer a guerra. E o inimigo também tem.
Jovem: Óptimo!
Homem: Óptimo, mas não para ti. Os herdeiros destes homens pertencem a
uma geração completamente diferente da deles, o que significa que a
guerra que se travará agora de futuro será uma guerra totalmente
diferente da anterior. Será uma guerra ideológica. Vós os dois estais
completamente ultrapassados, porque não tendes ideais.
Jovem: Mas tu sempre disseste que nós lutávamos pela paz.
Homem
irritado: Ora, tretas! Isso era só retórica.O ideal agora é a
liberdade. Isto, só para não falar da caridade. Vós, meus caros, estais
completamente obsoletos e não servis para nada.
Rapariga: E aonde é que fica a luz da luz?
Quem
é o inimigo?
Jovem: retórico: Eu sempre lutei pela humanidade. A favor da
humanidade
Rapariga: Pois foi. Ele sempre disse isso!
Homem
dispilicente: Pela humanidade, pela humanidade. Convicto:
Nós, agora, lutamos pela humanidade com H grande, ao passo que tu
acabaste de dizer humanidade, pronunciando a palavra com h pequeno, o
que significa, obviamente, que...
Jovem: Não, não senhor! Eu disse humanidade sem h, umanidade com u.
Homem: Mas foi com u pequeno. e humanidade escreve-se com h.
Jovem: Eu disse com u grande. Olha lá, como é que tu sabes se o u era
grande ou pequeno?
Rapariga: Humanidade não se escreve com h nem com u. Humanidade vem de
homem, e portanto escreve-se com ó. Ele disse, claramente, Ómanidade com
ó grande. Voltando-se para o jovem: Não foi?
Jovem: Bem, foi mais ou menos... mas tu não entendes nada de política.
Talvez não tenha sido bem isso que eu disse.
Homem
defensivo: Eu já vi humanidade escrito com h!
Rapariga: Mas isso foi antes da reforma ortográfica!
Homem: Pois, agora deve ser com ó, por causa da etimologia, mas ele
disse com ó pequeno.
Jovem: Olha lá, eu não sou nenhum linguista! Eu disse da maneira como
sempre ouvi, e isso não interessa. O que interessa é... quer-se dizer...
Homem: O que importa é o que dizem aqueles que mandam, porque eu por
mim, também não sou nenhum retórico. Sou um homem prático.
Rapariga: Mas então, qual é o problema? Nenhum, a meu ver. Tu não és
retórico e nós também não... então, podemos muito bem esquecer esses
pormenores da gramática...
O homem dá um tiro em cada um e depois sopra no cano da
pistola.
Morrem a Rapariga e o Jovem. |
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Cena 10
Cenário Dois |
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1ªMulher: A melhor maneira de cozinhar lampreias, isto segundo todos os
melhores livros de culinária, é metê-las, ainda vivas, em água a ferver.
Filha
chocada: Que horror!
1ªMulher: Horror, porquê? Tu também as comes.
2ªMulher: Cala-te. Não vês que a rapariga está muito magrinha? Tu mesma
disseste que ela come pouco...
1ªMulher: Come pouco, mas come. (Mudando de assunto) Também há
outra coisa importante: aqueles peixes da cozinha japonesa, que se comem
ainda vivos mas cozinhados, ou melhor, retalhados em formas muito
bonitas, por exemplo, em formas de flor... bem, esses peixes têm um
sabor inimitável, verdadeiramente inexcedível, vos digo eu, que sei.
Filha: É o sabor do medo e da dor.
1ªMulher. Mas tu também os comes.
Filha. Não, isso não é verdade! Nunca comi tal coisa e recuso-me a fazer
isso.
2ªMulher: É o sabor do ódio universal. De todas as coisas por todas as
coisas.
1ªMulher: Do amor universal!
1ªMulher: Do ódio universal!
1ªMulher. Calem-se, as duas. Isto já mais parece uma conversa de
peixaria!
Filha
em tom publicitário: É a grande atracção universal: de todas as
coisas por todas as coisas. |
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Cena 11
Cenário Um |
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Jovem
levantando-se: Já estamos mortos?
Rapariga Levantando-se também, indiferente: Parece que
sim.
Jovem: Mas eu estou igual...
Rapariga: Eu também... (confusa). A diferença é que os outros não
nos vêem. Estamos só em espírito.
Jovem: Vamos para cima daquele penedo. Assim podemos observar melhor.
Sobem para o penedo
Rapariga: O meu espírito eleva-se.
Jovem
tentando disparar a arma: A arma não dispara!
Rapariga: Claro! Os espíritos do outro mundo, como nós, não têm a
capacidade de disparar uma arma. Nunca se viu um fantasma a dar um tiro.
Agora somos só observadores.
Jovem: Tu queres dizer que agora somos fantasmas?
Rapariga: Pois é...
Jovem: Mas eu sou um jovem activo, um homem da guerra, um homem forte,
eu...
Rapariga: Não te preocupes. As pessoas agora ainda têm mais medo de nós
do que antes. E ainda somos observadores.
Jovem: Observadores privilegiados!
Rapariga: E não te esqueças de que tu foste um herói.
Jovem: Fui, não. Sou.
Rapariga: Eras.
Jovem
estranhando: Eras?
Rapariga: "Eras sobre eras se vão para onde vai toda a idade" como dizia
Fernando Pessoa. "Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?"
Jovem: Então não era o Ataná? Atanágoras Papironaskias, qualquer coisa,
não sei o quê?
Rapariga: Isto que eu disse faz parte do poema. D. Sebastião, o
desejado. Porque os heróis são sempre desejados. Agora todos esperam. Tu
serás, a partir de agora, um mito. O herói que deu a sua vida pela paz.
Jovem: Contra a paz!
Rapariga: É a mesma coisa... |
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Cena 12
Coro constituído por todas as personagens dos dois
cenários |
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Eu te saúdo ó terra, ó velha meretriz!
Pois tu és a mãe que come os seus filhos e os
transforma em si própria
Coberta do sangue dos humanos, indiferente os engoles
Em pó transformados como tu, ninguém mais notará a
diferença
Porque todos serão mães de si mesmos.
Piso este chão que talvez seja o antigo corpo dos
persas e dos medos
Limpo o meu rosto deste pó que não sei donde vem, nem
sei muito bem o que foi.
Eu te saúdo ó terra, ó velha meretriz
Que de tão belos vestidos sabes recobrir-te, contudo.
Amada e louvada e deslumbrante, como o mar que te
rodeia e te abraça
E como esta galáxia que consigo te transporta para
outro lado do espaço.
Velha e amada meretriz e mãe,
Eu te saúdo ó terra, como aos imperadores romanos se
dizia:
Nós, que vamos morrer, nos prostramos humildes e
indignos
Perante o teu inabalável poder, quase tão eterno como
o poder dos deuses.
Mas se todos um dia serão em ti a terra-mãe e a mãe
de si mesmos,
Te pergunto eu então, e com humildade e reverência o
questiono:
Quem é, afinal, o inimigo? Onde é que está aquele que
é o inimigo do homem?
FIM
Graciete Nobre |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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