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É-me, por outro lado,
natural falar do Pai. E é-o, porque não sendo ele uma pessoa vulgar, eu
o conhecia melhor do que ninguém: pai e filha não têm dois corações.
Gostávamos das mesmas coisas, interessávamo-nos pelos assuntos muito
próximos - o que líamos, a música, a natureza: árvores do bosque,
flores, melros chasqueando nos seus voos rasteiros, o primeiro rouxinol
cantando nos salgueiros que pendiam sobre o lago. Coisas simples e
ternas, alheias ao mal, que nos aproximavam do divino, e apaziguavam a
agrura dos constrangimentos, que nos batem à porta e entram sem que
sejam convidados, e assombram as vidas das pessoas dentro de si
próprias.
Ouvia-lhe,
deslumbrada, histórias sobre os meus avós, bisavós, meus tios e tias, e
pressentia-lhe a saudade; sobre si próprio, ainda muito novo, deitado no
chão de um dos salões da “casa de cima», lendo, em voz alta à
“preguiçosa” irmã Helena, aqueles calhamaços que eram os romances do
séc. XIX. Mas também o Antigo Testamento ou o Ano Cristão. Tenho em meu
poder duas versões hagiográficas deste último, que o Pai relia, dia a
dia, ao fim das tardes: e foram elas a base dos seus hábitos
meditativos, durante toda a sua vida desde muito pequeno. Na
convivência, meu Pai como que sempre prometia uma outra VIDA. Não que
vivesse desligado deste mundo, mas os dias em família eram de bem-estar,
mas também de paz e desconforto interior. Talvez por isso a família se
transformou no centro do mundo para todos nós, mas, especialmente, para
o Pai, que recusou outros caminhos, incluindo o da Sorbonne.
Verdade é que,
desde menina, cirandava à sua volta. Fazia comentários, colocava
questões:
-“Que giestas tão
altas!”
-“Arbóreas, minha
filha…” – e explicava o significado do desconhecido adjectivo que
acabara de enriquecer o meu vocabulário de criança, durante um qualquer
passeio pela vereda, lá, no Senhor dos Vales.
Foi por esses lados
que me foram apontados os Paços de Lalim, para além do rio Barosela,
onde se isolara esse D. Pedro, filho de D. Dinis. Recordo as palavras de
meu pai, contando que lá morara também uma sua tia e tivera ele
oportunidade de ver ainda o “alpendre” referido no testamento de D.
Teresa Anes, em 1354.
Era muito frequente
que o afastamento de algumas horas me levasse a interromper-lhe o seu
trabalho. Ouvia-me e, se fosse o caso, dizia: -“E se agora fosses à tua
vidinha, se não ainda se me varre esta ideia da cabeça…”. Ou perguntava
eu o que era o senso comum. O seu sorriso balouçava entre o doce e o
maroto: -“Olha, é uma coisa que tu não tens!”. Não pressentia eu, dali,
grande elogio, afastava-me resmungando e, a meio caminho da porta, ouvia
chamar-me, e lá vinha a explicação. O sorriso doce e maroto acompanhava
o seu abraço.
Também meu Pai
cirandava à minha volta, sobretudo quando queria partilhar comigo algo
que lhe agradava ou quando precisava de desabafar: –“Anda cá ver uma
coisa!” ou –“boa piada esta!” – ouvia eu dele. A “coisa” ou a “boa piada
esta” tanto podia referir-se à forma intermédia da evolução de um
topónimo, que quase desistira de encontrar, como à descoberta de um
ninho de melros nas glicínias que cultivara, ou na enorme hera, que
também havia plantado, esse ninho, mesmo por cima do lugar onde apanhava
Sol e dormia uma soneca. Ou podia, igualmente, referir-se às toutinegras
que se inclinavam do beiral, aguardando, pacientemente, que se lhes
permitisse o aconchego da pernoita.
Depois do almoço,
ou do lanche, a casa inundava-se de música: chegava à minha saleta de
trabalho, derramando acordes, tomando posse do meu sentir. Hoje, embora
num apartamento, a música também se derrama e se apodera de mim: -“Onde
está Pai?” Um dia quero ir ter com ele, seja qual for a forma de vida,
mas certamente que será calma, doce e leal. Afinal, gosto muito de ser
ainda parte do meu Pai. E quem dera que hoje pudesse, como acontecia,
acalmar o seu íntimo nas situações de angústia, que a sentia; nas suas
desilusões, porque as teve; na sua dualidade, que também existia.
Entrar na essência
do ser humano é pretensão arriscada. No entanto, tudo quanto vivemos e
partilhámos dá-me justificação para a ousadia de pretender traçar um
esboço de personalidade de meu Pai, partindo, desde logo, do princípio
de que quanto possa dizer se interliga e condiciona entre si.
Primeiro, e antes
do mais, a sua disciplina de vida, marcada por tempos que cumpria sem
uma palavra de contrariedade ou de esforço: a família, a investigação, o
lazer, a meditação e a oração. No entanto, em nada esta disciplina se
tornava pesada ou desagradável. Não havia medo ou imposição em família e
a presença era bem vinda. Sempre admirei este equilíbrio.
Em segundo lugar, a
sua formação moral, um acervo de princípios, convicções e dúvidas: a sua
fidelidade aos princípios da moral católica; a procura da verdade versus
a compulsão das dúvidas; o reconhecimento da existência do bem e do mal
dentro de si próprio; os princípios e os dogmas da religião versus
espírito científico.
Por último, os seus
princípios como investigador, que se revelam como objectivação e prática
dos valores morais: a recusa à fuga das dificuldades; a procura rigorosa
e minuciosa de soluções para os problemas vários da construção
histórica; a fidelidade às fontes documentais como base das suas
deduções e propostas; o recurso às ciências auxiliares da história e,
nestas, à Filologia; a liberdade na investigação, sem obediência e
constrangimentos externos, de qualquer natureza; a honestidade
intelectual.
Creio que nada de
essencial me terá escapado, nestas três vertentes, digamos, da descrição
do Pai, e não tenho qualquer dúvida de que a sua formação moral católica
o influenciou na forma como viveu e como investigou.
É a sua obra
poética que melhor reflecte quanto lhe é penoso conciliar a sua condição
humana e a Fé. Diz-se: “Qual fruto deste mundo verminoso /na fé um fraco
dúbio”. Teme: “arder no mal, ou nele ser operoso”.
Suplica “Ensina-me
a viver dos desenganos, / ajuda-me a morrer livre de enganos, /
resguarda, pois […] a minha alma / tem de mim cuidado na ingente luta, /
contra males e danos!”.
A acalmia e a
esperança ocorrem raramente: “eu sei, porém, que vela o meu repouso. /
Senti aceite o que a minha alma pensa!”.
É o cientista que
embate nas barreiras do inexplicável e do desconhecido: faltam-lhe os
documentos, a Onomástica, a Filologia, a Linguística, a Fonética, a
Semântica, a Semiologia, a Geografia, a Matemática…
Contudo, não
enjeita prosseguir: reconhece-se, teme, suplica, aproveita os poucos
sinais de esperança e segue: não deixa de amar a sua família, não renega
a investigação, quer continuar a viver: tem a família que ama e o ama, o
acompanha…
Como historiador,
tem os seus adjuvantes, e as barreiras vão sendo destruídas, através de
um trabalho árduo e rigoroso, abrindo caminhos: “Não é onde as sombras
se adensam que tem de ser-se ousado, para se procurar o que escondem?” –
pergunta. Mesmo que se engane! Então, denuncia o erro. São muitas as
referências à problemática da construção histórica: “Trata-se de uma
substituição, que, sem dever ser definitiva, coisa que, em História, não
pode existir, é também emenda, e ainda solução até um novo fazer-se luz.
Parta esta de mim ou de outro”. “A verdade histórica é uma verdade
moral: o historiador não presenciou os factos e tem de fazer fé nos
documentos”; “Atento o envelhecimento da construção histórica, não
surpreende que algum dos meus pareceres haja sofrido alteração”. “O que
faço são propostas”.
Confessar erróneas
as suas conclusões é acto que lhe não repugna: “É possível que Egas
Moniz só tivesse sido tenente de Lamego após os acontecimentos de
1127-1128, ao contrário da nossa antiga opinião”. E mais
implacavelmente: “As aleivosias que proferi a esse respeito…”
O melhor exemplo a
referir é o de um livro, ainda inédito, sobre Egas Moniz, em cujas
últimas páginas foi anotando, dia após dia, ano após ano, destinou a
emendas, ponto por ponto, do que havia dito na obra D. Egas Moniz de
Ribadouro, na sua juventude (27/28 anos). Igual crítica é feita num dos
mais recentes: Portugal Primitivo Medievo.
Meu Pai teve a seu
favor, além de profundo conhecimento das fontes, o domínio da língua
portuguesa e a enorme facilidade de expressão. O profundo conhecimento
do Latim facilitou o seu labor. Refira-se, por graça, que o não aprendeu
num seminário, como já ouvi por aí. Num seminário esteve cinco dias,
quando se zangou com a minha Mãe: regressou a casa, os pés enregelados
pelo frio que lá rapara, e não lhe ficou vontade de repetir a dose –
passe o vernáculo da palavra.
A alta Idade Média
pré-nacional fascinava o investigador, pelo gosto da descoberta, por um
espírito de missão, vindo do recôndito da sua alma de Cristão, que não
fugia às dificuldades e sentia seu dever pôr a render talentos e semear
em terreno propício. Estampam-se nos seus estudos e na sua vida a
parábola dos talentos e a do semeador.
Fora iniciado pelo
meu Avô, amigo de Leite de Vasconcelos e do Abade Moreira, amante do
greco-romano, que lhe proporcionou aulas de Latim, Inglês e Música. O
conhecimento do Latim veio a calhar para a interpretação dos documentos.
Daqui à sua paixão pela Etimologia foi um passo. À Toponímia
considerava-a o “documento dos documentos” e dela se socorreu, como
aconteceu com o topónimo Santar que lhe permitiu datar o foral de Zurara
(1109, cf. Viseu, Agosto de 1109 – Nasce D. Afonso Henriques).
O conhecimento do
Alemão igualmente o ajudou na toponímia de origem germânica. A propósito
do pré-romano, lembro um comentário meu sobre a lavandisca que debicava,
alegremente inquieta, perto dos charcos deixados pela chuva. Meu pai
inquiriu se eu sabia a origem do nome. E, com a sua natural propendência
para informar no momento oportuno, esclareceu que o radical pré-romano
lav- dizia respeito a água.
Fascinava-o também
mergulhar nas famílias alti-mediévicas, com toda aquela confusão de
nomes, o que já me exigiu especial esforço de concentração para não
sentir a cérebro imobilizado e gasto. Confrontado com as minhas dúvidas
sobre se a aproximação da escrita dos nomes não resultaria da habitual
irregularidade característica da escrita na Idade Média, explicava que a
cronologia tirava dúvidas bem como os casamentos e outros actos. E
avisava textualmente: -“Não corrijas nada sem me avisares. Não faças
como o tipógrafo de Braga que até já me corrige o Latim”.
De passagem,
poderei também relembrar como, sempre que se fala em Egas Moniz, este
nome é imediatamente identificado com o Aio de Afonso Henriques, quando,
cronologicamente, existem outros, o que levou a grandes confusões e a
más interpretações. Se historiadores houve, seus contemporâneos, que não
tiveram a isenção de se corrigirem a si próprios, alguém houve que
seguiu, deliberadamente, a experiência do Pai; refiro-me ao Prof. Paulo
Merêa, que o refere nos seus próprios livros e a quem, apesar disso, meu
Pai considerou seu Mestre.
O seu gosto e a sua
ânsia de liberdade e independência, tudo exigindo de si próprio,
constituem uma lição de vida, de imensurável dignidade e elevação.
Seguramente, por esta razão, teve tudo de mim – e falo por mim como
poderia falar pelo meu irmão ou pelo meu filho. Teve de mim proximidade,
atenção e reverência; consolo, carinho e encorajamento. E mimo, porque
bem o mereceu, em recompensa por vir tocar banjo para os pés da minha
cama e exclamar: - “A minha filha! Sã como um pêro!”.
Soam agora algumas
palavras de D. José Pedreira, bispo de Viana, no seu elogio fúnebre: -
“Era um homem de silêncios cheios!”, explicando que, nesses silêncios,
não havia vazios: através deles, os “silêncios cheios”, levava a cabo
todo um processo de reedificação de que havia construído em si próprio,
como homem e como investigador, num contínuo e árduo labor de avaliação
moral e intelectual.
O seu apego à
Família determinou a sua opção de vida. Soube amar a minha Mãe, Senhora
de uma enorme elevação, que o amou desmedidamente. Educou dois filhos e
um neto, nos parâmetros da honestidade e do respeito pela liberdade. A
este propósito, relembro que, estando o meu filho, João, no seu
escritório, brincando, entretidíssimo com os seus brinquedos, eu cheguei
e interrompi as suas brincadeiras. Meu Pai, como quem não quer a coisa,
aconselhou-me a não interromper quando o Neto estivesse entregue ao que
lhe interessava: “Caso contrário, não aprenderá a ser um homem livre”.
E, um outro dia, em que fui mais ríspida na admoestação pediu: -“Não
humilhes o pequenino. Lembra-te que ele tem uma alminha!”.
Pergunto a mim
própria como é possível recordar os tempos do fim da vida de meus Pais,
em especial de meu Pai, porque a minha Mãe já havia partido, como dos
tempos mais gratificantes para mim, embora o medo, embora o fim. Existe,
dentro da dor, uma alegria, como tão bem resumiu António Lobo Antunes,
em entrevista recente na televisão.
Nada de quanto se
disse sobre o meu Pai define melhor a sua natureza do que as suas
próprias palavras, a mim dedicadas, no seu livro Território e Política
Portugalenses – sécs. VI-XII: “Minha Filha […] quantas não foram já as
vezes que, um tanto scherzosamente, como é teu jeito, me disseste que,
ao publicar um livro, nunca te lembrei? […] Eis o livro que te dedico
[…] Nele, enquanto ele durar, ficarás inscrita para este mundo, como o
estás no meu coração para este e o de Além. De resto, pai e filha não
temos dois corações, mas um […] Eu devo-te esta dedicatória porque sei
mais do teu íntimo […] (e) dirás, no teu silêncio interior, como a
amável heroína de Piave a seu pai: ‘Ah, se può lieto rendervi, / gioia è
la può vita a me’. Mas o coração é único e eu sinto-te; e tu, pois,
sentirás que teu pai, também no seu íntimo silêncio, te responde que … ‘a
te d’ appresso / trova sol gioia il cor opresso’. Tenho
responsabilidade em ti. Tem-na em mim. Com a graça de Deus, não nos
atraiçoaremos”.
Estas palavras são
a fatia mais querida da minha herança. Mas como me envolve e exige de
mim! Não estou segura de a merecer. E como pô-la a render? Contudo, o
Pai sabia o alcance destas palavras. Sabia que eu as sentiria como um
testamento, uma última vontade que tenho o dever de cumprir e de passar
ao meu Filho e à minha Neta. Ouvirei meu Pai, respondendo-me “a te d’appresso,
trova sol gioia il core oppresso? ”
A Academia
Portuguesa da História, na pessoa da sua Presidente, Senhora Prof.
Doutora Manuela Mendonça, sabe quanto lhe estou grata pela iniciativa
deste Colóquio, da forma tão agradável e amiga e, sobretudo, tão isenta,
neste tempo em que paira a triste perversão de valores e até se
aproveita, em benefício próprio e resultado de uma vida de trabalho
dedicado a conhecimento da história pátria. Bem-haja uma vez mais. Peço
à senhora Professora que transmita ao Senhor Professor Doutor Joaquim
Veríssimo Serrão os meus votos de rápidas melhoras. Ele sabe o respeito
que me merece, igual àquele que meu Pai por ele sentia.
Senhor Prof. Doutor
Aires do Nascimento, muito obrigada pela sua amizade e pelos sacrifícios
que faz como prestigiante elemento do júri do Prémio A. de Almeida
Fernandes.
Senhora Prof.ª
Doutora Maria Alegria Fernandes Marques, minha muito querida amiga,
sempre tão sensível que até arranja modo de ocupar as férias com a
análise dos trabalhos presentes ao Prémio A. de Almeida Fernandes.
Senhor Dr.
Francisco Peixoto, Presidente do Conselho de Administração da Fundação
Mariana Seixas, meu querido amigo. Preciso da sua ajuda e ofereço-lhe a
minha. Obrigada por ter instituído o Prémio A. de Almeida Fernandes.
Senhor Secretário
do Prémio A. de Almeida Fernandes, António José Coelho, obrigada por
todo o trabalho que tem tido todos estes anos, em especial na época da
preparação da entrega do Prémio.
A todos os Senhores
Participantes neste Colóquio, os meus mais sinceros agradecimentos pela
presença e colaboração, sem dúvida muito importantes como forma de
perpetuar o nome e a obra de meu Pai.
João Luís, bem
hajas pela tua dedicação a tudo quanto envolver o nome e a obra do teu
Sogro. São muitas horas de trabalho diário. Peço-te que abrandes um
pouco, e sigas o exemplo do teu Sogro: investiga e escreve, mas ouve
música, lê, passeia e dorme umas sonecas antes de reiniciares o teu
labor.
Senhoras e senhores
Convidados, muito obrigada por estarem presentes. |